Chile – Setembro de 1973 – Carta dos Cordões Industriais ao presidente Salvador Allende

Introdução

05 de Setembro de 1973, seis dias antes do sanguinário golpe de estado de Pinochet, os Cordões Industriais, principal pilar do processo revolucionário dos trabalhadores chilenos, enviam uma carta direcionada ao presidente Salvador Allende, demonstrando frustração e desalento com o suposto governo socialista da Unidade Popular. Essa carta é a síntese de uma aventura que demonstrou como as condições para o golpe de Estado de Pinochet foram preparadas por Allende e pelos partidos de esquerda, que desmobilizaram um proletariado poderoso e minaram a sua força.

Mas afinal, o que foram os Cordões Industriais? O objetivo dessa pequena introdução é exatamente trazer um panorama geral da experiência de autoorganização dos trabalhadores chilenos.

O esboço e criação do primeiro cordão industrial nos remete ao final de junho de 1972, antes mesmo da greve patronal de outubro, onde os cordões industriais se alastram por todo o país, criando um impacto político sem precedentes na história chilena. É importante expressar aqui este processo, demonstrando que a radicalização das lutas operárias chilenas é fruto de um acúmulo de experiências, imbuídas de contradições e avanços.

Em meados de abril de 1972, começa um processo de constituição de colaboração e solidariedade política organizada por diversos movimentos populares da região industrial de Cerrillos-Mapú. Esta região abarcava uma grande concentração de indústrias, bairros populares e acampamentos (sem-teto), onde todos eles apresentavam graves problemas de infraestrutura (transporte, escola, hospitais e etc.) e abastecimento. O estopim da revolta da população desta população foi o precário serviço de transporte público oferecido pela municipalidade.

O conjunto dos movimentos populares, trabalhadores e diversas direções de partidos políticos convocaram a população a tratar do problema, debater uma plataforma política e organizar um Conselho Comunal de Trabalhadores, tendo como inspiração a organização e experiência dos soviets da revolução russa. Este conselho organizou um documento a ser entregue às autoridades locais que não compareceram à atividade. Sob a organização e mobilização feita sobretudo por operários que viviam e trabalhavam na comuna, a principal deliberação do documento foi a necessidade de “suplantar ambos – la Municipalidade y el Alcalde – por um organismo paralelo próprio de los Trabajadores, o Consejo Comunal.” (PESTRANA; THEREFALL, 1974: p. 110-11).

Embora o êxito inicial do conselho, as exigências não foram acolhidas em sua totalidade por parte do governo e nem a mobilização da população em geral conseguiu se manter. No entanto, uma parte daquele conjunto de movimentos, continuaram a ser organizar e, em junho de 1972, com o processo de greves e de ocupação das indústrias Perlak (conserva de alimentos), Polycron (química industrial e fibras sintéticas) e El Mono (alumínios), a população da comuna de Maipú retorna a se mobilizar. De acordo com Elisa de Campos Borges,

Trabalhadores apresentaram denúncias contra os proprietários das empresas de promoverem boicote da produção, praticar vendas no mercado negro, reduzirem a compra de matérias primas e ainda de ocultar produtos aumentando o desabastecimento. A principal exigência dos trabalhadores era a intervenção do governo nas indústrias e sua incorporação na APS [Áreas de Propriedade Social]. A proximidade geográfica das empresas e o apoio fundamental da população local acabaram por estimular a criação de uma coordenação conjunta do movimento (BORGES, 2014: p. 5)

O Governo Allende, querendo manter a legalidade de seu governo, cria dezenas de obstáculos para não estatizar as empresas reivindicadas pelos operários. Estes, começam a criar uma inicial desilusão a partir da crise nas negociações com os representantes do Estado.  Este cenário contribui para a organização de um Comando de Coordenação de Lutas dos trabalhadores do Córdon Industrial Cerrillos-Maipu, durante uma reunião onde participaram em média 30 empresas, com participação massiva de trabalhadores independentes e alguns vinculados aos partidos de “esquerda” chilena, totalizando meio milhão de trabalhadores.

É criada uma plataforma do Comando de Coordenação de Lutas[1] contendo 12 pontos, buscando articular pautas comuns a camponeses, “plobadores” e operários:

  • Apoiavam o governo e o presidente na medida em que ele representasse as lutas e mobilizações dos trabalhadores;
  • Exigiam a expropriação das empresas monopólicas assim como daquelas que não cumprissem os compromissos laborais;
  • Controle operário da produção por meio da constituição de Conselhos de delegados eleitos pela base;
  • Aumento de salários;
  • Dissolução do Parlamento;
  • Instalação da Assembleia Popular;
  • Criação da Empresa Estatal da Construção com controle de “pobladores” e operários;
  • Ocupação de todos os fundos expropriados e controle camponês mediante conselho de delegados;
  • Solução imediata aos moradores dos acampamentos;
  • Expressavam repúdio aos patrões, à burguesia, ao poder judicial, à controladoria, ao parlamento e aos burocratas do estado.

