Rumo a um Comunismo Libertário – Daniel Guérin

* Publicado em 1988, mesmo ano da morte do autor. Para mais textos sobre o autor: Daniel Guérin.

De todas as leituras que eu fiz em 1930, no barco que me levou de ida e volta à Indochina, de livros que iam desde Marx à Proudhon, de Georges Sorel à Hubert Lagardelle, de Fernand Pelloutier à Lênin e Trotsky, foram os de Marx que tiveram, sem qualquer dúvida, o maior impacto. Seus livros me abriram os olhos, desvelaram para mim os mistérios da mais-valia capitalista, ensinaram-me sobre o materialismo histórico e a dialética. Entrando, a partir de então, no movimento revolucionário, e atirando meus preconceitos burgueses pela borda fora, eu fui inicialmente instintivamente anti-stalinista; naquela altura, eu era um socialista de esquerda em torno de Marceau Pivert e um sindicalista revolucionário sob a influência de Pierre Monatte. Mais tarde, os escritos de Bakunin, na edição de seis volumes de Max Nettlau e James Guillaume, foram como uma segunda operação de catarata. Eles me deixaram para sempre alérgico à qualquer versão do socialismo autoritário denomine-se ela jacobina, marxista ou trotskista.

Foi sob a comoção provocada em mim por esses escritos (de Bakunin) que eu fui levado a revisar fundamentalmente a admiração que tinha pela estratégia revolucionária de Lênin, para retrabalhar (a minha visão) deste ídolo e proceder a uma crítica aprofundada de certas concepções autoritárias do líder bolchevique. Deste debate interno, concluí que o socialismo teria de se livrar da noção desgastada de ditadura do proletariado a fim de recuperar seu autêntico caráter libertário.

Luxemburgo X Lênin

Isso foi o que me levou, em minha obra histórica sobre a Revolução Francesa, a substituir em toda parte as palavras ditadura do proletariado por coação revolucionária. Em seguida, eu prestei mais atenção àquele processo relâmpago em que Rosa Luxemburgo havia se contraposto ao ultracentralismo de Lênin e o caráter estéril de seu substitucionismo burocrático. Muito tempo depois, em 1971, eu aprofundei minha análise do luxemburguismo e tentei enfatizar seu parentesco relativo com a espontaneidade libertária.

A época em que eu estava descobrindo Bakunin e re-lendo Rosa foi, em termos de luta de classes, a época da Revolução Húngara e sua supressão selvagem pelos tanques russos. Eu senti, de minha parte, menos interesse pelas viragens políticas daquela tentativa de libertação do jugo de Moscou, porque eu estava carregado com ambiguidades inquietantes, do que pelo florescimento efêmero dos conselhos operários húngaros.

Anarquismo

Minhas ideias libertárias passaram por sucessivas fases: no começo, aquilo que eu chamaria de anarquismo clássico, que encontrou expressão em Juventude do Socialismo Libertário (1959), depois O Anarquismo: da Doutrina à Ação (1965) e, simultaneamente, Nem Deus Nem Amo, Antologia Histórica do Anarquismo, onde além de Bakunin, havia espaço para Stirner, Proudhon, Kropotkin, Malatesta e muitos outros.

Então, seguindo um bom bocado pelas vias do anarquismo clássico, e sem virar por um instante as minhas costas aos estudos marxianos, eu publiquei Por um Marxismo Libertário (1969), cujo título, estou certo, confundiu e chocou alguns de meus novos amigos libertários. Depois, pouco antes do tumulto revolucionário de maio de 1968, no qual eu mergulhei até o pescoço, eu reingressei no Movimento Comunista Libertário (MCL) em torno de Georges Fontenis (retornado de suas brechas autoritárias!). Mais tarde, eu estive com a Organização Comunista Libertária (OCL), nas suas primeira e segunda formações, e depois disso, até aos dias de hoje, na União dos Trabalhadores Comunistas Libertários (UTCL).

Socialismo Libertário

Durante um quarto de século, portanto, eu me alinhei, e ainda me alinho, ao socialismo ou comunismo libertário (a palavra anarquista me parece muito restrita e eu não a uso a não ser que seja junto à palavra comunista). Este comunismo libertário é diferente, embora possa ser combinado com a utopia propagada pela escola de Kropotkin, antecipando a era da abundância. Especificamente, o comunismo libertário, como eu entendo, é uma combinação do melhor dos dois mundos, o anarquismo e o pensamento de Marx. Eu tentei desembaraçar estes elementos díspares em um panfleto chamado Anarquismo e Marxismo que foi acrescentado à segunda edição do meu pequeno livro Anarquismo (1981).

No entardecer da minha vida, eu não alego ter previsto, exceto em linhas muito gerais, a cristalização definitiva de uma síntese informal e inquietante. H.E. Kaminski, em sua biografia de Bakunin, pensou ser necessária e inevitável, mas que cabia mais ao futuro do que ao presente formulá-la. Ela deverá vir das novas tempestades sociais que virão e que ninguém hoje pode se orgulhar em ser capaz de provocá-las.

Não é um Dogma

Eu espero ter sido, ao longo do meu engajamento militante, um historiador e teórico com alguma vantagem de sobra. A mim me parece altamente presunçoso anunciar, entre outras coisas, quais aspectos do anarquismo e dos pensamentos flutuantes de Marx são ou não são conciliáveis. O comunismo libertário é por enquanto apenas uma aproximação, e não um dogma de verdade absoluta.

Ele não pode, me parece, definir-se a si mesmo no papel de forma absoluta. Não será uma racionalização do passado, mas um ponto de encontro para o futuro. A principal convicção que me anima é a de que a futura revolução social não será de tipo despótico-moscovita nem social-democrática-anêmica; não será autoritária, mas libertária e autogerida ou, se se preferir, conselhista.

Traduzido por Alexandre Guerra, a partir da versão em inglês disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/daniel-guerin-towards-a-libertarian-communism.