As Ideias de Karl Marx – Nildo Viana

Karl Marx é um dos pensadores mais complexos na história do pensamento ocidental. O nosso objetivo no presente texto é um grande desafio: apresentar sinteticamente e de forma acessível um pensamento extremamente complexo. Para realizar tal tarefa, iremos expor a teoria de Marx sem trabalhar sua constituição histórica, seu processo interno de formação, o que significa que nossa abordagem do pensamento de Marx não é uma biografia intelectual e nem se prenderá ao seu desenvolvimento cronológico.

O que faremos é uma exposição de sua teoria, de suas idéias principais. Iniciaremos com sua teoria da natureza humana e sua deformação, a alienação, para depois colocarmos os seus conceitos de modo de produção e luta de classes, bem como uma breve discussão sobre sua teoria da ideologia e o seu método dialético, desembocando, finalmente, em sua teoria do capitalismo e do comunismo.

A Natureza Humana e a Alienação

O ponto de partida de Marx é sua teoria da natureza humana. Ele ironizava aqueles pensadores que tomavam os indivíduos tal como existem numa determinada época e sociedade como o modelo de natureza humana. Para Marx, a essência e a aparência dos fenômenos não são a mesma coisa. Segundo o seu método dialético, o que existe aparece imediatamente à consciência mas não sua essência.

Aplicando este método ao problema da natureza humana, percebemos que a essência humana não é visível imediatamente, o que se vê é sua mera aparência. É por isso que vários filósofos confundiram os indivíduos de determinada época ou sociedade com a natureza humana. O indivíduo utilitarista, egoísta, competitivo, da sociedade capitalista, por exemplo, é tido como a essência humana. Marx irá dizer que tal indivíduo não expressa a essência humana e sim a existência humana num determinado momento histórico e sociedade. Tomar este ser existente de fato, em determinada época e sociedade, e considerá-lo a essência humana é um equívoco. Assim, é necessário não confundir existência com essência, pois ao levar em consideração a existência, perde-se de vista a essência e o que sobra é apenas aparência. Tal como no dito popular, “as aparências enganam”.

Se o indivíduo da sociedade capitalista não é a essência humana, então a quem cabe este papel? O indivíduo da sociedade feudal? O da sociedade escravista? A resposta também é negativa. Não se trata de tomar a essência como um conjunto de manifestações existenciais. A grande questão lançada por Marx é: o que é um ser humano? Como não descobrimos isso observando os seres humanos em cada época histórica ou tipo de sociedade, então como descobrimos a essência humana? Segundo Marx, através do processo de abstração, que busca descobrir por detrás da existência a essência. Se estamos abordando a essência humana, então não é observando os seres humanos em determinada época ou sociedade que podemos descobrir sua natureza. A essência humana pertence a todos os seres humanos, independentemente da época e sociedade.

Assim, devemos perguntar: o que existe de comum em todos os seres humanos? Ora, todos os seres humanos precisam, para sobreviver, de comer, beber, dormir, amar, etc. Este conjunto de necessidades está presente em todos os seres humanos, em qualquer época ou sociedade. Mas como estes seres humanos fazem para satisfazer estas necessidades? O fazem através da relação com os outros seres humanos e através do trabalho. Aqui temos dois conceitos fundamentais para se compreender o pensamento de Karl Marx: trabalho e relação social.

Para comer, beber, habitar e satisfazer outras necessidades humanas, o ser humano precisa trabalhar. O trabalho também se torna, assim, uma necessidade humana. Na realização do trabalho, o ser humano muda a natureza e a si mesmo. E ele executa o trabalho ao lado dos demais seres humanos, num processo de cooperação. Ou seja, ele executa o trabalho numa relação social com outros seres humanos. Ao fazer isto, ele transforma o trabalho e a sociabilidade em partes de sua essência, de sua natureza. Um ser humano somente desenvolve habilidades humanas no interior de relações sociais. A fala, por exemplo, só ocorre no interior das relações sociais. Um indivíduo não aprende a falar sem contato com outros seres humanos e nem necessita fazê-lo se mudar para uma ilha deserta.

A tese de Marx é a de que o ser humano uma vez satisfazendo suas necessidades primárias (comer, beber, etc.) acaba criando novas necessidades. O meio e a forma de realizar tal satisfação se tornam também necessidades humanas (Marx e Engels, 2002). O trabalho e a sociabilidade se tornam necessidades humanas e ao existirem e se desenvolverem historicamente criam, por sua vez, novas necessidades. Daí a importância que Marx irá conceder ao trabalho e à sociabilidade.

O trabalho é uma potencialidade e necessidade humana. Através do trabalho, o ser humano se realiza, dá forma humana ao mundo. O trabalho realiza um processo de humanização do ser humano e do mundo. O ser humano manifesta seu ser interior e se exterioriza através do trabalho. Assim, através do trabalho, o ser humano se humaniza e faz o mesmo com o mundo. O trabalho está intimamente ligado à sociabilidade. O ser humano é um ser social, um “ente-espécie” (Marx, 1983a), e o trabalho é realizado no interior das relações sociais, através da cooperação. Assim, o processo de humanização é aquele marcado pela cooperação entre os seres humanos e pelo trabalho enquanto objetivação, isto é, enquanto forma de manifestação das potencialidades e necessidades humanas.

O processo histórico complexifica o ser humano, o processo de humanização cria novas necessidades e é assim que se pode conceber a natureza humana, um ser que possui um conjunto de potencialidades e necessidades, desde as primárias (comuns a todos os animais, tal como a alimentação) passando pelas essencialmente humanas (trabalho, sociabilidade) até chegar em necessidades que são um desdobramento destas, embora, devido a determinados contextos sociais, é possível haver necessidades prejudiciais ao ser humano enquanto “ente-espécie” e indivíduo. Assim, a natureza humana não é definida empiricamente, tal como nas concepções empiricistas, e nem abstratamente, tal como em certas concepções filosóficas. O que existe de comum em todos os seres humanos são suas necessidades e potencialidades.

Neste sentido, por qual motivo não poderíamos tomar o indivíduo da sociedade capitalista ou qualquer outro como modelo de natureza humana? Isto ocorre pelo fato de que a análise de Marx não é indutiva, isto é, ele não parte de um caso particular, indivíduo, para chegar a uma generalização. A sua análise também não é dedutiva, isto é, não parte de premissas abstratas e gerais para chegar ao particular.