De acordo com Cury,

O outro elemento significativo da formação deste Cordão foi a demonstração da congregação das formas de luta com os objetivos presentes na lógica de ação dos trabalhadores num claro enfrentamento aos limites estabelecidos pelo sistema. Tratou-se do primeiro cordão industrial cujo êxito de organização inspirou outros diversos movimentos por Santiago e pelo restante do país. A mobilização se deu, assim como em grande parte dos casos, devido a conflitos trabalhistas nas empresas daquele setor específico e a problemas no abastecimento. (CURY, 2013, p. 290)

O Comando Coordenador/Cordão Cerrillos foi o primeiro esboço de uma coordenação geográfica dos trabalhadores chilenos e que romperam com os canais e instituições sindicais. É aqui que se encontra o que o autor vai chamar de “autonomia classista”, apesar de não esclarecer o que significa esta expressão. Em nossa perspectiva, no entanto, podemos dizer de forma mais precisa que esta experiência significou um inicial rompimento com a burocracia estatal apontando para a auto-organização. Ainda, nesta época, existia um apoio ao governo Allende, mas só quando este contribuísse para a luta e mobilização dos trabalhadores. No entanto, mesmo com o início do rompimento com a burocracia estatal, ainda existia uma relativa influência das burocracias partidárias no seio do movimento operário, mas que era enfraquecida à medida que a consciência de classe do movimento operária iria se aprofundando a partir de suas lutas.

Com a chegada da greve patronal de outubro de 1972, o movimento operário já havia experimentado organizações de forma autônoma. Nesse sentido, a reação às consequências da greve (desabastecimento, ataques e atentados da direita, sabotagens, mercado negro e etc.), foi imediata e surpreendente, tanto para a burguesia, que percebia uma sólida organização de resistência dos trabalhadores, quando a burocracia estatal, que percebeu que a luta dos trabalhadores extrapolava a dinâmica institucional capitalista.

A resposta dos trabalhadores foi a massiva e generalizada tomada de fábricas e a consolidação dos cordões industriais em todo o território chileno. A tomada de fábricas não obedeceu a nenhum critério utilizado pelo governo Allende; indistintamente as fábricas foram ocupadas, sobretudo as das áreas privadas, onde os trabalhadores não tinham nenhum controle sobre a produção. Por meio das ocupações se enfraquecia a posição dos patrões dentro de suas próprias fábricas e se potencializavam as coordenações de trabalhadores. Nasceram assim os cordões de Vicuña Mackenna e Estación Central em Santiago e de Hualpencillo, em Concepción, em consequência da paralisação de outubro.

Não há dúvidas que a inicial tomada e ocupação de fábricas foi fruto de uma tentativa de ajudar o governo a superar as dificuldades da greve. Contudo, com o desenvolver das ocupações e das novas formas de solidariedade entre os trabalhadores e as populações dos cordões, ultrapassaram todas as expectativas em relação aos seus objetivos iniciais.

Os planos da burguesia de criar o caos é neutralizado sobretudo pelos trabalhadores e da população geral que, com suas próprias mãos, colocam os meios de produção para funcionar de forma auto-organizada. Allende, como já dissemos anteriormente, busca a saída da crise a partir da conciliação com a burguesia; nesse sentido, diminui o número de fábricas a serem nacionalizadas (de 120 para 43) e coloca o exército para garantir o cumprimento dessa medida. No entanto, como o grande número de apoiadores do governo eram trabalhadores, não podia se utilizar da repressão para retomar as fábricas recuperadas e estabilizar o seu governo frente aos acordos que firmara com a Democracia Cristã e a burguesia. Nesse sentido, o governo da Unidade Popular utiliza da burocracia sindical, a Central Única del Trabajadores de Chile (CUT), para tentar cooptar e convencer os operários a retrocederem e saírem das fábricas ocupadas. Ainda assim, os representantes da CUT, ao tentarem convencer os operários a desocuparem as fábricas e voltarem a confiar no governo Allende, são recebidos com vaias e respostas expressando a recusa a burocracia e a necessidade de avanço para auto-organização dos trabalhadores.

