Sindicatos, Conselhos Operários e Autogestão – Yvon Bourdet

Em seus combates pela emancipação, os trabalhadores historicamente criaram diversos meios de luta, dos quais o primeiro foi o partido. Mas, a experiência mostra que, mal o partido fora fundado, ele aparece como uma forma de mentor da classe operária, possuindo pretensões de dar a ela aquilo que não possui: uma visão global da situação política e a superação do economismo. Seguindo Kautsky, Lênin insistiu suficientemente sobre esse ponto, como todos sabem, no Que Fazer? Poderia ser o objeto de um próximo caderno dessa revista o de estudar precisamente esse ponto, ou seja, em qual medida é necessário levar a sério a fórmula de Marx: “A emancipação dos trabalhadores deverá ser obra dos próprios trabalhadores”[1]. Mas, hoje deixaremos de lado esse problema fundamental da utilidade, da necessidade ou da nocividade do partido para a emancipação dos trabalhadores, nos limitando a comparar outras formas de organização (sindicatos, conselhos, autogestão) que, à primeira vista – e como que por definição – parecem mais integradas na classe operária. De qualquer forma, a subordinação desses organismos a uma autoridade exterior, qualquer que seja, não é nunca dada como um ideal, nem declarada (enquanto subordinação) quando existe. Desde então, com esse assunto de autonomia e independência, a principal questão que é colocada é a de saber se sindicatos, conselhos e autogestão são estágios sucessivos, ou até mesmo exclusivos uns dos outros ou, pelo contrário, meios compatíveis ou mesmo complementares.

Uma primeira análise histórica poderia levar a crer que o segundo ramo das alternativas que se verifica. Observa-se, de fato, que os sindicatos existiram antes[2], durante e depois dos diversos movimentos chamados sovietes ou conselhos operários e que atualmente, na Iugoslávia, os sindicatos funcionam ainda no sistema da autogestão. Seria muito fácil “explicar”, no que concerne aos conselhos operários, que a diferença é a seguinte: os sindicatos são a organização permanente da classe operária, enquanto os sovietes ou conselhos aparecem em período de crise e por tempo limitado. Mas, essa explicação não vale mais para a Iugoslávia de hoje. A autogestão coexiste com os sindicatos há 20 anos. Certamente, é possível mostrar que os conselhos de produtores iugoslavos não são “verdadeiros” conselhos operários e que, desse fato, a primeira distinção temporal permanece válida. Não se pode então lidar com a questão “em geral” (por visão geral), mas setor por setor. Por esse método, sobre primeiras impressões de coexistência pacífica, podem aparecer incompatibilidades e, em todo caso, relações mais complexas.