A análise de Marx é dialética e isto significa que ele rompe com o empiricismo e com a metafísica. Ele não parte do indivíduo, pois o indivíduo é manifestação da essência humana, mas tal como determinado por uma época e sociedade específica, assim como não parte de premissas abstratas, tal como o egoísmo natural do ser humano, pois tal premissa não tem base real, histórica, concreta. O procedimento de Marx é, tal como mostramos anteriormente, através da abstração (no sentido dialético do termo, isto é, buscando reconstituir o todo no pensamento) descobrir a essência humana. Isto não quer dizer que esta essência se manifeste plenamente e sem interferências sociais, históricas, etc.

A manifestação da natureza humana ocorre ou é obstaculizada em cada época histórica através das formas de produção e reprodução dos bens materiais necessários para a sobrevivência humana. O modo de produção e reprodução dos bens materiais em determinada sociedade vai configurar o ser humano histórico-concreto, que é uma forma de manifestação concreta da natureza humana. E pode ser uma manifestação deformada, reprimida, coagida. Mais adiante voltaremos ao conceito de modo de produção, fundamental para a teoria de Marx.

Esta posição metodológica pode ser melhor compreendida no que se refere à questão da natureza humana quando ele expõe o processo social e histórico marcado pelo impedimento da manifestação plena da natureza humana. E Marx explica isso abordando o fenômeno da alienação. O conceito de alienação é retirado da filosofia alemã (principalmente Hegel e Feuerbach, dois filósofos que influenciaram bastante o pensamento de Marx) mas ressignificando-o, isto é, dando um novo significado a este termo.

Marx desenvolve o conceito de alienação em sua ligação com o trabalho. A fonte da alienação está no trabalho. Anteriormente descrevemos o trabalho como objetivação, isto é, como um processo de realização do ser humano e como elemento de sua humanização. Agora iremos mostrar a análise que Marx realizou do trabalho enquanto alienação. Desta forma, se observa que Marx distinguia entre duas formas de trabalho, uma que é manifestação da essência humana, objetivação, e outra que é negação da essência humana, alienação. A alienação surge no trabalho e se generaliza pelas demais relações sociais. É por isso que Marx irá se dedicar ao que chama trabalho alienado (Marx, 1983a). Ao mesmo tempo em que o trabalho é um meio de realização do ser humano, de manifestação de sua essência, é também sua negação, quando se torna alienado. O ser humano quando é livre para desenvolver suas atividades se realiza e se humaniza, mas quando ele perde sua liberdade, ele se torna um ser mutilado e nega a si mesmo, contradiz sua própria essência, natureza. A atividade humana livre permite o desenvolvimento das potencialidades humanas, a livre manifestação de suas energias físicas e mentais.

Porém, quando, historicamente, o ser humano não possui mais controle de sua atividade, quando passa a ser controlado por outro, ele se torna um ser alienado. Se determinado indivíduo não tem controle sobre suas atividades, então ele é controlado por outro indivíduo. Isto ocorre com o surgimento da propriedade privada, da sociedade de classes. A emergência da propriedade privada é produto de um longo e complexo desenvolvimento histórico da humanidade e marca o início do processo de exploração e dominação.

Com este ato histórico, passa a existir uma divisão social entre aqueles que produzem as riquezas, os bens materiais, que são os trabalhadores e aqueles que são os proprietários dos meios de produção (terras, máquinas, ferramentas, etc.). Os trabalhadores não controlam o seu processo de trabalho, sua atividade. Eles são controlados, dominados, pelos não-produtores, pelos proprietários.

Assim, a propriedade privada é uma relação social que marca o início de um processo de desumanização, pois as relações sociais já não são mais comandadas pela cooperação e sim pela dominação, pela alienação, na qual os proprietários dirigem o trabalho dos não-proprietários. Se os proprietários (não-trabalhadores) dirigem os não proprietários (trabalhadores), então há alienação da atividade e o trabalho perde o seu caráter de manifestação da essência humana para se tornar sua negação. É por isso que, como já dizia Marx, o trabalhador foge do trabalho como o diabo foge da cruz, que ele se sente desgastado, oprimido, esmagado, pelo trabalho. O trabalho deixou de ser manifestação livre dos seres humanos associados para se tornar uma atividade controlada por outros seres humanos.

Se o trabalhador perde o controle do seu processo de trabalho, então ele perderá o controle do resultado de sua atividade, isto é, do produto do seu trabalho. Assim, o produto do trabalho passa a não lhe pertencer. O resultado do trabalho alienado é a propriedade privada, isto é, a apropriação dos produtos produzidos pelos não produtores. Assim, é o trabalho alienado que gera a propriedade privada, embora ambos surjam simultaneamente.

A situação do trabalhador é a de um indivíduo que não se realiza no seu trabalho, mas a de um ser que perdeu o controle de sua atividade, de sua vida. Também é um ser que vive as relações sociais não como realização da sociabilidade através da cooperação, mas que vive em relações sociais marcadas pela dominação e exploração. O produto do trabalho, devido a isto, não lhe pertence, pertence a outro, ao proprietário. E assim ele não se realiza no seu produto, nem se reconhece nele.

A alienação do trabalho faz com que o trabalhador perca o produto do seu trabalho e não se reconheça nele, ao contrário de uma criança que constrói seu castelo de areia e se realiza e alegra com sua obra. No entanto, isto não é algo irreversível, e ao negar a essência humana, temos um ser humano mutilado que busca se reencontrar, que busca o domínio de sua atividade, do produto de sua atividade, e da associação com os outros seres humanos sem o processo de exploração e dominação. Isto não é possível em sociedades divididas em classes sociais, onde vigora a propriedade privada. É por isso que Marx irá ver a negação da exploração e da dominação e a possibilidade de constituição de uma sociedade sem propriedade privada, sem exploração e dominação, isto é, sem alienação. Nesta nova sociedade, chamada por ele de “sociedade comunista”, os seres humanos serão livremente associados e poderão, finalmente, manifestar livremente sua essência, desenvolver todas as suas potencialidades, se realizar ao invés de se negar.

Modo de Produção e Luta de Classes

A partir desta teoria da alienação e da exploração Marx irá buscar reconstituir em grandes linhas alguns aspectos fundamentais da história da humanidade. Ele irá produzir uma teoria da história da humanidade, que posteriormente ficou conhecida como materialismo histórico. Marx parte dos seres humanos concretos, de suas necessidades, e a partir disto observa que as formas de relações sociais são constituídas entre os seres humanos.