É emblemática a discussão entre um operário e um burocrata da CUT no famoso e clássico documentário A Batalha do Chile do cineasta Patrício Guzmán: o operário, em resposta ao burocrata da CUT, demonstra que a ocupação das fábricas não trata-se tão-somente de uma defesa do Governo Allende; significa, mais do que isso, um processo de transformação social a partir dos trabalhadores, que superou a própria institucionalidade e apoio do Estado, já que estes estão alheios aos interesses dos trabalhadores.

A ocupação das fábricas trouxe, além do controle operário, novas formas de sociabilidade e distribuição de bens consumíveis. A solidariedade entre as indústrias, bem como o intenso debate e intercâmbio tanto de ideias, quanto de experiências laborais, possibilitou novas formas, mesmo que embrionárias, de uma sociabilidade oposta aos valores burgueses e aos interesses capitalistas.

Com a crise de abastecimento causada pelas greves e paralizações patronais, os operários dos cordões industrias em articulação com a população de suas respectivas regiões (muitos deles organizados em comandos comunais), foram responsáveis por estruturar e organizar um novo sistema de relações comerciais para neutralizar o efeito da crise sobre a população. Assim, se incumbiram de tomar os comércios, a se responsabilizarem pela distribuição e pelo transporte; na utilização do caminhão da fábrica para transportar leite às poblaciones, na organização das feiras populares, no intercâmbio de produtos e de matérias-primas entre as fábricas, e na formação de comitês de defesa com pobladores e operários contra possíveis ataques.

Com um pouco mais de um ano existência, os cordões industriais conseguiram agrupar grande parte do operariado chileno. Em Santiago, se organizaram os seguintes cordões: Cerrillos e Vicuña Mackenna, O´Higgins, Macul, San Joaquín, Recoleta, Mapocho-Cordillera, Santa Rosa-Gran Avenida, Panamericana Norte, Santiago Centro e Vivaceta. Em Valparaíso foram desenvolvidos os Cordón Puerto, Cordón Centro, Cordón Almendral, Cordón Quince Norte, Cordón El Salto, Cordón Concón e Cordón Quintero-Ventanas. Ainda se desenvolveram em cidades como Arica, Concepción, Antofagasta e Osorno.

E como se dava a auto-organização dos trabalhadores dos cordões industriais? Após a criação e consolidação dos cordões, os trabalhadores começaram a sistematizar a forma de organização. Segundo Trancoso (1988), começa-se a adotar, a partir do primeiro semestre de 1973, um modelo orgânico, com especificidades locais de cada cordão industrial:

  • Assembleia de Trabalhadores de cada indústria ou empresa por Cordón, que elegeria de 2 a 3 representantes para o seu Conselho, não necessitando ser um representante sindical
  • Conselho de delegados do Cordón
  • Direção do Cordón Industrial que era escolhida por eleição no Conselho de Delegados. Esta “direção” (com caráter executiva, não deliberativa) englobava a presidente e Secretarias de organização, agitação e propaganda, defesa cultura e imprensa.

Nesse sentido, era nas assembleias que eram deliberadas as ações de cada cordão. Devido à pouca documentação e registros, é difícil analisar a dinâmica interna de cada cordão industrial. Mas podemos dizer em linhas gerais que as formas de organização variavam de região para região. Alguns cordões, mais avançados, conseguiram desatar o nó e desvencilhar da burocracia sindical e partidária; outros, porém, mantinham uma grande influência de lideranças sindicais e partidárias — como é o caso do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), com tendência trotskistas e influências da revolução cubana.  Mas em ambos os casos, a insatisfação dos trabalhadores com seus representantes lhe permitia eleger outro delegado. Em síntese, as reuniões dos cordões em geral eram abertas, livres, e muitas vezes contavam com a participação de pobladores da região.

No primeiro dia de fevereiro de 1973, divulgado pelo jornal Tarea Urgente, surge a primeira plataforma de luta em conjunto dos Cordões Industrias do período com as principais bandeiras e orientações para os trabalhadores das várias indústrias que compunham o movimento:

1) la lucha por el paso al área social, a manos de los trabajadores de todas las empresas que tengan que ver con la fabricación de productos de primera necesidad, alimentos y de las industrias de materiales de construcción; 2) la lucha por la expropiación inmediata de las grandes distribuidoras privadas; 3) la expropiación de todos los fundos mayores de 40 has. de riego básico; 4) construir el control obrero de la producción en el sector privado y el control popular de la distribución. Los trabajadores participan en la decisión de lo que se produce para el pueblo: qué se hace con las ganancias y donde van a parar los alimentos. Para ello llamamos a la constitución inmediata de los comités de vigilancia obrera en todas las industrias privadas; 5) que no se devuelva ninguna industria que este en manos de los trabajadores y retiro inmediato del proyecto Millas; 6) distribución directa de la canasta popular al pueblo por los Almacenes Populares. Para ello debe formarse una sola distribuidora estatal; 7) la formación de una comisión bipartita, Gobierno-Pueblo que tenga a su cargo la planificación, ejecución y control del abastecimiento; 8) poder de sanción para las JAP y los Comandos Comunales que se controle lo que se reparte a los comerciantes y se castigue a los que no venden, acaparen y especulen. No más cuotas de alimentos para estos ladrones, cierre de sus negocios y venta directa a los pobladores. Los obreros de los Cordones Industriales se movilizarán para hacer efectivo ese poder. 9) trabajo estable y seguro para los trabajadores de la constucción; 10) creación de la empresa estatal de la construcción que lleve a un sistema único de planificación de las adquisiciones aprovisionamiento y maquinarias; 11) la defensa de los medios de comunicación que apoyan la lucha revolucionaria de los organismos de poder de los obreros, pobladores y campesinos; 12) llamamos a todos los trabajadores a constituir los Comandos Industriales por Cordón y Comando Comunales, como única manera de que la clase disponga de un organismo de acción eficaz, capaz de movilizarla y plantearle nuevas tareas (TAREA URGENTE, 1973)

Muitas dessas reinvindicações iam de encontro com as políticas e propostas da Unidade Popular, demonstrando não mais uma inicial ou relativa oposição ao governo, mas uma indubitável relação de confronto.

Em 11 de setembro de 1973, com o Golpe de Estado executado pelo exército chileno, fez com que bruscamente o avanço dos trabalhadores parasse. A experiência dos cordões industriais durou pouco tempo. Mas neste pouco tempo, o avanço da consciência de classe, a ameaça de rompimento com as relações capitalistas, bem como o desvencilhamento com o governo e muitas das burocracias sindicais e partidária, demonstra o caráter revolucionário desta experiência.

Enquanto o exército bombardeava o Palácio de La Moneda destruindo a resistência do governo Allende, tropas rumavam para os cordões industriais para reprimir e aniquilar qualquer tipo de resistência à ditadura militar que estava porvir. Mesmo com uma inicial resistência por parte dos trabalhadores, a desigualdade de forças fez com que o exército esmagasse toda e qualquer tipo de resistência. Centenas de mortos por parte dos explorados e oprimidos. Aos agitadores, mais avançados politicamente, foram relegados à campos de concentração que se tornaram os estádios de futebol chilenos. As lideranças do governo que sobreviveram, bem como as das demais burocracias partidárias e sindicais, fugiram em exílio para não serem perseguidos. Aos trabalhadores, que não tinham condições de fugir, restou a barbárie e o terror.

Gabriel Teles, trecho reformulado de seu artigo A experiência de auto-organização dos trabalhadores chilenos nos cordões industriais [1972-1973]


[1]  A partir de outubro de 72, passa a se chamar Cordón Cerrillos.

* * *

Carta que os cordões industriais enviaram a Allende seis dias antes do golpe de Estado militar

5 de Setembro de 1973,
À SUA EXCELÊNCIA, O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
CAMARADA ALLENDE
Camarada Salvador Allende:

Chegou o momento em que a classe operária organizada na Coordenadora Provincial de Cordões Industriais, no Comando Provincial de Abastecimento Direto e na Frente Única de Trabalhadores em conflito considerou de urgência dirigir-se a você, alarmados pelo desencadeamento de uma série de acontecimentos que cremos que nos levará não só à liquidação do processo revolucionário chileno, mas, a curto prazo, a um regime fascista do corte mais implacável e criminoso.

Antes, tínhamos o temor de que o processo para o Socialismo estava transicionando para chegar a um Governo de centro, reformista, democrático-burguês que tendia a desmobilizar as massas ou a levá-las a ações insurrecionais de tipo anárquico por instinto de preservação.

Mas agora, analisando os últimos acontecimentos, nosso temor já não é esse, agora temos a certeza de que vamos numa ladeira que nos levará inevitavelmente ao fascismo.

Por isso procedemos a enumerar-lhe as medidas que, como representantes da classe trabalhadora, consideramos imprescindíveis tomar.

Em primeiro lugar, camarada, exigimos que se cumpra com o programa da Unidade Popular, nós em 1970, não votamos por um homem, votamos por um Programa.

