Prefácio da obra As Idéias Absolutistas no Socialismo, de Rudolf Rocker.
A reedição da obra de Rudolf Rocker, velho militante libertário alemão na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil, se constitui em tema de primeira importância. R. Rocker coloca em discussão os grandes temas do socialismo mundial: a relação Partido e classe operária, as relações do socialismo com o Estado seja ele “burguês” ou “proletário” e a viabilidade de um projeto socialista não burocrático e autoritário.
Mostra ele, se não quisermos o fascismo nem a social-democracia nem a burocracia autoritária stalinista ou não, temos que nos bater contra a “direita” e ao mesmo tempo contra a exploração do trabalho pelo capital, procurando alterar as forças no interior da “esquerda” introduzindo ali a luta contra a divisão de trabalho, contra a hierarquia e as relações autoritárias. Eis que os clássicos “partidos de esquerda” reduzem a revolução social a formas consagradas, a cerimônias onde o Partido torna-se seu próprio fim possibilitando a pessoas que gostariam de transformar sua vida, e não podem fazê-lo, interiorizar essa transformação no simples fato de “pertencerem” ao Partido.
O conceito de “partido histórico” surge dessa prática, o partido perdeu sua marca revolucionária, transformou-se numa “instituição” onde sua história foi reabsorvida. Ele é uma instituição que se dirige a indivíduos abstratos e atomizados, enquanto uma verdadeira práxis só pode surgir a partir de movimentos coletivos concretos. Daí a necessidade de desenvolver nas pessoas o espírito de crítica a qualquer “ordem” e não o respeito de uma “ordem” pretensamente revolucionária. Para Rocker a liberdade para todos implica na sua própria liberdade, daí a história da classe operária revelar certa consciência da liberdade, pois, se os homens fossem semelhantes a coisas as lutas revolucionárias perderiam qualquer sentido. Rocker entende a revolução como o acesso dos homens à liberdade, porém além dos limites do liberalismo clássico, define que se é livre entre iguais, a liberdade tem a igualdade como fundamento.
R. Rocker faz a crítica do “planismo de Estado” travestido de “socialista” onde partidos hierárquicos burocráticos e centralizados produzem estruturas burocráticas, hierárquicas e centralizadas também. Perpetuam a separação entre “pensar” e “fazer”, muitos fazem e poucos pensam, reproduzem a separação entre “dirigentes” e “dirigidos”. No vasto movimento da classe operária internacional todos são militantes, isso é que é fundamental reter.
Especialmente significativo é o seu capítulo “Socialismo e Estado” onde discute os temas cruciais do “socialismo burocrático” colocado teoricamente em xeque pelos socialistas libertários do século passado como Proudhon e Bakunin, por marxistas como Gramsci no seu primeiro período, por Pannekoek[1], teórico dos “conselhos operários”, e praticamente contestado pelo gigantesco movimento de trabalhadores na Polônia em torno do sindicato “Solidariedade”.
No capítulo anteriormente citado, Rocker discute a espinhosa questão do “Estado de transição”, iniciando por uma crítica ao “socialismo de Estado” de Louis Blanc e Lassalle que pretendiam utilizar o Estado burguês para acelerar a mudança social, pretensão essa retomada pelos partidos social-democráticos da II Internacional e pelo “euro comunismo”, uma social-democracia “recuperada”.
Não deixa também Rocker de criticar a tese do “Estado transitório” ou o conceito de “Ditadura do Proletariado” como fase transitória do capitalismo ao socialismo. Pois, em Marx não se observa uma linearidade a respeito do tema do “desaparecimento do Estado”, pois há diferenças de posição a respeito em textos como “O Manifesto do Partido Comunista” e “A Guerra Civil em França”. Embora não desapareçam todas as ambiguidades, a constante da análise de Marx reside na noção do “debilitamento paulatino” do Estado Operário a partir de sua constituição. É mister esclarecer que o conceito de “ditadura do proletariado” é de Blanqui e foi desenvolvido por Lênin num sentido mais blanquista que marxista, como notou Rosa Luxemburg em “A Revolução Russa”. Embora Marx tenha utilizado o conceito de “ditadura do proletariado” na Crítica ao Programa de Gotha, o fez raramente depois. Entre a definição marxista e a leninista do conceito há uma diferença básica: Marx caracteriza como “ditadura do proletariado” uma forma de sociedade, enquanto Lênin caracteriza-a como uma forma de governo.