Para compreender a história da humanidade sobre esta base concreta ele irá trabalhar com o conceito de modo de produção. O modo de produção são as formas pelas quais os seres humanos produzem e reproduzem os bens materiais necessários para uma determinada sociedade. A sociedade é um conceito mais amplo, sendo o “conjunto de relações sociais” (Marx, 1989). Em uma determinada sociedade, tal como a capitalista, feudal, etc., existe um modo de produção que é sua base, seu fundamento, e junto com ele as formas jurídicas, políticas e ideológicas que são sua extensão.

Assim, uma sociedade é composta por um (ou mais, como veremos adiante) modo de produção e pelas formas políticas, jurídicas e ideológicas existentes e que são expressão deste modo de produção. Estas formas políticas, jurídicas e ideológicas são formas de regularização das relações sociais, e, inclusive, as existentes na esfera do modo de produção.

O desenvolvimento histórico marca um progressivo desenvolvimento das forças produtivas, isto é, da capacidade humana de efetivar o trabalho e de meios materiais para realizá-lo (máquinas, ferramentas), bem como os recursos naturais que podem ser utilizados. Este desenvolvimento histórico proporcionou a produção de um excedente, isto é, de uma produção além da necessidade da totalidade da população. Isto possibilitou a ampliação da divisão social do trabalho, que antes era fundada na cooperação, e permitiu o desligamento de parte da população do trabalho manual, se dedicando exclusivamente ao trabalho intelectual e a outras atividades, tal como a guerra. Esta divisão social irá permitir a separação entre os produtores de riquezas (os trabalhadores não-proprietários) e os apropriadores de riqueza (os proprietários não trabalhadores), o que marca o surgimento das classes produtoras e exploradas, por um lado, e as classes exploradoras, por outro.

A partir deste momento, temos a passagem de sociedades sem classes para sociedades divididas em classes sociais. Os modos de produção anteriores se fundamentam na propriedade coletiva da tribo e na cooperação, mas com a transição para a sociedade de classes, surge a propriedade privada, que segundo Marx não é mais que a expressão jurídica da divisão social do trabalho (Marx, 1983). As relações de produção, relações sociais entre os seres humanos no processo de produção e reprodução dos bens materiais, deixam de se fundamentar na cooperação e passam a se organizar sob a forma de dominação e exploração. Assim, as relações de produção se tornam relações entre classes sociais (produtores não-proprietários e proprietários não produtores).

No entanto, as classes exploradas não apenas vivem o processo de alienação, exploração, dominação, mas resistem, lutam. Por isso, com o surgimento da sociedade de classes, as relações de produção se tornam relações de classes, lutas de classes. O motor da história, segundo Marx, é a luta de classes. Esta luta opõe a classe proprietária (classe dominante) à classe explorada.

Tal luta ocorre sob as mais variadas formas, desde a que ocorre no processo de produção até a que ocorre na esfera cultural. Esta luta, portanto, tem sua origem no modo de produção mas se reproduz em todas as esferas da vida social, incluindo as formas de regularização (jurídica, política, ideológica) da sociedade. Os conflitos perpassam toda a sociedade. No entanto, não são apenas as duas classes fundamentais que estão nesta luta. Existem outras classes sociais, oriundas de resquícios de modos de produção ultrapassados, de modos de produção subordinados, ou constituídas pela divisão social do trabalho nas próprias formas de regularização.

Por exemplo, no capitalismo as duas classes fundamentais do modo de produção capitalista são a burguesia (classe capitalista) e o proletariado (classe operária), mas existiram e continuam existindo outras classes sociais nesta sociedade, tal como os nobres, o clero, os artesãos, os camponeses, a burocracia, entre outras. Porém, como o processo de produção capitalista constitui a burguesia e o proletariado e é a fonte da produção de riquezas nesta sociedade, então estas são as classes sociais fundamentais desta sociedade. É por isso que Marx focaliza em suas análises as duas classes fundamentais, principalmente em suas obras no qual aborda um determinado modo de produção. Em sua obra sobre o modo de produção capitalista, O Capital, ele focalizou a burguesia e o proletariado, embora tenha feito algumas referências a outras classes sociais. No entanto, em obras como O Dezoito Brumário, As Lutas de Classes na França, entre outras, Marx inclui outras classes sociais na análise.

Marx, em seus estudos sobre a história da humanidade, percebeu a existência de diversos modos de produção, incluindo uma diversidade de modos de produção fundados na luta de classes, tais como os modos de produção escravista, feudal, capitalista, bem como o modo de produção asiático, dominante na Índia, China, entre outros lugares.

Já apresentamos uma definição preliminar de modo de produção, que é a forma como os seres humanos coletivamente produzem e reproduzem seus meios de sobrevivência. Mas é preciso aprofundar esta definição. Um modo de produção possui dois elementos constituintes:

“Por um lado, as relações de produção e, por outro, as forças produtivas. As relações de produção são as relações sociais travadas entre os seres humanos no processo de produção. Nas sociedades de classes, são relações entre classes sociais, relações de propriedade. De um lado, os proprietários dos meios de produção; de outro, aqueles que só possuem sua força de trabalho, sua capacidade de trabalhar. Os proprietários dos meios de produção exploram os trabalhadores, extraindo deles um mais-trabalho, pois eles produzem não só para garantir a sua própria sobrevivência como produzem também um excedente apropriado pelos proprietários. Essa relação de exploração é uma relação de classe e produz, necessariamente, sob variadas formas e quer os seus agentes tenham consciência ou não, uma luta constante e cotidiana entre as duas classes sociais envolvidas. Assim, o modo de produção nas sociedades de classes é um modo de luta de classes. As lutas entre senhor de escravos e escravo se expressa sob várias formas, desde a fuga do escravo, o assassinato do senhor até chegar às rebeliões escravas, tal como a de Spartacus. A luta entre servo e senhor feudal também ia desde o roubo de lenha nas florestas reservadas ao senhor, a disputa em torno dos impostos, até chegar à luta pela propriedade da terra por parte dos servos. A luta entre capitalista e operário se manifesta sobre as mais variadas formas, desde a luta salarial, as greves, a lentidão na produção, as formas de organização e luta dos trabalhadores até chegar às tentativas de revolução social” (Viana, 2005).

