8. O sistema dos Conselhos
As organizações de fábrica e as Uniões Operárias são sustentadas e dominadas pelo princípio do sistema dos conselhos.
O sistema dos conselhos é a organização do proletariado correspondente à natureza da luta de classes, como da futura sociedade comunista. Se Marx disse que a classe operária não podia simplesmente tomar a máquina governamental do Estado capitalista mas tem que encontrar a sua própria forma para realizar a tarefa revolucionária, este problema resolve-se na organização dos conselhos.
A ideia dos conselhos nasceu na Comuna de Paris. Os combatentes da Comuna reconheceram que era necessário destruir resolutamente a máquina burocrática militar em vez de a passar de uma mão para outra, se quisessem chegar a uma “verdadeira revolução popular”. Substituíram a maquinaria esmagada do Estado por uma instituição de carácter fundamentalmente diferente: a Comuna. “A Comuna”, escreveu Marx, “não seria um corpo parlamentar mas produtor, executivo e legislativo ao mesmo tempo. Em vez de decidir uma vez em cada 3 ou 6 anos qual o membro da classe dominante que deve representar ou esmagar o povo no parlamento, o direito geral de voto serviria o povo constituído em comunas, tal como o direito individual de voto serve a todos os outros patrões para alugar trabalhadores, capatazes e guarda-livros para os seus negócios”. O primeiro decreto da Comuna foi a suspensão do exército regular e a sua substituição pelo povo armado. Depois a polícia, o instrumento do governo do Estado, foi imediatamente despido dos seus atributos políticos e convertida no instrumento responsável, revogável a qualquer momento, da Comuna. Igualmente, os funcionários de todos os departamentos da administração. Dos membros da Comuna para baixo, o serviço público tinha que ser feito pelo salário do trabalhador. Os títulos adquiridos e a intransmissibilidade dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios dignitários. Os funcionários judiciais perderam a sua aparente independência; seriam, daqui em diante, eleitos, responsáveis e amovíveis. A efetivação da completa elegibilidade e amovibilidade de todos os funcionários sem excepção, em qualquer altura adequada, a redução dos seus salários ao nível da paga habitual dos trabalhadores, estas medidas extremamente simples e obviamente democráticas ligaram os interesses dos trabalhadores aos da maioria dos camponeses e serviram, ao mesmo tempo, como ponto de ligação entre o capitalismo e o socialismo.
As medidas tomadas pelos combatentes da Comuna não podiam ser mais do que essa ponte de ligação, porque a sua reorganização política do Estado carecia da apropriada base econômica.
Na Revolução Russa, a ponte de ligação tornou-se uma estrutura mais propriamente coerente. Já em 1905, em Petersburgo, Moscou, etc., existia a instituição dos conselhos operários, embora em breve tivesse que ceder terreno à reação. Mas a sua imagem impressionara os trabalhadores e, na revolução de Março de 1917, a massa dos operários russos tomou imediatamente conta da formação de conselhos de novo, não por falta de outras formas de organização, mas porque a revolução despertava neles a necessidade ativa de uma fusão como classe. Radek escreveu na altura, observando este fenômeno: “O partido apenas pode chamar sempre os operários mais habilitados, mais lúcidos. Mostra um caminho largo, horizontes abertos, pressupõe um certo nível de consciência proletária. O sindicato apela para as necessidades mais diretas das massas, mas organiza-se por ocupações, no melhor dos casos por ramos de indústria, mas não como classe. No período do desenvolvimento pacífico só as fileiras da frente do proletariado têm consciência de classe. Contudo, a revolução consiste em arrancar do seu letargo as mais largas camadas do proletariado, mesmo as que até então encaravam a política com hostilidade, e imbuí-las de efervescência. Acordam, querem agir; vários partidos burgueses e socialistas, diferentes quanto ao objetivo dos seus esforços, e quanto à via que pretendem seguir, voltam-se para elas. A classe operária sente instintivamente que pode triunfar como classe. Procura organizar-se como classe. E este sentimento, que só como classe pode conquistar, de que os esforços dos seus opositores, que se agrupam em torno de um simples partido, não podem sair vitoriosos, é tão grande que, com a continuação da liberdade de agitação pelos slogans partidários, mesmo as seções mais avançadas do proletariado, cujos esforços vão além dos momentâneos desejos da classe, submetem-se à organização de classe nos dias decisivos. Fazem-no com base numa perspectiva mais clara da natureza da revolução proletária. Na época pacífica do movimento a vanguarda proletária propõe-se objetivos políticos extremamente limitados, para cuja realização não era necessária a força de toda a classe. A revolução põe a questão da conquista do poder na ordem do dia. Para tal as energias da avant-garde não são suficientes. Os conselhos operários tornam-se, então, o terreno onde a classe operária se reúne”.