A 30 de Maio de 1871, Marx em “A Guerra civil em França” adota a tese de “ditadura do proletariado” igual a governo comunal autogestionário que Engels, na sua Introdução à edição alemã de 1891, aponta a Comuna de Paris “como exemplo típico de ditadura do proletariado”. Isso significa uma revisão total[2] das ideias a respeito expostas no “Manifesto do Partido Comunista” em 1848: Na realidade Marx oscila entre o estatismo e o anti-estatismo. Isso se deveu ao fato de ter sofrido influência jacobina no sentido do estatismo e de Proudhon no sentido anti-estatista, daí suas posturas libertárias rechaçando o “socialismo de Estado” de Louis Blanc e Lassale.
Outro ponto a enfatizar na atitude do socialismo libertário enquanto prática e teoria política é sua defesa do operário não especializado, vendo no “especializado” o germe de uma futura “aristocracia operária”, já criticada por Marx no século XIX e Lênin no século XX que se constitui em suporte da política social-democrática e sindical burocrática na Europa.
Por outro lado, é saudável a atitude crítica do socialismo libertário ante a hegemonia dos intelectuais nos chamados partidos “proletários”, eis que, os mesmos, na sua maioria de origem burguesa ou pequeno burguesa tendem a levar ao movimento operário seus vícios de formação classista, dominando os Comitês Centrais desses partidos e ao tomar o poder de Estado planejam “para” o proletariado “sem” o proletariado. A hegemonia da intelectualidade pequeno burguesa na sua maioria autoritária, carreirista e ávida de poder se realiza através dos partidos autoritários de “esquerda” com a legitimidade conferida pela teoria da “vanguarda” elaborada por Kautsky e retomada por Lênin segundo a qual eles como portadores da “ciência” levam ao proletariado por mediação do partido “a consciência política”, pois o operário deixado a si mesmo só chegaria a um nível de consciência econômica, argumentam Kautsky e Lênin. Na prática o que se deu é que a camada intelectual enraizada no Partido Único no leste europeu e na URSS tendem a se transformar numa burocracia autoritária com privilégios e imunidades ante a classe operária, cuja contestação é dada pelos trabalhadores hoje na Polônia. Sua ação em torno do sindicato “Solidariedade” se constitui num saudável exercício de política operária oposta ao chamado “socialismo burocrático” estatista. Em suma, a obra de R. Rocker é fundamental na medida em que mostra a possibilidade de uma prática socialista que deriva das bases – por exemplo, os conselhos de fábrica – que atuam não só como contestação ao modo de produção capitalista, mas também como agentes de um novo modo de produção qualitativamente distinto do capitalista. A negação dessa prática de “Comissões de Fábrica” como elemento fundante de uma nova estrutura produtiva somente levou às formas de “socialismo de Estado” onde relações capitalistas de produção regidas pela lei do valor continuam sob roupagem nova. É isso
[1] Para mais informações sobre Pannekoek, conferir o Dossiê: Anton Pannekoek (1873-1960). (Nota do Crítica Desapiedada)
[2] Tragtenberg realiza uma afirmação equivocada e imprecisa neste trecho. Não houve uma revisão total das ideias de Marx, mas sim um aprofundamento após a primeira revolução inacabada do proletariado que Marx analisou pela primeira vez em sua vida. Conferir: Podcast – Episódio 02: A Concepção de Estado em Marx com Matheus Almeida, Marx o Estado (David Adam). (Nota do Crítica Desapiedada)
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