O Crescimento do Capital na URSS: Ensaio de Confronto Crítico – Maximilien Rubel

In: Economie appliquée, t. X, 1957, n. 2-3, pp. 363-408. Esta revista é publicada sob os auspícios do Instituto de Ciências Matemáticas e Econômicas Aplicadas, laboratório do Colégio de França associado ao Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS). Trata-se de um instituto de investigação fundado em 1944 em Paris por François Perroux, Professor do Collège de France.

Nota dos Tradutores
Neste ensaio a teoria oficial do crescimento da economia soviética é comparada à realidade desse mesmo crescimento.
A produção socialista é definida em conformidade com a lei da satisfação máxima das necessidades materiais e culturais da população. O crescimento da produção deriva da acumulação socialista necessária ao aumento dos meios de produção à disposição da classe operária.
M. Rubel passa em revista as principais teorias adotadas sucessivamente na URSS desde Lênin até ao Manual da Economia Política de 1956, passando por Bude I. Lapidus e K. Ostravitianov de 1928, e Stálin.
M. Rubel comenta a propósito: “O que mais espanta nesta teoria é a ausência de qualquer referência, explícita ou implícita, ao principal objeto desta teoria – o capital.”
Suprimiu-se a primeira parte deste longo artigo, consagrada à teoria soviética do crescimento, em virtude das dimensões da antologia e do seu próprio objetivo que, mais do que fornecer materiais críticos da ideologia burocrática, consiste em fornecer um panorama das várias interpretações “científicas” ou “militantes” do regime de exploração russo. É neste âmbito que cabe a interpretação de Rubel, desenvolvida na segunda parte do seu artigo.

O Crescimento do Capital na URSS: Ensaio de Confronto Crítico (2ª Parte)

A teoria marxista do crescimento. Confronto crítico: realidades e teoria

Respondendo a um crítico discípulo de Comte, Marx declarava ironicamente ter-se recusado em O Capital a “elaborar receitas para as marmitas do futuro”[1]. Ele não podia adivinhar que, um dia, os seus próprios discípulos, na empresa de “construção do socialismo” transformariam em norma e preceito os modelos abstratos que ele criara a fim de poder apresentar a ficção heurística de um modo de produção e fazer a crítica de um estado social. Ele não poderia imaginar esta ironia triste do destino, um partido “marxista” que submete um povo inteiro a uma experiência decretada nas altas esferas e que por intermédio de uma exploração em tudo semelhante aos métodos violentos e engenhosos do capitalismo ocidental no seu início como na sua plena maturidade, constituiria, invocando Marx e em nome do socialismo, sem tirar nem pôr, um capital nacional[2].

Não é que Marx tenha observado um silêncio misterioso sobre o que pensava ou imaginava duma sociedade pós-capitalista. Toda a sua obra, e desde o início, fornece diversos traços que se poderiam reunir numa espécie de visão da sociedade comunista, libertada de um certo número de alienações materiais ou morais[3]. Embora preciso e de um constante realismo, Marx não deixa de se situar na esfera das aspirações e esperanças.

De qualquer modo o seu vocabulário aplicava-se à descrição da sociedade sua, e a adoção “socialista” das categorias que ele tinha aplicado ao aparelho de produção capitalista, é uma operação dificilmente compreensível. Não é possível explicá-la sem se admitir que na economia soviética, tendo-se mantido o conteúdo das categorias estabelecidas por Marx, foi-se obrigado a conservar a forma das mesmas. Os instrumentos conceituais elaborados por Marx tinham em vista a sociedade capitalista; a sociedade soviética fornece um exemplo deslumbrante deste acordo notável; porquanto sendo de essência capitalista, ela não pôde deixar de explicar a si mesma, pela voz dos seus ideólogos e teóricos, os termos que Marx usou para denegrir o capital. Melhor: Marx concebeu de modo abstrato um aparelho capitalista puro, a sociedade soviética realizou-o.

1. Definição do método “materialista”

O que permitiu à economia soviética atingir em poucas dezenas de anos um nível elevado de produção e colocar-se em segundo lugar entre as potências industriais do mundo, não foi nem a política “realista” de Lênin, nem o “socialismo” de Stálin: eis em poucas palavras o primeiro ensinamento, negativo, bem entendido, do método de análise de Marx, aplicado ao fenômeno do crescimento soviético.

Este método pretende, primeiramente, fazer abstração, no estudo das transformações materiais de uma sociedade, dos fenômenos políticos e ideológicos que constituem a sua “superestrutura” e que na maior parte das vezes não dão da tal sociedade senão uma ideia errada[4].

O método aconselhado por Marx em vista da descoberta do determinismo inerente às formações sociais tem como ponto de partida os diversos modos de produção dos meios de existência considerados na sua gênese e devir históricos; ele leva assim a uma tipologia dos sistemas econômicos, hipoteticamente apresentados na sua sucessão cronológica e na sua tendência a gerar, ao cabo de evoluções mais ou menos longas, de crises, de revoluções repetidas, um sistema mundial de relações sociais racionalmente organizadas com vista à conservação da espécie humana, libertada das suas próprias feridas, reconciliada consigo mesma[5].

Não consideraremos aqui a inspiração ética desta visão: e ainda menos faremos a sua crítica. O que nos interessa, em contrapartida, é, de um ponto de vista metodológico:

1º – a escolha de critérios “materiais” para a definição de diversos tipos de sociedade;

2º – a aceitação da hipótese determinista em analogia com as ciências da natureza[6].

Uma sociedade define-se tipológica e estruturalmente pela maneira como os seus membros, estratos e classes asseguram a sua existência material; por outro lado, os modos de vida e de trabalho das sociedades são função das forças produtivas naturais e artificiais de que dispõem e que criam; finalmente, as relações entre os indivíduos de uma mesma sociedade definem-se essencialmente em função das posições destes no processo de produção. Estas relações tomam a maior parte das vezes a forma hierárquica de classes dominantes e de classes dominadas, as primeiras vivendo do fruto do trabalho das segundas; politicamente, a dominação encarna-se num aparelho de pressão física, ideológica e moral, forjado para manter a sociedade inteira num equilíbrio dinâmico, permitindo o desenvolvimento da força e riqueza sociais a expensas da sociedade dos produtores diretos[7].

Esta concepção sociológica da vida e da história humanas implica, como se vê, uma orientação bem determinada do modo de investigação no domínio da explicação científica dos comportamentos coletivos; ela atribui um papel primordial aos determinismos materiais de todo o tipo que contribuem para configurar os tipos de sociedade, mas não esquece nem omite a ação consciente dos homens, ou mais precisamente, das classes sociais. Longe de menosprezar o papel do acaso e do heroísmo, isto é, do imprevisível no destino das sociedades, ela presta, ao contrário, uma ardente homenagem ao esforço conjunto de indivíduos lutando desesperadamente para quebrar as pressões políticas e econômicas injustificadas ou tidas como tais.

“A história não passa da sucessão de diferentes gerações cada uma das quais explora os materiais, os capitais, as forças produtivas que as gerações precedentes lhe legaram”[8]. Daí se segue que a compreensão dos fracassos e triunfos encontrados pela humanidade no decurso do seu desenrolar histórico só pode resultar do conhecimento destas “estruturas” materiais que formam o substrato empiricamente reconhecível da vida social em toda a riqueza das suas manifestações. Dando a palavra a um intérprete penetrante, Marx admite que o que tenta é “demonstrar, através de uma investigação rigorosamente científica, a necessidade de uma ordem determinada de relações sociais”, e conceber “o movimento social como um encadeamento natural submetido a leis que, não só são independentes da vontade, da consciência e dos projetos do homem, mas que, inversamente, determinam a sua vontade, consciência e projetos[9]“.