O conjunto de máquinas, ferramentas, terras, instalações, capacidade de trabalho, que permitem o processo de produção é o que se pode denominar forças produtivas, isto é, os meios de produção e força de trabalho. Estes são os meios materiais do processo de produção e expressam o trabalho acumulado de épocas anteriores, pois a classe dominante, os proprietários dos meios de produção, não os produziram, mas se apropriaram da produção dos trabalhadores.

A relação entre forças produtivas e relações de produção é complexa. Segundo Marx, existe uma correspondência entre elas: as relações de produção feudais constituem forças produtivas feudais, as relações de produção escravistas, forças produtivas escravistas. Há aqui uma relação de correspondência e unidade, mas também existe contradição, pois as forças produtivas podem limitar as possibilidades de transformação social, isto é, a criação de novas relações de produção. A sociedade feudal, por exemplo, dificilmente permitiria a implantação do comunismo, pois este necessita de uma base de desenvolvimento das forças produtivas, incluindo o desenvolvimento tecnológico acelerado que não existia nesta sociedade.

As relações de produção, por sua vez, condicionam e limitam o desenvolvimento das forças produtivas, pois se estas não estiverem de acordo com a reprodução da classe dominante e seus interesses, serão obstaculizadas. As relações de produção, por sua vez, impedem o livre desenvolvimento das forças produtivas, pois só permitem o desenvolvimento daquelas que estejam de acordo com suas necessidades de reprodução. Numa sociedade capitalista, por exemplo, um amplo processo de automação não se desenvolve porque corroeria as bases da exploração capitalista e decretaria o fim das relações de produção capitalistas.

Mas estas contradições se tornam ainda mais complexas quando levamos em consideração as formas de regularização (também chamadas de “superestrutura” ou “formas políticas, jurídicas e ideológicas”, tal como colocou Marx). Estas são compostas pelo Estado, instituições como a igreja, partidos, sindicatos, etc., pela cultura, ideologia e toda forma de produção intelectual. Estas formas de regularização são expressão do modo de produção. Assim, no modo de produção feudal temos formas feudais de regularização das relações sociais, no modo de produção escravista, formas escravistas e assim por diante. Aqui vemos a unidade entre modo de produção e formas de regularização.

Temos aqui também uma unidade e correspondência. Mas também temos contradição. O modo de produção é a determinação fundamental destas formas de regularização, a base concreta que as faz brotar. No entanto, uma vez existindo, esta “superestrutura”, estas formas de regularização, passa a influenciar o desenvolvimento do modo de produção e a si mesma, tornando a relação muito mais complexa.

O Estado, as idéias, as instituições, etc. conseguem assim realizar uma ação recíproca sobre o modo de produção e adquirir o que Marx e Engels denominaram autonomia relativa. Assim, temos unidade e determinação do modo de produção sobre as formas de regularização, mas também autonomia relativa e ação recíproca (veja mapa conceitual adiante). A unidade, em determinado contexto histórico, pode se transformar em contradição. Assim, existe ao mesmo tempo unidade e contradição, determinação e ação recíproca.

Por exemplo, o Estado Absolutista, embora comandado pela nobreza, ao invés de realizar ações no sentido de reforçar as relações de produção feudal, contribuiu para o desenvolvimento da manufatura e da produção capitalista, o que era contrário aos interesses feudais e assim entrou em contradição com o modo de produção feudal, embora já anunciasse o novo papel do Estado diante do modo de produção capitalista nascente. As revoluções burguesas concretizaram este novo papel com a modernização e racionalização do Estado, que ficou livres das impurezas do feudalismo (Viana, 2003).

Mapa Conceitual dos Conceitos Fundamentais do Materialismo Histórico

O Estado é a principal forma de regularização das relações sociais. Ele surge para amortecer os conflitos de classes e impedir o dilaceramento da sociedade, conservando intacto o modo de produção dominante. O Estado surge com o aparecimento da sociedade de classes, pois é a luta de classes que o faz necessário. Ele é uma necessidade da classe dominante, que faz surgir uma instituição aparentemente neutra e que representa o interesse da coletividade e, no fundo, representa tão-somente os interesses coletivos da classe dominante. A cultura, o mundo das representações, as ideologias, também representam os interesses da classe dominante, pois elas naturalizam e universalizam as relações sociais existentes. Ao apresentar determinadas relações sociais (a propriedade privada, as desigualdades sociais, etc.) como naturais e universais, as ideologias e representações em geral acabam reforçando o processo de dominação e legitimando as relações de propriedade e o próprio Estado, o seu maior guardião. O direito também é uma destas formas de regularização das relações sociais, apresentando-se como expressão jurídica da desigualdade e das relações de classes. O mesmo faz as demais instituições componentes deste amplo espectro que é o que ficou conhecido como “superestrutura” (as formas de regularização).

No entanto, é preciso distinguir entre estas formas de regularização nas sociedades de classes das existentes nas sociedades sem classes. Algumas delas existem em ambas as formas de sociedade, tal como a cultura (representações, idéias em geral), embora sob forma diferenciada, e outras existem apenas nas sociedades de classes, tal como o Estado, a ideologia (falsa consciência sistematizada), etc. Outro elemento que é necessário acrescentar é que existe, nas sociedades classistas, uma luta de classes também na esfera das formas de regularização, principalmente na esfera cultural, pois as diferentes classes criam sua cultura, seus representantes intelectuais, suas concepções de mundo, embora, como já dizia Marx, “as idéias dominantes são as idéias da classe dominante” (Marx e Engels, 1987). Obviamente que, o que predomina na esfera das formas de regularização, é a classe dominante e suas classes auxiliares, mas as demais classes sociais influenciam, principalmente no plano cultural.

Em cada sociedade se constitui uma especificidade de relações sociais, com classes sociais, formação cultural, mentalidade, instituições, também distintas. Assim, a sociedade escravista não possui apenas um modo de produção fundado no trabalho escravo, mas também em uma cultura, mentalidade, Estado, instituições, radicalmente diferentes das demais sociedades. O mesmo ocorre com a sociedade feudal e capitalista. Na Europa Ocidental, se desenvolveram os modo de produção escravista, feudal, capitalista. Toda esta análise histórica de Marx tem como objetivo analisar o processo de transformação social e entender o processo de formação, desenvolvimento e superação das diversas formas de sociedade que existiram historicamente, especialmente a sociedade capitalista. Marx desenvolveu o método dialético e o materialismo histórico visando abordar a história da humanidade e especialmente o desenvolvimento capitalista para descobrir as possibilidades e tendências de superação desta sociedade e sua substituição pelo comunismo.

