O Portal Crítica Desapiedada convidou o militante autogestionário e professor de sociologia da UFPR, Lisandro Braga, para conversar sobre o Lumpemproletariado na Sociedade Capitalista Contemporânea, o reflexo da pandemia no modo de vida dessa classe social e a posição do lumpemproletariado na dinâmica da luta de classes.
Lisandro é o nosso próximo convidado a participar da Live Autogestionária neste sábado, dia 02 de maio, às 19 horas (mais informações: https://bit.ly/2VZ5LB0)
Crítica Desapiedada: O lumpemproletariado e seu papel político foi analisado de diversas maneiras. Qual o seu entendimento e definição de lumpemproletariado?
Apesar da obra de Marx possuir uma teoria incompleta das classes sociais no capitalismo, é possível apreender em sua vasta obra uma noção clara do que Marx (e Engels) possuíam sobre as classes sociais. Em síntese, para esses, uma classe social se constitui quando os indivíduos que a ela pertence possuem o mesmo modo de vida, os mesmos interesses derivados de tal modo de vida e as alianças e oposições que estabelecem com outras classes para atingir tais interesses, quer dizer quando possui determinado modo de vida, determinados interesses de classes e determinadas alianças ou oposições de classes para fazer valer seus interesses classistas[1]. Esse é, sem margem para dúvidas, o entendimento que Marx (e Engels) possuíam sobre o que é uma classe social. No entanto, tais teóricos não realizaram uma análise sistemática sobre as classes sociais, apesar de Marx ter manifestado interesse em realizar tal análise. A inexistência dessa teoria acabada, aliada a diversas outras determinações, tais como o interesse político de determinadas classes e grupos políticos (burocracia e intelectualidade bolchevique ou sob sua influência ideológico-política e outra/os) e a existência de uma má-leitura da obra de Marx, contribuíram para diversas deformações de sua teoria. A leitura e interpretação sobre o lumpemproletariado é um exemplo disso. Em Marx (e Engels) as discussões que envolvem essa classe social está sempre inserida em uma discussão maior sobre as classes sociais, no entanto com algumas inconsistências devido à não sistematização de uma teoria das classes sociais, mas já demonstrando um vínculo entre lumpemproletariado e classes sociais. Inclusive, revelando em algumas passagens, que o lumpemproletariado pertence à classe marginal do capitalismo, classe essa que está presente em todos os modos de produção classistas (a plebe romana, vagabundos, mendigos e jornaleiros no feudalismo etc.)[2]. No entanto, a interpretação que diversos intelectuais pseudomarxistas realizaram e ainda realizam sobre a análise de Marx (e Engels) acerca do lumpemproletariado é dogmática, muitas vezes desonesta, arbitrária e até mesmo frágil, pois demonstra uma incompreensão sobre o materialismo histórico dialético e da teoria marxista.
Para ficarmos apenas em um exemplo, podemos mencionar a análise realizada no Manifesto Comunista sobre a postura política do lumpemproletariado em um contexto de revolução social, que aponta para a possibilidade da participação dessa classe na luta revolucionária, mas assinala também que a tendência maior, devido às condições de existência (compreensão básica para quem parte do método dialético para analisar as relações entre as classes) do lumpemproletariado é a de se vender para o reacionarismo. Essa é a compreensão dos autores: a existência de duas possibilidades políticas para o lumpemproletariado. A deformação ocorre quando os ideólogos esquecem e/ou abandonam a primeira possibilidade, afirmando somente a segunda, apontando-a como uma espécie de essência do próprio lumpemproletariado.
Sorte para o marxismo é que a própria luta de classes na contemporaneidade tem reafirmado sua interpretação, qual seja, a de que o lumpemproletariado pode contribuir com as lutas radicais, como demonstrou setores do lumpemproletariado organizado na Argentina (1996-2002), através de algumas tendências políticas do movimento piqueteiro.
Concluindo, nosso entendimento é que o lumpemproletariado é uma classe social, a classe marginal, como demonstrou, mesmo com algumas inconsistências, a análise do próprio Marx em O capital (1867) e outras obras (algumas com Engels), que está envolvida na luta de classes, possuindo duas tendências históricas em sua postura política, na qual uma delas, além da cooptação pelo reacionarismo, é a de contestar radicalmente a produção e reprodução da vida marginal no capitalismo como já vem fazendo em algumas experiências contemporâneas. No fundo, as circunstâncias e sua correlação de forças no interior da dinâmica da luta de classes é que determina as posturas políticas de todas as classes sociais, inclusive a do lumpemproletariado.