Tomar consciência deste determinismo histórico da evolução social, dar-lhe uma expressão teórica rigorosa, evidenciar pela observação e abstração as tendências e consequências prováveis, é realizar trabalho de dialeta “crítico e revolucionário”[10]. Fazer coincidir este conhecimento e esta consciência do movimento e da mudança de sociedade, com uma ação coletiva, destruidora e criadora, negativa e positiva, é a regra da “práxis revolucionária”, a única que permite ao homem modificar-se profundamente e imprimir no meio natural e social os traços da sua humanidade modificada; e humanizar a natureza e a sociedade[11].

Pode bem ver-se como o “método” e o “materialismo” de Marx contêm, a par de autênticos elementos de uma ciência da sociedade, os fermentos de uma ética nova, estranhamente próximos de uma escatologia profana[12].

Foi a partir da descoberta da “forma-valor” da mercadoria, “forma celular” da sociedade burguesa, que Marx teve a ambição de levar a abstração ao ponto de extrair as leis do funcionamento do sistema capitalista na sua pureza, eliminando os fenômenos perturbadores capazes de modificar o seu movimento “normal”[13]. Procurando uma expressão teoricamente aceitável da realidade social, constrói a imagem ideal de um capitalismo funcionando sem obstáculos, tomando por modelo o Tableau Économique de François Quesnay: considera-o, com efeito, como a primeira tentativa de expor o processo do conjunto da produção do capital, como meio de reprodução, tendo por corolário a circulação de mercadorias. O que importava no estabelecimento do esquema da reprodução alargada – onde uma parte do mais-valor se destinava ao aumento da produção – era mostrar as condições exatas nas quais a acumulação capitalista podia prosseguir indefinidamente; era estabelecer ficticiamente um capitalismo permanente, favorecido por circunstâncias ideais e por um equilíbrio perfeito e sempre renovado: os esquemas da reprodução supunham com efeito que a produção capitalista encontrava, em cada período da atividade industrial, o que necessitava tanto em capitais e instrumentos técnicos adicionais, como em mão de obra suplementar. E é a partir deste caráter irreal dos esquemas que Marx formulará a sua teoria das crises e da derrocada do modo de produção capitalista.

Ora, foram os esquemas marxianos da reprodução capitalista que os teóricos soviéticos adotaram para justificar a planificação “socialista da economia da URSS”.

2. Marx e o futuro social da Rússia

Marx, e depois Engels, tiveram por várias vezes a oportunidade de discutir com discípulos russos os problemas sociais da Rússia[14]. Fizeram-no num espírito que tendia a conciliar a exigência teórica do “método” e as necessidades de propaganda e ação políticas.

Marx entreviu o começo de uma revolução social da Rússia no movimento de emancipação dos servos, após a guerra da Crimeia, e na atitude do czarismo em relação a este problema por volta dos anos 60[15]. Só no final dos anos 60, quando entra em contato com os escritores e revolucionários russos, é que a sua atenção, até então concentrada nos objetivos e consequências da diplomacia czarista, se orienta para os problemas econômicos e sociais da Rússia, e particularmente para a questão agrária e para as perspectivas de uma revolução camponesa no país. Estimulado por F. Danielson, economista partidário do narodnitschestvo e tradutor do Capital, mergulha no estudo das formas arcaicas e asiáticas de propriedade. Em breve, de acordo com os narodniki, considera (mediante certas condições) o mir, ou comuna camponesa russa, um ponto de partida possível da próxima revolução social e socialista da Rússia, antes mesmo que o capitalismo lá se implante[16]. Marx tencionava tratar esta questão nos volumes seguintes do Capital. Aprendeu o russo e reuniu uma documentação considerável. Várias circunstâncias, que não poderemos evocar aqui, impediram-no de continuar este projeto, mas dispomos de um certo número de textos, a maior parte inéditos em vida de Marx, que nos informam com grande precisão sobre as ideias e esperanças quanto às perspectivas sociais da Rússia. Por outro lado, alguns escritos de Engels exprimem sobre esse assunto a comunidade de pontos de vista dos dois amigos, de tal modo que nos pode espantar a pouca importância que os “marxistas” soviéticos (começando por Lênin) atribuíram às ideias e opiniões dos seus mestres. Veremos que não foi sem razão.

Em 1875, Engels, a pedido de Marx, enviou uma resposta severa ao escritor revolucionário P. Tkatchev, adepto jacobino dos métodos de luta de Augusto Blanqui, bolchevique avant-la-lettre, que o criticava numa Carta Aberta, por ignorar as condições sociais e as perspectivas revolucionárias da Rússia: este país era, segundo Tkatchev, a terra eleita do socialismo, pois não possuía nem burguesia nem proletariado, e em contrapartida oferecia instituições comunitárias tais como o artel e o mir[17]. Para Tkatchev o triunfo do socialismo na Rússia era uma mera questão política: derrube do czarismo e conquista do Estado por uma minoria revolucionária. Eis, muito resumidamente, a resposta de Engels: é bem certo que se prepara na Rússia uma revolução social, mas esta revolução não poderá tomar um caráter socialista, precisamente devido à ausência, no país, de um proletariado urbano e de uma burguesia capitalista poderosa, ou seja, devido ao fraco desenvolvimento das forças produtivas, vocação essencial da burguesia e do capitalismo. Sem dúvida que a presença na Rússia de formas comunitárias de trabalho e de propriedade, testemunhavam a profunda aspiração do povo russo a um modo de trabalho cooperativo, mas ele não provava de modo algum a sua vocação messiânica para o socialismo, nem a sua independência em relação aos movimentos ocidentais. Se bem que ameaçado pela introdução progressiva do capitalismo na Rússia, o mir poderia certamente, metamorfoseando-se num tipo social novo, tornar-se no fundamento do socialismo russo; todavia isso só seria possível com uma condição, a vitória prévia da revolução proletária na Europa Ocidental. Sendo a queda do czarismo, “última reserva da reação europeia”, uma das premissas fundamentais desta revolução, todas as forças populares deveriam ser mobilizadas para este objetivo.

Dois anos depois, o próprio Marx teve a oportunidade de retomar a polêmica: tendo o sociólogo e narodniki Mikhailovski criticado o “sistema filosófico” de Marx por considerar o capitalismo como uma fatalidade a qual nenhum país, qualquer que fosse, poderia escapar, o autor de O Capital protestou vivamente contra esta interpretação abusiva do seu pensamento[18]. A explicação genética do capitalismo ocidental, notava Marx em substância, não pretende de modo algum ser uma “teoria histórico-filosófica da marcha geral fatalmente imposta a todos os povos”. Assim na Roma antiga a expropriação dos camponeses livres e independentes, embora levando à constituição de latifúndios e de grandes capitais monetários, não conduziu ao aparecimento de uma classe operária no sentido do salariato moderno: “… acontecimentos de uma analogia notável, mas passados em meios históricos diferentes, conduziram a resultados completamente díspares. É através de uma análise empírica e comparada destes fenômenos históricos que se poderá abrir uma via de compreensão, mas nunca com a “chave-mestra de uma teoria histórico-filosófica cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica”. No que respeita ao futuro social da Rússia e às esperanças que os narodniki depositaram na comuna rural, Marx formula a opinião seguinte, fundada num longo estudo de materiais documentais russos e outros: “Se a Rússia continua a seguir o caminho encetado a partir de 1961, ela perderá assim a mais bela ocasião que a história ofereceu a um povo, e sofrerá todas as peripécias do regime capitalista”. E algumas linhas mais adiante Marx repete esta ideia, precisando-a: “Se a Rússia tende a tornar-se uma nação capitalista, como as nações da Europa ocidental, e durante os últimos anos ela fez muitos esforços nesse sentido, ela não o conseguirá sem ter previamente transformado uma boa parte dos camponeses em proletários; e, depois, uma vez introduzida no seio do regime capitalista sofrerá as suas leis implacáveis como outras nações profanas”[19].

