Texto do filósofo alemão a propósito dos 100 anos das revoluções de 1848. Original in “Marx Stellung in der europäischen Revolution von 1848”, Die Schule, III, 5, Maio de 1948. Tradução portuguesa de B. A., a partir da versão francesa de Serge Bricianer, in “Karl Korsch, Marxisme et Contre-Revolution”, Editions du Seuil, Paris, 1975. Este texto foi extraído de La Bataille Socialiste.
Como acontecera já durante a Primeira Guerra mundial, os alemães viram-se acusados durante a segunda e até hoje de não serem democratas. Não apenas os alemães de Hitler, mas todos os alemães; não apenas de hoje, mas de todos os tempos; não só no aspecto exterior, mas na sua natureza íntima. Diz-se que só uma reeducação longa e severa, recorrendo aos mais rigorosos métodos de coerção, conseguirá talvez a prazo mudar de alto a baixo esta natureza a-democrática do povo alemão; apenas por este meio poderão os alemães elevar-se ao nível histórico das nações ocidentais, com isso ficando estas últimas ao abrigo de qualquer nova iniciativa destes bárbaros atrasados contra a civilização democrática.
Do ponto de vista histórico, não há nada nessas acusações que não venha sendo dito e redito, há cem ou cento e cinquenta anos, por todos os bons europeus na Alemanha. Primeiro, foram os grandes apóstolos idealistas da educação progressiva do género humano e da nova concepção da história, vista como uma evolução no sentido da liberdade e da beleza, da razão, da cidadania universal e da paz perpétua. A esta primeira geração dos Lessing, Kant, Klopstock, Schiller, que tinha tido ligação com os Ingleses e os Franceses do século das Luzes, dos quais a inspiração e as ideias conheceram de seguida um desenvolvimento autónomo e majestoso, sucedeu a geração dos pensadores diretamente tocados pelos prodigiosos acontecimentos da grande Revolução francesa, e em cujo sistema, segundo as palavras de Hegel, “a revolução veio inscrever-se e articular-se na forma do pensamento”. Chamada a prosseguir sem paragem até 1840, esta evolução filosófica não era na realidade senão uma manifestação, no domínio intelectual alemão, do processo histórico universal que se perpetuou para lá de Waterloo e de Versalhes, e no quadro do qual os tribunos, homens de estado e generais da Revolução francesa, os Brissot e os Danton, os Robespierre e os Napoleão, não contentes com ter instituído em França a república burguesa moderna, criaram-lhe por acréscimo um enquadramento apropriado em todo o continente europeu. Esta geração de pensadores e de poetas, visivelmente imbuídos do espírito da Revolução francesa, não viu nenhum crítico, nem do Oeste nem do Leste, vir censurar-lhe, como uma traição infame ao espírito democrático moderno, o facto de alguns dos seus melhores representantes terem partilhado, após o entusiasmo, a desilusão que o triunfo desta revolução havia de suscitar em todos os países da Europa e até na própria França. Na sua amarga realidade, a sociedade burguesa saída da Revolução fazia, com a ideia sublime dos seus resultados, que tinham formado os que com ela tinham cooperado ou a tinham aclamado, um contraste tão grande como com o heroísmo sem limites, a abnegação, as angústias, a guerra civil e as carnificinas com que fora preciso pagar a sua vinda ao mundo. Portanto não admira que também na Alemanha, país que a Revolução francesa tinha tocado mais diretamente, a adesão apaixonada « aos ideais de 1789 e 1793 » devesse cedo ceder o seu lugar, enquanto com o romantismo político, o legitimismo, o culto das instituições e das ideias medievais, o irracionalismo de princípio, a « teoria orgânica do Estado » e a « escola crítica », surgia uma reviravolta desastrosa, com a calúnia sistemática das mesmas ideias a que certas cabeças do novo movimento haviam prestado a mais inflamada das adesões, bem pouco tempo antes.
Se queremos julgar convenientemente as noções datadas desse tempo, noções de novo consideradas com particular enlevo demonstrativas da natureza radicalmente antidemocrática do espírito alemão, é preciso não esquecer que nesse momento a França vivia a época da Restauração, que na Inglaterra dominava uma tendência nascida em 1789 que permanecia ferozmente hostil aos ideais da Revolução francesa e que só havia de desarmar com a época das reformas de 1830-1846, e que no continente todas as potências europeias, à exceção apenas da Turquia, constituíam, com o apoio da Inglaterra, uma « Santa Aliança » decidida a reprimir pela força qualquer nova propagação das ideias e dos movimentos inspirados na Revolução francesa.