Método Dialético e Ideologia

Não iremos desenvolver de forma aprofundada as análises de Marx sobre o método dialético (e por isso não abordaremos suas categorias fundamentais, tal como totalidade, abstração, concreto, abstrato, determinação fundamental, etc.) e seu conceito de ideologia, embora eles sejam importantes para compreender o seu pensamento. Marx vai sempre relacionar as idéias, as produções intelectuais, com a sua base social, o modo de produção e as formas de regularização numa determinada sociedade e em determinado momento histórico de seu desenvolvimento. É neste contexto que ele irá abordar a questão da ideologia. Marx realizou a crítica de vários filósofos e cientistas de sua época e de épocas anteriores, mostrando não somente suas falhas metodológicas, de procedimento intelectual e de concepção da realidade, mas principalmente por sua ligação com as relações sociais.

Marx e Engels colocaram que as ideologias, as representações em geral, a moral, a religião, não são como as nuvens, não pairam no céu, não são produtos da genialidade de indivíduos, nem da pura atividade cerebral. Elas são constituídas socialmente, historicamente. A consciência dos indivíduos não é nada mais do que o ser consciente. Este postulado fundamental de Marx expressa a idéia de que não existe algo chamado consciência (ou idéia, cultura, representações, ideologia, etc.) separado e destacado do ser humano concreto que lhe produz. As idéias de um indivíduo são idéias originadas de suas relações sociais e com a natureza. É por isso que existe uma unidade entre o ser e a consciência, pois é o ser consciente, um indivíduo que vive sob determinadas relações sociais, em determinada época, em determinada posição social, e sua consciência é a sua visão destas relações. Todo indivíduo é um ser social e, sendo assim, sua consciência é a consciência de um ser social, logo, também compartilha este caráter social. Assim, cada indivíduo e também cada grupo social, produz suas idéias de acordo com suas relações sociais (que significa um determinado posicionamento, e toda posição nas relações sociais gera valores, interesses, etc.).

Desta forma, não há como se destacar e separar a consciência daqueles que são os seus portadores. A consciência isolada e separada do ser inexiste. Portanto, falar da consciência é falar do ser. Esta separação entre ser e consciência só se torna possível historicamente com o surgimento da divisão entre trabalho intelectual e manual. Os trabalhadores intelectuais, aqueles que se dedicam exclusivamente ao trabalho intelectual, podem, então, pensar numa consciência autônoma, em uma consciência que tem história própria, independente, das relações sociais. A filosofia grega na sociedade escravista é um bom exemplo disso. Na sociedade escravista, com a existência do trabalho escravo, se torna possível alguns indivíduos se dedicarem exclusivamente ao trabalho intelectual. Assim, os primeiros ideólogos puderam supor a existência de um mundo essencial quer seria o mundo das idéias, tal como na filosofia platônica.

O surgimento desta divisão entre trabalho intelectual e manual marca o nascimento do que Marx denominou ideologia (Marx e Engels, 2002). A ideologia é uma consciência falsa da realidade organizada de forma sistemática pelos ideólogos (trabalhadores intelectuais). Ela inverte a realidade, a coloca de cabeça para baixo, substitui a causa pelo efeito e vice-versa, universaliza o que é particular e particulariza o que é universal, eterniza o que é histórico e historiciza o que é eterno, transforma o determinado em determinante e o determinante em determinado. Estas características da ideologia podem ser exemplificadas da seguinte forma: tal como colocamos anteriormente, as idéias são produtos sociais, são determinadas socialmente; mas no reino da ideologia, tal como no exemplo do idealismo, a realidade é que é constituída pelas idéias. Outro exemplo pode ser visto em ideologias que pregam a impossibilidade da transformação (embora esta seja algo constante na história da humanidade) ou na eternidade da exploração e da desigualdade social.

A base real das ideologias são as relações sociais concretas, os interesses das classes sociais, o modo de produção. Cada classe social produz suas idéias, suas representações. A classe dominante não somente produz suas idéias como produz um grupo social para produzir de forma sistemática tais idéias: os ideólogos. Esta base real, concreta, cria obstáculos para o desenvolvimento da consciência humana. O interesse das classes dominantes na história sempre foi o de ocultar a exploração e a dominação, sempre foi naturalizar e universalizar as relações sociais em que vivem. O pensamento crítico surge nas classes sociais exploradas, ou naqueles que expressam seu ponto de vista, mesmo não pertencendo a elas.

Historicamente, toda classe social que deseja se tornar uma nova classe dominante deve colocar suas idéias e concepções como sendo “universais”, isto é, representando a população em geral. Ela não pode assumir que expressa apenas os seus interesses de classe, pois sozinha não pode chegar ao poder, não pode se tornar dominante. O discurso de toda classe ascendente é o de representar o interesse geral, universal. Foi assim com a burguesia que pregava liberdade, igualdade, fraternidade. Porém, a burguesia, apesar de dizer representar todo o “terceiro estado” (isto é, não somente a si mesma mas também ao proletariado, o campesinato e outros grupos sociais), representa tão-somente seus interesses de classe.

O fim deste dilema da humanidade, segundo Marx, se encontra no processo histórico que engendrou o capitalismo e uma classe social que é sua negação e que, portanto, pode promover a abolição de todas as classes sociais e a instauração do comunismo. Esta classe social é o proletariado, pois sua posição no processo de produção e seus interesses de classe não apontam para uma nova forma de dominação e sim para a abolição das classes sociais e da dominação em geral. Neste sentido, o proletariado realmente representa os interesses universais da humanidade. É por isso que Marx irá dizer que a emancipação dos trabalhadores significa a emancipação humana em geral.