Esta simpatia pelas aspirações dos narodniki, Marx conservou-a até à morte, enquanto que no seio do movimento revolucionário russo surgiam graves divergências teóricas e políticas entre a facção populista e terrorista por um lado, e o grupo “marxista” por outro[20]. Vera Zassulitch, então membro do grupo anarquista dito da Partilha Negra, submeteu o diferendo a Marx, declarando que para os socialistas russos se tratava de uma “questão de vida ou de morte”: ou a comuna rural pode desenvolver-se na via socialista, e “nesse caso, o socialista revolucionário deve sacrificar todas as suas energias à emancipação da comuna e ao seu desenvolvimento”; ou está condenada ao desaparecimento e então só resta aos socialistas russos especular sobre a rapidez do desenvolvimento do capitalismo na Rússia e limitar a sua atividade a uma propaganda entre os trabalhadores urbanos. A segunda tese é a dos “marxistas”, afirmava Vera Zassulitch. Será a do próprio Marx? Teria Marx a intenção de expor aos socialistas russos as suas ideias “sobre o destino provável” da comuna rural e “sobre a teoria da necessidade histórica para todos os países do mundo de passar por todas as formas da produção capitalista”[21]?

Não abordaremos aqui as várias redações da resposta a Vera Zassulitch; nos seus rascunhos, notemo-lo, Marx esboça uma espécie de sociologia comparada da comuna camponesa. Para o nosso caso basta-nos lembrar a conclusão geral da sua carta definitiva, que é extremamente breve. Depois de recusar – como já o havia feito a propósito das alegações de Mikhailovski – a ideia de uma “fatalidade histórica” do capitalismo para todos os países do globo, Marx nota: “A análise feita no Capital não fornece (…) razões nem a favor nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo particular que fiz, cujos materiais procurei nas fontes originais, convenceu-me que esta comuna é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia; mas para que ela pudesse funcionar como tal seria preciso eliminar primeiro as influências deletérias que a assaltam por todos os lados e em seguida assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento espontâneo”[22].

Marx negava assim a razão aos seus discípulos russos, a estes “marxistas” que contavam apenas com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia, para verem nascer um movimento operário como nos países ocidentais. O capitalismo na Rússia não era, a seu ver, senão um dos termos de uma alternativa, esta sim, fatal: ou o socialismo através da comuna, ou a passagem pela bifurcação do capitalismo. Uma terceira via parecia-lhe inconcebível. Cerca de um ano após a sua resposta a V. Zassulitch, escreveu em colaboração com Engels um prefácio à edição russa do Manifesto Comunista no qual se lê: “Se a revolução russa se torna o sinal de uma revolução operária no Ocidente, de modo a que as duas se completem, a atual propriedade comum russa pode tornar-se o ponto de partida de uma revolução comunista.”

Engels, após a morte de Marx, continua o debate com os populistas e os marxistas russos, sem todavia arriscar um juízo definitivo que desse razão a uns ou a outros. No entanto, ele estava intimamente convencido que a Rússia se encaminhava para uma revolução burguesa, para um “1789” e um “1793”. Ele conhecia a impaciência dos revolucionários russos em atingir o socialismo pela via de uma ditadura política, temia as consequências de uma tal saída: “… se alguma vez o blanquismo – ideia quimérica de alterar a sociedade inteira pela ação de uma pequena conspiração – encontrou uma razão de ser, foi bem em S. Petersburgo”[23]. Uma vez no poder estes homens serão ultrapassados pelos fatos e verão que a Revolução que julgavam fazer não corresponde em nada a que na realidade fizeram. Por consequência a única coisa desejável era a queda do czarismo e o acesso ao poder das camadas liberais[24]. Não incumbia aos “marxistas” russos procurar os adeptos para pôr em prática uma ou outra teoria socialista; uma vez estabelecida a democracia, as massas populares russas fariam a sua aprendizagem política com vista a uma transformação da sociedade[25].

No início dos anos 90, Engels considerava a obchtchina definitivamente um sonho do passado; a Rússia havia entrado na via do capitalismo e da industrialização. Ironicamente fazia notar a Danielson que os próprios “eslavófilos”, adversários do “Ocidente podre”, favoreciam as tendências “europeias” da economia russa, ao apoiarem a política protecionista do governo. “Todos os governos, por mais autocráticos que sejam, não passam em última análise órgãos executores das necessidades econômicas da situação nacional… Saber se os meios pelos quais a revolução industrial foi levada a cabo na Rússia foram os mais apropriados, é uma questão à parte… Do meu ponto de vista basta demonstrar que esta revolução industrial era ela mesma inevitável”. A Rússia não pode viver apenas da sua agricultura, a sua indústria deve adotar os mais modernos métodos técnicos: desde que a guerra se tornou um ramo da indústria pesada, a grande indústria tornou-se uma necessidade política. A Rússia só levará a cabo a sua revolução industrial sob a forma capitalista, como a Inglaterra, a Alemanha, a América. As contradições inerentes ao sistema capitalista levam esta, ao mesmo tempo que destrói o seu próprio mercado interior, a criar um outro: no interior, pela transformação dos camponeses em proletários; no exterior, pela conquista violenta de novos mercados. A transformação capitalista da Rússia não poderá fazer-se sem convulsões terríveis, pois esta é a marcha da história: “Nós, homens e mulheres, somos infelizmente demasiado estúpidos para nos decidirmos a realizar um verdadeiro progresso antes de termos sido levados a isso por sofrimentos desmesurados.” Engels prevê que a transformação capitalista da Rússia se fará através de sofrimentos incomparavelmente maiores que, por exemplo, a da América, e precisamente por causa da existência na Rússia de formas de economia comunitária e natural. Sem dúvida que, se no período de 1860 a 1871 a Europa ocidental se tivesse tornado suficientemente madura para passar ao socialismo, os russos teriam mostrado o partido que poderiam tirar da sua comuna rural. Mas “o Oeste não mexeu”; o capitalismo desenvolveu-se a um ritmo constantemente acelerado. A Rússia não tem pois por onde escolher, ela segue o caminho do capitalismo que lhe abre aliás perspectivas novas: “Não há grande mal na história sem que um progresso histórico o compense. Só o modus operandi muda. Que os destinos se cumpram!”[26].

Tal foi a mensagem teórica e política legada por Marx e Engels aos revolucionários russos. Aos narodniki faziam notar que a sobrevivência e florescimento da comuna rural dependiam ao mesmo tempo da queda do czarismo e da revolução proletária no Ocidente; aos “marxistas”, aconselhavam o abandono de todo o sectarismo ideológico e que concentrassem a sua atividade num só objetivo: a reunião de todos os elementos dinâmicos da sociedade russa com vista ao derrubamento do despotismo czarista. “Hoje, declarou Engels a Kautsky, trata-se não de um programa mas da revolução. Quando esta se puser em marcha não serão os socialistas, mas os liberais que tomarão o poder na Rússia. Só quando, pelo impulso desta revolução, a revolução socialista tiver triunfado na Europa ocidental é que esta vitória poderá ter repercussões na Rússia e provocará aí o desenvolvimento do socialismo[27]“.

O bolchevismo, variante triunfante do marxismo, teve um papel decisivo na transformação econômica e social da Rússia. Uma questão se põe: não terá sido necessário a este renunciar, precisamente, aos princípios fundamentais da ética política de Marx? No caso afirmativo, em que medida?