Curiosamente, o Capítulo primeiro do Programa da Unidade Popular intitula-se “Poder Popular”, Citamos: Página 14 do programa:

“…As forças populares e revolucionárias não se uniram para lutar pela simples substituição de um Presidente da República por outro, nem para substituir um partido por outros no Governo, mas para levar a cabo as mudanças de fundo que a situação nacional exige, sobre a base da transferência do poder dos antigos grupos dominantes aos trabalhadores, ao campesinato e setores progressistas das camadas médias…” “Transformar as atuais instituições do Estado onde os trabalhadores e o povo tenham o real exercício do poder…

“…O Governo popular assentará essencialmente sua força e autoridade no apoio que o povo organizado lhe brindar …”

…Página 15: “…Através de uma mobilização de massas se constituirá a partir das bases a nova estrutura do poder…”.

Fala-se de um programa de uma nova Constituição Política, de uma Câmara Única, da Assembleia do Povo, de um Tribunal Supremo com membros designados pela Assembleia do Povo. No programa é indicado que se recusará o emprego das Forças Armadas para oprimir o povo… (p. 24).

Camarada Allende, se não lhe indicássemos que estas frases são citações do programa da Unidade Popular, que era um programa mínimo para a classe, neste momento, você nos diria que esta é a linguagem “ultra” dos cordões industriais.

Mas nós perguntamos, onde está o novo Estado? A nova Constituição Política, a Câmara Única, a Assembleia Popular, os Tribunais Supremos?

Passaram-se três anos, camarada Allende e você não se apoiou nas massas e agora nós, os trabalhadores, temos desconfiança.

Nós, trabalhadores, sentimos uma profunda frustração e desalento quando o nosso Presidente, o nosso Governo, os nossos partidos, as nossas organizações, nos dão uma e outra vez a ordem de recuar em vez da voz de avançar. Nós exigimos que não só nos informe, mas que também se nos consulte sobre as decisões, que afinal de contas são definidoras para nosso destino.

Sabemos que na história das revoluções sempre houve momentos para recuar e momentos para avançar, mas sabemos, temos a certeza absoluta, que nos últimos três anos poderíamos ter ganhado não só batalhas parciais, mas a luta total. Ter tomado nessas ocasiões medidas que fizessem irrevogáveis o processo, depois do triunfo da eleição de Regidores de 71, o povo clamava por um plebiscito e pela dissolução de um Congresso antagônico.

Em outubro, quando foi a vontade e organização da classe operária que manteve o país caminhando frente ao desemprego patronal, onde nasceram os cordões industriais no calor dessa luta e se manteve a produção, o abastecimento, o transporte, graças ao sacrifício dos trabalhadores e se pôde dar o golpe mortal à burguesia, você não teve confiança em nós, apesar de que ninguém pode negar a tremenda potencialidade revolucionária demonstrada pelo proletariado, e deu-lhe uma saída que foi uma bofetada na classe operária, instaurando um Gabinete cívico-militar, com o agravante de incluir nele dois dirigentes da Central Única de Trabalhadores, que ao aceitar integrar estes ministérios, fizeram perder a confiança da classe trabalhadora em seu organismo máximo[14].

Organismo, que qualquer que fosse o caráter do Governo, devia manter-se à margem para defender qualquer debilidade deste frente aos problemas dos trabalhadores.

Apesar do refluxo e desmobilização que isto produziu, da inflação, das filas e das mil dificuldades que os homens e mulheres do proletariado viviam diariamente, nas eleições de março de 1973, mostraram mais uma vez sua clareza e consciência ao dar-lhe 43% de votos militantes nos candidatos da Unidade Popular.

Ali também, camarada, deveriam ter sido tomadas as medidas que o povo merecia e exigia para protegê-lo do desastre que agora pressentimos.

E já em 29 de junho, quando os generais e oficiais sediciosos aliados ao Partido Nacional, Frei e Pátria e Liberdade se puseram francamente numa posição de ilegalidade, poderia se ter desencabeçado os sediciosos e, apoiando-se no povo e dando responsabilidade aos generais leais e às forças que então lhe obedeciam, ter levado o processo para o triunfo, ter passado à ofensiva.

O que faltou em todas estas ocasiões foi decisão, decisão revolucionária, o que faltou foi confiança nas massas, o que faltou foi conhecimento de sua organização e força, o que faltou foi uma vanguarda decidida e hegemônica.

Agora nós trabalhadores não somente temos desconfiança, estamos alarmados.

A direita montou um aparelho terrorista tão poderoso e bem organizado, que não cabe dúvida que está financiado e pela CIA. Matam operários, fazem voar oleodutos, micro-ônibus, transportes ferroviários.

