As experiências do século XX denominadas de “Socialismo Real” ainda são amplamente naturalizadas como a expressão do socialismo proposto por Marx. Nesse contexto, uma série de argumentos são utilizados para valida-las enquanto tais, seja para fins de crítica burguesa (como, por exemplo, a ideia de que se tais experiências não deram certo, logo o socialismo não dá certo), seja para fins de defesa apologética (isto é, se tais experiências foram aplicadas na prática e tiveram certas conquistas, logo foram a aplicação fidedigna do socialismo). No caso deste segundo argumento, os pseudomarxistas utilizam-se comumente de determinado procedimento metodológico para rebater as críticas dos libertários.
Os defensores apologéticos partem do princípio da “adaptação material”. Mais especificamente, argumentam que tais experiências existiram com determinadas categorias e imperfeições porque isso é natural do socialismo, que seria a “fase de transição para o comunismo”, e que, portanto, as experiências práticas desse projeto de socialismo são adaptáveis dependendo das condições materiais, o que implica na conservação de determinações inerentes ao capitalismo. Como supostamente é uma “fase de transição”, ainda não é o comunismo, logo é possível e necessária uma ampla abertura acerca do que é o socialismo, de maneira que tal abertura se estende para a defesa das mais diversas teses que envolvem sistemas de pensamento como a Teoria Monetária Moderna (MMT), Socialismo de Mercado, NEP Prolongada etc. Os indivíduos que defendem essas teses se utilizam do argumento metodológico de adaptação, pois, como o método do marxismo é o materialismo histórico-dialético e, por conseguinte, parte da historicidade e do concreto, consequentemente isso legitimaria tais teses, que seriam as formas de adaptação material para o socialismo em cada contexto.
Quando recebem críticas dos libertários acerca do conteúdo que adotam para fundamentar o socialismo, rebatem afirmando que as críticas são “metafísicas” e “anti materialistas”, pois as mesmas não consideram a “materialidade” de cada país, além de acusarem os críticos de defenderem um “socialismo purista”, “abstrato” etc. Nesse sentido, é necessário explicar a vinculação entre materialismo histórico e o projeto do socialismo defendido por Marx, que para diferenciar claramente do “socialismo real” irei utilizar o termo “autogestão social”. Precisamos entender o que é o materialismo histórico-dialético. Existe uma ampla discussão sobre isso, com diversas interpretações, pois Marx não deixou nenhum escrito sistemático e acabado sobre o tema. No entanto, é possível assimilar o conteúdo de sua metodologia a partir dos extratos deixados pelo mesmo, bem como se ancorando em contribuições de autores posteriores. Sendo assim, o que é materialismo histórico-dialético? É tanto um recurso heurístico quanto uma teoria. Para entendermos isso mais detalhadamente, é necessária uma rápida reconstituição de como Marx desenvolveu isso.
Feuerbach e Hegel são as principais inspirações do Marx para o desenvolvimento do seu método. De Feuerbach, Marx aproveita o materialismo e de Hegel a dialética. Porém, o que Marx faz não é uma simples junção entre o materialismo de um e a dialética de outro, como se o seu método fosse uma mera agregação de dois elementos. Na verdade, Marx assimila criticamente ambos e os supera, criando algo novo. Nesse sentido, o materialismo de Feuerbach teve como mérito demonstrar que o ser precede a consciência, a realidade sensível é anterior à realidade do pensamento. Porém, segundo Marx:
“A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjectivamente (…) Feuerbach quer objectos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objectos do pensamento; mas não toma a própria actividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit].” (MARX, 2024).
Nesse sentido, o materialismo de Feuerbach é um “materialismo contemplativo”, pois embora parta da constatação do mundo sensível constituído por objetos, não considera a atividade humana objetiva, social, como parte desse mundo sensível. Assim, a única atividade humana legitima é a atividade teórica, enquanto que a essência humana é uma grande abstração, desprovida de historicidade e, portanto, de sua atividade prática própria. Dessa forma, o mérito de Feuerbach de priorizar o mundo material é distorcido por sua concepção mecânica, contemplativa e anistórica da realidade. No caso de Hegel, este tem o mérito de apresentar um sistema que já considera a historicidade e a atividade objetiva, porém tem como base não o mundo sensível, mas sim o espírito, mais especificamente o “Espírito Absoluto”, que é o centro do movimento histórico.