3. Formação e desenvolvimento do Capital na Rússia

Mestres e doutrinários da economia soviética proclamam hoje urbi et orbi que a URSS realizou o socialismo ou, mais exatamente, a primeira fase do comunismo na concepção em que Marx o entendia e desejava.

Se isso fosse verdade seriam as teses de Marx e de Engels sobre o futuro social da Rússia, seria igualmente a teoria materialista da história no seu conjunto, que se achariam desmentidas.

Não é menos evidente que a teoria marxiana da evolução social conserva todo o seu valor a partir do momento em que a realidade não corresponde em nada às proclamações dos teóricos soviéticos. Neste caso, o “marxismo” soviético revela-se pura e simplesmente uma ideologia da classe dominante na Rússia, por outras palavras, um instrumento de mistificação e opressão ideológica em proveito desta classe.

Mas a estrutura econômica e social da URSS será capitalista, no sentido previsto por Marx e Engels na hipótese do desaparecimento da comuna rural, isto é, apesar da Revolução de Outubro?

Esta pergunta, por mais estranha que pareça à primeira vista, já recebeu resposta afirmativa do lado marxista[28]. Não pretendemos, por conseguinte, fazer obra inteiramente original ao demonstrar a existência do capital e portanto de relações de produção capitalistas na URSS. As nossas divergências com as análises marxistas precedentes são de ordem sociológica: o capitalismo soviético difere do capitalismo ocidental moderno na própria medida em que a sociedade russa se situa a um nível histórico diferente do dos países ocidentais; trata-se por um lado de ritmos de evolução divergentes: em poucos decênios a economia russa compensou através de uma surpreendente aceleração do progresso técnico e industrial o seu atraso secular na matéria. Enquanto capitalismo de imitação, o sistema econômico da URSS foi capaz, no decurso da edificação, de se servir de toda uma gama de métodos de exploração e de organização postos em prática pelo capitalismo ocidental, desde a sua gênese até ao apogeu.

Forçando a esquematização (e tal nos é imposto pelo âmbito do presente estudo) podemos distinguir várias etapas da formação do capital na URSS, desde a queda do czarismo até à conquista do poder pelos bolcheviques.

Pode falar-se em primeiro lugar dum período “anti-capitalista”, certamente de muito curta duração; este caracterizava-se pela ocupação das fábricas pelos operários, paralelamente à ocupação das terras pelos camponeses, após o golpe de estado bolchevique. Foi o governo bolchevique que consagrou esta tentativa de autogestão operária – ao mesmo tempo que lhe punha termo. Ao decretar a nacionalização da indústria e o controle operário (sob a autoridade do Estado!) entendia combinar o capitalismo de Estado e a ditadura do proletariado, conforme a fórmula cara a Lênin[29].

Durante a guerra civil (Verão de 1918 a Outono de 1920), a economia desmorona-se, embora as administrações centrais consigam organizar e coordenar as empresas, ao mesmo tempo que as experiências de uma economia sem dinheiro e sem capital (que as circunstâncias impõem) são acerbamente discutidas nas fileiras do partido. Para evitar uma catástrofe, finda a guerra civil, era preciso renunciar igualmente ao “comunismo de guerra” e estabelecer certas instituições e métodos já experimentados pelo capital clássico: imposto, em primeiro lugar em gêneros, depois em dinheiro, substituindo as requisições e o monopólio do Estado sobre o trigo, comércio livre, explorações individuais na indústria e no comércio. As oposições operárias, sindicais e anarcossindicalistas são reduzidas ao silêncio pelo partido; daí resultou uma expansão irresistível de uma burocracia pletórica, cuja manutenção acabaria por pesar normalmente na economia do país e será uma das causas do fracasso da Nova Política Econômica (NEP). Os resultados positivos da NEP foram no entanto notáveis: pôs termo à inflação com a criação de uma moeda estável coberta pelo ouro[30]; permitiu à produção global da Rússia atingir por volta de 1928-1929 o seu nível de 1913[31]; restabeleceu o rendimento nacional e o rendimento médio per capita, reconduzindo-os ao nível de 1913[32].

Quando se estuda a dinâmica das forças de produção que tornou possível a restauração econômica durante o período da NEP constata-se logo que ela tinha por motor, tanto no setor privado como no setor estatizado da produção, o lucro mercantil tal como Marx o havia definido ao analisar as relações mercantis da economia capitalista. Este fato é incontestável se se considerarem os domínios da produção agrícola e do pequeno comércio, nos quais a NEP restabeleceu a liberdade de trocas[33]. Quanto às empresas industriais e comerciais nacionalizadas desde 1917-20, o restabelecimento pela NEP do regime dos salários proporcionais ao rendimento do trabalho e de gestão das empresas em bases estritamente comerciais não podia ter outra consequência senão a formação de uma empresa de Estado à escala nacional, empresa orientada em todas as suas atividades de direção e de controle para uma acumulação relativamente lenta do capital nacional[34].

O Governo teve que haver-se sem empréstimos nem investimentos estrangeiros, e esta reconstituição da economia durante a NEP realizou-se com base numa acumulação exclusivamente interior[35].

A partir de 1923 apareceram os sintomas de uma crise econômica séria. Esta resultava da disparidade crescente entre os preços agrícolas e os preços dos objetos manufaturados, mas escondia um antagonismo profundo entre os interesses do capital comercial privado e o capital de Estado. Trotsky, então promotor fervoroso do Plano Econômico do Estado, exprimiu assim o significado social e político deste antagonismo: “No caso do capital privado chegar pouco a pouco, lentamente, a dominar o capital soviético, o aparelho soviético sofrerá muito provavelmente uma degenerescência burguesa (…). Se o capital privado crescesse rapidamente e conseguisse pôr-se em contato, unir-se, com o campesinato, as tendências contrarrevolucionárias ativas dirigidas contra o Partido seriam então as prevalecentes[36]“.

“Sentia-se por toda a parte a onda crescente do capitalismo” conta Trotsky, que então conduzia a oposição contra a política staliniana “orientada sobre o kulak” e hostil à aceleração do ritmo de industrialização a expensas do campesinato, isto é, hostil à “acumulação socialista”[37]. Dois anos mais tarde (1928), o programa e o testamento político da oposição encontrarão em Stálin um executor inesperado. Os seus conselheiros espantados viam-no levar a docilidade ao ponto de liquidar fisicamente os kulaks “enquanto classe”. Convenhamos aliás que entre Trotsky e Stálin existia algo mais do que simples divergências teóricas[38].

A tarefa principal que este Estado devia, pela vontade do partido dominante, assumir no decurso da “segunda fase” era a organização “pacífica” da economia “socialista”. Do mesmo modo que durante a primeira fase o capital necessário a esta acumulação “alargada” devia ser criado unicamente com os recursos internos: O Capital de Marx forneceu a Stálin a receita necessária para esta criação ex-nihilo – na ocorrência as massas subproletarizadas.

Marx descreve em O Capital a gênese histórica e o crescimento do capitalismo. Estas descrições representam o mais formidável requisitório feito contra a obra “civilizadora” da burguesia. Ora elas foram transformadas pelo partido bolchevique, senhor do Estado, noutras tantas receitas econômicas e políticas para edificar o “socialismo num só país”. A manipulação “consciente” da teoria do valor bastara para obter a restauração do potencial econômico do país durante a NEP. Faltava agora “aplicar” a teoria da acumulação do capital, desenvolvida por Marx nos últimos capítulos da sua obra – e tal foi o objetivo da “planificação”. Planificar, isso significaria simplesmente organizar à escala nacional uma exploração sistemática da força viva do trabalho segundo os métodos descritos por Marx no que respeita à “acumulação primitiva”, o maquinismo e a grande indústria enquanto fontes de mais-valor relativo e de mais-valor absoluto.