Produzem apagões em duas províncias, atentam contra nossos dirigentes, nossos locais partidários e sindicais.

São punidos ou presos?

Não, camarada!

São punidos e presos os dirigentes de esquerda.

Os Pablos Rodríguez, os Benjamines Matte, confessam abertamente ter participado no “Tanquetazo”[15].

São esmagados e humilhados?

Não, camarada!

Esmaga-se Lanera Austral de Magellanes onde se assassina um operário e se tem os trabalhadores de boca na neve durante horas e horas.

Os transportadores paralisam o país, deixando lares humildes sem parafina, sem alimentos, sem medicamentos.

São vexados, reprimidos?

Não, camarada!

São vexados os operários de Cobre Cerrillos, de Indugas, de Cimento Melon, de Cervejarias Unidas.

Frei, Jarpa e seus comparsas financiados pela ITT, chamam abertamente à sedição.

São reprovados, são denunciados?

Não, camarada! 

Denuncia-se, pede-se a reprovação de Palestro, de Altamirano, de Garretón, dos que defendem os direitos da classe operária.

A 29 de junho se levantam generais e oficiais contra o Governo, metralhando horas e horas o Palácio de La Moneda, produzindo 22 mortos.

São fuzilados, são torturados?

Não, camarada!  

Tortura-se de forma desumana os marinheiros e sub-oficiais que defendem a Constituição, a vontade do povo, e a você, camarada Allende.

Pátria e Liberdade incita ao golpe de Estado.

São presos, são castigados?

Não, camarada!  

Eles, continuam dando conferências de imprensa, são-lhes dados salvo-condutos para que conspirem no estrangeiro.

Enquanto se esmaga SUMAR, onde morrem operários e habitantes, e os camponeses de Cautín, que defendem o Governo, são submetidos aos castigos mais implacáveis, passeando pendurados nos pés, em helicópteros sobre as cabeças de suas famílias até a morte.

São atacados você camarada, os nossos dirigentes, e através deles os trabalhadores em seu conjunto na forma mais insolente e libertina pelos meios de comunicações milionários da direita.

São destruídos, são silenciados?

Não, camarada!   

Silencia-se e destrói os meios de comunicação de esquerda, o canal 9 de TV, última possibilidade de voz dos trabalhadores.

E a 4 de setembro, no terceiro aniversário do Governo dos trabalhadores, enquanto o povo, um milhão quatrocentos mil, saíamos a saudá-lo, a mostrar nossa decisão e consciência revolucionária, a FACH esmagava Mademsa, Madeco, Rittig, numa das provocações mais insolentes e inaceitáveis, sem que exista resposta visível alguma.

Por todo o proposto, camarada, nós os trabalhadores, estamos de acordo num ponto com o senhor Frei, que aqui só há duas alternativas: a ditadura do proletariado ou a ditadura militar.

Claro que o senhor Frei também é ingênuo, porque crê que tal ditadura militar seria só de transição, para levá-lo finalmente à Presidência.

Estamos absolutamente convencidos de que historicamente o reformismo que se procura através do diálogo com os que traíram uma e outra vez, é o caminho mais rápido para o fascismo.

E nós trabalhadores já sabemos o que é o fascismo.

Até há pouco era somente uma palavra que nem todos nós camaradas compreendíamos. Tínhamos que recorrer a longínquos ou próximos exemplos: Brasil, Espanha, Uruguai, etc.

Mas já o vivemos em carne própria, nos esmagamentos, no que está se sucedendo a marinhos e suboficiais, no que estão sofrendo os camaradas de ASMAR, FAMAE, os camponeses de Cautín.

Já sabemos que o fascismo significa acabar com todas as conquistas conseguidas pela classe operária, as organizações operárias, os sindicatos, o direito à greve, as folhas de petições.

O trabalhador que reclama seus mais mínimos direitos humanos se despede, se aprisiona, tortura ou assassina.

Consideramos que não somente está nos levando pelo caminho que conduzirá ao fascismo num prazo vertiginoso, mas que nos priva além disso dos meios para nos defender.

Portanto exigimos de você, camarada Presidente, que se ponha à cabeça deste verdadeiro Exército sem armas, mas poderoso quanto à consciência, decisão, que os partidos proletários ponham de lado suas divergências e se convertam em verdadeira vanguarda desta massa organizada, mas sem direção.

Exigimos:

1° Face à paralisação dos transportadores, a requisição imediata dos caminhões sem devolução pelos organismos de massas e a criação de uma Empresa Estatal de Transportes, para que nunca mais esteja nas mãos destes bandidos a possibilidade de paralisar o país.