Nesta perspectiva histórica, é preciso por outro lado perguntar que forças estiveram na origem da renovação dos princípios democráticos, que surgiu no continente europeu a partir de 1830, que dificuldades particulares defrontaram elas e que alterações resultaram desse facto para o progresso democrático. Só assim é possível compreender como pôde acontecer que na Alemanha, até ao virar do século, a democracia não chegou a obter uma vitória completa, indiscutível e definitiva. Constatar que na França a Restauração sucedeu à Revolução, depois a ditadura bonapartista ao renovamento democrático de 1830 e de 1848, após o que, nos finais do século, o triunfo aparente dos republicanos quando do caso Dreyfus foi seguido taco a taco de uma reação militarista, clerical e monárquica, bem mais forte e áspera, antecipando o fascismo sob vários aspectos, é constatar ao mesmo tempo que o desenvolvimento restrito e definitivamente insuficiente das forças democráticas na Alemanha constitui, não um fenómeno especificamente alemão, mas a forma particular de uma evolução comum a toda a Europa.
Quando as comparamos às grandes revoluções europeias que, na Inglaterra e na França dos séculos XVII e XVIII, tiveram por efeito, após dezenas de anos de duros combates, transformar de alto a baixo o Estado e a sociedade, as revoluções dos séculos XIX e XX não passam de uma forma mirrada e distorcida da revolução. O próprio Karl Marx, que alguns anos mais tarde se arvorou em crítico implacável desta submissão ideológica dos revolucionários do século XIX às tradições gloriosas do passado, havia ele próprio de se mostrar submetido a essas mesmas ideias tradicionais, enquanto participava na revolução alemã de 1848. Durante esta única revolução democrática que conheceu o século XIX, e enquanto tudo levaria a crer que as duras lutas dos seus anos de aprendizagem política teriam tido por consequência levá-lo a abandonar a óptica revolucionária burguesa, na realidade Marx não defendeu de modo nenhum um programa de revolução social ou socialista que transcendesse os objetivos da burguesia. Pelo contrário, fez questão de, sempre que a ocasião se proporcionava, incitar esta revolução burguesa a tomar por modelo a Revolução francesa, em particular a sua fase jacobina de 1793-1794.
A título de exemplo, por muitos outros do mesmo género, eis uma passagem do artigo que Marx redigiu a 11 de Dezembro de 1848 para a Nova Gazeta Renana, onde este carácter das críticas por ele dirigidas à revolução alemã ressalta com a maior nitidez. Começando por descrever a traços de fogo a grandeza histórica das revoluções de 1648 e de 1789, Marx dizia que se tratava na ocorrência não já « de revoluções inglesa e francesa, mas de revoluções de estilo europeu. Elas não eram a vitória de uma classe determinada da sociedade sobre o antigo sistema político, mas a proclamação de um sistema político válido para a nova sociedade europeia ». E prosseguia assim: « Não há nada disto na revolução de Março na Prússia. (…) Longe de ser uma revolução europeia, não passava do eco enfraquecido duma revolução europeia num país atrasado. (…) A revolução de Março na Prússia nem sequer era nacional, alemã, era desde a origem provincial, prussiana. As insurreições de Viena, de Cassel, de Munique, levantamentos provinciais de toda a espécie a acompanhavam e lhe disputavam o primeiro lugar. (…) A burguesia prussiana não era a burguesia francesa de 1789, a classe que, face aos representantes da antiga sociedade, da realeza e da aristocracia, encarnava por si só toda a sociedade moderna. Descida à condição de uma espécie de casta (…), longe de representar uma categoria social do antigo Estado que tivesse conseguido romper, ela tinha sido lançada por um tremor de terra à superfície do novo Estado, mostrando os dentes aos de cima, tremendo perante os de baixo, egoísta face a ambos e consciente desse egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiada das suas próprias palavras de ordem, fabricando frases em vez de criar ideias, intimidada pela tempestade universal, mas explorando essa tempestade (…), sem iniciativa, sem fé nem em si própria nem no povo, sem vocação histórica – um velho maldito, sem olhos, sem ouvidos, sem dentes, sem nada, votado a guiar e a desencaminhar em função dos seus interesses caducos os primeiros impulsos juvenis de um povo robusto – tal era a burguesia prussiana quando após a revolução de Março se encontrou no limiar do Estado da Prússia. »