Falando dos efeitos da cooperação simples, Marx lembrava-os os trabalhos gigantescos dos antigos Estados da Ásia e do Egito que, dispondo do trabalho da população não agrícola, podiam erigir enormes monumentos unicamente com a concentração dos esforços dessas massas de braços. “Este poderio dos reis da Ásia e do Egito, nota Marx, dos teocratas etruscos, etc., cabe na sociedade moderna ao capitalista, quer seja ele isolado ou, como nas sociedades por ações, associado”[39].

O Estado Bolchevique, “capitalista associado”, conjugou na criação da grande indústria soviética todos os métodos de acumulação primitivos e refinados, num conjunto sistemático englobando ao mesmo tempo o regime colonial, o crédito público, a finança moderna e o sistema protecionista”[40]. Marx precisou este papel do Estado na gênese do Capital, como relação social de produção, formulando uma espécie de axioma sociológico, mas seria preciso esperar que homens de Estado “marxistas” fizessem deste axioma uma regra de ação política: “Alguns destes métodos repousam no emprego da força bruta, mas todos sem exceção exploram o poder de Estado, a força concentrada e organizada da sociedade, a fim de precipitar violentamente a passagem da ordem econômica feudal à ordem econômica capitalista e de abreviar as fases de transição. E, com efeito, a Força é a Parteira que em todas as antigas sociedades dá vida ao trabalho. A força é um agente econômico”[41].

Foi esta constatação, tornada uma máxima, que inspirou secretamente os Planos quinquenais; longe de proceder à organização de uma sociedade socialista, estas listas de obrigações atribuíam a milhões de trabalhadores tarefas precisas para obter, a todo o custo, uma produção máxima[42].

“Nos países onde é preciso em primeiro lugar expulsar a aristocracia (…) falta, a meu ver, a primeira condição de uma revolução proletária, isto é, um proletariado industrial à escala nacional”[43]. Esta maneira de ver de Marx – outro axioma da sua teoria social – foi tratada pelos seus discípulos russos do mesmo modo que a dialética hegeliana o foi por Marx: “Nele, ela caminha de pernas para o ar; basta pô-la direita para lhe encontrar uma fisionomia aceitável”[44]. Na verdade os bolcheviques pretendiam ter feito antes do mais uma revolução “proletária”, e preparavam-se desde a NEP para criar um proletariado industrial no setor “socializado” da economia. Só restava a Stálin efetuar o salto dialético: ordenando a “deskulakização” e a coletivização dos campos, matava dois coelhos de uma só cajadada: proletarizava o campo e arranjava para a indústria os braços disponíveis – “o exército de reserva” que em breve pertencerá ao capital “de um modo tão absoluto como se ele o tivesse educado e disciplinado por sua própria conta”[45].

Assim, a “nacionalização” das terras decretada em 1928, tomava em 1929-30, e até 1937, a forma da mais brutal expropriação, mascarada com a ficção jurídica da constituição da “propriedade socialista”.

“O sentido da coletivização era a submissão da agricultura às condições da acumulação estatal”, escreve W. Hofmann na sua notável obra sobre a estrutura do trabalho na União Soviética[46]. O autor teria podido, na ocorrência, referir-se à reflexão feita por Marx sobre as relações entre o capital e a renda fundiária, entre o capitalista e o proprietário fundiário. Com efeito, enquanto que o primeiro era aos olhos de Marx, o spiritus rector e o principal agente da produção, o segundo parecia-lhe completamente supérfluo no modo de produção capitalista. Desde que a terra, enquanto modo de produção, esteja separada da classe operária, o capitalista está pronto a deixar a renda fundiária ao Estado, pronto a ver a terra tornar-se propriedade do Estado: “O burguês radical aceita teoricamente a negação da propriedade fundiária privada, que ele queria transformada em propriedade da classe burguesa, sob a forma de propriedade do Estado”[47]. Aliás, Lênin estava perfeitamente informado sobre as concepções marxistas da renda fundiária, e era por essa razão que considerava a nacionalização da terra como uma medida “democrática-burguesa”, negando-lhe qualquer caráter socialista[48].

A coletivização forçada da agricultura assim como a nacionalização da terra nada tinham de socialista, se nos ativermos às lições de Marx: ela era apenas um elo necessário no processo de acumulação do capital de Estado, do capital “socialista”, rivalizando com o capital privado e ávido de absorver, ao mesmo tempo que a mão-de-obra “liberta” pelo campo, o sobretrabalho necessário à sua acumulação[49]. Quanto à centralização dos capitais numa dada sociedade, Marx atribui-lhe um último limite, atingido no momento em que “todo o capital nacional não formaria mais do que um só capital nas mãos de um só capitalista ou de uma só companhia de capitalistas”[50].

Foi exatamente este o papel dos Planos quinquenais cujo verdadeiro objetivo se compreende: criar o capitalismo num só país. Se assim não fosse, como explicar então que a URSS, “Estado socialista” cercado outrora pelos países capitalistas, conte mais com a força dos seus exércitos e das suas armas para se defender que com a revolução das massas exploradas por toda a parte no mundo “capitalista”?

Se é verdade que Marx não pôde observar senão o início do processo universal da concentração de capitais (sob a forma de sociedade por ações), não deixou por isso de o reconhecer plenamente e de perfeitamente definir o seu alcance histórico. Viu nele a marcha para uma separação cada vez mais radical entre a força de trabalho e a propriedade dos meios de produção, por outras palavras, a submissão crescente do trabalho à direção do capital. Finalmente, a direção foi entregue aos diretores que, se bem que não usufruam de qualquer título de propriedade, substituem de modo evidente os capitalistas-proprietários nas funções de direção e administração do capital. Formulando as suas conclusões teóricas gerais sobre as tendências evolutivas do modo de produção capitalista no seu apogeu, previu que o desenvolvimento para o monopólio e oligopólio econômico deveria conduzir à “imiscuição do Estado (…) tornada necessária pelo fato que uma nova aristocracia financeira, uma nova espécie de parasitas disfarçados em feitores de projetos, fundadores e diretores de pura forma, desenvolve todo um sistema de engano e de fraude”[51]. O controle do Estado substitui então o do proprietário privado, cuja existência se tornou supérflua pela própria transformação do modo de produção[52]. Já as sociedades anônimas e as cooperativas operárias de produção mostram que a um certo nível de desenvolvimento econômico e social, as novas relações e tipos de produção surgem e prefiguram um sistema econômico no qual a cooperação harmoniosa no seio do processo do trabalho restabelece a unidade original dos produtores e dos meios de produção a um nível máximo da técnica.

A evolução social (que encerra a “pré-história” da humanidade e precede uma fase apenas entrevista) nunca mostrou tão bem o seu caráter catastrófico como na era da maior concentração e da mais perfeita despersonalização do capital: nos antípodas do trabalho levado ao paroxismo da alienação e da abstração (do “trabalho sem frase”) observa-se a constituição do capital inteiramente despersonalizado e desencarnado, o capital abstrato e anônimo (o “capital sem frase”)[53].

Desde a publicação do livro de Berle e Means sobre a sociedade anônima e a propriedade privada, esta tese encontrou numerosas confirmações nos economistas assim nos sociólogos, que estudaram as transformações estruturais da empresa capitalista nos países de alta civilização industrial[54]. Aplicada aos Estados Unidos, por exemplo, ela faz ressaltar a dominação do capital como tal, mesmo se a estrutura social das classes dirigentes permanece difícil de fixar[55]. A enorme massa dos meios de produção conserva, depois como antes, a sua qualidade de capital fundado, segundo Marx, sobre o “trabalho extra” não pago – os produtores permanecendo separados das suas condições objetivas de trabalho, “estrangeiros” a este.