Os revolucionários russos, os operários e pequenos camponeses, conquistaram o poder político com a ajuda dos conselhos. Tomaram o poder só para si, não o partilharam mais com nenhum resquício da burguesia. Dividiram a Rússia em distritos, nos ·quais os Sovietes eram eleitos pelos operários e camponeses pobres, primeiro para as áreas locais, depois para os distritos; os Sovietes Distritais elegiam o Soviete Central para todo o Estado e o Comité Executivo saído do Congresso destes Sovietes. Todos os membros dos Sovietes municipais, distritais e Central, tal como todos os funcionários e empregados só eram eleitos a curto prazo; permaneciam sempre dependentes do seu eleitorado, a quem prestavam contas.
Nos conselhos operários os trabalhadores encontraram a sua organização, a sua fusão à escala de classe e expressão da sua vontade, a sua forma e essência. Para a revolução assim como para a sociedade socialista.
Através do estabelecimento de conselhos operários, mesmo que não tivessem podido manter a sua forma revolucionária e tornar-se efetivos para as tarefas do socialismo, a Revolução Russa deu aos trabalhadores do mundo o exemplo de como se faria a revolução – como fenômeno proletário.
Com este exemplo pela frente o proletariado pode preparar a revolução mundial. O proletariado mundial, para se transportar – e só ele – para o poder econômico e político onde quer que comece a desenrolar-se uma revolução proletária, antes, durante e depois das lutas, terá que criar conselhos operários nas municipalidades, distritos, províncias, regiões e nações.
Quando o levantamento Alemão de Novembro surgiu, apareceu subitamente no centro de todas as exigências e slogans revolucionários a palavra de ordem: Todo o poder para os Conselhos!
E imediatamente surgiram conselhos de operários e soldados.
Eram certamente incompletos e muitas vezes inadequados – também aqui o operário alemão confirmou a velha lição, que os alemães não têm grande aptidão para a revolução – mas não eram assim tão maus, mal conduzidos e desunidos como diziam as críticas dos partidos e a hostilidade dos contrarrevolucionários. Por maiores que fossem os seus erros, representavam um princípio – o princípio da revolução proletária, o princípio da construção socialista. Aí reside o seu significado, o seu valor para a história do mundo. E nisso se deve basear o respeito que lhes é devido.
Mas o SPD, cúmplice da reação e aliado da burguesia (a qual ele efetivamente salvara com a sua política de colaboração através dos perigos da guerra), enraiveceu-se contra os conselhos operários. Insultou-os e caluniou-os, nunca se cansou de os desacreditar com insinuações e acusações falsas e exageradas, sabotou-os tornando a existência dos conselhos dependente de eleições parlamentares. Quando estes, como resultado da participação de elementos burgueses bastante suspeitos ou diretamente opostos à revolução, tomaram um caminho mais ou menos reacionário, deixou que o poder dos conselhos conquistado pela revolução fosse conferido à Assembleia Nacional por decisão da maioria e pelas autoridades burocráticas. Onde os operários revolucionários resistiram a este procedimento traiçoeiro e malicioso, entraram os guardas de Noske, suprimiram o poder armado dos operários em lutas algumas vezes amargas (Bremen, Braunschweig, Leipzig, na Turíngia, no Ruhr) e puseram um fim violento aos conselhos.
Se estes conselhos não tivessem sido flores rapidamente abertas da revolução que caíram inesperadamente no regaço dos trabalhadores alemães, mas fossem basicamente alheios à sua ideologia política e continuassem alheios, se ao menos tivessem amadurecido organicamente na consciência gerada na luta proletária e tivessem formas firmemente enraizadas nos locais de emprego, com cujas funções e modo de operar as massas se tivessem familiarizado – nunca poderiam ter sido tão rapidamente apagados e desviados de novo da imagem da Revolução alemã. Por isso, o proletariado alemão deixou que a única conquista que obtivera nos dias de Novembro, a partir da qual ele podia ter desenvolvido o princípio da revolução proletária, a sua, fosse rapidamente arrebatada e arrastada para trás como qualquer bom carneiro de partido ou sindicato, nas malhas de grandes aparelhos hierárquicos. Com isso, a revolução ficou perdida para ele.