Apesar desta crítica percuciente das fraquezas e insuficiências das lutas que se desenrolavam sob os seus olhos, Marx ateve-se a palavras de ordem que permaneciam no quadro de uma grande revolução democrática, do mesmo tipo da Revolução francesa do século XVIII. Com efeito, ele impôs-se como tarefa opor às ações do movimento existente, que recuava perante os seus objetivos próprios, audaciosas palavras de ordem do passado, tais como as reivindicações da república una e indivisível, do armamento do povo, da ditadura revolucionária e do “Terror”. Neste plano ele chocou de imediato com obstáculos insuperáveis. As reivindicações pré-citadas eram retiradas do arsenal da Revolução francesa. Eram os símbolos de um movimento que levou ao estabelecimento da sociedade burguesa. Mas, dado o emburguesamento gradual da sociedade europeia entretanto ocorrido, elas interessavam agora tão pouco a grande burguesia e uma parte da pequena que Marx apenas podia divulgá-las publicamente sob uma forma muito geral ou muito insossa. É assim que a 6 de Junho de 1848 ele iniciava na Nova Gazeta Renana a sua campanha a favor das menos desagradáveis das palavras de ordem jacobinas supracitadas com a declaração seguinte: “Nós não pedimos, o que seria utópico, que seja proclamada a priori uma república alemã una e indivisível.” E deslocava a questão do terreno da ação imediata para o do desenvolvimento futuro quando acrescentava: « a unidade da Alemanha, tal como a sua constituição, só podem resultar de um movimento ». Mais, o « órgão da democracia » dirigido por Marx, enquanto subia constantemente de tom, não deixava de manejar com extrema circunspecção estas palavras de ordem mais avançadas da luta por objetivos democráticos.
Marx, renunciando assim a expor abertamente o programa integral da revolução democrática, fazia-o em função de uma táctica previamente fixada; e não restam dúvidas que, considerada sob ponto de vista histórico, esta tática revela-se já prenhe da contradição fundamental, inerente à posição de Marx na revolução de 1848. Ele recusava-se a opor às realidades da revolução burguesa uma utopia socialista. Não obstante, persistia em querer impor a este movimento revolucionário dos tempos presentes formas de ação dos tempos passados, nada adequadas às condições atuais deste último. Assim, esta tentativa de elevar a revolução democrática de 1848 ao mais alto nível, o que a revolução burguesa tinha atingido numa fase anterior e transitória do seu desenvolvimento, se nos apresenta, tendo em conta a mudança das condições históricas entretanto ocorrida, tão utópica como seria nessa época a propaganda direta do socialismo.
O contraste entre as condições imaginadas por Marx e as condições efetivas da revolução de 1848, que ele viveu e em que participou, torna-se mais óbvio precisamente nos pontos em que a sua crítica dos pontos fracos desta revolução, considerada sob um ponto de vista a-histórico, parece mais bem fundada e onde o conteúdo real daquela fica mais aquém das reivindicações por ele formuladas. Citemos a este propósito a política provinciana, a política de campanário alardeada por todos os dirigentes nacionais e locais e , em contraposição, o internacionalismo de grande estilo de que Marx nunca se afastou quando tratava, na Nova Gazeta Renana, da relação da revolução prussiana e alemã com o movimento que se desencadeava ao mesmo tempo na Europa inteira.