Quanto à Rússia, o aparelho econômico deste país apresenta o duplo caráter do capitalismo puro, abstrato, “sem frase”, e do escravagismo sem máscara[56]. Nem um nem outro destes traços resultam do acaso; eles decorrem da natureza híbrida do desenvolvimento da URSS a partir de 1917: a técnica americana, com os seus métodos de racionalização sistemática, veio-se enxertar numa infra-estrutura essencialmente agrária, utilizando as massas humanas que o peso de uma servidão multi-secular tornou disponíveis para uma gigantesca experiência de laboratório capitalista. Trata-se em suma deste kapitalverhältnis, relações capitalistas de produção, caracterizadas por Marx como separação da força de trabalho e da “propriedade das condições de realização do trabalho”, por um lado – e da planificação à escala nacional, por outro lado.

Que nos seja permitido dizer para terminar que não teríamos chegado a estas conclusões se não pensássemos que a sociologia marxiana contém numerosos elementos metodológicos e críticos de uma teoria da sociedade moderna. Ela permanece um instrumento de grande valor para penetrar as estruturas políticas, econômicas desta sociedade, assim como as modernas relações de dominação e servidão que estas estruturas engendram. Como tal, ela responde às exigências metodológicas da investigação preconizada por F. Perroux em matéria de regime de “economia total”, cujas contradições são as de um “Estado-Partido e de uma economia que lança, que cria uma sociedade industrial”[57].


[1] Le Capital, livre I, Posfácio à 1ª edição, Trad. Roy, Paris, Editions Sociales, p. 26.

[2] Muito mais lógica e natural parece a crítica que Marx recebeu, alguns meses após a publicação do Capital: no seu país natal, numerosos comerciantes e industriais, “democratas” talvez, mas afastados de qualquer preocupação socialista, “entusiasmavam-se” com a descrição dos “progressos” do capitalismo – mas deplorando provavelmente a fatalidade da exploração do trabalho. Cf. a carta de Freigrath a Marx, de abril de 1868, citado in Briefe an Kugelmann, ed., Dietz, p. 48.

[3] Ver as nossas Pages choisies de Marx, 1948, pp. 271 e segs.

[4] Uma passagem do Capital ilustra bem “o materialismo” do método definido por Marx: “É… bem mais fácil encontrar através da análise o conteúdo, o núcleo terrestre das concepções nebulosas das religiões, que demonstrar pela via inversa como as condições reais da vida revestem pouco a pouco uma forma etérea. É este o único método materialista, e consequentemente científico”. (Op. cit., t. II, p. 59). Nós esquematizamos os problemas metodológicos, tal como eles se põem em Marx, no nosso livro Karl Marx, essai de biographie intellectuelle, Paris, 1957, pp. 307 e segs.

[5] “… Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno, podem ser designados como outras tantas épocas progressivas da evolução econômica da sociedade. O sistema de produção burguês é a última forma antagônica de produção social (…). As forças produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições para resolver este antagonismo. Com este tipo de sociedade termina pois a pré-história da sociedade humana” (Critique de l’économie politique, Prefácio, 1859). Cf. M. Rubel, Pages Choisies…, p. 271.

[6] Ver no Prefácio, e depois no Prefácio (1873) do Capital, as analogias estabelecidas por Marx entre o seu método e os métodos empregues pelo anatomista, biólogo, astrônomo. Cf. igualmente os manuscritos parisienses de 1844: “Um dia as Ciências naturais englobarão a ciência do homem, assim como a ciência do homem englobará as ciências naturais: existirá uma só ciência” (Op. cit., p. 329).

[7] Numa página póstuma do Capital encontramos um resumo magistral do método de investigação descoberto por Marx para esclarecer o segredo do poder político moderno: “A forma econômica específica pela qual o sobretrabalho não pago é extorquido aos produtores imediatos, determina a relação de domínio e de servidão, tal qual ela decorre diretamente da própria produção, e por seu lado age sobre esta. É este aliás o fundamento de qualquer comunidade econômica (…) e sobre o qual assenta ao mesmo tempo a sua forma política específica. É sempre na relação imediata entre os detentores das condições de produção e os produtores imediatos que se encontra o segredo íntimo, o fundamento escondido de toda a construção social. E, por consequência, a forma política das relações de soberania e dependência, enfim, o segredo de todas as formas específicas do Estado. A forma desta relação corresponde necessariamente a um grau determinado de desenvolvimento do modo de trabalho e, portanto, da sua produtividade social. Isto não impede de modo algum que a mesma base econômica (…) possa, em razão de inúmeras condições empíricas distintas – fatores naturais e raciais, influências históricas agindo a partir do exterior, etc. – apresentar uma quantidade infinda de variações e graduações. Só uma análise das circunstâncias empíricas dadas pode apreender a variedade infinita desta base econômica”. (Das Kapital, 3, Buch, Zurich, 1931, p. 842). Estas linhas são a nosso entender a melhor introdução ao estudo do crescimento soviético e dos seus segredos.

[8] L’idéologie Allemande (1846). Pages choisies…, p. 34.

[9] Le Capital, Posfácio, op. cit., p. 27 e segs. Marx cita e faz suas as explicações dadas por um comentador russo ao seu “método de investigação”.

[10] Ibid., p. 29.

[11] Cf. Thèses sur Feuerbach (1821), Pages Choisies…, op. cit., pp. 31 e segs.

[12] Sobre esta ambiguidade fundamental do pensamento de Marx, ver o nosso livro Karl Marx…, op. cit., pp. 436 e segs.

[13] Ibid., pp. 378 e segs.

[14] Cf. M. Rubel, “Les écrits de Karl Marx sur la Russie czariste”, in Revue d’Histoire économique et sociale, 1955, n. 1, pp. 113 e seguintes.

[15] Carta a Engels de 11 de Janeiro de 1860. F. Engels, Savoyen, Nizza und der Rhein, 1860. Marx consagrou vários artigos à emancipação do campesinato na Rússia no New York Times entre 1858-1859. No Herr Vogt (1860) escreve que a emancipação dos servos “multiplicaria a força agressiva da Rússia” e conduziria à destruição das comunas rurais.

[16] Cf. M. Rubel. “Marx et le populisme russe”, in Revue Socialiste, Maio de 1947; “La Russie dans l’oeuvre de Marx et d’Engels, a sua correspondência com Danielson”, in La Revue Socialiste, Abril de 1950.

[17] Cf. M. Rubel, “F. Engels et le socialisme messianique russe”, in La Revue Socialiste, Novembro de 1951. N. Berdiaev, Les sources et le sens du communisme russe, Paris, 1938, pp. 94 e segs.

[18] No entanto não considerou necessário publicar a sua resposta a M. Mikhailovski, redigida em francês, Engels comunicá-la-ia em 1881 a F. Danielson. Cf. as minhas Pages choisies…, op. cit., pp. 74 e segs., e p. 247.

[19] Cf. Nicolasson (pseudônimo de Danielson), Histoire du développement économique de la Russie depuis l’afranchissement des serfs, Paris, 1902. O texto de Marx constitui o apêndice C deste livro, pp. 507 e segs. É contra a tese central deste livro (publicado em russo em 1893) – que afirma a impossibilidade do desenvolvimento na Rússia de um mercado interior, do capitalismo, portanto – que Lênin escreveu (1896-1892, 2a edição, 1907) a sua grande obra sobre O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. Ele não faz qualquer referência ao texto de Marx nem aos argumentos de Engels citados por Danielson.