Dessa forma, acreditamos que é necessário ressignificar o conceito de lumpemproletariado na contemporaneidade, à luz de uma teoria marxista da sociedade capitalista, considerando-o como a totalidade do exército industrial de reserva, composto pelos indivíduos que se encontram marginalizados da divisão social do trabalho. Por isso trata-se de uma classe marginal do capitalismo, pois o lumpemproletariado possui um modo de vida marginal, interesses imediatos (trabalho, moradia etc.) e históricos (fim da fome, da miséria etc.) derivados desse modo de vida, bem como estabelece aliança e oposição com outras classes sociais. Essa é a tarefa que venho realizando nos meus últimos trabalhos, quer dizer ressignificar o lumpemproletariado e sua postura política[3].
Crítica Desapiedada: O processo de lumpemproletarização sempre acompanhou o processo de proletarização no desenvolvimento da sociedade capitalista. Em que sentido existe uma relação entre a classe proletária (proletariado) e classe lumpemproletária (lumpemproletariado)?
A emergência das cidades industriais inglesas no século XIX, tal como Manchester, por exemplo, é resultado da consolidação do modo de vida capitalista que tem na sua fundação duas classes sociais, trata-se do proletariado e da burguesia: as classes fundamentais da sociedade capitalista. Contudo, tais classes não são as únicas classes sociais existentes nas cidades capitalistas, apesar das análises ideológicas do leninismo, pois a própria luta de classes entre burguesia e proletariado é geradora de outras classes sociais, que também se multiplicam devido ao avanço constante da divisão social do trabalho. Uma dessas classes sociais é o lumpemproletariado, mas também poderíamos falar da burocracia e suas frações empresariais, estatais, partidárias, a intelectualidade, as classes serviçais etc.
Marx já havia demonstrado em O capital (1867) que o capitalismo equivale a um processo de proletarização, mas também de lumpemproletarização. Basta recuperarmos sua análise sobre A lei geral da acumulação capitalista, capítulo XXIII do volume 02, para percebermos as tendências e contratendências da produção capitalista de mercadorias. Uma dessas tendências essenciais e inevitáveis, pois é própria de sua dinâmica, é a geração de uma superpopulação relativa (a classe marginal, o lumpemproletariado). Em síntese, a luta operária contra a exploração capitalista (redução da jornada de trabalho, direitos trabalhistas, férias, descanso remunerado etc.) aliada à competição entre os capitalistas por maiores fatias do mercado consumidor, leva a classe burguesa a investir cada vez mais em melhores técnicas, tecnologias, equipamentos etc. que buscam aumentar a produção de capital reduzindo a quantidade de operários envolvidos na produção capitalista de mercadorias. Portanto, temos um aumento daquilo que Marx denominou de trabalho morto (matérias-primas, maquinaria, infra-estrutura) que apenas repassam seus custos ao valor final da mercadoria, mas por outro lado temos a redução do componente (força de trabalho) que é o único gerador de valor, o trabalho vivo que acrescenta valor através da produção de mais-valor. Tal redução equivale à desemprego da força de trabalho, processo de lumpemproletarização que, dependendo da sua dinâmica e contexto histórico, se expande gerando diversas frações lumpemproletárias (desempregados, mendigos, sem-teto). Toda essa dinâmica deve ser compreendida fundamentalmente como consequência da luta de classes entre burguesia e proletariado na produção capitalista de mercadorias. Essa é uma das relações fundacionais existentes entre a classe proletária e a classe lumpemproletária. Além disso, existe outra relação possível entre essas classes sociais que perpassam seu modo de vida e seus interesses de classes, trata-se da possibilidade de uma aliança de classes entre proletariado e lumpemproletariado em torno de uma luta revolucionária capaz de garantir seus interesses históricos, quer dizer o fim da exploração e de toda vida marginal e miserável derivada dessa exploração, que aponta tão somente para a destruição final da sociedade capitalista e instalação de uma sociedade verdadeiramente humana, fundada na autogestão social da vida.