Só do ponto de vista quantitativo, é preciso notar desde logo que o órgão de Marx consagrou às revoluções da França, da Áustria, da Polónia, da Boémia, da Itália e da Hungria estudos muito mais detalhados que qualquer outro jornal alemão. A Nova Gazeta Renana não se limitava a reivindicar a Alemanha para os alemães. Ela reivindicava igualmente a Polónia para os polacos, a Boémia para os checos, a Hungria para os húngaros, a Itália para os italianos. O abandono descarado da revolução polaca pelo governo prussiano; a pusilanimidade por este mostrada face às pressões britânicas e russas no caso Schleswig-Holstein; o esmagamento pela própria burguesia revolucionária da insurreição operária de Junho em Paris, que teve uma influência decisiva na sorte de toda a revolução europeia; o esmagamento não menos decisivo quanto a este aspecto da revolução em Viena; o fracasso da grande manifestação cartista em Inglaterra e as suas consequências – todas estas tentativas abortadas, todos estes reveses, eram tratados na Nova Gazeta Renana como derrotas tanto da revolução alemã como da revolução paneuropeia. Fazendo assim, ela desvendava também a trágica oposição dos pretensos interesses nacionais em virtude dos quais as diversas secções duma única e mesma revolução europeia, como que tomadas por uma fúria de autodestruição, agiam não só contra o seu interesse comum, mas ainda contra o seu interesse nacional real: austríacos contra checos; checos, alemães, austríacos e húngaros contra italianos; checos contra vienenses; e, para cúmulo, austríacos, checos e russos contra o movimento no qual a Europa inteira tinha posto as suas últimas e maiores esperanças, o da Hungria revolucionária. O torno sangrento devia apertar-se assim até ao momento em que o triunfo generalizado da contrarrevolução pôs fim à força a estes combates fratricidas.
De todo o modo, a análise rigorosa e documentada, a que a Nova Gazeta Renana submetia todas estas conexões não deixava de apresentar ao mesmo tempo o carácter demasiado abstrato e a-histórico inerente, também deste ponto de vista à política encarnada por Marx. O internacionalismo sublime com que ele procurava então aliviar este estado de atraso nacionalitário não tinha em conta o facto de que o reforço das consciências nacionais e dos antagonismos nacionais, agora tão nefasto à ação unificada das forças revolucionárias, procedia igualmente da vitória parcial, transitória, do princípio burguês. Ora tendo estes antagonismos origem não fora da história (no « sangue », na raça, na « terra » ou na pátria, por exemplo) mas, pelo contrário, no desenvolvimento histórico da sociedade burguesa, era impossível que a propagação internacional da revolução do século XIX pudesse a partir de agora desenvolver-se segundo o modelo jacobino e napoleónico, sendo a sua reprodução pura e simples.
Nas condições históricas mudadas do século XIX, Marx continuava a fazer da guerra revolucionária a panaceia que permitiria à revolução paneuropeia resolver todas as suas dificuldades internas e externas, como fora o caso na Revolução francesa. Tendo a guerra contra esta prosseguida pelas três grandes coligações europeias tido por efeito aumentar consideravelmente a influência russa no mundo, era óbvio, agora que o centro do movimento revolucionário se tinha deslocado notoriamente para Leste, que o inimigo natural da revolução paneuropeia era a Rússia czarista. Foi esta convicção que, durante dezenas de anos, serviu de base à política externa democrática que Marx preconizava sistematicamente sempre que surgia um conflito na Europa. Mesmo quando, após o golpe de Estado de Napoleão III, tudo parecia indicar que o czar partilhava agora o lugar de inimigo principal da democracia com o ditador francês, o inimigo a combater prioritariamente continuou a ser, segundo Marx, não o aventureiro imperial, o « indivíduo repugnante » que a burguesia francesa tinha encarregue de executar a sentença de morte que pronunciara em Junho de 1848, no seguimento da insurreição dos operários parisienses, contra as suas próprias instituições republicanas, mas tão só « este poder bárbaro cuja cabeça está em S. Petersburgo e cujas mãos agem em todos os gabinetes da Europa ». O papel que, no quadro desta concepção, restava a “Boustrapa[1]” era apenas o de aliado ou de agente da grande potência reacionária que se perfilava atrás dele.