A luta pela organização dos conselhos apresenta três fases. A primeira é a luta pela conquista do poder. Aqui, a organização dos conselhos é a libertação progressiva das cadeias do capitalismo: sobretudo, também das cadeias do mundo intelectual burguês. Na sua formação estão compreendidos o desenvolvimento progressivo de autoconsciência do proletariado; a vontade de converter a consciência da classe proletária em realidade e de lhe dar expressão visível. A força com que se luta pela organização dos conselhos é, diretamente, o termômetro que indica a dimensão a que o proletariado se compreendeu a si mesmo como classe e em que tenciona prevalecer. Ao mesmo tempo é também claro que só o fato de os conselhos operários serem assim denominados não prova que sejam expressões da nova organização, proletária. Pode acontecer no decurso do desenvolvimento que conselhos genuínos degenerem de novo, que cristalizem numa nova burocracia. Então ter-se-á que iniciar rapidamente a luta contra eles, tão impiedosamente como contra as organizações capitalistas. Mas o desenvolvimento não para, e o proletariado não pode ficar nem ficará descansado até chegar à ditadura do proletariado. Com ela começa a segunda fase da organização dos conselhos. Na luta pelo comunismo e, portanto, pela sociedade sem classes não há qualquer compromisso entre o capital e o trabalho; a derrota incondicional da classe exploradora é condição prévia para o desenvolvimento da classe proletária no nascimento de uma nova sociedade. O estágio de ditadura, cuja duração depende da conduta e vitalidade dos velhos poderes, torna possível a transição. A classe proletária exerce a ditadura na medida em que controla todas as instituições políticas e econômicas da sociedade exclusivamente no seu interesse. O instrumento para tal são os conselhos. Só assim se torna possível a construção da comunidade comunista. Esta é a terceira fase do sistema dos conselhos. Troca-se a espada pela enxada. A economia é orientada e organizada para novos aspectos. A legislação expressa necessidades econômicas e sociais por forma geralmente obrigatória. A execução e entrada em vigor da nova lei é assunto para quem a fez: o legislativo e o executivo coincidem. O corpo legislativo e o administrativo formam uma unidade em nome e no interesse de toda a sociedade. O órgão desta atividade de construção aperfeiçoada em larga escala será o sistema dos conselhos.
O sistema dos conselhos é ao mesmo tempo uma coisa positiva e negativa. Negativa porque destrói e afasta o velho sistema organizacional burocrático-centralista, o Estado capitalista, a economia do lucro, a ideologia burguesa; e positiva porque cria e forma a estrutura de uma nova ordem social, a economia comunal, a federação das forças proletárias para a nova construção cultural, e a ideologia socialista. O seu elemento é social, não individual; a sua mentalidade, o sentido da comunidade, não o egoísmo; o seu princípio, o interesse geral, não o bem-estar individual; o seu ponto de referência, a sociedade, não a classe possuidora; o seu objetivo, o comunismo, não o capitalismo. A atitude social básica dos conselhos e a sua orientação para a essência e conteúdo da ideia socialista manifestam-se necessariamente com evidência: completa abertura ao público e um controle ilimitado de todas as funções oficiais e de gestão, eliminação radical de toda a burocracia e dirigismo profissional, alteração completa do sistema de voto (assembleias, direito de revogação, mandato vinculatório, etc.), deslocamento do acento tônico de todas as decisões importantes para a vontade das massas, construção da educação na base da produção social, revolucionarização de toda a ideologia em direção ao princípio socialista.
A organização dos conselhos implica também acima de tudo novas táticas.
As revoluções burguesas fizeram-se nas ruas, nas barricadas, com armas, militares e exércitos. Mas os exércitos e a força militar são meios burgueses, mesmo quando formados por operários. O exército era na verdade formado por proletários, mesmo no período burguês. Até um Exército Vermelho é, estruturado de modo centralista, autoritário, uma organização de luta basicamente burguesa. Requer comandantes com um poder ilimitado de comando e tropas com obediência incondicional. A disciplina produz-se pela força: poucos devem ter domínio sobre muitos. Uma revolução feita por militares, com exércitos, significaria: os proletários procuravam vencer a burguesia por meios burgueses. Se isto fosse possível, os parlamentaristas teriam tido também razão quando consideraram o parlamento um meio revolucionário. Não se pode confiar no parlamento nem no exército. De qualquer forma, não estamos a formar um exército. Para começar, não temos armas. Alguns tanques eliminam todos os heróis com espingardas e revólveres. É especialmente ridículo tentar formar um exército burguês com os nossos recursos humanos que, no estreito centralismo, permaneça na obediência escravagista das tropas. Para essa luta, os revolucionários são demasiado independentes e esclarecidos. Os camaradas já não se conservam sob disciplina cega, são livres – donde que, também não são tão úteis e eficientes como um exército. No terreno de luta burguês os burgueses são-nos superiores, em assuntos militares assim como na mesa das negociações do parlamento. Por aqui aprendemos que não devemos vir para o terreno da luta burguesa mas forçar a burguesia a vir para o nosso campo: para a fábrica.