Crítica Desapiedada: O capitalismo contemporâneo, também conhecido como regime de acumulação integral, ampliou a miséria e um ataque ainda mais radical contra as classes inferiores (lumpemproletariado, proletariado, subalternos etc.). Quais foram os impactos para o lumpemproletariado ao longo das transformações do capitalismo contemporâneo e quais foram as reações políticas dessa classe social?
Sim, essa é a tese que defendo em Classe em farrapos (2013): há um avanço expansivo do lumpemproletariado no regime de acumulação integral. Esse regime de acumulação é fundado em relações de trabalho precarizadas e intensificadoras da exploração da classe operária, de toda mais-violência derivada daí (adoecimento psíquico generalizado, desumanização do ser etc.), bem como de uma expansão do lumpemproletariado para todo o mundo capitalista, incluindo o capitalismo de estado chinês, que até 2020 deve experimentar um êxodo rural massivo (aproximadamente 300 milhões de pessoas) acompanhado de um colossal processo de lumpemproletarização nas cidades.
A dinâmica do processo de lumpemproletarização segue a dinâmica de cada sociedade capitalista, de acordo com sua posição nas relações de exploração internacionais, no entanto ele se generaliza com particularidades próprias em todos os rincões do planeta: EUA, países europeus, asiáticos, africanos e toda América Latina. Esses últimos são marcados por uma maior intensidade do processo de lumpemproletarização, assim como da exploração proletária.
As posturas políticas adotadas pelo lumpemproletariado para atingir seus interesses, tanto imediatos, quanto históricos, são diversas, mas no geral os interesses imediatos buscam ser atingidos com a realização de trabalhos precários esporádicos (subemprego), diversos tipos de delitos (assalto, roubo, tráfico de drogas) que muitas vezes é executado sob a ordem e organização das próprias forças policiais, pedindo esmolas, buscando auxílio de organizações da sociedade civil (ongs, igrejas, de assistência social etc.). Outra postura política do lumpemproletariado e que tende a se expandir na contemporaneidade é a de se organizar como classe para lutar contra o avanço das medidas de regularização neoliberais contemporâneas, que para essa classe se traduz na consolidação de um modo de vida marginal extremamente miserável e desumano. Tais formas organizacionais se encontram nos movimentos de desempregados que se espalharam pelo mundo, nos movimentos de sem-teto e alguns outros, no entanto, é preciso salientar que tais movimentos possuem posturas políticas diversas. Como exemplo temos o movimento do lumpemproletariado organizado na Argentina entre os anos de 1996-2002, o movimento de desempregado, conhecido como movimento piqueteiro, uma espécie de movimento de movimentos, devido às suas diversas tendências políticas que iam desde um arco político-partidário, sindical até as ações territoriais desenvolvidas autonomamente e, inclusive, com algumas tendências anticapitalistas. Tais movimentos demonstraram concretamente (empiricamente se preferirem) que a postura política do lumpemproletariado não é essencialmente reacionária, apesar de também existir, mas que pode em contextos históricos determinados adquirir radicalidade política e, dependendo do avanço da consciência, bem como da reemergência do movimento operário revolucionário, estabelecer uma aliança de classe no interior do bloco revolucionário capaz de fazer ruir toda a sociedade capitalista contemporânea.
Crítica Desapiedada: A lumpemproletarização é um processo que atinge, para muitos ideólogos, tão somente os países de capitalismo subordinado. Essa afirmação está correta? O lumpemproletariado existe e é expressivo nos países de capitalismo imperialista (como os EUA, França, Alemanha, Japão, etc.)?