É na Rússia de 1905 que aparecem, pela primeira vez, o que se chama de sovietes. Nenhum sindicato os havia precedido e foi por essa primeira razão que “os sindicatos foram interditados até a revolução de 1905”[3]. No entanto, pode-se argumentar que uma espécie de tendência sindical teve que existir no seio do partido, uma vez que Lênin achou oportuno combatê-la, no começo do século, em Que Fazer? Contudo, está bem estabelecido que os sovietes surgiram espontaneamente em 1905, sem servirem-se de formas ou estruturas de um sindicato que não existia. Foi quase o mesmo durante a segunda revolta de 1917, pois, após o refluxo revolucionário de 1906, o movimento sindical restou “semilegal, no melhor dos casos”[4]. Decerto, se quer dizer por isto que se as Leis Fundamentais, promulgadas por decreto em março de 1906, “garantiram as liberdades civis e tornavam legais os sindicatos”[5], permaneceu o fato de que qualquer pretexto era suficiente para prender ou deportar todo sindicalista, mesmo que estivesse quieto. Assim, Carmichael pode afirmar que a Rússia desse tempo ignorava totalmente o papel que os sindicatos desempenham atualmente na sociedade[6]. Não foi, portanto, por “meios sindicais” que se formaram os sovietes de 1917 mesmo que, uma vez o czarismo derrubado, os sindicatos se desenvolveram “na velocidade da luz. A conferência dos sindicatos pan-russos, que aconteceu em Petrogrado em julho, relatou quase um milhão e meio de membros. Ao fim do ano (1917), esse número aumentou ainda mais em setecentos e cinquenta mil novos sindicalizados”.[7] Esses sindicatos não eram controlados pelos bolcheviques; a conferência sindical reunia não somente mencheviques e bolcheviques, mas também socialistas revolucionários. Não era, então, a central sindical como tal, continua Carmichael, “que os bolcheviques tinham em mãos, mas os comitês de fábricas eleitos diretamente “no trabalho” em cada empresa”.[8] Certamente, esses comitês de fábricas não podiam deixar de estabelecer e manter contatos regulares com os sindicatos, mas continuavam independentes e ao menos tinham uma atividade paralela e formavam uma central independente.[9] Assim, podemos observar que a revolução de 1917 provocou simultaneamente a aparição de três tipos de órgãos: os sovietes com vocação política, que assumiram a organização da vida social das cidades e, nos locais de trabalho, os sindicatos e os comitês de fábrica. Essa simultaneidade é significativa: ela mostra que a vocação dos sovietes no país que os viu nascer, historicamente falando, nunca foi a simples gestão das empresas, mas a da sociedade. Desse fato, se os sindicatos e as cooperativas, da mesma forma que a imprensa e o exército, puderam ser representados oficialmente por Stálin, desde o décimo segundo congresso em 1923 como simples “correias de transmissão” do Partido,[10] não poderia ter sido uma questão de “recuperar” da mesma forma os sovietes que têm todo o poder ou não são nada. Então, eles não foram mais nada até o ponto que, com a morte de Stálin, surgissem novamente por alguns dias, aqui ou ali, nos países “socialistas”, logo enrolados pelas “correias de transmissão” blindadas do exército. Dessa forma, os sovietes aparecem e constituem a revolução no momento onde os sindicatos ou não existem, como em 1905, ou dificilmente, como em 1917, ou quando foram reduzidos ao papel de simples de “correias de transmissão”.

Mesmo nos países capitalistas, onde os sindicatos tiveram constantemente um papel mais ativo, não parece que eles poderiam ter tido o papel dos sovietes e dos conselhos operários.

A experiência histórica aparenta mostrar que a estrutura sindical não parece adaptada aos períodos de crises. A experiência de Saclay em 1968 – para nos atermos a um exemplo que estudamos com afinco[11] – mostrou que se muitas vezes são os sindicalistas que lideram os conselhos, eles não são os únicos, e que de qualquer maneira eles não relatam (é o mínimo que se pode dizer) mais o seu pertencimento sindical. Não se põe vinho novo em odres velhos, e de maneira geral, os “comitês de base” não somente são – em caso de pluralismo de centrais – intersindicais, mas integram os não-sindicalizados e recusam, por princípio, as “diretrizes” ou as “palavras de ordem” dos “solenes” externos à empresa. Trata-se, então, de duas formas sociais historicamente diferentes, senão opostas. Os conselhos são aquilo que Sartre chamava na Crítica da Razão Dialética de “grupos em fusão”, enquanto a organização sindical é moldada e resfriada em uma estrutura permanente, o que não quer dizer imóvel; ela funciona, mas não explode; melhor, ela transforma as explosões em movimentos controlados por fora, de acordo com um código, pelos dirigentes-condutores. O conselho não é uma explosão desordenada (se não em relação à “ordem” existente), ele quer se autorregular e ser não apenas o criador de um novo código, mas de um novo caminho. Nesses períodos de movimento, mesmo se o sindicato continua existindo no papel, não há mais ação real. Ele reaparece depois na luta para defender uma conquista que ele não criou, mas a qual ele é o único a poder preservar, pois os conselhos desapareceram ou se tornaram simples conselhos de trabalho dedicados à participação. O papel dos sindicatos apareceria assim como uma potência defensora da classe operária. Nessa perspectiva, compreende-se mal a persistência dos sindicatos no sistema da autogestão iugoslava, a menos que se coloque em questão o caráter “autogerido” desse sistema. Portanto, impõe-se um estudo um pouco mais detalhado.