Nesse sentido, a dialética se afirma como uma união entre racionalidade e realidade (unidade entre sujeito e objeto), onde a própria realidade é manifestação do racional, isto é, da atividade objetiva do Espírito absoluto na história, que só pode ter sentido se ocorrer na totalidade do mundo finito com uma finalidade (afinal, se fosse infinito, não teria um fim) e em movimento contraditório (A contradição é o motor do movimento, para Hegel, e se não há movimento não há desdobramento histórico). O seu maior equívoco é considerar essa atividade objetiva da totalidade finita, em movimento contraditório com determinado fim, como uma manifestação do Espírito Absoluto, de algo superior ao mundo sensível. É evidente que essa exposição é apenas uma síntese bem geral dos pensamentos de ambos os autores, pois não é o objetivo do artigo o aprofundamento de suas concepções, o que pode ser feito em outra oportunidade.
Dessa forma, Marx considera a realidade primária em relação a consciência, mas diferentemente de Feuerbach, o ser considerado por Marx é o ser social, bem como a consciência também é social. Sendo assim, esse ser não é um ser sensível mecânico da “matéria física”, mas um ser que se manifesta através de sua atividade objetiva no conjunto das relações sociais, imbuído de movimento histórico. Do mesmo modo, a consciência não é um movimento autônomo, que se manifesta na história com suas leis próprias, tal como em Hegel, mas um produto ativo (não mero reflexo) do conjunto das relações humanas e da atividade social que as realiza. Por isso que o materialismo do Marx é histórico e dialético, bem como social. Tendo em vista isso, como, então, o materialismo histórico é um recurso heurístico e uma teoria?
Como é então o procedimento da dialética materialista? Em primeiro lugar, ela não cria um modelo formal que depois busca confirma-lo na realidade, tornando esta uma mera manifestação dele; em segundo lugar, ela não procede através da constatação de que existem certos fenômenos sociais e naturais e extrai deles um conjunto de aspectos que são transformados em um modelo, que, por sua vez, é generalizado para todos os fenômenos. Como ela procede, então? Ela – ou melhor, aqueles que se utilizam dela – parte da análise da realidade concreta e daí retira um conjunto de relações que são expressas por categorias e que passam a servir de recursos heurísticos para compreender esta realidade ou qualquer outra (VIANA, 2007, p. 100).
Portanto, o materialismo histórico ser um recurso heurístico não significa possuir um modelo prévio de análise da realidade. Por isso, inclusive, que em casos mais radicais alguns estudiosos do Marx afirmam que há um “antimétodo” no mesmo (ALVES, 2008), porém essa não é a posição adotada aqui. O método é constituído por procedimentos prévios que irão servir de modelo para analisar a realidade. Pensemos, por exemplo, na tipologia weberiana, que parte da elaboração subjetiva de tipos ideais referente à sociedade e a analisa os tendo como modelos prévios, que sistematicamente são encaixados na realidade. No caso do materialismo histórico, não existem leis ou modelos que servirão de critério para analisar a realidade (embora pseudomarxistas, por motivos que não poderão ser detalhados aqui, façam isso), mas sim um conjunto de categorias extraídas da realidade que serão utilizadas para realizar o processo de análise da mesma. Nesse caso, as categorias extraídas do real são propostas provisórias para a sua análise, jamais um modelo fechado com leis. Em outras palavras, a dialética é produto da realidade, não a própria realidade ou algo que a determina.
Entretanto, como esse recurso heurístico é utilizado? Bem resumidamente: Ocorre uma transição do concreto indeterminado para o concreto determinado. O concreto indeterminado se refere ao momento abstrato do conhecimento, onde a realidade ainda é uma totalidade obscura para o investigador. A partir do processo de abstração, descobre-se uma série de determinações do movimento real, inicialmente mais simples e gerais, que se apresentam cotidianamente. Porém, gradualmente a abstração vai se tornando concreção, ou seja, síntese de múltiplas determinações, unidade do diverso, totalidade estruturada. Aquele todo caótico inicial, com várias partes desarticuladas e aparentemente independentes, transforma-se em um todo articulado, com as partes interligadas entre si e com a clareza, por parte do investigador, das ações recíprocas entre essas partes.