Não, pois como toda ideologia, essa não expressa a realidade contemporânea que é marcada pela expansão do lumpemproletariado também nos países de capitalismo imperialista. Essa é uma das teses da teoria do regime de acumulação integral, na qual me fundamento para pensar a contemporaneidade[4]. A lumpemproletarização atinge países como França, Suécia, Portugal, Espanha, Grécia, Alemanha em menor proporção e, especialmente, os EUA. E a tendência é seguir se expandindo intensamente em todo o mundo capitalista. A Europa neoliberal experimenta, em alguns países com maior em outros com menor intensidade, um expressivo aumento do lumpemproletariado, principalmente nos grupos etários juvenis. Mesmo a Suécia que, até a década de 1990, ainda possuía resquícios das formas sociais integracionistas (estado de “bem estar social”) passou a ver suas taxas de desemprego (lumpemproletarização) dobrarem. Nos EUA o lumpemproletariado cresce assustadoramente desde o final do regime de acumulação conjugado (1960-1970), mas se intensifica no regime de acumulação integral, como resultado de um conjunto gigantesco de medidas de regularização neoliberais que possibilitou o crescimento generalizado do desemprego, sucateou e dificultou o acesso a todo tipo de políticas sociais destinadas especialmente ao lumpemproletariado (habitacionais, seguro-desemprego, assistência a sem-tetos, assistência a mães solteiras desempregadas etc.), tornando regular o subemprego etc. Hoje, diversas cidades estadunidenses possuem dezenas de milhares de sem-teto vivendo nas ruas, morando em trailers, acampados em calçadas e ruas, dependendo de assistência social de organizações da sociedade civil (ongs, instituições religiosas etc.) para tomar banho, comer e dormir durante a noite. Qualquer pesquisa rápida na internet mostra isso e existem excelentes intelectuais analisando e comprovando essa realidade. Para ficar em dois desses, citaria Mike Davis[5] e Loïc Wacquant[6].
Crítica Desapiedada: A pandemia do coronavírus atingiu a quase totalidade dos países. A sua disseminação, letalidade e potencialidade destrutiva demonstra as fragilidades da sociedade capitalista em contexto de forte desestabilização da acumulação capitalista contemporânea. Os mais atingidos por esse processo, sem dúvidas, são as classes inferiores. Quais podem ser os impactos da pandemia para o lumpemproletariado?
Para responder essa questão, primeiro gostaria de caracterizar o modo de vida lumpemproletário. Esse se caracteriza pela degradação das condições materiais de existência: quanto mais degradada é a fração da classe lumpemproletária mais degradada são suas condições de existência (habitacionais ou sua inexistência, alimentares, sanitárias, de segurança, saúde, comodidade etc.). Pensemos nos bairros pobres e/ou favelas da América Latina, onde a maioria absoluta de seus habitantes pertencem à classe operária e lumpemproletária, na qual suas condições de existência se diferem apenas pelo grau da degradação. Tal como as condições de existência dos bairros operários/lumpemproletários europeus no regime de acumulação extensivo (1760-1871 aproximadamente), em diversas favelas do capitalismo subordinado, no regime de acumulação integral, as condições de existência do proletariado e do lumpemproletariado também são cada vez mais análogas. Portanto, a expectativa média de vida dessas classes sociais é significativamente menor que a de outras classes sociais (burguesia, burocracia, intelectualidade etc.). Em períodos de pandemia como a da gripe aviária e agora o covid-19, é possível esperar que as consequências dessas para o proletariado e, em maior intensidade, para o lumpemproletariado sejam sombrias.
Segundo o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, em 2020, aproximadamente 1 bilhão de pessoas habitarão favelas (villas, barrios bajos etc.). Os epidemiologistas têm alertado que a pré-condição para a expansão de uma pandemia que se transmite pelo ar é a combinação de superpopulação com péssimas condições sanitárias. Quais são as principais recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para evitar o contágio do covid-19? Isolamento social, lavar frequentemente a mão com água e sabonete e/ou usar álcool em gel. Seguir tais recomendações é impossível quando se vive em uma favela. Por exemplo, nesse exato momento as megafavelas do Rio de Janeiro estão sofrendo com a falta crônica de água por semanas e semanas, boa parte dos moradores sequer usam sabonete cotidianamente, álcool em gel nem se fala. Aliado a esse quadro, a fome ameaça atingir mais de 80% dos moradores das favelas devido aos impactos do isolamento social sem intervenção eficaz do poder estatal. A saúde lumpemproletária é extremamente frágil, pois sofre com as consequências do desabrigo, do tabagismo, do alcoolismo, do uso do crack e de outras drogas, doenças cardiológicas etc., além de ser impossível manter-se em quarentena quando milhares de famílias são compostas por cinco, seis e até dez pessoas vivendo em aproximadamente 04 cômodos. Nesse sentido, se o vírus chegar forte nas favelas, teremos uma fantástica fábrica de cadáveres. E sabemos que uma redução drástica do lumpemproletariado pode trazer problemas para a acumulação capitalista, que depende da existência de um grande número desses (exército industrial de reserva) para pressionar os salários para baixo e manter a classe operária disciplinada, aceitando a superexploração do trabalho contemporâneo. Do contrário, pode haver uma redução da força de trabalho disponível e, por conseguinte, um aumento dos salários, quer dizer uma redução da lucratividade capitalista. No entanto, os efeitos do isolamento social também geram maior lumpemproletarização. Em síntese, a dinâmica da luta de classes na contemporaneidade pode alterar significativamente com a pandemia da covid-19 e seus desdobramentos sociais.