Dadas as diferenças de desenvolvimento das seis repúblicas da Federação, os sindicatos não apareceram em toda parte no mesmo período,[12] mas, em todo caso, por toda parte bem antes da “autogestão”. Os iugoslavos são muito conscientes da dificuldade que resulta da persistência dos sindicatos no seu sistema. Na brochura já citada que visa explicitar “a essência”, “o objetivo” e “a ação” dos sindicatos iugoslavos, pode-se ler: “Aqueles que são habituados à função tradicional dos sindicatos, aquela de representantes dos trabalhadores perante seus patrões (quer se trate de patrões privados ou do Estado), se perguntam frequentemente: o sindicato tem seu lugar em um sistema no qual os trabalhadores decidem por si as suas condições de vida e trabalho? A autogestão não fez dos sindicatos uma organização supérflua e sem adversário? Parece-lhes absurdo que o conselho operário, eleito pelos trabalhadores de uma fábrica, discuta com o sindicato que representa esses mesmos trabalhadores”.[13] Não se poderia ser mais claro. Essa mesma “objeção” foi colocada por um sindicalista italiano, durante uma coletiva de imprensa feita pelos “dirigentes” iugoslavos perante os “observadores estrangeiros” durante o recente Congresso de Sarajevo.[14] Ele acrescentou uma questão subsidiária sobre o papel dos sindicatos durante as greves, uma vez que “a imprensa burguesa” relatou tais movimentos de paralisação do trabalho na Iugoslávia. A resposta stalinista é fácil de imaginar: bastaria afirmar que a função natural da imprensa burguesa é de caluniar o socialismo. A figura iugoslava que respondeu não se opôs às informações que o sindicalista italiano estava relatando, mas explicou a um auditório um tanto entretido que a greve é uma ação contra um patrão (privado ou estatal) e que, isto posto, na Iugoslávia, com a falta de adversário, a greve não poderia realizar a sua essência; pode-se, portanto, observar as “paralisações de trabalho”, mas nenhuma greve. A mesma “sutilidade” se encontra na resposta, mais geral, sobre a função dos sindicatos sem adversários. Ela resulta de uma mistura especial de deduções (a partir de definições abstratas) e de observações empíricas. É claro que se nos apegarmos a definições abstratas, os sindicatos em regime de autogestão não teriam nenhuma razão de ser; a objeção precedentemente formulada na brochura sobre os sindicatos iugoslavos continuaria sem resposta. No entanto, os sindicatos existem. A conclusão lógica seria que a autogestão não existe. Tal não pode ser a explicação em um regime que fez da autogestão a sua diferenciação específica e seu ponto de honra. Então, o que responder?

A primeira observação, de maneira adequada, consiste em dizer que a contradição vem do fato de se considerar as coisas “de maneira superficial”. Que seja, mas e nas profundezas? Sem que a coisa jamais seja expressada explicitamente, os argumentos apresentados pressupõem que a autogestão não está totalmente implementada, que ela está em vias de desenvolvimento, precisemos, pois, “mesmo em uma sociedade de autogestão, os relatórios de produção não são idílicos e sem conflitos”. Essa observação é, de fato, senso comum e sua “evidência” permite “passar” a expressão: “em uma sociedade autogestionária”, mas de qual autogestão se trata? Algumas linhas adiante, evoca-se o “diálogo” útil entre os sindicatos e “o governo” ou “o Parlamento à escala do Estado”. O sindicato encontra, portanto, na falta de um adversário, ao menos um interlocutor. Como, a partir daí, evitar “o conflito”? Ao expormos que “o sindicato não representa a eterna “outra parte” do diálogo” com o conselho operário, o parlamento ou o governo. O que ele é, portanto? Eis então: o sindicato é “um dos participantes (grifo meu, Y. B.) mais importantes (…) na busca cotidiana por soluções aos problemas de interesse vital à classe operária”. Será necessário, então, pensar agora que a teoria de que “o combate cessou por falta de combatentes” se manteve verdadeira ao mudar de sentido? Tinha-se, até há pouco, um sindicato sem adversário e agora um sindicato que não oferece resistência, que participa. Mas, o qual vê que essa participação só tem sentido quando diminui a resistência da base (que não pode se expressar pelos mecanismos da “autogestão”); que se ela permitir uma acomodação entre dois poderes. Se o sindicato não tivesse essa função de participação antagonista em um sistema que garantisse a expressão da base ao topo, novamente ele não teria necessidade de existir. Sensíveis a esta objeção não formulada, os redatores da brochura adicionaram um pequeno parêntesis que restituímos: “um dos participantes mais importantes (ou oponentes, se necessário) na busca cotidiana… etc.”. Percebe-se então sendo trabalhado um amálgama incoerente de um discurso teórico e observações empíricas. Como pode o sindicato ser um “oponente” sem representar “a eterna outra parte”, sem designar o adversário e, portanto, sem provar a dualidade de poderes que define, no melhor caso, um regime de cogestão?