A tese que acabamos de esboçar e segundo a qual a guerra no século XIX não tinha perdido nada da sua importância para a revolução, não era de modo nenhum quimérica. De facto, também as guerras nacionais tiveram um papel na revolução de 1848. Se na Prússia como na Itália, na Áustria, na Hungria, guerras exteriores e guerras civis não se combinaram numa unidade efetiva, a brusca interrupção no seguimento do armistício de Malmoe, da guerra que a Prússia travava na Dinamarca, com vista a « libertar » o Schleswig e o Holstein, desenganou e esmoreceu todas as tendências do movimento revolucionário alemão, mais ainda talvez que as suas previsíveis repercussões políticas no plano interno. Que esta primeira guerra revolucionária, se tivesse sido levada até ao fim, poderia ter tido consequências iminentemente favoráveis ao desenvolvimento do movimento, é o que é confirmado, desta vez indiretamente, pelo facto de que esta tarefa, deixada por resolver pela revolução alemã, foi retomada pela contrarrevolução bismarckiana por sua própria conta no período seguinte e de que a segunda campanha da Dinamarca (1864), conjuntamente com as guerras austro-prussiana (1866) e franco-alemã (1870), esteve na origem de um desenvolvimento progressista na Europa, pelo menos sob certos aspectos.
A guerra revolucionária contra a Rússia, também ela não tinha nada da solução arbitrariamente concebida fora do contexto de 1848 como se poderia imaginar de forma simplista na falta de um bom conhecimento da conjuntura política e diplomática do momento. Com efeito sabe-se hoje que na época em que a Nova Gazeta Renana fazia campanha neste sentido, o czar, por seu lado, tinha já oferecido ao príncipe da Prússia a ajuda dos seus exércitos para restabelecer à força o despotismo em Berlim e não só. Um ano depois, foram as baionetas russas que salvaram a reação austríaca aniquilando os exércitos de Kossuth nas planícies da Hungria. Uma guerra defensiva prosseguida em comum pela República francesa, pela Alemanha de obediência prussiana, pela Itália piemontesa e pela Polónia insurgida, contra o regime czarista não teria podido deixar de ter efeitos favoráveis no desenvolvimento do movimento revolucionário europeu, como expôs Arthur Rosenberg, o historiador Marxista Alemão recentemente desaparecido, na sua instrutiva obra Demokratie und Sozialismus (Verlag, Albert de Lange, Amsterdam, 1938). Tal guerra não teria tido como resultado levar a revolução à parte ocidental da Rússia e deslocar o Império dos Habsburgos, abrindo assim a via da independência às nacionalidades oprimidas pela Áustria? Por outro lado, teria provavelmente permitido à França evitar a ditadura Bonapartista e à Alemanha a solução panprussiana à moda de Bismark. A partir de então, o continente teria garantido dezenas de anos de progresso democrático, tanto no plano interno como no plano externo, progresso que poderia culminar um dia no nascimento de uma confederação de todos os estados da Europa.
Tudo isto não impede contudo que a posição de Marx face à revolução europeia de 1848 se revele, ainda deste ponto de vista, dum irrealismo acabado. Uma questão se coloca: porque razão fez Marx tábua rasa das conclusões novas a que chegara durante a década precedente e que lhe tinham permitido lançar as bases teóricas do movimento operário socialista, então nos seus começos, precisamente algumas semanas antes do desencadear da revolução de Fevereiro e Março de 1848? Porque tinha ele renunciado a defender as ideias e os interesses operários que iam além dos ideais democráticos procurando substituir o programa, sem dúvida ainda utópico nesta época, duma revolução social operária, por uma outra e pouco mais realista mitologia revolucionária?
É certo que, já antes de Fevereiro, o Manifesto de 1848 não visava nem uma intervenção dos « comunistas » em qualquer país europeu, nem no mais progressista, a França. De todo o modo Marx e Engels haviam de permanecer muito aquém dos limites que tinham assinalado para uma ação de classe, pois deixaram totalmente de lado, não só na prática mas também no terreno ideológico, a tarefa de formação teórica contínua dos operários, que o Manifesto recomendava « a fim de que, concluída a derrota das classes reacionárias na Alemanha, comece sem demora a luta contra a própria burguesia ». Tratava-se aí de algo mais que da consequência do declínio da sua própria organização. Se, como Engels expôs mais tarde, a Liga dos comunistas « se revelou ser uma alavanca muito fraca uma vez desencadeado o movimento das massas populares », tal situação não parece ter-lhes desagradado; mais, como mostraram trabalhos recentes, eles próprios contribuíram na ocasião para este resultado.