[20] Cf. M. Rubel, “Karl Marx et le socialisme populiste russe”, in La Revue Socialiste, Maio de 1947.

[21] A carta de V. Z., a resposta de Marx, os rascunhos desta resposta (tudo em francês) foram publicados por D. Riazanov in Marx-Engels Archiv, vol. I, 1926, pp. 309 e segs.

[22] Ibid., pp. 31 e segs.

[23] Carta a V. Zassulitch, de 23 de Abril de 1885, in Ausgewählle Briefe, Zurich, 1934, p. 354.

[24] Conversa com Engels, contada por Kautsky numa carta a E. Bernstein, de 30 de Junho de 1885.

[25] Conversa com Engels contada por um revolucionário russo, H. Lopatine, Cf. G. Mayer, F. Engels, 1934, t. 2, p. 422.

[26] As passagens citadas são extraídas das cartas de Engels e Danielson, de 1890 a 1894. Cf. M. Rubel, “La Russie dans l’oeuvre de Marx et d’Engels, Leur correspondance avec Danielson”, in La Revue Socialiste, Abril de 1950.
Reeditando em 1894 o seu artigo contra Tkatchev (ver supra), Engels acrescentou-lhe um Posfácio no qual criticou e comentou longamente a crença dos Herzen, Mikhailovski, Tcernichevski, etc., na predestinação da Rússia para o socialismo – afirmando ao mesmo tempo que a comuna rural russa, ou o que ainda restava desta, só podia ser salva por uma revolução socialista no Ocidente. Pois “constitui uma impossibilidade histórica para um modo inferior de desenvolvimento econômico resolver os problemas e os conflitos nascidos e que só poderiam ter nascido a um nível muito mais elevado…”. Cf. F. Engels, Internationales aus dem Voltstaat, Berlim, 1894, p. 65.

[27] Ed. Bernstein, Die-briefe von F. Engels, Berlim, 1925, pp. 173 e segs. Engels teve esta conversa com Kautsky a propósito do livro de Plekhanov, Nos désaccords, que foi como que o manifesto do marxismo russo contra o populismo. Engels aprovou as ideias teóricas de Plekhanov mas condenou a tática preconizada pelo seu discípulo. Vê-se bem quão longe estava Engels de considerar a revolução russa dependente de qualquer partido e programa político particular, mesmo “marxista”. Mas uma vez o czarismo derrubado, via boas perspectivas abrirem-se ao povo russo, contando com as suas próprias forças e apoiado por um ocidente que se tornaria socialista.

[28] Assinalemos algumas destas iniciativas marxistas de apresentar a economia atual da URSS como capitalista. A. Pannekoek, The workers’ councils, Melbourne, 1950. P. Chaulieu, “Les rapports de production en Russie”, estudo publicado in Socialisme ou Barbarie, n. 2, 1949. O. Rühle: para ler os escritos deste autor ver o interessante estudo de S. Franck, Soziologie des Freiheit, Otto Ruhles Aufassung vom Sozialismus, Ulm, 1951. Anônimo: “Struttura economica e sociale della Russia d’oggi”, série de artigos publicados in Il programma comunista, cujo teórico era A. Bordiga. T. Cliff, Stalinist Russia, a marxist analysis, Londres, 1955. As divergências teóricas que se podem descortinar nos trabalhos de inspiração marxista referem-se principalmente à natureza social da classe dominante, detentora do capital.

[29] Cf. E. H. Carr, A history of soviet Russia, The Bolshevick Revolution, 1917-23, vol. II, 1952, pp. 57 e segs. Curiosamente o autor qualifica de “sindicalismo” a ação autônoma dos operários, enquanto que vê a “essência” do socialismo na economia planificada e coordenada por uma “autoridade central”, agindo no interesse comum, ibid., p. 72.

[30] Cf. L. Laurat, Bilan de vingt cinc ans de Plans quinquenaux, Paris, 1955, p. 35.

[31] Cf. S. N. Prokopovicz, Histoire économique de l’URSS, Paris, 1952, pp. 281 e segs.

[32] Cf. J.-Y. Calvez, Revenu national en URSS, Paris, 1956, pp. 36 e segs. O autor, apoiando-se nas fontes estatísticas soviéticas, cita os seguintes números: de 14 bilhões de rublos em 1913, o rendimento nacional global passou em 1927-28 a 16,1 bilhões; o rendimento médio per capita passou durante o mesmo período de 100,4 rublos a 107,1 rublos. A avaliação é feita em rublos de antes da guerra.

[33] “Todos aqueles que aprenderam o ABC do marxismo sabem que da livre circulação dos produtos e da liberdade do comércio decorrerá fatalmente a divisão dos produtores em detentores de capital e em detentores da força do trabalho, em capitalistas e assalariados; por outras palavras, observar-se-á a aparição do salariato, que não cai do céu, mas é a consequência, no mundo inteiro, da agricultura mercantil.” Discurso de Lênin a 15 de março de 1921, citado por S. N. Prokopovicz, op. cit., p. 130. Todavia o orador declarava que os “próprios fundamentos do poder político do proletariado” não se encontravam ameaçados por esta restauração parcial do capitalismo privado, “pois é apenas uma questão de medida”.

[34] Durante o “comunismo de guerra” foi decretado o trabalho obrigatório para todos os cidadãos e, em 1920, vários exércitos de trabalho foram constituídos. A repartição dos salários evoluiu para uma igualdade absoluta, mas perante a rápida baixa do poder de compra do papel-moeda, a remuneração do trabalho efetuava-se em grande em gêneros. No final de 1921, o salário ao rendimento substituiu este sistema de pagamento e o contrato de trabalho livre substituiu o trabalho obrigatório.

[35] “Se numa Rússia emprobrecida e arruinada, a acumulação privada era ínfima, em contrapartida a acumulação forçada dos capitais de Estado, graças à nacionalização das principais forças de produção do país e através de uma hábil política de preços, podia fornecer fundos de investimento muito importantes”. Prokopovicz, op. cit., p. 281. Não seria possível formular melhor a política de acumulação seguida pela Empresa de Estado.

[36] L. Trotsky, Cours Nouveau, ed. de B. Souvarine, 1921, p. 48. Traçando em 1924 o balanço de “três anos de NEP”, um economista soviético escrevia: “A NEP não foi só (…) um período de acumulação primitiva socialista, mas também um período de acumulação primitiva capitalista, cujos métodos de rapina não eram inferiores aos de outras épocas semelhantes”. L. Kritsman, La période héroique de la grande révolution russe, éd. alemã, 1929, apêndice 1, p. 387. O autor pôde ainda ser testemunha, antes de desaparecer, dos métodos de “acumulação primitiva socialista”, adotados por Stálin.

[37] L. Trotsky, La révolution trahie, Paris, 1936, pp. 38 e segs.

[38] Embora a expressão do historiador do bolchevismo B. Souvarine (Staline, Paris, 1935, p. 237). “Para além de um certo grau no horror as variantes pouco importam”, possa estabelecer a solução de continuidade entre a repressão da revolta de Kronstadt (1921) e o assassinato coletivo perpetrado contra centenas de milhares de camponeses, pelo qual Stálin entendia terminar “a primeira fase” do desenvolvimento do Estado soviético. B Souvarine cita Lênin aconselhando a “não recusar perante a utilização de meios bárbaros para combater a barbárie”.

[39] Das Kapital, liv. I, cap. II, Viena-Berlim, 1932, p. 350.

[40] Le Capital, liv. I, trad. J. Roy, Paris, 1930, t. III, p. 193.

[41] Ibid.