É esse o processo que Marx realiza na sua análise da sociedade burguesa, que desemboca também em uma teoria desta sociedade. É evidente que Marx não começa do nada absoluto, pois já tinha todo um arcabouço que o auxiliou no processo de investigação. Entretanto, até chegar na sua magistral crítica da economia política, transitou pela crítica do idealismo hegeliano, do materialismo feuerbachiano, dos socialistas utópicos, do estado e da política etc., de forma que descobre na economia política, mais especificamente no modo de produção capitalista, a espinha dorsal da sociedade burguesa, o que o permitiu destrinchar com rigor e profundidade a mesma. Portanto, Marx nos legou o seu método e desenvolveu um arcabouço teórico a partir dele. Se a dialética, como supracitado, é um recurso heurístico, também é uma teoria, é o resultado desse recurso heurístico sendo utilizado para pesquisar a realidade, por isso que a teoria é a reprodução ideal do movimento real, é sua expressão na consciência a partir das mediações feitas pelo investigador.
O materialismo histórico-dialético deve ser usado no próprio marxismo e isso significa compreender a sua essência, que é ser “expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado” (KORSCH, 2008). Dessa maneira, a teoria e os recursos heurísticos legados por Marx não são neutros, desprovidos de valores e interesses, pois partem da perspectiva do proletariado e da sua autoemancipação. Não podemos cair no erro de acharmos que Marx era um cientista que estava interessado em compreender, a partir de uma postura purista de neutralidade, a sociedade burguesa, como se suas posições não fossem imbuídas de valores e interesses. Para além de um estudioso e teórico da sociedade, Marx era um revolucionário que partia da perspectiva do proletariado para a emancipação social.
No entanto, o intuito desse artigo não é fornecer em pormenores como Marx realizou esse processo de pesquisa, mas apenas fornecer um apanhado geral. A partir dessa explicação, é possível integrar a relação entre o método (dialético) e o projeto da autogestão social. Para tanto, é fundamental entender que Marx não criou em sua cabeça a autogestão. Foi a partir de sua pesquisa profunda acerca do funcionamento da sociedade burguesa, desde os seus aspectos mais simples e evidentes até os seus aspectos mais complexos e ocultos, que ele vislumbrou com clareza a possibilidade da superação da atual sociedade. É claro que Marx não começou a defender a autogestão só no momento em que seu pensamento chega na fase madura, porém é precisamente nessa fase que a sua defesa da emancipação torna-se mais concreta e acabada. Portanto, o que ele observou, tendo como base as categorias do capital e suas relações no todo da sociedade burguesa, foi que o comunismo é um movimento real no interior do próprio capitalismo, é o seu “outro” que já está contido no seu interior como potencial real. Nessa perspectiva:
As proposições teóricas dos comunistas não se assentam sobre ideias e princípios que tenham sido inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. Elas são apenas a expressão geral de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenrola sob nossos olhos. (MARX, 2008, p. 32-33).
Dessa forma, a autogestão social não é simplesmente uma forma de sociedade que alguns intelectuais edificaram a partir de suas “mentes brilhantes” e propuseram como alternativa para o capitalismo. Ela surge, ao contrário disso, na luta de classes e expressa seus resultados finais, onde as classes são abolidas e a luta em si cessa. Como surge essa luta de classes? Tem como origem fundamentalmente as relações de produção, embora também se manifeste em outros âmbitos (cultura, arte, literatura etc.), e tem como base a relação contraditória entre classe produtora e classe apropriadora, isto é, proletária e burguesa, respectivamente. Evidente que não será possível detalhar como se manifesta essa luta entre as duas classes fundamentais, relações com outras classes, níveis de luta etc. Porém, é importante entender que tal luta é algo concreto, parte intrínseca do capitalismo. É sua contradição fundamental, pois está assentada no modo de produção capitalista, que é a determinação fundamental da sociedade burguesa. Nesse sentido, a luta de classes emerge no interior das relações de produção e, em conjunto com as forças produtivas, constitui o modo de produção capitalista, se alastrando por todos os setores da sociedade.
