Onda mundial de revoltas e situação revolucionária (31 de Dezembro de 2019)
Este texto é parte da correspondência internacional que mantemos com companheiros de outras latitudes. Mais especificamente, trata-se de uma resposta a companheiros da região argentina, que nos levantam algumas perguntas para aprofundar a compreensão da fase atual da luta de classes a partir das “Dez notas acerca da perspectiva revolucionária” e de “A invasão alienígena”. Para nós, a comunicação e discussão internacional entre minorias revolucionárias é uma tarefa fundamental de nossa prática militante.
Acreditamos que estamos vivendo um período de charneira, que acaba com o forte período de refluxo que se viveu na década de noventa do século XX, um período antecipado pelas lutas de 2001 na Argentina, Equador, Bolívia, 2006 em Oaxaca, 2008 com as revoltas pela fome, até o 2011 mundial e sua continuação no 2013 em Brasil e Turquia.
Para entender melhor o momento em que nos encontramos, parece-nos importante diferenciar entre a entrada em um período histórico de revolução social e que estejamos diante de situações revolucionárias. Acreditamos que estamos no início do primeiro, porém ainda falta muito para o segundo. Em outras palavras, a crise cada vez mais forte do capitalismo, o desenvolvimento de cada vez mais humanidade supérflua, a crise da valorização, etc. vão obrigar os proletariados a lutar em defesa de suas condições de vida e a realizar lutas cada vez mais contundentes e radicais. Nesse sentido, vivemos o início de um processo de polarização social a nível mundial no qual as lutas vão adquirindo um caráter síncrono e mundial de maneira crescente, alimentando-se umas com as outras.
Porém, estamos diante de uma onda de revoltas, rebeliões, etc. Não são revoluções ou situações revolucionárias onde podemos inverter a práxis do capital, onde estamos em disposição de desenvolver um ataque ao capital e às suas relações sociais para poder impor em alguma região do mundo a ditadura do proletariado contra o capital e o Estado. Em nossa opinião, ainda falta muito para isso.
Por isso o que está acontecendo tem de ser lido não como uma fotografia, senão como um filme que conhecerá fluxos e refluxos. Porém, é um filme cuja trama é a da polarização social cada vez mais intensa e concentrada, o desenvolvimento de blocos sociais cada vez mais antagônicos.
Pensar nisso como um filme e não como uma fotografia ajuda-nos a pensar a dinâmica em curso, na qual uma das tarefas mais importantes que possuem minorias como as nossas é a de clarificação programática através do estudo das lições do passado, a da coordenação e comunicação internacional entre diferentes grupos, etc. Esses tipos de questões são decisivas. Hoje não se trata de realizar uma insurreição vitoriosa que acabe com o capital nos lugares mais avançados da revolta em curso (Chile e Iraque), senão de desenvolver ao máximo os níveis de auto-organização e autonomia de classe tal como existem, e que são uma repetição fractal, impressionante, das revoltas e revoluções do passado – nesse sentido, ver as imagens da Praça Tahrir em Bagdad é algo incrível –, assim como, acima de tudo, realizar uma defesa intransigente de nossas posições comunistas e anárquicas: por exemplo, no Chile é necessário que critiquemos a assembleia constituinte com toda claridade e contundência.
A defesa dessas posições será decisiva nos processos futuros. Acreditamos que estamos no início de um período histórico que se radicalizará cada vez mais e irá se internacionalizando também com mais força. Por isso insistimos tanto em como é importante pensar a dinâmica em curso como um filme, não como uma fotografia, como dizíamos acima. Não se trata de ficar obsessivo agora pela insurreição, ou pelos refluxos dos processos que são vividos e que serão vividos necessariamente, como no Equador, mas pensar a dinâmica em curso, e essa dinâmica é revolucionária e se dirige à níveis de antagonismo social cada vez mais intensos.
Nesse sentido, pensamos que estamos no início de uma nova época de revolução social: uma época caracterizada, no entanto, por revoltas e rebeliões e não ainda por situações revolucionárias em meio mundo, como aconteceu há cem anos, em 1919. Estamos no início de uma época de revolução social e de onda revolucionária como a que atravessou o mundo de 1910 a 1937 – sobretudo de 1917 a 1921 – ou de 1968 até 1980. E essa onda continuará a desenvolver-se com cada vez mais força.
Assim, como dizíamos anteriormente, um aspecto que se destaca na atual onda é a enorme sincronização internacional das revoltas em curso. Por isso acreditamos poder afirmar que no futuro a tendência à internacionalização das lutas por parte do proletariado mundial irá se fortalecer, uma sincronia emblemática em relação aos inícios das ondas revolucionárias anteriores, em 1917 ou 1968. Sem dúvida esse é um dos elementos mais destacados e importantes do atual sismo da luta de classes. Contra todos os negadores do internacionalismo, a luta do proletariado será cada vez mais internacional.
