Carta a Bertolt Brecht
Boston, 18 de abril de 1947
Caro Brecht,
Em breve dificilmente parecerá verdade que estamos vivendo tanto no mesmo continente quanto no mesmo país. Por isso quero te informar hoje sobre “A Situação Atual e Perspectivas”. Algo tipo no sentido de um dos jovens hegelianos amigos de Marx que escreveu um panfleto intitulado “A Boa Causa da Liberdade e a Minha Causa.”
Desde que nos vimos da última vez, as coisas não têm corrido bem para mim. Tenho trabalhado pouco, e o que eu fiz não deu em nada, ou na melhor das hipóteses – como o estudo que eu tinha começado antes sobre as Filipinas e outras lutas entre o novo colonialismo e as novas lutas pela independência no Extremo Oriente – levaram a uma nova “autorrealização”. Depois disso, parei esse trabalho e tenho me ocupado com vários projetos menores, entre eles o estudo de Toynbee, em quem, ao contrário de antes, agora nada encontro que me parece ser grande, exceto sua fraqueza. Precisamente por esse motivo que ele está se tornando popular, e, na edição de maio da Política, talvez discutirei criticamente a nova condensação de suas obras em um único volume (“seis em um.” Formalmente não está mal feito, e talvez seja recomendado para sua leitura).
Enquanto isso, tornou-se bastante claro para mim que estamos em uma era de regressão em escala mundial. O retrocesso em questões intelectuais e culturais pode ser traçado quase que diariamente. Também é inútil apontar para o continuo “progresso” da tecnologia. Pelo contrário, em um futuro previsível o declínio intelectual chegará a um ponto que fará com que o progresso da tecnologia se detenha – e mesmo agora os surrados fundamentos estão quase igualando o progresso da tecnologia com a da produção material estão desaparecendo mais e mais. Nada é alterado neste quadro geral pelas regiões do mundo onde o progresso material ainda continua ou apenas começa de fato, por um lado, a Rússia, e por outro, China e (com vários questionamentos) Índia. É como no Império Romano, por volta do segundo ou terceiro século em diante, onde até mesmo na província mais remota uma certa resistência foi travada contra a perda de cultura, e além de suas fronteiras a construção de um novo mundo havia começado entre os “bárbaros”. Mas quão difícil já foi para Engels (mesmo em um tempo bem mais tardio!) “provar” que a sociedade feudal representava uma “época progressiva da formação da sociedade econômica” em face da sociedade antiga, isto é, um maior desenvolvimento passar do trabalho escravo para a servidão. (Hoje sabemos que a escravidão existiu em todas as formas históricas de sociedade, e que desempenhou um papel muito diferente em cada uma. Na sociedade chinesa, por exemplo, cumpriu uma função muito pequena em relação ao estatuto da força de trabalho (corvéias) exigido pelo Estado, por um lado, e as diversas formas livres e semi-livres de trabalho na fragmentada economia rural, por outro. De muitas outras maneiras hoje o velho modelo marxiano, na realidade hegeliano, caiu em incoerência. Mesmo antes, no entanto, ele não articulou a relação entre as sociedades medieval e antiga.).
Neste retrocesso geral, finalmente decidi também dar um passo atrás e começar mais uma vez com Marx. Sua atividade no período de 1848 a 1867 (do Manifesto Comunista até O Capital / ou da Revolução de 1848 até a Primeira Internacional) agora me parece de fato, ser a forma clássica para o desenvolvimento da teoria marxista (e da ação) bem como para toda a era burguesa, que começou no século XVI – em parte ainda mais cedo na Europa – e atingiu seu ponto culminante neste momento.
Tendo tomado este passo, estou transbordando de novos pensamentos e planos para o trabalho. Parece haver uma maneira de apresentar o marxismo que eu ainda não havia experimentado propriamente. Se, por exemplo, eu queria escrever algo para o centésimo aniversário do Manifesto Comunista (MC), escrito em dezembro de 1847 e publicado em fevereiro de 1848, deixaria de ser importante apresentar a sua gênese exatamente, como tem sido feito por muitos bons estudiosos em outros dias memoráveis, e como eu mesmo, por exemplo, fiz bastante extensivamente para a teoria do “Capital” no meu último livro.