Percebemos que a revolução proletária é em primeiro lugar uma questão econômica. O trabalhador instalado na ideologia do partido pensa primeiro na conquista do poder político. Isso está errado. A conquista do poder político não tem como resultado direto que o poder econômico caia também para o vencedor. As lições de 1918 provaram-no. Por outro lado, também a conquista do poder econômico não faz cair imediatamente o poder político nas mãos como um fruto maduro. Por causa destas superstições tiveram os sindicalistas italianos que pagar caro[1]. Devemos manter sempre diante de nós o fato de que o poder político e do Estado são meios de garantir interesses econômicos; o exército, a justiça, a constituição, a igreja, as escolas – todos servem para garantir o capital e o lucro. A superestrutura política é secundária, a economia está primeiro. A luta tem que ser travada a partir de uma base econômica. Não há nenhuma receita especial para isto. Mas os revolucionários têm que tomar posse primeiro das fábricas e das suas funções. O controle, a participação nos cálculos e na gestão, o direito à codeterminação tomando conta das fábricas estão de acordo com a situação, estágios talvez que poderiam seguir-se rapidamente uns aos outros em tempos revolucionários. Em ligação com isto, os aparelhos de Estado e da administração local, – da justiça, polícia, exércitos, escolas, etc., devem ser agitados não tanto por assalto do exterior que, experimentadamente alheio e hostil para estes aparelhos, é geralmente recebido com uma resistência unida, mas sim por uma violenta e continuada luta de dentro, que resultará da crescente luta interna e será alimentada por ela. Esta luta interna só se fará se existirem os conselhos. Eles são o fermento que engendra continuamente as sublevações e conflitos internos, os leva mais além, os agita constantemente, até que se segue o eclodir da luta.
Simultaneamente pode haver lutas nas ruas, massas armadas podem chocar e lutar pelo predomínio de acordo com as leis e regras da guerra burguesa – não serão as lutas decisivas. A importância principal da decisão estará nas lutas nas fábricas. Aqui as massas estão no seu campo de batalha; aqui sabem melhor as coisas, estão no seu elemento. Aqui, enfim, as batalhas de rua e as barricadas encontram sempre o necessário apoio. Só aqui reside a garantia da vitória. Mas só quando as organizações dos conselhos são formações econômicas e políticas ao mesmo tempo, não unilateralmente políticas, como o partido, nem unilateralmente econômicas, como o sindicato (incluindo os anarcossindicalistas), nem sucedâneos tão adulterados, perigosos, contrarrevolucionários como os conselhos de trabalhadores legais, com os quais a clique Scheidemann coroou a bancarrota da Revolução de Novembro.