Isto vai estar diretamente ligado ao problema da ideologia e da possibilidade de uma consciência correta da realidade. Para Marx, a perspectiva de todas as classes dominantes ou aspirantes à dominação proporcionam uma falsa consciência. A ideologia é a forma sistemática desta falsa consciência. Mas na sociedade contemporânea, a perspectiva do proletariado marca a possibilidade de superação da ideologia e elaboração de uma teoria da sociedade que permite desvendar o processo de dominação e exploração e contribuir com o processo de transformação social. Neste sentido, a superação da ideologia, do ponto de vista prático, ocorrerá com a instauração do comunismo. Mas do ponto de vista teórico, isto é, a produção de idéias não ideológicas que superam as ideologias é possível desde que se parta da perspectiva do proletariado (Viana, 2002).

O método dialético de Marx, bem como o materialismo histórico, são concepções produzidas a partir da perspectiva do proletariado (Viana, 2002; Korsch, 1977; Lukács, 1980). Marx coloca explicitamente isto em seus prefácios à sua grande obra, O Capital (1988). Em tais prefácios Marx critica a economia política inglesa (em sua forma “clássica”, “vulgar” ou “eclética”), considerando que os representantes da economia clássica, Adam Smith e David Ricardo, chegaram ao nível de consciência mais elevado que alguém poderia chegar partindo da perspectiva da burguesia. Eles não avançaram mais por não poder “ultrapassar os limites intransponíveis da consciência burguesa” (Marx, 1988).

Por conseguinte, a crítica da ideologia burguesa deve andar junto com a crítica da sociedade burguesa, sua base real. O projeto intelectual de Marx era apresentar esta crítica e o engendramento de uma nova sociedade e em várias obras ele buscou realizar a crítica do capitalismo e analisar as tendências de sua abolição e substituição pelo comunismo. O método dialético se tornou um instrumento fundamental para a realização deste processo.

Na verdade, Marx não apresentou nenhum estudo aprofundado sobre o método dialético. Dedicou a ele apenas algumas páginas de forma exclusiva, em sua Contribuição à Crítica da Economia Política. Mas em várias passagens apresentou elementos complementares, bem como deixou os exemplos de suas próprias análises para que se possa refletir sobre tal método. O seu primeiro capítulo de O Capital, sobre a mercadoria, é exemplar neste sentido. Quando abordamos a questão da natureza humana colocamos alguns elementos do método dialético, que agora iremos retomar resumidamente.

Marx parte da distinção hegeliana entre essência, existência e aparência. A aparência é a visão imediata da existência, desconhecendo-lhe a determinação fundamental, a sua essência. O processo de pensamento dialético parte, naturalmente, do que existe, isto é, do que é dado imediatamente à consciência. No entanto, é preciso ultrapassar a visão da existência aparente para ter acesso a existência concreta. A passagem da visão da aparência para a visão da existência, pressupõe reconstituí-la no pensamento. Esta reconstituição é realizada através do processo de abstração, um processo mental no qual se busca descobrir a determinação fundamental do fenômeno e das demais determinações, reconstituindo-o no pensamento. Assim, não podemos descobrir o que é a natureza humana através da aparência, isto é, do existir aparente, tal como observando o indivíduo chamado João José da Silva ou então os indivíduos da sociedade moderna. A abstração é justamente este processo de buscar reconstituir um fenômeno em suas determinações, descobrindo sua determinação fundamental.

Depois de realizado este processo de reconstituição, temos o concreto, tal como ele realmente é, e não sua aparência. É este método que Marx irá trabalhar em sua análise do capitalismo e por isso encerraremos por aqui estas observações sobre o método dialético. No entanto, antes é preciso alertar que o simples domínio intelectual do método dialético não é suficiente, pois é preciso partir da perspectiva do proletariado. A dialética já foi deformada sob as mais variadas formas, bem como já recebeu usos inadequados e insuficientes. A explicação marxista deste fenômeno não remete à incapacidade individual ou a genialidade de outros, mesmo porque tal “incapacidade” ou “genialidade” também exigem explicação e possuem origens sociais. Entender este processo remete, de acordo com a teoria marxista, aos interesses de classe por detrás deste pretenso uso do método dialético. Ao colocarmos a análise de Marx sobre o capitalismo estaremos vendo como o método dialético se manifesta na análise do modo de produção capitalista.

Capitalismo e Comunismo

A teoria do capitalismo de Marx é o processo de acabamento de sua obra teórica em geral. Embora sua análise dos modos de produção pré-capitalistas, do método, da alienação, merecessem aprofundamentos, ele dedicou parte de sua vida para compreender a essência do capitalismo e a tendência de sua destruição e constituição do comunismo. Marx procurava superar o utopismo e por isso não apresentou planos ou descrições detalhadas da futura sociedade comunista e optou por analisar a dinâmica do capitalismo no sentido de ver o seu processo de destruição e engendramento do comunismo.

A análise que Marx faz do capitalismo começa com sua dissecação da mercadoria. Sua análise da mercadoria mostra uma manifestação do método dialético que é exemplar. Marx inicia perguntando o que possui em comum todas as mercadorias (ou seja, ele não parte da aparência e sim busca descobrir a essência). A resposta é: toda mercadoria é produto do trabalho humano. Aqui reencontramos o trabalho e sua importância como principal gerador de riquezas. A mercadoria é trabalho humano corporificado, materializado, nela. O valor da mercadoria, por sua vez, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la. Não se trata do trabalho empírico do ferreiro, marceneiro, etc., e sim o tempo social médio de trabalho, o que lhe dá um caráter social e uma medida de valor que é social. Além disso, o trabalho materializado em uma mercadoria é não só o expresso pela atividade viva do trabalho como também o trabalho passado de outros trabalhadores que produziram os meios de produção (ferramentas, maquinaria, etc.) e que são utilizadas no processo de produção.

O trabalhador, no entanto, não possui nenhuma propriedade, não possui os meios de produção. Por isso, ele é obrigado a vender sua força de trabalho em troca de um salário. Ao vender sua força de trabalho ao capitalista, o dono dos meios de produção, ele realiza o processo de produção, produz mercadorias. Esse processo de produção de mercadorias, na sociedade capitalista, também é processo de produção de mais-valor (ou mais-valia, segundo tradução menos adequada). A produção de mais-valor significa que o trabalhador não apenas repassa para a mercadoria o valor acumulado nos meios de produção mas cria um valor novo, um mais-valor. Por exemplo, se um capitalista monta uma fábrica de carros e compra as instalações, matérias-primas (ferro, plástico, borracha, etc.), as máquinas (incluindo robôs…) e não produz nada, irá vender por um preço similar ao gasto.