Quando finalmente em meados de Abril de 1849, Marx se pôs pela primeira vez a debater questões especificamente operárias na Nova Gazeta Renana, desculpou-se de ter até então negligenciado estas questões alegando que « antes de mais » se tratara de « seguir a luta de classes dia a dia e de, com a ajuda da matéria histórica quotidianamente renovada, fornecer à classe operária, que tinha feito Fevereiro e Março, a prova empírica de que a sua sujeição tinha tido por efeito simultâneo a derrota dos seus adversários ». Ora, nem sequer a tarefa que assim se fixava a si próprio Marx cumpriu. Em vez disso, contentou-se em demonstrar que a burguesia tinha falhado por não se ter revelado capaz de assegurar à sociedade no seu conjunto um desenvolvimento progressista fazendo valer os seus interesses com toda a energia necessária. Mas tudo o que daí se concluía era que, se havia de haver um dia progressos políticos e sociais, seriam sob outras formas, não graças à burguesia, mas contra ela. Tal é o papel que pretenderam arrogar-se a ditadura bonapartista em França e a « revolução por cima » na Alemanha.
Não podemos tratar em detalhe no âmbito deste trabalho a posição que Marx e Engels adoptaram, durante o período contrarrevolucionário, face a estas formas mudadas do desenvolvimento político e social. Limitar-nos-emos, assim, a lembrar que a concepção, segundo a qual se devia ver na contrarrevolução bonapartista e bismarckiana um prolongamento autêntico da fase revolucionária precedente, havia de encontrar, em seguida, um acolhimento dos mais favoráveis, não só da parte dos historiadores burgueses, mas também da parte dos marxistas e de outros teóricos do socialismo – e que não eram dos piores de entre eles. Proudhon, em La Revolution demontrée par le coup d’ État, tal como Marx nas análises das revoluções alemã e francesa que redigiu nessa época, haviam de inclinar-se nesse sentido, e vimos depois em muitas ocasiões esta apresentação de ações e desenvolvimentos contrarrevolucionários como outros tantos avanços revolucionários[2].
Os perigos inerentes a esta concepção ambígua, de duplo sentido, da revolução são ilustrados pelo conflito a este propósito surgido, nos anos de 1860, entre Lassalle e Marx. Com efeito, enquanto Lassalle e Schweitzer, valorizando as sobreditas potencialidades « revolucionárias » da contrarrevolução, concluíam que os revolucionários estavam destinados, em tal circunstância, a trabalhar de mãos dadas com o poder contrarrevolucionário, segundo Marx, o partido operário, em tal ocorrência, devia sem dúvida reconhecer sem ambiguidades o carácter objetivamente progressista das concessões feitas aos trabalhadores pela reação em luta contra a burguesia, mas sem para isso consentir em alienar, por um qualquer pacto com a reação, a independência do movimento. Ou, para retomar a fórmula poética e bela com que Engels exprimiu a mesma ideia, no artigo que consagrou em 1865 a “A questão militar prussiana e o partido operário alemão”: Mit gêru scal man geba infâhan, ort widar ort (É preciso receber os presentes com a lanceta, ponta contra ponta).
Indo mais longe, se nos afigura imperioso, sobretudo após as últimas experiências, romper com esta concepção ambígua das relações entre a revolução e a contrarrevolução que, em última análise, acaba por eclipsá-las, e traçar a linha de demarcação entre a primeira e a segunda, inspirando-se na maneira como a definição de “socialismo reacionário” dada no Manifesto Comunista de 1848 excluía do conceito de revolução os que “reprovam à burguesia não tanto o ter feito surgir um proletariado em geral, mas o ter feito surgir um proletariado revolucionário”.
Boston, Massachussets. Concluído a 18 de Março de 1948.
[1] Alcunha de Napolão III, associando a primeira sílaba de Boulogne, Strasbourg e Paris, cidades em que o pretendente bonapartista tinha perpetrado um golpe de força, esmagado nas duas primeiras vezes, mas triunfante na terceira e que lhe abriu desde então o caminho do poder duma maneira que faz lembrar, mesmo na forma exterior, a carreira de Hitler.
[2] Cf. K. Korsch, “State and Counter-Revolution”, The Modern Quartely, Inverno 1939, pag. 60-67 e id., “The Fascist Counter-Revolution”, Living Marxism, V, 2, final de 1940, pag. 29-37 (nota de Serge Bricianer).