[42] Sobre o debate metodológico dos planificadores bolcheviques divididos em partidários do princípio “teológico” e defensores do princípio “genético”, cf. Czeslaw Brobrowski, Formation du système soviétique de planification, Mouton & Co., Paris-Haia, 1956, pp. 58 e seguintes.

[43] K. Marx, Herr Vogt, Leipzig, 1927, p. 43. Neste texto de 1860, Marx cita igualmente os seus estudos de 1850 nos quais analisava o papel revolucionário da burguesia em relação ao feudalismo: a dominação burguesa “prepara o único terreno que permite uma evolução proletária”.

[44] Le Capital, op. cit., p. 29.

[45] Ibid., t. III, p. 76. Relembrando a existência, em 1927-8, de uma superpopulação camponesa de 8 a 9 milhões e de 2 milhões de desempregados nas cidades, M. Dobb nota ingenuamente: “Só com uma grande e rápida expansão da indústria se poderia obter uma redução apreciável deste grande reservatório de sobre-trabalho”, op. cit., p. 189. Sobre o crescimento do volume de emprego no decurso da planificação, ver. S. Schwarz, Les ouvriers en Union soviétique, Paris, 1955, pp. 20 e seguintes.

[46] Werner Hojmann, Die Arbeitsverfassung der Sowjetunion, Duncker & Humblot, Berlim, 1956. É uma obra definitiva nesta matéria, um verdadeiro tratado da exploração do trabalho na URSS nos seus aspectos sociais, jurídicos e políticos. Seria desejável para breve uma tradução em francês. (E em português? N.T.).

[47] K. Marx, Theorien uber den Meherwert, vol. II, t. 1, p. 208.

[48] Cf. H. Chambre, Le marxisme en Union Soviétique, Paris, 1955, pp. 137 e segs.

[49] Relembremos aqui as notas críticas feitas por Marx em resposta a Bakunin, que o acusava de defender a ditadura de uma minoria operária sobre a massa do povo. A resposta de Marx a Bakunin é inteiramente válida para a política bolchevique nas suas variantes leninista e stalinista: “Uma revolução social radical está ligada a certas condições históricas do desenvolvimento econômico (…). Ela só é possível onde, através da produção capitalista, o proletariado ocupa pelo menos uma posição importante na massa do povo; e para que tenha algumas possibilidades de vencer, é preciso que seja pelo menos capaz de fazer tanto – mutatis mutandis – quanto a burguesia francesa fez pelos camponeses franceses de então (…). (Bakunin) não compreende absolutamente nada da revolução socialista, a não ser as frases políticas sobre esta, e ignora as suas condições econômicas. Como todas as formas econômicas, desenvolvidas ou não, incluíram até agora a submissão do operário (operário salariado ou camponês), julga que uma revolução social é igualmente possível sob todas estas formas. Mais ainda, ele quer que a revolução social europeia fundada sobre a base econômica da produção capitalista se realize ao nível da agricultura dos povos pastoris russos ou eslavos”., in Notes sur L’Etat et l’anarchie de Bakunine, 1874. Cf. M. Rubel, Pages Choisies…, pp. 299 e segs.
Em contrapartida é permitido afirmar que o programa do partido socialista-revolucionário, herdeiro do narodnitchestro, era de longe mais “marxista” que o do Partido bolchevique. Eis uma passagem profética do projeto desse programa: “De uma maneira geral o partido dos socialistas revolucionários põe a classe operária em guarda contra esse socialismo de Estado, que é por um lado um sistema de meias medidas destinado a adormecer a classe operária, e, por outro lado, uma forma particular de capitalismo de Estado reunindo os diversos ramos de produção e do comércio nas mãos da burocracia dirigente, no interesse fiscal e político desta”. Publicado em 1901 e citado nas Oeuvres de Lênin, trad. francesa, t. VII, anexos, p. 470.

[50] Essa hipótese foi erigida em teoria do desenvolvimento moderno do capital por R. Hilferding, na sua obra Das Finanzkapital (1920). A conclusão sobre o processo de concentração, é, segundo este autor, o “cartel geral”. No entanto, em 1940, Hilferding recusava-se a ver na economia soviética um “capitalismo de Estado”, esta noção escapando, segundo ele, a qualquer análise econômica. Cf. o seu artigo “Capitalisme d’Etat ou éconoimie d’Etat totalitaire?”, trad. in La Revue Internationale, Outubro de 1947.

[51] Le Capital, liv. III, cap. 23.

[52] Ainda em vida de Marx, Engels tirou as últimas consequências das premissas postas no Capital, retraçando no Anti-Dühring as fases do desenvolvimento da economia capitalista, desde a gênese da produção mercantil até à estatização geral do capital. O Estado torna-se então o “capitalismo coletivo ideal”, a burguesia aparece como uma classe inútil, “todas as suas funções são agora preenchidas por empregados retribuídos”, Anti-Dühring, Moscovo, 1935, pp. 289 e segs.

[53] A perspectiva do automatismo generalizado da produção industrial foi fixada por Marx num texto cuja publicação tardia realçava a atualidade. Eis um fragmento significativo: “… à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza real depende menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregue que da força dos agentes de postos em movimento durante a duração do trabalho… força que depende do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia… O trabalho está tanto menos implicado no processo de produção quanto mais o homem se comporta em relação a este processo como vigilante e regulador. Ele ocupa um lugar marginal no processo de produção, em vez de ser o seu principal agente. Nesta metamorfose não é mais sobre o trabalho imediato efetuado pelo próprio homem nem sobre o tempo que ele gasta, mas sobre a recuperação da sua própria força produtiva universal, sobre a sua compreensão da natureza e sobre as suas faculdades de a dominar pela sua existência enquanto corpo social: é, numa palavra, e de modo evidente, sobre o desenvolvimento do indivíduo social que a produção e a riqueza se apoiam como sua pedra mestra… Desde que o trabalho deixou de ser sob a sua forma imediata a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deve deixar de ser a medida do valor de uso. O sobretrabalho da massa deixa de ser a condição de desenvolvimento da riqueza geral, do mesmo modo que o não-trabalho de alguns deixa de ser a condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano… Ao livre desenvolvimento das individualidades, à redução do trabalho necessário (…) corresponde a cultura artística, científica, etc., dos indivíduos, graças aos tempos livres e meios concedidos a todos”. Este fragmento foi extraído do texto redigido por Marx em 1858 e publicado pela primeira vez em 1939 nos Grundrisse der Kritik der Politischen Oekonomie (Rohehwur), Moscovo, 1939-91, Reed. fotostática, Berlim, 1953, 1955, p. 593.

[54] Cf. Berle e Means, The modern corporation and private property, Nova Iorque, 1931. Entre os autores marxistas cujos trabalhos vão na direção deste inquérito podem nomear-se: H. Gunow, R. Hilferding, K. Renner, etc. O livro de J. Burnham, The managerial revolution (1946), apenas sistematizou estas velhas reflexões citando-as sem as referir, acrescentando pretensiosamente um valor de descoberta original.

[55] Cf. C. Wright Mills, The Power Elite, Oxford, 1956.

[56] Bastaria referir-nos aqui ao papel do trabalho forçado na URSS. Se bem que Charles Bettelheim (La planification soviétique, 1945) tenha insistido pouco sobre este aspecto, no entanto fundamental da construção do “socialismo”, relevamos a seguinte frase: “A deportação é um meio de realizar o Plano a baixo custo não sendo os deportados pagos pelo seu trabalho, mas simplesmente alimentados”, op. cit., p. 617.

[57] F. Perrroux, “Note sur les études d’économie génerale et les functions économiques du profit”, in Cahiers de l’Institut d’Economie appliquée, série G, no. 42 (Outubro de 1956), p. X.

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