2° Face à paralisação criminosa do Colégio Médico, exigimos que lhes aplique a Lei de Segurança Interior do Estado, para que nunca mais esteja nas mãos destes mercenários da saúde, a vida de nossas mulheres e filhos. Todo apoio aos médicos patriotas.

3° Face à paralisação dos comerciantes, que não se repita o erro de outubro em que deixamos claro que não necessitávamos deles como corporação. Que se ponha fim à possibilidade de que estes traficantes confabulados com os transportadores, pretendam sitiar o povo pela fome. Que se estabeleça de uma vez por todas a distribuição direta, os armazéns populares, a cesta popular. Que passe à área social as indústrias alimentícias que ainda estão nas mãos do povo.

4° Face à área social: Que não só não se devolva nenhuma empresa onde exista a vontade majoritária dos trabalhadores de que sejam confiscadas, mas que esta passe a ser a área predominante da economia. Que se fixe uma nova política de preços. Que a produção e distribuição das indústrias da área social seja discriminada. Não mais a produção de luxo para a burguesia. Que se exerça um verdadeiro controle operário dentro delas.

5° Exigimos que se derrogue a Lei de Controle de Armas. Nova “Lei Maldita” que só serviu para vexar os trabalhadores, com as invasões praticados nas indústrias e povoados, que está servindo como um ensaio geral para os setores sediciosos das Forças Armadas, em sua permissividade de estudar assim a organização e a capacidade de resposta da classe operária numa tentativa para intimidá-la e identificar seus dirigentes.

6° Face à desumana repressão aos marinheiros de Valparaíso e Talcahuano, exigimos a imediata liberdade destes irmãos de classe heroicos, cujos nomes já estão gravados nas páginas da história do Chile. Que se identifique e se castigue os culpados.

7° Face às torturas e morte de nossos irmãos camponeses de Cautín, exigimos um julgamento público e o castigo correspondente aos responsáveis.

8° Para todos os implicados em tentativas de derrubar o Governo legítimo, a pena máxima.

9° Face ao conflito do Canal 9 de TV, que este meio de comunicação dos trabalhadores não seja entregue nem negociado por nenhum motivo.

10° Protestamos pela destituição do camarada Jaime Faivovic, Subsecretário de Transportes.

11° Pedimos que através de vosso próprio apoio, manifeste todo nosso amparo ao Embaixador de Cuba, camarada Mario García Incháustegui, e, a todos os camaradas cubanos perseguidos pelo mais notório da reação e que lhe ofereça nossos bairros proletários para que ali estabeleçam sua embaixada e sua residência, como forma de agradecer a esse povo, que até chegou a se privar de sua própria ração de pão para ajudar-nos em nossa luta. Que se expulse o Embaixador norte-americano, que através de seus porta-vozes, do Pentágono, da CIA, da ITT, proporciona comprovadamente instrutores e financiamento aos sediciosos.

12° Exigimos a defesa e proteção de Carlos Altamirano, Mario Palestro, Miguel Henríquez, Oscar Gerretón, perseguidos pela direita e pela Promotoria naval por defender valentemente os direitos do povo, com ou sem uniforme.

Nós lhe advertimos camarada, que com o respeito e a confiança que ainda lhe temos, se não cumprir com o programa da Unidade Popular, se não confiar nas massas, perderá o único apoio real que tem como pessoa e dirigente e que será responsável por levar o país não à guerra civil que está já está em pleno desenvolvimento, mas ao massacre frio, planificado da classe operária mais consciente e organizada da América Latina. E [nós o advertimos] que será responsabilidade histórica deste Governo, levado ao poder e mantido com tanto sacrifício pelos trabalhadores, habitantes, camponeses, estudantes, intelectuais, profissionais, a destruição e descabeçamento, quiçá a tal prazo, e a tal custo sangrento, não só do processo revolucionário chileno, mas também o de todos os povos latino-americanos que estão lutando pelo Socialismo.

E se fazemos este chamado urgente, camarada Presidente, é porque acreditamos que esta é a última possibilidade de evitar em conjunto, a perda das vidas de milhares e milhares do melhor da classe operária chilena e latino-americana.

Coordenadora Provincial de Cordões Industriais- Comando Provincial de Abastecimento Direto- Frente Única de Trabalhadores em Conflito.


[1] Ver “Cone Sul: Contra a impunidade dos torturadores e assassinos”. Publicado em Comunismo No.4 (órgão central do GCI em português), abril de 2001.