A transparência dessa conclusão é habilmente obscurecida por uma descrição detalhada em cinco pontos do papel do sindicato “no sistema de autogestão”. Aprende-se também que o “sindicato encontra sua razão de ser nos seguintes fatos: 1) ele trabalha para que o trabalhador possa realmente gerir seus assuntos e os assuntos sociais” (pode-se perguntar o que impede e o que distingue esse primeiro ponto do segundo): 2) ele o ajuda a se transformar em um bom autogestionário”. Para o ponto 3, se descobre que o sindicato “constitui um fórum e o instrumento que permite a conciliação dos diversos interesses dos trabalhadores.” Essa função é parafraseada nos dois artigos anteriores: 4) “ele defende os interesses da minoria de eventuais abusos da maioria; 5) ele protege os interesses da classe operária (…) do abuso ou de deformações no mecanismo de autogestão, etc…” (sic). Pode-se sentir o cansaço do redator que teve que revirar sua cabeça para distinguir estes cinco pontos. Quais meios o sindicato tem para ter esse papel? É difícil de se conceber ao ler o seguinte: “o sindicato, que não tem poder de decisão, age como fator sócio-político independente sobre todos os corpos e órgãos que exercem esse direito de decisão”. É de se ficar um tanto cético sobre as possiblidades de ação sócio-política de um organismo que não tem poder de decisão, mesmo se lemos, mais abaixo, que “os sindicatos são uma arma (grifo meu, Y. B.) na mão da classe operária em sua luta por um funcionamento eficaz e um desenvolvimento constante da autogestão”. Felizmente, na página seguinte, se especifica que “no caso onde os órgãos eleitos da autogestão em uma empresa não cumpram suas tarefas e obrigações de maneira satisfatória”, esse mesmo sindicato sem poder de decisão, “em último caso” (…), “pode até tomar a iniciativa de revogá-los” (Op. cit., p. 28.).

Certamente seria “fácil”, em nome da lógica de Port Royal, de rir doutoralmente dessas “contradições”, assim como ultrapassá-las verbalmente ao invocar a magia da dialética. Elas colocam o interessante problema da oportunidade de uma pluralidade de instâncias decisivas em uma sociedade heterogênea (mesmo se não se tratar, estritamente falando, de uma sociedade de “classes antagonistas”). O que resta é que as dificuldades que os redatores encontraram na brochura sobre os sindicatos iugoslavos, para responder à objeção que eles formularam tão claramente, faz surgir a impossibilidade de fazer a atual cogestão parecer uma autogestão. Sem dúvidas, pode-se julgar que esse objetivo voluntarista pode ter um efeito dinâmico ou, no sentido contrário, que a impossibilidade de realizar aquilo que se almeja coloca em risco de desqualificar o “ideal” que se propõe. De qualquer forma, a experiência iugoslava não prova nada (enquanto experiência concreta) sobre a compatibilidade ou incompatibilidade do sindicalismo e da autogestão, pois essa última não existe. Desde então, pela falta de experiência no terreno, temos que ver qual é o problema no nível dos sindicatos de um país de capitalismo avançado como a França.[15]