No entanto, se ele coloca um conjunto de trabalhadores para, utilizando tais instalações, matérias-primas e máquinas, fabricar carros, ele irá vender esta nova mercadoria produzida por um valor maior do que o gasto. Isto ocorre devido ao fato que o trabalho não apenas repassa o valor acumulado nos meios de produção como, ao produzir a mercadoria, produz um valor novo. O capitalista, no primeiro caso, não tem lucro algum, e, no segundo, não só adquire o suficiente para pagar tudo que foi gasto com os meios de produção e com os salários dos trabalhadores, como ainda tem um lucro. Este lucro é derivado da extração de mais-valor, oriunda de um trabalho excedente dos operários. Aí reside o segredo da exploração capitalista. Os trabalhadores produzem um mais-valor e a classe capitalista se apropria dele.

O que o capitalista faz com seu lucro? Além do seu consumo de luxo, uma ínfima parte do seu lucro, ele reinveste na produção. Assim, compra mais meios de produção, contrata mais trabalhadores, e produz ainda mais e adquire maior lucro. Esse processo é o que caracteriza o que Marx denominou reprodução ampliada do capital e é a dinâmica da acumulação capitalista. Este processo vai gerar a concentração e centralização do capital, proporcionando a poucas empresas o domínio do mercado. No entanto, Marx analisava o desenvolvimento capitalista como sendo contraditório, pois a acumulação capitalista produzia a formação de grandes empresas que tendiam a aumentar o seu tamanho, destruindo as pequenas empresas pela concorrência e criando um mercado mundial cada vez mais concentrado e centralizado. Tal competição entre empresas capitalistas provocava a incessante busca de desenvolvimento tecnológico e quanto maior tal desenvolvimento, maior o que Marx denominou tendência à queda da taxa de lucro médio, pois cada vez se utiliza mais tecnologia e menos força de trabalho, mas como é esta última que acrescenta valor às mercadorias, então diminui-se a geração de mais-valor. Assim, surgem as crises capitalistas e isto reforça a tendência de organização do proletariado no sentido de buscar a transformação social (Marx, 1988).

Sem dúvida, não podemos desenvolver pormenorizadamente toda a teoria do capitalismo de Marx, que é bastante complexa e envolve vários outros elementos (tal como sua diferenciação entre taxa de lucro e massa de lucro, as contratendências para a queda da taxa de lucro, capital variável e capital constante, diferenciação entre mais valor absoluto e relativo, etc.), mas estes aspectos gerais complementados por sua teoria do mais-valor global permite compreender sua análise do capitalismo em linhas gerais. A teoria do mais-valor global explica a distribuição de renda na sociedade capitalista.

Para Marx, o conjunto do mais-valor produzido pela classe operária cria o que ele denominou mais-valor global. Este é produzido no processo de produção de mercadorias, mas só se realiza com a venda da mercadoria no mercado. Isto é, a exploração ocorre na fábrica, na construção civil, na empresa agrícola, mas só se completa quando as mercadorias produzidas nestas esferas são vendidas, pois é neste momento que o capitalista recebe o dinheiro e assim extrai mais-valor. Cada empresa capitalista particular extrai mais-valor de seus operários, mas não fica com tudo que extraiu. Parte é repassada para o Estado, através de impostos, e parte é repassada para o capital comercial, que leva a mercadoria para o mercado e conclui a venda. Assim, o mais-valor global acaba sendo repartido entre as várias frações do capital (capital industrial, comercial, financeiro) e para o Estado, e deste para diversas classes e grupos sociais (burocracia estatal, por exemplo). Assim, a fonte da renda nacional é principalmente o mais-valor global (há também a exploração do campesinato que não se dá via extração de mais-valor, por exemplo). Desta forma, se torna compreensível a teoria marxista das classes sociais: o proletariado é o conjunto de trabalhadores que produzem mais-valor e a burguesia é a classe que vive da extração de mais-valor, e entre estas classes existem outras classes sociais, ligadas a outros modos de produção (campesinato, por exemplo) ou ao próprio capitalismo, tal como a burocracia.

Para Marx, o processo de trabalho é marcado pela luta entre a classe capitalista e a classe operária em torno do mais-valor. Historicamente, a classe operária luta para diminuir a exploração e, em momento de acirramento das lutas de classes, pela sua abolição. As lutas cotidianas dos trabalhadores são realizadas no sentido de buscar diminuir a exploração, mas mesmo estas lutas abriam caminho para uma luta mais ampla, pois criam as formas de luta e organização próprias dos trabalhadores. O proletariado, em sua luta contra a burguesia, cria sua associação e desenvolve sua consciência, chegando ao nível da consciência revolucionária, isto é, que compreende a necessidade de abolição do capitalismo e sua substituição por uma nova sociedade, fundada em relações igualitárias e sem classes sociais.

Marx pensava que a luta da burguesia contra as classes ultrapassadas (nobreza) e contra o próprio proletariado, forneceria os elementos para a auto-educação desta classe, e isto seria reforçado pelas crises capitalistas que também seriam elementos propulsores das lutas operárias. Assim, a emancipação dos trabalhadores, segundo Marx, é obra dos próprios trabalhadores em sua luta contra o capitalismo. As greves, as organizações, o desenvolvimento da consciência, seria produto da luta de classes. A experiência da Comuna de Paris em 1871 teve um grande impacto na teoria da revolução de Marx.

Marx fez as seguintes considerações sobre a Comuna:

“Eis o seu verdadeiro segredo: a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho. Sem essa última condição, o regime comunal teria sido uma impossibilidade e uma impostura. A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação de sua escravização social. A Comuna devia servir de alavanca para extirpar os fundamentos econômicos sobre os quais se apóia a existência das classes e, por conseguinte, da dominação de classe. Uma vez emancipado o trabalho, todo homem se converte em trabalhador, e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe” (Marx, 1986, p. 76).

Para ele, esta experiência heróica dos operários parisienses que destruíram o Estado, realizou o que ele denominou “autogoverno dos produtores” e mostrou a chave da revolução proletária, a forma finalmente descoberta da emancipação humana (Marx, 1986).