Foi por meio da compreensão profunda da sociedade burguesa e das suas contradições que Marx apontou para a autogestão como movimento real, realizado pelos produtores e outras classes aliadas na luta contra a exploração e dominação realizada pela burguesia e suas classes auxiliares. Quando as lutas se radicalizam, novas formas de organizações emergem, controladas pelos próprios trabalhadores, assim como estes também se elevam de classe em si (determinada pelo capital) à classe para si (autodeterminada), o que possibilita a transformação radical da sociedade, superando assim as condições iniciais de luta pautadas apenas em ações e reivindicações imediatas (melhoras de salário, menor jornada de trabalho, absenteísmo etc.).
Qual é, então, o conteúdo da autogestão social? Aqui poderemos ver novamente o caráter histórico, dialético e social do materialismo marxista. Marx não deixou nenhuma obra detalhada sobre como funcionaria a nova sociedade que defendia, porém deixou apontamentos claros acerca disso. Dessa maneira, em vários dos seus escritos, como no Crítica ao Programa de Gotha, O Capital, A Guerra Civil na França, entre outros, ele deixa apontamentos gerais acerca da sociedade comunista e do seu funcionamento. Nessa perspectiva, como já foi abordado brevemente acima, a determinação fundamental da totalidade social é o modo de produção, que por sua vez é constituído por determinado estágio das forças produtivas e, principalmente, pelas relações de produção, que é onde surgem as classes fundamentais e a luta de classes (contradição fundamental). Sendo assim, Marx identifica o modo de produção como o elemento mais importante da sociedade humana, como sua base, pois é onde ocorre o processo de produção e reprodução das condições materiais de existência, além de ser a base para as diversas outras formas de regularização e as respectivas classes que se desenvolvem posteriormente (VIANA, 2007). É por isso que a autogestão também é, fundamentalmente, um modo de produção. Não é tão somente isso, pois também se desenvolvem, no seu interior, determinadas expressões culturais, artísticas, valorativas, intelectuais etc. Porém, justamente pelo caráter fundamental do modo de produção, sua base é esta.
Nesse sentido, as relações de produção no interior da autogestão são alteradas. Deixam de ser relações entre produtores e apropriadores, onde o que os produtores produzem é alienado pelos apropriadores através de mais-trabalho e mais-valor, e passam a ser relações entre indivíduos livremente associados, isto é, “autogoverno dos produtores”. Portanto, todo o conjunto de categorias e relações próprias do capitalismo são superadas, pois sua determinação fundamental é extinta e, por conseguinte, suas partes constitutivas (Estado Moderno, valor, trabalho assalariado, mais-valor, divisão social do trabalho, dinheiro etc.) também são. Como o objetivo da autogestão não é tão somente superar o capitalismo, mas a emancipação humana, consequentemente a base geral do próprio capitalismo que já o precedia, como a propriedade privada e as classes sociais, também é superada. Dessa forma, há uma superação da exploração e da dominação como um todo, não apenas da exploração e dominação capitalista. Assim, a autogestão não visa aprimorar categorias do capitalismo ou dar-lhes novas formas de expressão (como se fosse possível um “salário socialista”, “estado socialista” etc.), mas sim supera-las completamente. Por isso, o argumento que visa transformar o socialismo em uma grande abstração adaptável a qualquer manifestação prática é absolutamente equivocado. No entanto, é preciso esclarecer dois pontos metodológicos para elucidar com maior precisão esse equívoco: A diferença entre materialismo histórico e empirismo e a relação entre fenômeno e essência.
