Porque o Leninismo não é Fascismo Vermelho (Apêndice de “Contra O Estado e a Revolução, de Lênin”) – Chris Wright

[Nota do Crítica Desapiedada]: uma análise do artigo “Contra o Estado e a Revolução, de Lênin” e informações sobre o autor podem ser encontradas na introdução do livro publicado pela Edições Enfrentamento: Contra o Estado e a Revolução, de Lênin.

Chris Wright discute as raízes do leninismo na social-democracia e tenta lidar com algumas de suas críticas mais simplistas levantadas contra ele.

Se Lênin, em seu trabalho mais “libertário”, defende de fato uma espécie de capitalismo de “estado”, o que podemos pensar do bolchevismo? Muitos dos círculos anarquistas e marxistas libertários se referem ao leninismo como um “fascismo vermelho”, mas isto me parece muito errado em alguns aspectos importantes. Não porque o leninismo não tenha matado a Revolução Russa; não porque Trotsky não tenha sido um autoritário, mas porque o leninismo teve uma relação completamente distinta com o capitalismo em relação ao que o fascismo teve.

Nós devemos pensar mais claramente sobre o que era o fascismo. Eu penso que esta citação da resenha de Werner Bonefeld do texto “Fascismo Sem Revisão” (Fascism Without Revision), de Johannes Agnoli, levanta alguns pontos interessantes:

“Em conclusão, Agnoli vê o fascismo como uma força contrarrevolucionária que procura desapoderar as massas proletárias ‘dependentes’ e repelir suas aspirações emancipatórias através de políticas preventivas de “pacificação” terrorista e, uma vez que elas se tornam domesticadas, passam por um efeito de políticas de despolitização, através da institucionalização e legalização da ‘questão laboral’. O fascismo, Agnoli argumenta (p. 111), não atacou apenas a classe trabalhadora revolucionária. Esse ataque pertence à ‘normalidade’ das políticas de estado burguesa. O fascismo também ataca o movimento reformista da classe trabalhadora e foca na integração da classe trabalhadora ao ‘sistema’ burguês através de conceitos como Volk[1], onde ‘amigos’ mútuos ganham uma existência material, não apenas através de ‘pleasure trips’[2] organizadas pelo estado, mas também, e principalmente, através da perseguição mortal do ‘foe’[3]. O fascismo italiano, diferentemente da concepção Volkisch[4] alemã de ‘nacional’, focava na incorporação da ‘classe’, procurando incorporar o potencial subversivo sob a obrigação das responsabilidades. Obviamente, somente as uniões comerciais fascistas foram convidadas – e eram as únicas a serem convidadas – para participar das discussões tripartite ([N.T.]: multipartidárias). Como Agnoli mostra, os esforços dos empregados de buscarem seus direitos administrativos não eram diminuídos, ao invés disso eram fortalecidos através de políticas de incorporação. Na estrutura corporativista, os empregadores eram endossados como os produtores e os trabalhadores como dependentes que reconheciam sua posição ‘natural’ na sociedade, lugar que remetia àqueles que não têm propriedade desde os tempos de Roma: a posição natural do trabalhador no corporativismo italiano era a do plebeu. Agnoli resume isso com a metáfora de um barco nacional: a maioria remando, a minoria navegando. Em resumo, o fascismo histórico é entendido como uma tentativa de gerir a reprodução da sociedade burguesa”.

Se o fascismo é um ataque terrorista sobre a classe trabalhadora, o leninismo dificilmente desempenhou esse papel na Rússia antes de assumir o poder do estado. Na verdade, o leninismo buscava a organização da classe trabalhadora para a derrubada do capital e o estabelecimento do comunismo, uma ideia que não foi compartilhada por nenhum fascista, nem ao menos pelos fascistas de esquerda discutidos por Agnoli. Agora, o leninismo pode formular políticas de libertação de todas as formas autoritárias, mas ele fez isso de dentro do movimento histórico dos trabalhadores, não de fora dele. O leninismo no poder se tornou a vanguarda do desenvolvimento capitalista (capitalista de “estado”) na Rússia. E o leninismo no poder certamente levou a um regime absolutamente assassino, do qual usou todas as formas de terror contra a classe trabalhadora. Porém, diferentemente do fascismo, essa besta cresceu do próprio movimento operário, de suas próprias contradições e limitações.

