Tempos depois da morte de Lênin e após a atual “estabilização” da dominação do capital em escala mundial, e dos longos anos de “prosperidade” em alguns países, especialmente os EUA, muitas pessoas recém-chegadas ao “comunismo” ou à “Rússia Soviética” não podem em absoluto compreender a crítica da Rússia de hoje e do Partido Comunista que desenvolvemos na primeira década da Revolução – 1917-1927. Essas pessoas, que por longo tempo em conversas designei como a “segunda onda de recrutas do leninismo”, nunca estiveram ligadas com a revolução dos operários russos como um componente direto de um movimento revolucionário mundial no qual tenham participado. Pelo contrário, eles são atraídos pela “nova Rússia” e seu partido bolchevique dirigente, pelos seus “planos quinquenais”, pelo seu progressismo cultural nos campos pedagógico, jurídico, artístico e cinematográfico, que surgiram a partir da Revolução Russa e que possuem, por consequência, uma limitação nacional ao Estado russo, e que ainda continua a possuir vitalidade como um poderoso movimento revolucionário. Eles veem que na Rússia um outro grupo cresceu em poder, influência e eficácia mais do que no velho mundo europeu e americano, e certamente um outro grupo com o qual os novos comunistas, ou “amigos da nova Rússia” a quem me refiro, podem se identificar mais facilmente do que com o tipo anterior de líder em sua própria terra, ou com o novo tipo fascista de líder que está avançando em direção a esta posição em alguns países (e que pertence ao grupo histórico de um tipo humano ainda mais velho). Os novos amigos do comunismo têm, em certo sentido, a mesma relação com o novo Estado russo que Hegel uma vez representou em relação ao novo Estado prussiano: “Estamos hoje tão avançados que nós só podemos considerar como ideias válidas as que tenham surgido da Razão. Visto mais de perto, o Estado prussiano corresponde à razão.”
A aplicação do princípio hegeliano “o que é real é racional” ao Estado Russo de hoje e aos partidos comunistas a ele ligados e por ele apoiados em outras terras, vale não somente para aquela camada progressista e universalmente amante da liberdade da qual, em tempo de um crescente movimento revolucionário do proletariado em luta recebeu reforço, apoio, e a ampliação de seu fronte, mas até certo ponto vale também para os próprios trabalhadores. Não se pode protestar contra uma realidade simplesmente em nome de um princípio abstrato. Hoje não existe em nenhum lugar do mundo uma organização de proletários com inclinação revolucionária, ou mesmo uma “direção” que realmente encarne em si a revolução como um ideal subjetivo, que possa se opor como um movimento verdadeiramente revolucionário ao “degenerado” Partido Comunista da Rússia, que “coloca o interesse nacional do Estado acima dos interesses de classe do proletariado internacional.” Se a crença na “construção do socialismo na Rússia Soviética” é apenas um consolo metafísico, um mito, ou uma “fé no além” revolucionária (Jenseits-Gläubigkeit) para o proletariado de países fora da Rússia que são atraídos pelo comunismo, esta “fé no além” não dá mais conta de um “aqui e agora” revolucionário (Diesseitigkeit) sob qualquer forma inteligível. A Revolução Russa de Fevereiro e Outubro de 1917, e nos anos seguintes – considerada puramente como movimento – foi o movimento proletário que mais massas envolveu em toda a história anterior. Destruiu o Estado tsarista e demoliu a antiga classe dominante capitalista. Em todos os outros lugares os trabalhadores foram derrotados ou, sob formas cruéis, foram arrancados de todas as posições anteriormente conquistadas, seja por meio de aguda pressão a partir de fora, seja via aumento da degeneração a partir de dentro. Em todos os lugares o proletariado está ameaçado na atual crise económica, na qual alguns países já iniciaram um aprofundamento da exploração e da opressão, e a destruir todos os resíduos de um movimento independente da classe proletária e até mesmo, por meio do fascismo, de uma consciência de classe. Tudo que é dito ao proletariado sobre a continuação do capitalismo de Estado, a restauração e aprofundamento de formas já desenvolvidas de opressão e exploração capitalista na Rússia, vem das bocas de seus velhos e conhecidos inimigos: capitalistas, fascistas e social-democratas, ou permanece inevitável e extremamente vago, abstrato, incompreensível e antipático. Todas essas críticas não contêm e não podem conter, neste momento, qualquer tipo de chamada à ação para os proletários revolucionários. Por todas estas razões, é inevitável que, até o surgimento de um novo movimento independente de classe do proletariado internacional, até mesmo a própria classe proletária e precisamente seus componentes mais revolucionários olhem para a Rússia Soviética de hoje como o real e daí como implementação revolucionário-racional dos objetivos postulados que ainda hoje não foram implementados em seus próprios países.
Londres, 30 de março de 1935.
Karl Korsch.
Tradução do Original Alemão por Douglas Kellner.
Nota: Korsch acompanha este documento não publicado com a nota: “apenas como anexo em cartas particulares a amigos. Favor não copiar.” Publicado pela primeira vez em Jahrbuch der Arbeiterbewegung 2 (Frankfurt, 1974), p. 146-148.
O presente texto foi traduzido por José Carlos Mendonça. A tradução encontra-se disponível no livro Karl Korsch: Crítico Marxista do Marxismo. Florianópolis: Em Debate, 2016.