A mais alta representação dos interesses dos trabalhadores revolucionários é o Congresso dos Conselhos. Deve surgir a partir das organizações de fábrica e ser a expressão organizacional e ativamente funcional da vontade dos trabalhadores. É um disparate pensar que podia ser realizado por um partido ou sindicato. Então, existiria sempre como braço de um partido ou um apêndice de um sindicato. Se o KPD faz propaganda para o Congresso dos Conselhos sem a intenção de desistir imediatamente da sua própria existência na altura da reunião do Congresso, todo o seu trabalho e propaganda não passariam de uma burla. Só procuraria obter com o Congresso dos Conselhos um instrumento efetivo para o controle dos trabalhadores nas mãos dos leaders do partido e perpetuar a sua influência para além da vida do partido. Em Moscou vemos como o Congresso dos Conselhos, graças ao partido, se tornou um fantoche nas mãos todo-poderosas dos que detêm o poder no partido, que ascenderam a dignitários do Estado. Aí reside a condenação da Revolução Russa, que já há muito – não ultimamente quanto a isso – deixou de ser um assunto proletário. O partido deve dar-se por acabado com a constituição do Congresso dos Conselhos. Da mesma forma o sindicato. Sim, mesmo a União Operária, estruturada no princípio dos conselhos e integrando a ideia da propaganda conselhista em carne e osso, cumpriu assim a sua tarefa. Caso aparecesse um Congresso dos Conselhos ao lado do parlamento antes de terminado o período capitalista burguês – que, evidentemente, só podia ser uma prefiguração do verdadeiro Congresso dos Conselhos – as Uniões Operárias (referimo-nos explicitamente à União dos Trabalhadores Manuais e Intelectuais, uma fundação do KPD; à União Operária do KAPD; à União dos Operários Livres dos Sindicalistas e à União Operária Geral, Organização Integrada[2] como as mais consistentes e unificadas na sua constituição programática e organizacional) são talvez concebíveis como frações deste Congresso dos Conselhos. Em proporção, contudo, como influenciam e determinam a eficácia do Congresso através da sua atividade, como a sua natureza se orienta para a natureza do Congresso, trazem consigo o seu próprio fim e tornam supérflua a sua existência. De momento, as Uniões Operárias estão, por assim dizer, a guardar o lugar para o sistema dos conselhos. No próprio sistema dos conselhos reside a realização dos ideais organizacionais, técnico-administrativos e de formação social da época socialista. Com o sistema dos conselhos o socialismo fica ou cai.
9. A Revolução Proletária
A Revolução de Novembro de 1918 foi o último rebento da revolução burguesa de 1848. Pôs em prática a república liberal-democrática que a determinação o poder dos burgueses alemães da época – na luta contra a propriedade feudal e o poder dos príncipes – não conseguira realizar. Para salvar o seu navio naufragado (em perigo extremo devido à guerra mundial) a burguesia mandou borda fora sem cerimônia o último lastro feudal, monárquico, absolutista, que arrastara consigo durante setenta anos e que agora ameaçava tornar-se-lhe fatal. Com isso foi criada uma base de entendimento e negociações com os poderes capitalistas da Europa Ocidental, em particular com os Estados vitoriosos democrático-republicanos, França e América. Dando-se uma constituição liberal burguesa e tomando nas mãos o governo, a burguesia tornou possível, e atingiu, a sua nova estrutura.
A salvação, admitamos, no que respeita ao conceito de um Estado capitalista nacional, veio demasiado tarde. A burguesia alemã, enquanto dava os retoques finais no seu Estado capitalista burguês, e vendo finalmente coroado de êxito o trabalho de construir uma república democrática independente, teve que desistir nesse mesmo momento da sua independência econômica e deixar que os Estados vitoriosos ditassem o grau da sua liberdade política. Essa é a tragédia da oportunidade perdida e da coragem adiada.
O proletariado alemão tentou, em certa medida, levar mais longe a revolução. De Liebknecht a Hölz[3] todos os nervos estão tensos em numerosos levantamentos, na verdade heroicos, para tirar uma revolução social da revolução burguesa, para derrubar a burguesia e estabelecer o socialismo. A multidão de combatentes não faltou determinação e dedicação. Dezenas de milhares foram chacinados, outras dezenas de milhares metidos nas prisões e penitenciárias, ainda mais foram para o exílio, seguidos, perseguidos, passaram à clandestinidade e arruinaram-se. Mas todas as lutas, todos os sacrifícios, todo o heroísmo não chegaram ao alvo. Para o proletariado alemão a revolução está, atualmente, perdida.
Foi derrotada porque, sob a direção do seu aparelho partidário e sindical, a maior parte do proletariado alemão manteve na retaguarda os combatentes seus irmãos de classe – na verdade empurrou-os para lá. Desiludidos na sua ideologia pequeno-burguesa, prisioneiros das suas organizações contrarrevolucionárias, confusos nas suas táticas oportunistas, traídos na procura de si próprios e pelo dirigismo demagógico, tinham eles próprios que se tornar traidores, sabotadores e inimigos da libertação e escanção da sua própria classe. Que a burguesia tomasse conta de si mesma e recorresse à astúcia e à violência para salvar a pele, é óbvio, porque era uma questão de necessidade na luta entre classes. Mas que o proletariado alemão, de posse das mais fortes organizações, que se orgulhava de ser o mais avançado do mundo, e que já experimentara fisicamente durante quatro anos as terríveis consequências da política capitalista-burguesa, esbracejando num mar de sangue e de lágrimas – que este proletariado, na hora da revolução, não soubesse que fazer e não fosse capaz de nada melhor do que salvar uma vez mais a burguesia do seu pais, essa burguesia sem paralelo em brutalidade e audácia, incorrigível e inculta – isso é uma acusação profundamente vergonhosa e triste. Uma acusação que, ainda que não completamente justificada, faria parecer muito compreensível que milhares de pessoas, desmoralizadas e desesperadas, dissessem: esta nação de servos não pode ser ajudada!