Se avaliado coerentemente, o leninismo deve ser melhor entendido como o que sempre foi acusado de ser: jacobinismo[5]. Mas, quero dizer no sentido literal, que o leninismo se tornou a vanguarda do desenvolvimento capitalista, mas originalmente como a expressão dos desejos radicais das massas. Essa combinação das lutas dos trabalhadores e desenvolvimento capitalista não deve ser novidade nesta lista. Que o bolchevismo se tornou jacobinismo não é uma surpresa: o leninismo foi o casamento de Marx, do movimento dos trabalhadores e da ideologia revolucionária burguesa, principalmente em suas concepções de ciência, organização e comunismo, que veio de Engels, Lassale, Blanqui e Bakunin. Que o jacobinismo do século XX transformou-se no Termidor[6] não é surpresa. Esta é uma parte de Trotsky que é realmente astuta, exceto que o leninismo sempre foi uma teoria da revolução burguesa (basta considerar o conteúdo atual da fórmula de Lênin: “Ditadura democrática dos operários e camponeses”), mas de dentro do movimento operário em um país menos desenvolvido. Outra maneira de dizer isso é de que o leninismo foi um reformismo social-democrata em uma situação que tornou revolucionárias as reivindicações democráticas burguesas.

Em face de uma real classe trabalhadora, e de um mundo de capital e de revoltas operárias, o jacobinismo e Termidor, que já foram usados extensivamente no terror da Revolução Francesa, retornam em uma escala até então desconhecida. Mas isto é fascismo? Seriam os jacobinos fascistas porque usaram o terror para instaurar o capitalismo? O que se perde no significado do termo fascismo neste ponto? Certamente, para aqueles que pensam que o comunismo sempre foi possível em qualquer sociedade, jacobinismo e fascismo podem ser a mesma coisa, mas eu rejeito isto completamente. Esta seria uma linha divisória entre certos tipos de utópicos e Marx.

Em outra nota, vamos considerar por um momento do que a Revolução Russa fazia parte. O bolchevismo lutou com suas próprias contradições, mas, até a morte de Lênin, os olhos sempre estiveram voltados a espalhar a revolução. Dizer que o leninismo empregava meios que eram anátemas para a revolução é apenas dizer que o leninismo era tão limitado quanto o jacobinismo na França, o qual também espalhou a revolução, e que também teve de abrir caminho para o Termidor por conta da desconfiança das massas. Não quero reduzir o bolchevismo à “desconfiança da classe trabalhadora no mesmo momento em que se apoia nela”, mas isto também não é exatamente impreciso, não é? Depois de tudo, os revolucionários bolcheviques não enfrentaram prisões, exílio, pobreza e morte por uma questão de ordem, e sim pela derrubada do czarismo e do capitalismo. O leninismo viveu uma contradição que a recorrência ao “leninismo = fascismo vermelho” simplesmente não pode explicar, e pode ser perigoso também. Isso confunde os jacobinos com Termidor e Bonapartismo.

O fascismo, por sua vez, não inspirou levantes revolucionários em nenhum outro lugar, nem massa de trabalhadores radicais a dizer “Quero ser um fascista!”. Não, eles se reuniram para o que pensavam ser o partido da revolução internacional, e estavam fatalmente errados, mas não porque eles eram secretamente fascistas. Eles se reuniram para o que, nos países capitalistas desenvolvidos, equivale a um reformismo militante que, de fato, contribui para a instabilidade do capitalismo, mas que não tinha uma política que faria qualquer coisa além de deixar a classe trabalhadora vulnerável ao fascismo, keynesianismo e guerra.

Eu detesto chamar o maoísmo ou outros nacionalismos de “leninismos”, pois todos eles eram baseados, ao contrário do bolchevismo, no campo e usavam meios e métodos bem diferentes do leninismo, que foi parte integral do movimento dos trabalhadores europeus. Maoísmo, Castrismo, Guevarismo etc., todos estes refletiam uma base social muito diferente, o que se poderia chamar de campesinato propriamente dito; um campesinato ainda não tão subordinado à relação capital-trabalho e, portanto, não subordinado às forças da classe não-trabalhadora. Eles se engajaram na criação de exércitos e na conquista das cidades, com o imediato esmagamento de toda insurgência dos trabalhadores. E ainda, o quanto o leninismo se diferencia destes movimentos em poder ainda é questionável. Esse desenvolvimento capitalista no século XX tendeu à massificação do estado, ou seja, o estado assumindo papel de banqueiro, empregador e assistente social em face da organização em massa da classe trabalhadora (algo que o fascismo ajudou a encaminhar), e o estado como “desenvolvedor do capitalismo” é uma conclusão certamente óbvia. Que o capitalismo “estatal” representou a tendência predominante em face da luta operária contra o capital também é óbvio.