A posição da C.G.T., em todo caso, não é desvinculada da “experiência iugoslava”. No momento da ruptura entre Stálin e Tito, o P.C.F. endossou com disciplina as posições da U.R.S.S., o que implicava a condenação sem análise das “inclinações anarquistas” da autogestão iugoslava. Os iugoslavos amam apoiar atualmente que a autogestão surgiu espontaneamente em seu solo, mas, sem negar completamente esse fenômeno, pode-se facilmente imaginar que os dirigentes titoístas viram também uma forma astuta de colocar em questão, do ponto de vista da ortodoxia marxista,[16] o centralismo democrático stalinista. De qualquer maneira, as “melhoras” das relações entre a Iugoslávia e a U.R.S.S., quaisquer que sejam seus avatares, nunca envolveram nenhuma aprovação dos soviéticos do sistema de autogestão. Trata-se de relações diplomáticas de potência para potência, com a ficção do respeito aos regimes interiores de cada uma das partes. Os dirigentes comunistas da C.G.T. dificilmente estão preparados para compreender o sistema iugoslavo, de onde vem as avaliações sumárias, até ridículas, de um Séguy que poderia levar a crer que, nesse caso, apenas tem ideias bem vazias. Em realidade, o sistema de autogestão iugoslavo, mesmo que existisse apenas no papel, seria de toda forma insuportável aos dirigentes esclarecidos pela doutrina do Que Fazer? e seguros que a classe operária é incapaz de saber o que deve ser feito, que ela deve aprender “do exterior”, da boca dos intelectuais do Partido. Certamente, quando eles não estão nos palanques com o slogan, os dirigentes da C.G.T. podem concordar que a sua distante concepção da “gestão democrática” poderia ser, em certo sentido, uma forma de autogestão. Mas, essa afirmação não tem nenhuma consequência imediata pois, do ponto de vista deles, a autogestão das lutas e a crítica da hierarquia arriscariam quebrar ou, pelo menos, enfraquecer o instrumento de combate que é o Partido. É de se notar que a oposição da C.G.T. não é circunstancial; ela é fundada por uma crítica de princípio sobre a qual, contudo, não se insiste abertamente, devido ao seu suposto desprezo pelas capacidades emancipatórias da classe operária, algo que não é oportuno de se insistir enquanto sindicalista. É por isso que, a esta crítica fundamental, se adiciona uma crítica econômica que pode comportar, pelo menos em aparência, mais pertinência: explica-se, de fato, que o desenvolvimento industrial precisa da subordinação cuidadosamente hierarquizada de todas as atividades em um planejamento central, por engenheiros competentes e preocupados com o interesse geral. Esta constatação é resultado de um caminho simplista dos mecanismos de estabelecimento do plano em um sistema autogerido; ao começar a conceber a economia nacional como uma justaposição das reivindicações regionais, até pujadistas, entrega-se de antemão, nas premissas, a conclusão que precisamos para a polêmica. Como percebe-se, a posição da C.G.T. em relação à autogestão não tem nada de sindical, ela é uma consequência pura da teoria política dos dirigentes esclarecidos da U.R.S.S. e do P.C.F. Parece ser útil aqui, portanto, prestar mais atenção a isso.

O ponto de vista da C.F.D.T. é totalmente diferente. É, certamente, sempre possível imaginar que o destaque da autogestão por essa central é, ao menos parcialmente, motivado por razões de tática intersindical. Mas, mesmo se fosse assim, ainda seria de grande importância que a perspectiva de autogestão seja considerada “lucrativa” e que tenha feito rápidos progressos dentre os militantes.

É necessário, todavia, se lembrar que essa palavra de ordem não foi, como acredita-se frequentemente, “apreendida na hora”, de uma forma mais ou menos oportunista, em 1968. Desde 1964, foi apresentada pela federação de petroquímica, liderada por Edmond Maire. Entretanto, isso passou quase que desapercebido, os “holofotes” jornalísticos estando na maioria dos casos focados na mudança de nome e na “desconfissionalização” da C.F.D.T. Foi no ano seguinte, em 1965, que o tema da autogestão foi colocado em voga para dar à central um novo impulso ideológico e, sobretudo, para ultrapassar os problemas da cisão (persistência de uma pequena C.F.T.C.).

