Trabalho e Lazer1Tradução do artigo Arbeit und Muße, publicado originalmente na Funken 6, nº 5, maio de 1955, p. 74-76, realizada com base na transcrição disponível em Antonie Pannekoek Archives [Arquivo Anton Pannekoek]. [N. T.]
Como complemento a meu ensaio na Funken número 11 (novembro de 1954), o camarada Rabasseire indicou na Funken de fevereiro 1955 o pequeno escrito de Paul Lafargue Le droit à la paresse [O direito à preguiça]. Como este escrito apareceu na juventude do socialismo, ele nos entusiasmou, pois iluminou o caráter do trabalho de uma maneira diferente daquela habitual da literatura socialista. Se, na sequência, o camarada Rabasseire salienta agora a preguiça como um direito do ser humano, deve se ter em mente que a necessidade do trabalho não é imposta por nenhum “ethos do trabalho” de nossa parte, mas sim por meio da própria natureza. O trabalho pode ter se tornado uma tortura indispensável através da exploração, porém era originalmente um mandamento da natureza. Porque nós temos que nos alimentar e nos vestir contra o frio, nós temos que trabalhar. Deve se buscar fazer valer o direito à preguiça contra a natureza! A preguiça pode ser um prazer; porém, como sistema vital, isso significa fazer com que outros trabalhem por você.
Como os seres humanos se sentem em relação a seu trabalho depende em primeiro lugar do clima. Como antilhano, Lafargue sabia por experiência própria o quão difícil e exaustivo é qualquer esforço no clima quente. Porém, uma vez que lá as necessidades são poucas e a natureza em geral lhes dá suas dádivas em abundância, o ser humano podia facilmente continuar seu instinto rumo ao ócio feliz – aliás, apenas até que os dominadores brancos vieram e lhe impuseram o trabalho forçado. Se, segundo Rabasseire, os socialistas, “todos descendentes do meio cultural românico”, escrevem menos sobre trabalho e mais sobre preguiça e sossego, isto também se deve ao fato de que o clima agradável do sul da Europa atrai as pessoas a desfrutarem das alegrias da vida. Mesmo a maldição bíblica “no suor de teu rosto” é proveniente de áreas mais quentes.
Por outro lado, no clima frio-temperado da Europa Central, a subsistência só podia ser arrancada da natureza através do trabalho intenso. É neste ponto, como fruto do esforço espiritual [geistiger]2Sigo aqui a observação de John Paul Gerber em seu livro Anton Pannekoek and the Socialism of Workers’ Self Emancipation 1873-1960 (1989, p. 16) de que, a despeito de mental ser uma tradução melhor para geistig, o próprio Pannekoek traduzia geistig especificamente como spiritual [espiritual] para significar uma “combinação de qualidades subjetivas, mentais, intelectuais, psicológicas e morais”. [N. T.], que a tecnologia emergiu como força libertadora.
A máquina é a maior libertadora da escravidão do ser humano. […] A máquina tem a missão dupla: aumentar a produção e aumentar com isso os bens terrenos – e ao mesmo tempo reduzir e atenuar o trabalho. Por meio do aumento da produção, a máquina destrói a miséria – por meio da atenuação do trabalho, a escravidão3Pannekoek não fornece o número da página desta citação. [N. T.].
Com estas palavras, Richard von Coudenhove-Kalergi, o famoso lutador pela unidade da Europa, expressa em seu livreto Revolution durch Technik [Revolução Através da Tecnologia], cuja leitura vale a pena, o significado do progresso técnico. Ele não é socialista e ele não conhece a luta de classes; sendo assim, nós devemos complementar sua declaração: a máquina nas mãos do capital agravou a escravidão do trabalho, a máquina nas mãos do trabalhadores eliminará a escravidão do trabalho ao mesmo tempo em que eliminará à miséria.
O Camarada Rabasseire passa, então, do princípio geral da reforma prática do “direito à preguiça” para a redução da jornada de trabalho. O que o crescimento da produtividade do trabalho nos traz não é meramente uma redução da jornada de trabalho, mas também, e ainda mais importante, a possibilidade de organizar a vida sobre novos princípios. Não esqueçamos que a atividade não é meramente uma coerção da fome, mas o fato de que a operação das funções vitais como uso dos órgãos do corpo, como desgaste dos músculos, nervos e do cérebro, é um instinto de vida imediato, tanto para o ser humano como para o animal. A bênção da tecnologia não é um prolongamento do tempo despendido em um ócio abençoado, mas sim em um enriquecimento da vida em novas formas de atividade. Para o indivíduo, em um aumento no lazer reside a possibilidade de se dedicar ao prazer tranquilo, aos estudos sérios, ou ao esporte, à arte, etc. de acordo com seu próprio capricho. Para a classe trabalhadora como um todo, a questão é diferente. O capitalismo já compreendeu que a redução da jornada de trabalho lhe oferece novas possibilidades e lhe impõe novas tarefas. Para isso, ele criou um grande aparato educacional e toda uma indústria do entretenimento. Esta última deve capturar a necessidade das massas por lazer e, através de espetáculos de entretenimento que não levam à reflexão, guiá-las por caminhos inofensivos. E a sede de conhecimento dos trabalhadores despertos encontra satisfação em uma educação em “cultura”, isto é, a cultura burguesa, que os liga espiritualmente [geistig] ao capitalismo e torna ineficazes os pensamentos sobre a luta de classes. O capital rege os trabalhadores não só durante o trabalho, mas também durante o lazer. Toda sua vida, todo seu dia sob a soberania do capital.
Isso só mudará se os trabalhadores derrotarem a dominação e disporem imediatamente sobre os meios de produção. Com certeza é desnecessário observar aqui que esta conquista não será um único ato, mas incluirá toda uma época de revolução social. E também o fato de que ela significa o oposto de uma nacionalização da produção. Me parece que o Camarada Rabasseire não percebeu as diferenças profundas entre o capitalismo temperado por reformas (por exemplo, a redução da jornada de trabalho) e a apresentada em uma organização socialista. Se os trabalhadores dispuserem sobre as máquinas como seus mestres e regularem seu trabalho eles mesmos, lhes será fácil produzir fartura para todos. Porém, seu objetivo maior será organizar a tecnologia de modo tal que ela realmente liberte a humanidade de toda opressão. Em outros lugares eu tentei desenhar mais pormenorizadamente o desenvolvimento que então se iniciará.
[1] Tradução do artigo Arbeit und Muße, publicado originalmente na Funken 6, nº 5, maio de 1955, p. 74-76, realizada com base na transcrição disponível em Antonie Pannekoek Archives [Arquivo Anton Pannekoek]. [N. T.]
[2] Sigo aqui a observação de John Paul Gerber em seu livro Anton Pannekoek and the Socialism of Workers’ Self Emancipation 1873-1960 (1989, p. 16) de que, a despeito de mental ser uma tradução melhor para geistig, o próprio Pannekoek traduzia geistig especificamente como spiritual [espiritual] para significar uma “combinação de qualidades subjetivas, mentais, intelectuais, psicológicas e morais”. [N. T.]
[3] Pannekoek não fornece o número da página desta citação. [N. T.]
Tradução de Thiago Papageorgiou.