Parece que o menos óbvio é que o leninismo não foi fascismo. O leninismo, por um lado, é o fracasso da classe trabalhadora em derrubar o capitalismo, um fracasso que ainda ajuda a expor o verdadeiro conteúdo “científico” do marxismo, daí as críticas dos comunistas de conselho e marxistas hegelianos, mas que também expressava o movimento operário confrontando suas próprias contradições. Fascismo não era nada disso. Fascismo era um clube, uma arma. O fascismo não derrubou NADA. É por isso que eu insisto que qualquer um que pense que o fascismo foi um movimento de massa do movimento operário não entendeu nada.

De certa forma, há uma ruptura entre o leninismo e o stalinismo, um rompimento baseado na última aniquilação dos jacobinos pelo Termidor e a institucionalização do Bonapartismo. No entanto, não é uma contrarrevolução no sentido normal, uma vez que o leninismo sob Lênin já era Termidor, do mesmo modo que o Jacobinismo já tinha aspectos do Termidor, mas um novo estágio de desenvolvimento em que a juventude exuberante e a violência em massa devem ser eliminadas e o direito ao controle social é devolvido ao estado. A revolução burguesa teve que dar lugar à estabilidade burguesa, uma estabilidade que custa bem mais vidas, porque essa estabilidade tem que ser imposta não a uma classe embrionária com um pequeno poder social comparado à massa dos pequenos proprietários (A Revolução Francesa), mas sim a uma classe trabalhadora poderosa com dimensões internacionais (A Revolução Russa).

Hoje, o leninismo mantém essas contradições. Eu não me oponho ao leninismo como um tipo de “Fascismo vermelho”, mas a uma forma de reformismo militante, como um reformismo que produziu pessoas cuja profissão é o controle social total (à la Debord). Assim, eles são agentes do capital no mesmo grau que a burocracia sindical entre outros inimigos da classe trabalhadora, com esta diferença: os sindicatos se institucionalizaram como órgãos administrativos, enquanto o leninismo, pelo menos nos EUA, não obteve esse status. A situação é um pouco diferente em países como a França e a Itália, onde os partidos comunistas são, em sua maioria, partidos institucionalizados e até os partidos ditos leninistas “revolucionários” (leia-se: sectários) são bem maiores e influentes. Isso significa que eles poderiam se tornar uma vanguarda do fascismo? Atualmente, eu duvido disso. Na verdade, penso que leninismo como oposição revolucionária está meio morto e tem estado assim já faz alguns anos, talvez décadas. O leninismo pode servir para desorientar pessoas que procuram ideias revolucionárias, pode desorientar as lutas sociais, e pode agir, em outras palavras, como uma luta de classes reformista, mas o leninismo não será capaz, nos países desenvolvidos, de liderar o Estado, exceto como uma espécie de reformismo e recuperativo parlamentar. A base social do bolchevismo (como uma vanguarda estatista de transformação da subsunção formal em real) enfraqueceu e diminuiu, e alguns aspectos do bolchevismo foram subsumidos pelo capital (e continuam sendo). O retorno ao fascismo, como uso do terrorismo para salvar o capital, é, de fato, muito mais provável, e muito diferente.

Chris Wright May

Junho de 2002


[1] [N.T.] “Volk” é um termo do alemão que corresponde a “povo”.

[2] [N.T.] “Pleasure Trips” é uma expressão do inglês popular que se refere aos pequenos prazeres, prazeres momentâneos. No texto, o autor usa o termo para ironizar as pequenas conquistas reivindicadas pelos operários no regime fascista.

[3] [N.T.] O termo “foe” significa inimigo, adversário.

[4] [N.T.] O termo “Völkisch” pode ser traduzido como “étnico” e compreendido como um movimento populista. Cf.: https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_v%C3%B6lkisch.  

[5] [N.T.] Os Jacobinos foram a tendência burguesa mais radical da revolução francesa no século 18. O termo também é usado, pejorativamente, para se referir a pensamentos revolucionários de caráter republicano.

[6] [N.T.] Décimo-primeiro mês do calendário revolucionário francês. O termo “Termidor” passou a ser utilizado para designar o golpe político executado pela tendência burguesa denominada “Girondinos” contra a “república jacobina” (‘império do terror’) no final de julho de 1794, instaurando o regime do “Diretório”, última fase da revolução francesa, que se estendeu até 1799, quando foi substituído pelo “Consulado”, após golpe executado pelo general Napoleão Bonaparte, que foi nomeado primeiro cônsul, tornando-se imperador da França em dezembro de 1804.

Traduzido por Lucio D. Ayala a partir da versão disponível em: https://libcom.org/library/leninism-not-red-fascism-wright. Revisado por Priscila Olin Silva e José Santana da Silva.

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