O fundamento ideológico de uma autogestão programática se baseia em dois princípios:

1 – Trata-se, de antemão, de “dar fôlego”, por assim dizer, às indispensáveis lutas cotidianas, ao situá-las em um horizonte mais amplo de transformação radical da sociedade global. O sindicato, assim, não é mais concebido unicamente como instrumento de defesa contra o patronato, nem como uma empresa de assediar, corroer ou desperdiçar, mas sua ação é substituída nas perspectivas do sindicalismo revolucionário para ter sucesso diretamente (e, talvez, pelas suas próprias forças, isto é, sem a mediação de um partido político) na sociedade sem classe, na famosa “emancipação da classe operária pelos próprios trabalhadores”, ou seja, na autogestão generalizada, em um primeiro momento, a nível nacional. Mas, à autogestão generalizada como objetivo se acrescenta a autogestão como renovação dos meios de luta.

2 – Em seu princípio, essa renovação consiste nem mais nem menos que em inverter o fundamento da autoridade, isto é, considerar na prática das lutas cotidianas o oposto dos métodos do centralismo “democrático”. Certamente, ninguém suporta, em teoria, que o poder venha de cima (Deus está morto) nem de uma legitimidade tradicional, até mística (a dinastia, Joana d’Arc), mas na prática os dirigentes fazem como se fossem investidos de um poder que – mesmo que em princípio tenha seu fundamento no povo, na “base” – lhes dá o direito a comandar de cima (do alto de sua experiência, do seu saber, do seu carisma). Mesmo que tenham sido “eleitos democraticamente”, com a eleição realizada, eles se tornam “dirigentes”, e como os padres ordenados eles conquistaram, por um tempo determinado ou indeterminado, uma outra essência. A eleição não passa de uma forma de catalizador que faz com que se entregue a eles os padrões ancestrais da necessidade de um patriarca.[17] A prática da autogestão na ação sindical no dia-a-dia tem como objetivo contestar esse autoritarismo tradicional, que não somente persiste apesar do democratismo teórico, mas que, paradoxalmente, encontra um alimento e uma renovação nesse alegado democratismo. Para inverter esse processo, é necessário que se tenha tornado impossível encadear uma ação que não resulte de uma consulta prévia decisiva. Como o próprio Edmond Maire aponta, é realmente fácil de convencer, no plano abstrato de um discurso, aos sindicalistas do mérito de tal questionamento de autoridade: é frequentemente um pretexto ao ataque pessoal contra os sindicalistas que exercem funções oficiais; o foco recai sobre as pessoas e não ao sistema ou, pelo contrário, não se sabe o suficiente para ver que os defeitos que se vê nas ações das pessoas é resultado da natureza do sistema, e não do caráter dos indivíduos (que frequentemente são apenas um efeito secundário do sistema). A crítica às pessoas, no estilo que podemos ver no “testamento de Lênin”, é vã e finalmente conservadora, pois ela leva a crer que o sistema é bom e que basta substituir as pessoas. O exercício da autogestão, como método comprovado de ação, deve então ir além dessa visão superficial da origem das imperfeições ou dos defeitos da práxis. Se veria então uma revolução dos métodos de combate que, não somente aumentariam a eficácia da ação, mas aumentariam a credibilidade do objetivo visado. Assim, a autogestão como meio é condição da autogestão como fim; por definição, não se pode recebê-la de fora, ela só pode resultar da criatividade dos produtores livremente associados.

Portanto, como se percebe, quaisquer que sejam as preocupações táticas de uns ou de outros, ao adotar a palavra de ordem a C.F.D.T. traz de volta à luz o problema teórico fundamental dos caminhos e meios da revolução, e muito mais: integrando esse problema na sua prática cotidiana, ela transforma a busca especulativa em experimentação social e histórica.