Quando muitos afirmam que é “anti-materialista” considerar a sociedade autogerida, socialista, como uma forma de sociedade específica com categorias próprias, estão partindo de uma analise empírica. O materialismo histórico é o oposto do empirismo. A realidade para o marxismo é o concreto, a síntese de muitas determinações (MARX, 2008). Esse concreto não é uma simples manifestação imediata dos processos históricos, não é um amontoado de fatos dados que devem ser considerados em seus aspectos particulares a partir da experimentação do investigador. Sendo assim, quando os pseudomarxistas afirmam que o socialismo tem uma ampla abertura para ser muitas coisas, incluindo em si categorias próprias do capital, porque é necessária sua adaptação às condições particulares de cada país, parte-se exatamente da manifestação histórica imediata. Dessa forma, mesmo que discursivamente considerem a totalidade concreta, a ignoram porque estão abordando a transformação social do ponto de vista puramente empírico-particular:
Ao abordar a relação entre marxismo e realidade concreta, há o equívoco comum de muitos pseudomarxistas que é confundir marxismo com empirismo ou empiricismo. O marxismo não é empirista e nem empiricista. Essa oposição entre racionalismo e empiricismo (ou a sua versão mais pobre, o empirismo) nada tem a ver com o marxismo e ele não está nem de um lado, nem de outro, pois ele é antagônico a ambos. Essas concepções, com suas diferenças, pois também assumem várias formas, acabam gerando o fetichismo dos fatos, dos dados, do “empírico”. Marx não trabalha com o empírico, embora tenha usado essa palavra em algumas oportunidades, especialmente nos seus primeiros escritos. Em sua síntese do método dialético, ele aponta para uma concepção distinta de realidade, que é o concreto. (…) Assim, a categoria de concreto é bem diferente do empírico, o acessível pela experiência. O concreto não é acessível pela experiência, pois é necessário a reflexão sobre a realidade para a sua compreensão. A própria experiência só é compreensível através da reflexão, da razão. Essa concepção de realidade é antagônica aos empirismos e empiricismos. (PERCHERON, 2020, p 2-4).
Em outras palavras, os pressupostos fundamentais do socialismo, que ao serem aplicados são postos, já existem mesmo na fase inicial da autogestão, o que implica também na superação das categorias do capital. Dessa forma, o que irá mudar, em termos de adaptação a condições específicas, é a forma como tais categorias serão organizadas, não o conteúdo que possuem. A totalidade concreta permanece a mesma, com o mesmo conteúdo essencial nas conexões entre suas partes (múltiplas determinações), se diferenciando, em cada contexto, apenas na maneira como será organizada dentro desse conteúdo, efetivando assim formas contextuais e também transitórias (afinal, novas formas de organização da totalidade podem surgir com o desenrolar histórico, se assim for preciso). Desse modo, o empírico é o exato oposto do materialismo, visto que este segundo, mesmo considerando adaptações, considera dentro do concreto, de uma unidade maior. Anton Pannekoek, ao abordar a questão da organização dos conselhos operários, exprime bem a relação entre fenômeno e essência nesse contexto, embora sem usar tais termos:
“Conselhos operários” não quer dizer uma forma particular de organização cuidadosamente projetada que agora teria que ser elaborada em ainda mais detalhes; significa um princípio, o princípio da autogestão dos trabalhadores sobre as empresas e a produção. Sua realização não é uma questão de discussão teórica sobre a melhor execução prática; é uma questão das lutas práticas contra o aparato de dominação do capitalismo. (…) Logo, a ideia dos conselhos operários não aparece como um programa para a execução prática – amanhã ou em alguns anos –, mas sim como uma diretiva para a longa e árdua luta de libertação que ainda está diante da classe trabalhadora. Embora Marx os tenha caracterizado uma vez com as palavras: chegou a hora do capitalismo; no entanto, ele não deixou dúvidas nisso de que esta hora significa toda uma época histórica (PANNEKOEK, 2022).
Nesse sentido, os conselhos operários não são formas organizacionais fechadas e acabadas, mas sim um princípio que deverá ser discutido e posto em prática dentro de cada condição histórica específica em que a autogestão se expressar. É nítido como o Pannekoek não revoga a importância das lutas práticas, das contingências em que ocorrem e da influência que exercem nas formas de organização dos trabalhadores. Entretanto, deixa claro que, para além desse caráter contextual, a organização dos conselhos é primordialmente um princípio e que, portanto, não pode simplesmente ser transgredido por essas lutas práticas. Ou seja, independente das formas que esse princípio irá assumir em cada situação, o seu conteúdo autogerido sempre se manifesta, de maneira que as possíveis alterações práticas e particulares se darão tão somente a nível de como essa autogestão irá ocorrer, não havendo qualquer abertura para um “se irá ocorrer” ou “quando irá ocorrer”, tal como querem os pseudomarxistas – que simplesmente ignoram o conteúdo central do comunismo e o converte em um relativismo econômico e político.