Marx concebia o comunismo não como um ideal a ser realizado, como um plano estabelecido por intelectuais e que seria colocado em prática tal como planejado. Este foi um dos motivos de suas críticas ao chamado “socialismo utópico” de Charles Fourier, Pierre-Joseph Proudhon, Robert Owen, Saint-Simon. Para ele, o comunismo é um “movimento real” que “abole o atual estado de coisas” (Marx e Engels, 2002). Ele considerava algumas pré-condições para que este movimento fosse vitorioso. As três condições que se constituíram graças ao desenvolvimento capitalista: a formação do proletariado (“o coveiro do capitalismo”), a formação de um mercado mundial e uma imensa produção de riquezas. Estas três condições permitiam a realização do comunismo. Isto porque haveria um mundo de riquezas que permitiria a instituição de relações sociais igualitárias com a repartição das riquezas, pois a miséria faria retornar a exploração, a desigualdade. Também o comunismo se realizaria em escala mundial, pois isolado em apenas um país, a concorrência capitalista e sua hostilidade poderiam destruir tal experiência. Além disso, o proletariado, a classe produtora de riquezas e que não tem o acesso a elas, seria o agente revolucionário, constituindo novas relações sociais.

Assim, o capitalismo engendra o comunismo a partir da luta operária e de suas próprias contradições. O capitalismo traz em si contradições cada vez mais intensas e caminha para sua auto-destruição e ao mesmo tempo busca evitar que isto ocorra (tendência da queda da taxa de lucro e contratendências, desenvolvimento tecnológico e emperramento dele, etc.) mas o mais importante é que ele traz em si o embrião do comunismo, que é o proletariado.

O comunismo, na obra de Marx, era produto da luta operária. Isto significa que para Marx o processo de constituição do comunismo (que ele também denominava “livre associação dos produtores”) só se realizaria a partir da ação desta classe social e não como, posteriormente vários “marxistas” colocaram, através de partido político ou qualquer outra “vanguarda”.

Marx observava que a sociedade comunista nasceria da sociedade capitalista e que, por isso, em sua primeira fase, ainda traria alguns resquícios dela. Assim ele distinguiu a sociedade comunista em duas fases: a primeira, é a fase do período revolucionário, marcada pela ditadura do proletariado; a segunda, é a fase do comunismo consolidado. As poucas indicações sobre esta sociedade comunista da primeira fase apontam para a retribuição do trabalho de acordo com o que é produzido, para a classe proletária organizada e exercendo repressão sobre os resquícios das velhas classes sociais do capitalismo (a ditadura do proletariado), o fim da propriedade privada, o autogoverno dos produtores, entre algumas outras características. Como Marx concebia o proletariado como a maioria da população e a sua ditadura como sendo tão somente a repressão sobre as classes sociais conservadoras do capitalismo em processo de extinção, então ele concebia esta fase da sociedade comunista como essencialmente democrática, pois seria o governo da maioria da população, efetivamente, isto é, não como na democracia representativa, na qual apenas os interesses capitalistas prevalecem.

A segunda fase da sociedade comunista seria a realização completa e plena do comunismo. Seria uma sociedade de iguais, efetivamente e não apenas formalmente (juridicamente). O ser humano poderia reencontrar sua natureza, sua essência. Poderia desenvolver o conjunto de suas potencialidades e necessidades humanas, abandonar a especialização e possuir um desenvolvimento onilateral, isto é, de todas as suas potencialidades. O trabalho deixaria de ser alienado e voltaria a ser objetivação, realização do ser humano em suas obras. Não haveria mais classes sociais, pois a ditadura do proletariado significaria o passo final para a abolição das classes sociais em geral, inclusive do próprio proletariado. Não haveria mais repressão, pois com o fim das classes, ela perderia o sentido. Assim, relações sociais igualitárias numa sociedade fundada na livre associação dos seres humanos, no qual “o desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos”, segundo expressão de Marx.

Considerações Finais

Devemos encerrar este pequeno texto sobre as idéias de Marx alertando que o que aqui se fez foi um breve resumo de suas idéias centrais, que necessitariam e demandariam aprofundamentos e desdobramentos. Sem dúvida, estas lacunas podem ser preenchidas com leituras das obras de Marx, especialmente as citadas no presente texto.

No entanto, qualquer leitor poderá ver inúmeras obras sobre o pensamento de Marx, mas deve estar atento para o fato, já alertado pelo próprio Marx, que as interpretações, como quaisquer outras representações, não são neutras ou meramente intelectuais, pois estão ligadas aos interesses, valores, concepções daqueles que as fazem. Por isso, a leitura do próprio autor, sem mediações dos intérpretes, é um caminho aconselhável, principalmente no caso de Marx, que produziu uma obra crítica, polêmica, erudita. Neste sentido, as objeções políticas a Marx muitas vezes proporcionam críticas que partem da simplificação e vulgarização do seu pensamento, o que não é privilégio dos críticos de Marx mas também de muitos de seus adeptos.

Enfim, o que podemos dizer é que para compreender Marx é necessário ir à fonte, embora isto não seja suficiente, pois também quem vai à fonte é um ser social que teve um processo histórico de vida e posição social, bem como valores, sentimentos, etc., derivados daí. Apesar de não ser suficiente, é necessário.

Expusemos em grandes linhas o pensamento de Karl Marx, destacando sua concepção de natureza humana, alienação, modo de produção, luta de classes, ideologia, dialética, capitalismo e comunismo. Outros temas seriam necessários acrescentar, mas esta visão geral e panorâmica já introduz o leitor no universo de pensamento de Marx e permite uma percepção de sua produção teórica.

Em síntese, o complexo pensamento de Karl Marx apresenta algumas teses centrais aqui expostas e um conhecimento mais aprofundado requer pesquisa e aprofundamento, mas consideramos que realizamos a tarefa que nos propomos: apresentar uma visão sintética e mais simples possível de sua obra.

Referências:

KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. 2ª edição, Rio de Janeiro, Elfos, 1980.
MARX, K. A Guerra Civil na França. 2ª edição, São Paulo, Global, 1986.
_______, K. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo, Global, 1989.
_______, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983b.
_______, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã. 3ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
_______, K. e _______, F. Manifesto do Partido Comunista. 6ª edição, São Paulo, Global, 1987.
_______, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: FROMM, E. Conceito Marxista do Homem. 8ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983a.
_______, K. O Capital. 5 vols. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
VIANA, N. Escritos Metodológicos de Marx. 2ª edição, Goiânia, Edições Germinal.
_______, N. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
_______, N. Introdução à Sociologia. Belo Horizonte, Autêntica, 2005.

1 Comentário

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*