[2] Este texto é uma versão mal atualizada de “Memória Operária: Chile, setembro de 1973 ” que apareceu em 1980 em Comunismo No.4, nosso órgão central em espanhol.

[3] Esta greve, pela qual a “direita” se mobilizou para os seus próprios objetivos pequeno-burgueses, mas também as massas operárias (que não tinham nenhuma razão de se conformar às prescrições da esquerda), tinha evidentemente por objetivo declarado, a luta contra a “esquerda” no governo. Uma análise da luta entre as diferentes frações da burguesia deveria pôr ênfase nestes fatores. Da nossa parte, nos interessamos aqui apenas nas repercussões desta greve sobre a classe operária porque é a contradição burguesia/proletariado que constitui o nosso ponto de vista fundamental, uma contradição central e, por conseguinte igualmente bem mais dissimulada.

[4] Talvez seja bom recordar aqui que este “socialista” morto quando do assalto a La Moneda, amigo de Allende e fiel à sua ação, era igualmente – ironia ou tragédia? – um dos líderes encarregados de distribuir as armas aos trabalhadores no caso de “golpe de Estado fascista”.

[5] Pode-se ler, no número de 15 de Agosto de 1972 de Punto Final: “o responsável direto deste acontecimento muito grave é o reformismo, cujo papel negativo vai até utilizar para os seus próprios objetivos um aparelho repressivo que, durante numerosos anos, se obstinou sobre o povo…” E no mesmo texto, um pouco depois “… referimo-nos ao fator contrarrevolucionário que significa o reformismo“.

[6] Punto Final, 15 de Agosto de 1972.

[7] Punto Final, 15 de Agosto de 1972.

[8] Punto Final, 15 de Agosto de 1972.

[9] Certos Cordões Industriais emergiram mais cedo e continuaram a ser quase clandestinos. A sua reprodução e a sua afirmação social tiveram lugar nestas circunstâncias.

[10] Já anteriormente, o MIR tinha lançado a instrução de “Conselhos comunais dos trabalhadores“. Como se vê, e contrariamente ao que pretende o centrismo, nunca a denominação de um organismo garantirá o seu conteúdo revolucionário. Não é a forma de organização “Conselho” proposta pelo MIR que podia constituir uma ruptura com o reformismo. Só um programa que ataca verdadeiramente o capital e o Estado podia determinar o caráter revolucionário desta organização, mas o centrismo tudo faz para impedir isto.

[11] Punto Final, 7 de Novembro de 1972. Continua muito interessante notar que a função dos centristas é sempre e por toda parte a mesma. Assim é o papel do POUM na Espanha dos anos 34-37, e do qual tantos reformistas têm elogiado e elogiam ainda hoje a pseudo-radicalidade. Num texto intitulado “O POUM se converte em partido governamental”, o militante Moulin (Hans David Freund, era o seu verdadeiro nome) declara à época, um pouco antes de se fazer assassinar pelos stalinistas: “os centristas e os reformistas de cada país sublinham sempre o caráter excepcional, popular, das organizações burguesas do seu respectivo país“.

[12] Punto Final, 7 de Novembro de 1972. Todos os “sic” são notas da nossa redação.

[13] Punto Final, 7 de Novembro de 1972.

[14] Trata-se do Gabinete Salvação Nacional formado por Allende para enfrentar o progresso do proletariado em Outubro de 1972. Este Gabinete era composto do seguinte modo: Ministro do Interior: General Carlos Prats Gonzales, comandante em chefe do Exército; ministro do Trabalho: Brilha Figueroa, Presidente da CUT, líder do Partido “Comunista”; ministro das Minas: Claudio Sepúlveda Donoso, General da Brigada Aérea; ministro da Agricultura: Rolando Calderon, secretário geral do CUT, líder do Partido “Socialista”; ministro dos Trabalhos Públicos e dos Transportes: Almirante Ismael Huerta. Cada uma das três “ARMAS” fundamentais estava representada. É a mesma coisa que o que se passou na Espanha em 36, exatamente, com um pouco menos de complexos! Percebe-se a tal ponto que a existência de uma organização internacional do proletariado que assegure a continuidade programática e a memória coletiva da classe operária mundial é indispensável de modo que não devamos nunca mais contar as nossas mortes, os nossos prisioneiros, nossos torturados.

[15] Trata-se de uma demonstração de força do exército, uma saída com tanques, que se revelou, com efeito, uma tentativa de golpe de Estado anterior à que Pinochet conseguirá alguns dias mais tarde.

Disponível em: http://www.gci-icg.org/portuguese/index_portuguese.html.

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