O contextual não revoga o necessário, a forma não revoga o conteúdo, as partes e suas conexões não revogam a totalidade. Por isso que, mesmo quando abstrato, o concreto não é empírico, já é unidade total das relações entre categorias que o constitui. Por isso, não pode haver na autogestão trabalho assalariado, mais-valor, estado, dinheiro, lei do valor, nem qualquer expressão típica do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa em geral. Porém, para irmos ainda mais longe, é fundamental explicitar a relação entre fenômeno e essência na totalidade. O fenômeno se refere às manifestações cotidianas, imediatamente apreensíveis pelos indivíduos, justamente por ser algo habitual e escancarado. Já a essência revela as relações e processos ocultos que não são captados imediatamente, mas que são fundamentais e transcendem a manifestação instantâneas dos fenômenos. Porém, o fenômeno não é contrário à essência, e vice e versa. Na verdade, um se desdobra no outro, de maneira que o fenômeno é a atividade da essência em suas expressões cotidianas, bem como o fenômeno só pode se expressar enquanto tal se ocorrer no interior de determinada essência.
A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. O fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graças ao seu contrário. A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e, portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno.
Dessa maneira, quando pensamos nos elementos mais cotidianos do capital, como, por exemplo, as mercadorias, suas trocas através do processo de compra e venda, com o trabalhado assalariado incluso, estamos apenas na dimensão do fenômeno. A essência do capital não é a mercadoria, não é o trabalho assalariado, não é o processo de compra e venda. Esses elementos são parte da essência, porém apenas parcialmente e que pode inclusive levar a mistificações ao invés de elucidações. Só compreendemos a essência desses fenômenos, isto é, os seus fundamentos, se nos aprofundarmos e irmos para além de suas manifestações imediatas, adentrando em suas relações com outros elementos que poderão revelar o seu verdadeiro conteúdo. É assim que é possível descobrir a exploração, a dominação, a reificação, o fetichismo, a alienação e outros conceitos por detrás das trocas entre mercadorias. Transitamos, assim, do concreto indeterminado para o concreto determinado, do fenomênico para o essencial.
Sendo assim, aqueles que defendem estado no socialismo, bem como a produção de mercadorias, trabalho assalariado, lei do valor etc., estão no nível dos fenômenos, da manifestação imediata na compreensão da sociedade burguesa, nos seus aspectos empíricos. Isso pode ocorrer tanto de forma inconsciente, por ignorância dos defensores, embora tenham um sentimento autêntico de transformação radical, quanto de forma consciente, quando expressa interesses e valores que visam não a emancipação, mas sim estabelecer uma nova forma de dominação (intelectuais, burocratas leninistas e reformistas que se denominam defensores do projeto marxista). É nesse contexto que surgem as mais variadas teses e sistemas na suposta defesa da emancipação, como a Teoria Monetária Moderna, Neodesenvolvimentismo, Economia Solidária, Socialismo de Mercado etc., sendo que normalmente tudo isso se congrega em uma síntese esdrúxula e eclética. Não há, portanto, a superação da essência do capital para a instauração da essência do socialismo, mas a alteração aprimorada de fenômenos do capitalismo, o que implica em taxação de grandes fortunas, melhora da renda e do consumo popular, intervenção maior do estado na economia com políticas de desenvolvimento, entre outros elementos. A totalidade permanece a mesma, apenas as manifestações entre suas partes que sofrem certas modificações “à esquerda”.
No entanto, como já aludido, muitos defensores dessas teses admitem que as categorias do capital devem ser abolidas, mas que antes disso deve haver um período de transição. Reivindicam a velha distinção leninista entre socialismo e comunismo (LENIN, 2011), que não existe no Marx. Marx se refere a fase inferior e fase superior do comunismo, ou seja, mesmo na fase inicial, o comunismo já é comunismo, não é uma “transição”, portanto, já incorpora no seu interior as relações de produção comunistas de forma hegemônica, bem como o conjunto das relações sociais derivadas. Só faz sentido abordar uma transição em termos de período revolucionário, onde o comunismo ainda não se consolidou, que é quando o capitalismo ainda é o modo de produção dominante, mas já está sendo abalado e contestado com a radicalização das lutas sociais, formação de conselhos de fabricas, conselhos operários, greves gerais, greves de ocupação ativa etc. No Crítica ao Programa de Gotha podemos ver com clareza porque não faz sentido a separação rígida entre fase superior e fase inferior, quando Marx elenca possíveis distorções que existiriam na fase inferior. Nesse caso, ele vai tocar na questão da certificação do trabalho individual realizado para o acesso a meios de consumo:
Aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados, porque, sob as novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em outra forma. (MARX, 2012, p.27).