Crítica Desapiedada: No Brasil, um conjunto de políticas estatais estão sendo produzidas para minimizar os efeitos colaterais causados pela pandemia. Elas são suficientes para resguardar o lumpemproletariado?
As pandemias contemporâneas exigem máscaras de proteção, mas também as fazem cair. Em quase todos os países em que vírus com riscos de pandemias apareceram, em nome do monsenhor capital, os governos vigentes buscaram, no primeiro momento, minimizar os riscos, quando não ocultarem os mesmos, e retardar o quanto possível as medidas necessárias para conter o avanço da contaminação que, em um mundo internacionalizado, como o mundo capitalista contemporâneo, se expande rapidamente por todo o globo. Instalado a pandemia e com ela o isolamento social (quarentena) o capital sofre grande impacto e coloca sua associação de classe, o estado capitalista, ainda mais à serviço dos seus interesses, isto é, bancando ele o prejuízo, que a crise capitalista já gerava, mas que agora se intensifica com a pandemia do covid-19 e seus estragos na produção e reprodução capitalista. Outra máscara que agora despenca, é a da ideologia neoliberal de estado afastado da economia, algo que nunca ocorreu na história capitalista. Pelo contrário, a história do neoliberalismo revela, especialmente em momentos de crise capitalista, que o estado neoliberal é e sempre será, enquanto existir, máximo para o capital e mínimo somente na garantia dos interesses das classes inferiores, tal como o proletariado e o lumpemproletariado. A única exceção de um estado máximo para tais classes, é o da repressão estatal, pois essa se agiganta no neoliberalismo.
Sendo assim, após 30 anos de neoliberalismo no Brasil, temos uma infra-estrutura de saúde pública extremamente sucateada devido às reduções drásticas de investimentos, corrupção generalizada no desvio dos raquíticos investimentos, mercantilização absurda dos serviços de saúde etc., aliada a uma superpopulação, em diversas cidades, vivendo em condições insalubres, o que constitui nas condições ideais para o avanço da pandemia e da fantástica fábrica de cadáveres que a covid-19 já demonstrou que é capaz de gerar mundialmente e de maneira mais dramática no capitalismo subordinado, como é o caso brasileiro. E ainda temos no governo federal um presidente extremamente autoritário, com sérias dificuldades e inabilidades para governar, com um projeto de manutenção do poder à qualquer custo, com uma agenda econômica neoliberal discricionária, influenciado e identificado com diversas ideologias obscurantistas que convém a esse projeto, tal como a de negação da pandemia e seus riscos para justificar um retorno à normalidade, quer dizer ao processo de produção e reprodução capitalista que, ao que tudo indica, é a única chance de mantê-lo no poder, visto que sua base de apoio se fragiliza dia após dia, com a tendência que investigações sobre diversos crimes que envolvem sua família e seu entorno próximo passem a avançar.