Assim, a autogestão não pode mais ser concebida pelos seus detratores como um doce sonho de alguns discípulos iluminados retardados dos utopistas do século anterior. Ela se tornou a reivindicação imediata de milhares de trabalhadores dos setores mais desenvolvidos; eles colocam em questão, dessa forma, todos os Cristos, os deuses salvadores, os monarcas esclarecidos, os dirigentes de vanguarda que encontram sua honra e seu prazer em “morrer” pelos outros homens, merecendo assim o seu respeito, seus aplausos ou suas preces. Certamente, é doloroso tornar-se órfão também no plano metafísico ou social. E, falta saber se a humanidade preferirá as ilusões de sua infância ao invés do controle do seu destino ou, simplesmente, se ela saberá abandonar as lutas sindicais “tranquilizadoras”, que exigem dinheiro ao pai-patrão-todo-poderoso para se aventurar na autogestão criadora.


[1] Primeiro “considerando” dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.), finalmente redigido por Marx, em 1864. É necessário, entretanto, relembrar que em uma carta a Engels, Marx especificava: “Minhas proposições foram todas aceitas pelo subcomitê. Todavia, fui obrigado a aceitar no preâmbulo dos Estatutos duas frases onde é questão “de dever” (…), mas coloquei-as de forma que elas não causem danos…” (Oeuvres [Obras], Economie I, Bibliothèque de la Pléiade, pp. 456 e 469). Seria interessante examinar se a ressalva de Marx se aplica ao “deverá ser” dessa primeira frase e, neste caso, o que ela significa. Pode-se, de fato, se perguntar se a fórmula é contestável ou se Marx critica unicamente o caráter voluntarista da redação. Se nos referirmos ao texto do Manifesto Comunista, e mais amplamente à atitude marxista constante de análise objetiva do econômico e do social, é a segunda hipótese que parece admissível.

[2] Com exceção da Rússia, em 1905.

[3] Carmichael Joël, Histoire de la Révolution russe [História da Revolução Russa], Gallimard, Paris, 1964, p. 224. De forma geral, pode-se consultar a propósito dos sindicatos e dos sovietes na Rússia e mais tarde na U.R.S.S., as obras de Trotsky, Edward Hallet Carr, Léonard Schapiro, Salomon M. Schwarz, Pierre Broué ou particularmente de Marc Ferro.

[4] Carmichael, op. cit., p. 225.

[5] Schapiro Léonard, De Lénine à Staline [De Lênin a Stálin] (História do Partido Comunista da União Soviética), Gallimard, Paris, 1960, p. 93.

[6] Op. Cit., p. 225.

[7] Ibid., p. 330.

[8] Ibid.

[9] Carmichael, op. cit., p. 331.

[10] Carr Edward Hallet. La Révolution Bolchevique. La Formation de l’U.R.S.S. [A Revolução Bolchevique. A formação da U.R.S.S], Editions de Minuit, Paris, 1969, p. 234.

[11] Autogestion et Socialisme [Autogestão e Socialismo], no. 13-14, pp. 257-263.

[12] Na Vojvodina, as primeiras organizações sindicais apareceram durante a revolução de 1848, na Eslovênia em 1868, na Croácia ao fim dos anos 80, na Bósnia e Herzegovina em 1893, na Sérvia em 1896, na Macedônia no começo do séc. XX e em Montenegro em 1903 (de acordo com a brochura; Les Syndicats Yougoslaves [Os Sindicatos Iugoslavos], Belgrade, 1970, p. 10).

[13] Op. Cit., p. 24.

[14] Ver, mais adiante, nas crônicas, um relato desse congresso.

[15] Ver sobre esse assunto, em seguida, o artigo de Francis Fontaine; as linhas que se seguem não são nada mais que uma introdução ao seu estudo.

[16] Ver sobre esse assunto, por exemplo, o artigo de Pero Damjanovic, “Les conceptions de Marx sur l’autogestion sociale” [As concepções de Marx sobre a autogestão social]. (Praxis, 1962, 1, pp. 39-54).

[17] Ver sobre esse assunto as pesquisas – neste ano, particularmente a partir de Reich – do “séminaire sur l’autogestion” [seminário sobre a autogestão], brevemente mencionados mais adiante nas crônicas.

Traduzido por Breno Teles, a partir da versão disponível em: https://archivesautonomies.org/IMG/pdf/autogestion/autogestion/autogestion-n16-17.pdf. Outra versão pode ser acessada em: Syndicats, conseils ouvriers et autogestion.

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