O mais importante agora é como podem ser traçadas linhas assintóticas que comuniquem a aprendizagem revolucionária do proletariado em luta e as lições programáticas do passado realizadas pelas minorias. Ou seja, como o proletariado pode se constituir em classe, em partido, ir alcançando uma claridade a partir de sua própria experiência que lhe leve a desenvolver seu antagonismo contra o capital e o valor em suas múltiplas formas. E para isso é fundamental o papel de minorias como as nossas, como parte da classe. É essencial nossa participação nos momentos das barricadas, porém também nos momentos de balanço, no fluxo da luta de classes, porém também nos refluxos que acontecerão. Por isso iniciativas como as que está a fazer ali são tão importantes. Qual é o papel que podemos assumir como minorias revolucionárias? Sem dúvida é um dos aspectos em que nos encontramos com maior fraqueza nessa nova onda de luta de classes internacional. Mais especificamente, isso significa como podemos reforçar a centralização e o debate em torno de posições, de experiências, de balanços, etc. entre os diferentes grupos das comunidades de luta nos quais tendem a se organizarem os proletários revolucionários e internacionalistas. E isso significa, em última análise, reforçar o papel da teoria revolucionária na hora de saber qual é a natureza do capital para romper com ele, o reconhecimento da linha descontínua da história de nossa classe e das lições que podem ser extraídas das revoluções e contrarrevoluções do passado, assim como aprofundar e reforçar no papel que nós como minorias podemos ter desde dentro dos movimentos de classe atuais e futuros, criticando as fraquezas de nossa classe e tratando de impulsionar adiante os movimentos práticos e a clarificação entorno dos objetivos gerais e históricos do proletariado. Esses aspectos parecem-nos decisivos hoje. Sempre insistimos que nos parece muito importante tratar de analisar as relações de força entre as classes. Em última análise um período de contrarrevolução é uma época marcada pela paz social e o triunfo absoluto do capital. São os tempos normais do capital, de seu fetichismo mercantil e de sua lógica democrática. Períodos que foram interrompidos por outros de luta de classes intensas, como as ondas revolucionárias que mencionávamos acima. Portanto, acreditamos que estamos saindo de um período de contrarrevolução e de refluxo social intenso como o da década de noventa. Contudo, não existe uma linha clara de demarcação entre revolução e contrarrevolução. Acima de tudo, é necessário saber que a revolução convive sempre com a contrarrevolução, que as lutas atuais despertam a contrarrevolução em todos os lugares por parte da burguesia.
Dito isso, é muito importante como nós revolucionários analisamos as épocas de contrarrevolução para distingui-las do momento atual. Não cansamos de repetir que estamos diante do início de uma época de charneira, que deixa pra trás a fase de refluxo contrarrevolucionário da década de noventa, um período que já foi antecipado com toda uma série de lutas no começo do século e, sobretudo, no ciclo de 2008-2013. De qualquer modo, a contrarrevolução dos anos noventa, que nunca foi absoluta, pode-se comprovar na maneira em que se enfraqueceu a perspectiva de superar o capitalismo através de um processo revolucionário. Esse é o elemento principal da contrarrevolução da década de noventa e que ainda paira como uma sombra pesada sobre as fraquezas de nossa classe nas lutas atuais. Em todo caso, não acreditamos que se possa comparar o refluxo dos anos noventa com o período contrarrevolucionário que se inaugurou no final dos anos vinte e na década de trinta do século XX, quando era “meia-noite no século”, e a contrarrevolução afirmou-se através dos regimes gêmeos do fascismo, o stalinismo e os New Deal socialdemocratas: uma contrarrevolução que reduziu as estruturas proletárias e de classe da onda revolucionária anterior a alguns punhados de minorias isoladas.
Por fim, nos é muito útil este tipo de correspondência para poder esclarecer-nos comumente. Esperamos haver aprofundado e clarificado melhor alguns aspectos. Em resumo, parece-nos que estamos somente no início de uma nova época histórica marcada pela revolução, pela polarização social que despertará antagonismos entre as classes cada vez mais fortes e virulentos. Esse é o terreno fértil para que nossa classe se construa como partido, clarificando sua perspectiva histórica: sua negação como classe para negar o capital e suas relações sociais. Porém, para isso ainda resta muito, como dizia Marx após a primeira onda de 1848:
“Enquanto dizemos aos trabalhadores: é preciso atravessar 15, 20, 25 anos de guerras civis para mudar a situação e preparar-se para exercer o poder, é-lhes dito: temos que tomar o poder de imediato, ou podemos ir dormir.”
Traduzido por Editora Amanajé.