E, no entanto, este povo merece não o nosso desprezo, mas a nossa ajuda, na sua falta de coragem e na sua falta de entendimento. Apesar de tudo, ele é a própria vítima de uma servidão de séculos, em que tudo o que é livre e independente foi batido ou fugiu, e de um único grande engano que os leaders cometeram contra ele, renovadamente. Tem que passar agora pela terrível escola da fome e da escravidão, e sob a pressão do poder de exploração multiplicado do capital mundial ser-lhe-ão sugadas das veias as últimas gotas de sangue, todos os maus instintos e vícios da criatura martirizada serão também espremidos; assim, a escola da miséria tornar-se-á ainda também a escola da inspiração e do despertar político.
O proletariado alemão há de finalmente perceber que a revolução proletária não tem nada a ver com partidos nem com sindicatos, mas é obra de toda a classe proletária.
O proletariado alemão tem que decidir-se finalmente a reunir esta classe proletária nos locais da servidão para a tarefa da revolução, educá-la, organizá-la, pô-la em marcha e conduzi-la na luta.
O proletariado alemão tem que resolver-se finalmente a libertar-se das amarras dos seus dirigentes e tomar nas suas próprias mãos a obra da sua libertação, por forma a completá-la com as suas próprias energias e métodos, por sua própria iniciativa, sob o seu próprio comando.
A história do mundo dá-nos tempo até que todas as forças estejam maduras para a tarefa que nos está fixada.
Os parlamentos vêm-se tornando gaiolas vazias: os partidos estão a colapsar, a destruir-se uns aos outros, a perder o crédito político: os sindicatos estão a ficar em ruínas. A queda deste sistema político e organizacional em toda a linha é inevitável.
Os estratos proletários e pequeno-burgueses reconheceram em número crescente que se tornaram vítimas do decrépito partido econômico, se não vítimas dos abusos de confiança dos partidos políticos e sindicatos, uma vez que ainda acreditavam profundamente na justeza e no futuro da ideia socialista, voltam-se para movimentos que os levam ao caminho do paraíso, da libertação sem luta, um paraíso pelo qual não têm que fazer nada: à antroposofia de Rudolf Steiner, ao movimento Livre-país Livre-moeda de Sílvio Osell, às cooperativas trabalhistas que expurgam as ideias dos conselhos, ao Nacional-Socialismo de Adolf Hitler, o bando de rebeldes que negam toda a organização, ou aos Sérios Pesquisadores da Bíblia que aspiram a castelos no ar[4]. Extraviram-se; o seu caminho é o pleno desapontamento; não conduz a nada.
Fica só na luta de classes, desenvolvendo-se na mais larga base econômica, libertando todas as energias proletárias e avançando para a revolução social, que leva a objetivos socialistas. A luta de classes, na qual o proletariado é ao mesmo tempo leader e massas, estado-maior e exército, cérebro e braço, ideia e movimento, impulso e realização.
A estrada da luta de classes é um momento da história mundial. Elimina o passado feudal através e para além do presente capitalista, para o futuro socialista.
Deixa para trás a exploração e o domínio. Conduz à liberdade.
Sigam-nos nesta estrada, camaradas!
Temos o mundo para conquistar!
[1] Refere-se à derrota do proletariado italiano a seguir às ocupações de fábricas de 1919-1920.
[2] As três últimos mencionados são o AAUD, FAUD e AAUD·E, respectivamente.
[3] Revolucionário alemão; organizou os milicianos operários no Ruhr em 1920 e na Alemanha Central em 1921. Membro do KAPD.
[4] Rühle refere-se à multiplicidade das seitas “salvacionistas” produzidas pelo capitalismo neste período de crise. É de notar retrospectiva mente que nem todas estas tendências provaram ser tão historicamente ridículas e irrelevantes como aqui se sugere.
Transcrito por Ádamo Soares. O presente texto foi retirado do livro Da Revolução Burguesa à Revolução Proletária. Publicações Escorpião: Porto, 1975.