Dessa forma, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias existiria na fase inferior, porém “conteúdo e forma são alterados”, justamente porque as condições sob o comunismo seriam absolutamente distintas da dinâmica capitalista. Portanto, haveria algo semelhante à troca de mercadoria, mas apenas estritamente em termos de troca equivalente, o que significa que não haveria troca de mercadorias em si. Percebemos claramente que o fenômeno das trocas equivalentes na fase inferior não revoga a essência da autogestão, consequentemente apesar de ter um mecanismo que lembra a troca de mercadorias, não é troca de mercadorias em si mesma, pois a mercadoria, assim como o valor, trabalho assalariado, dinheiro e outros elementos intimamente ligados a ela, não iriam mais existir. Nessa perspectiva, existem resquícios da sociedade capitalista, assim como existiriam em termos de valores, comportamentos etc., porém jamais enquanto características hegemônicas, mas supostamente “redefinidas” para se acomodarem na autogestão. Se há esses elementos, não há comunismo, independente da forma que assumam e como se expressam.
Por isso é uma deformação afirmar que existe uma sociedade de transição chamada “socialismo”, que apenas após um longo período de transformação poderia concretizar o comunismo. Porém, isso não é por acaso, pois é necessária a defesa de uma sociedade de transição para que o marxismo possa ser deformado de forma convincente, isto é, sem parecer que foi deformado. Afinal, discursivamente não abandonam o objetivo principal, porém suas proposições e teses são o oposto desse objetivo, que é a autogestão. É assim que conseguem justificar e legitimar, principalmente para os mais leigos, suas adaptações empiristas e seus ecletismos ideológicos, o que, rigorosamente, significa o completo abandono do projeto revolucionário e a conversão do mesmo em uma grande abstração volátil, que nada mais é do que reformismo dissimulado.
Em suma, devemos levar adiante o caráter radical, disruptivo e revolucionário do projeto comunista, esse movimento real que se expressa abertamente quando os trabalhadores superam as lutas imediatas e atingem a fase de lutas revolucionárias. Para tanto, precisamos suplantar o saber superficial, as representações cotidianas, bem como os valores reformistas, pois é apenas compreendendo o marxismo com profundidade e apurando, paralelamente, nossa capacidade de análise da sociedade burguesa, que poderemos verdadeiramente reivindicar o conteúdo próprio da autogestão social e caminharmos no sentindo dessa transformação. Caso contrário, as deformações burocráticas e burguesas do movimento real dos trabalhadores irão nos contaminar e nosso anseio de transformação será apenas discursivo.
Hugo Alves, Março de 2024
Referências:
ALVES, Antônio José Lopes. J. Chasin e a descoberta do estatuto ontológico da obra de Marx. Verinótio – Revista Online de Educação e Ciências Humanas. n. 9, Ano V, pag. 63-72. nov. 2008. Disponível em: http://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/255/243. Acesso em: 25 mar. 2024
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
LÊNIN, Vladimir. O Estado e a Revolução. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013
MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm. Acesso em: 25 mar. 2024.
PANNEKOEK, Anton. Sobre os Conselhos Operários. Crítica Desapiedada, 2022. Disponível em: https://criticadesapiedada.com.br/2022/07/03/sobre-conselhos-operarios-anton-pannekoek/. Acesso em: 25 mar. 2024
PERCHERON, Jean-Luc. Marxismo e Racionalismo. Revista Marxismo e Autogestão, [S. l.], v. 7, n. 10, 2022. Disponível em: https://redelp.net/index.php/rma/article/view/1017. Acesso em: 25 mar. 2024.
VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2a Edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
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