Diante desse quadro é difícil imaginar que as políticas estatais desse governo consigam amenizar expressivamente o número de contágio e mortes causadas pela covid-19, principalmente se as medidas de isolamento social seguirem se afrouxando como vem ocorrendo em diversas cidades do país, estimuladas, inclusive, com os discursos e práticas presidenciais de desrespeito cotidiano do isolamento social. Em tal contexto, não se pode esperar grandes investimentos para salvar o máximo de vidas possíveis. Mais esperado é que o verdadeiro número de mortes seja ocultado e subnotificado como já vem ocorrendo. No neoliberalismo, as políticas sociais nunca foram nem nunca serão suficientes para resolver a quantia de problemas sociais gerados pelo próprio neoliberalismo. Elas são sempre bandeides para amputação. A fantástica fábrica de cadáver ainda está por vir. Somente a pressão social, extremamente difícil em períodos de isolamento social, pode evita-la. E, infelizmente, o lumpemproletariado pode ser a maior vítima dessa fábrica, pois pode ser a classe social menos assistida e que terá o maior índice de subnotificação e ocultação das mortes. As expectativas são sombrias se as medidas realmente necessárias não forem tomadas e que para o lumpemproletariado equivaleria a garantir minimamente as condições de se manterem em isolamento, isto é ser capaz de gerar acomodações para as frações de sem-teto, condições dos desempregados, subempregados, mendigos que crescem nesse contexto, de se manterem isolados etc. E tudo isso exige uma vultosa quantia em investimentos estatais, incompatíveis com a forma estatal neoliberal e com o governo bolsonaro. Ao menos que seja dobrado pela tragédia que se aproxima.
Crítica Desapiedada: Em uma perspectiva revolucionária, quais são as tarefas do lumpemproletariado? Em que sentido essa classe social poderá contribuir para o projeto autogestionário?
Essa é uma pergunta interessante porque remete à tarefa revolucionária, mas afinal o que é, resumidamente, uma revolução social? Fundamentalmente ela significa a substituição completa de um modo de produção da vida por outro: o escravismo pelo feudalismo, o feudalismo pelo capitalismo e o capitalismo pela autogestão social. E no caso do capitalismo o agente revolucionário é o proletariado. Por que razão? Porque essa classe social fundamental é a classe produtora de capital (via extração de mais-valor) que é extraído pela burguesia, a classe dominante. Essa relação social é fundada na exploração e sua própria existência revela a luta de classes, a dominação burguesa sobre o proletariado, uma vitória momentânea da classe burguesa. Contudo, mesmo após anos, décadas de hegemonia burguesa, a luta operária tende a reemergir e ameaçar o capital, pois de uma simples paralisação da produção de capital pode avançar, junto com o avanço da consciência proletária, para uma luta política contra o capital, visando destruí-lo. Porém, para isso a classe operária revolucionária se vê coagida a construir novas relações sociais que, consequentemente, são fundadas na autogestão social que, originada em uma fábrica pode e deve se expandir para o bairro, desse para os demais, para outra cidade e assim sucessivamente, se a tendência revolucionária se expandir e progressivamente se fortalecer, substituindo completamente a velha sociedade. Essa é a marcha dos modos de produção classistas da vida até agora existentes. E nada demonstra que o capitalismo não possa ser completamente substituído, pelo contrário, esse se revela extremamente frágil, hoje mais do que nunca. Nesse processo revolucionário todas as classes se põem em movimento, aliando-se à burguesia ou ao proletariado. O lumpemproletariado está envolvido nessa luta e pode contribuir com a revolução social, especialmente seus setores mais organizados e conscientes, apesar de vários outros setores se venderem à cooptação burguesa, como é de se esperar nas condições lumpemproletárias de existência. Sua possibilidade concreta de fortalecimento e avanço da luta revolucionária está em buscar seu interesse histórico: acabar com a vida marginal e miserável. Tal interesse aponta para a luta contra o capitalismo e sua derrota depende do avanço da luta operária revolucionária. Eis aqui a aliança de classe revolucionária que o lumpemproletariado deve buscar com o proletariado revolucionário em torno de um bloco social revolucionário capaz de destruir a barbárie capitalista que se aproxima e implantar uma sociedade verdadeiramente humana, fundada na autogestão social.
[1] Essa percepção está muito clara na obra A ideologia alemã, quando Marx e Engels analisa a emergência da burguesia como classe social na Europa.
[2] Conferir na obra As guerras camponesas na Alemanha (1975) de Friedrich Engels, publicado em Lisboa pela editora Presença.
[3] Conferir os livros Classe em farrapos – acumulação integral e expansão do lumpemproletariado (2013) e Repressão estatal e capital comunicacional – a criminalização do movimento de desempregados na Argentina (1996-2002).
[4] Conferir o livro O capitalismo na era da acumulação integral (2009) do intelectual marxista Nildo Viana.
[5] Alguns livros: Cidade de Quartzo (1993) e Planeta Favela (2006).
[6] Alguns livros: Punir os pobres (2003) e Os condenados da cidade (2005).
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