O importante agora é apresentar o século do Manifesto Comunista – ou talvez: O primeiro século do marxismo. Partindo da forma clássica: os vários desafios que, posteriormente, esta teoria acabada conheceu e como reagiu a eles. Aqui pertencem também os novos problemas que aparecem dentro do trabalho teórico de Marx: (1) Os detalhes dos “clássicos” burgueses da economia e suas extensões “positivas”, particularmente por parte dos teóricos ingleses, com destaque para Richard Jones, que quase coincide com Marx. Eles estão, no entanto, tratados sob o título “Antítese para os economistas sobre a base da teoria de Ricardo”, no terceiro volume da chamada “Teorias da mais-valia”, editada por Kautsky. (2) Do mesmo modo, os problemas da dialética (hegeliana e pós-hegeliana), recorrentes no trabalho sobre a teoria econômica e previamente declarado “superado” por Marx, mas não resolvidos concretamente em tudo até aquele ponto. (3) Mais tarde, especialmente os problemas da economia agrícola: América, Rússia e sociedade asiática. (4) Talvez menos importante para Marx do que para Engels: pré-história. (5) Muito mais tarde, e, infelizmente, atestada apenas na principal das formulações de Engels, os problemas do capitalismo monopolista e do chamado Capitalismo de Estado, cujo esclarecimento e solução naquele momento foi possível em grande parte, em minha opinião, baseado na teoria marxiana do “fetichismo da mercadoria”.
Além: II. histórico, III. desafios práticos, em maior extensão que os teóricos que levaram (I.), não apenas a mais um desenvolvimento, mas também a um tipo de desintegração da teoria de Marx. Aqui se incluem: As experiências da Primeira Internacional – na Inglaterra: A dissociação do trabalho dos sindicatos de toda necessária conexão, direta ou indireta, com o movimento revolucionário; – no sul da França, Suíça, Itália, Espanha: anarquismo; – análogo e, em parte, sobreposto, a inadequação da teoria marxista clássica para os países não-industrializados, que não foi meramente simbolizada negativamente, mas deixada clara como mais um desenvolvimento futuro positivo na luta contra Bakunin; Países eslavos da Europa, Ásia; – inadequação análoga para a América.
A revolta da Comuna, a Guerra Civil Estadunidense, a crise potencialmente revolucionária dos anos 1860 na Rússia, e também o renovado refluxo de todos esses impulsos e a reação contra eles: Terceira República na França; Política externa democrática de Marx; guerras nacionais; fundação do Reich alemão. O surgimento de partidos social-democratas nacionais na França e na Alemanha, e, temporalmente um pouco mais cedo, a reação extremamente reformista de Marx perante a legislação fabril inglesa; ditadura proletária ou democracia; “definhamento do Estado”; papel do “partido”; luta pela recepção da teoria revolucionária por movimentos não-revolucionários, organizações e “elites”; distintos desenvolvimentos na Alemanha, França e Rússia; final dessa época no começo dos anos 1880.
A nova época, a partir de 1890, talvez seja melhor não ser tratada neste livro. Ou deve?
Além disso, gostaria de dizer que agora algumas coisas mudaram na minha própria posição em relação à Rússia e assim, indiretamente, também relativamente ao Partido Comunista. Apesar das terríveis brutalidades nas zonas ocupadas e, mais ainda, na própria Rússia, em geral as perspectivas para as regiões econômicas e políticas na esfera de influência russa parecem melhores, ou pelo menos não tão desesperadoras, do que nas áreas sob domínio ocidental. Mesmo os “Estados Unidos da Europa” seriam, sob esta liderança, apenas na forma representada drasticamente por Franco/Espanha, por um lado, e o atual governo grego, por outro.
Afinal de contas, tenho visto claramente por meio de meus cuidadosos estudos dos movimentos do Extremo Oriente que a Rússia é o melhor e, ao mesmo tempo, o único aliado desses países, mesmo se ela de fato nada faz para eles e subordina seus movimentos independentes, sem concessões equivalentes, em suas próprias formas, que servem bastante a diferentes propósitos. A hegemonia mundial dos Yankees não seria somente a pior coisa que eu poderia imaginar para este mundo, mas, para além disso, simplesmente uma utopia reacionária. “Imperialismo” tem de ser aprendido, e por um longo tempo, pelos estadunidenses, em contraste com os britânicos, apenas andaria por aí com esta tarefa, e o resto do mundo teria que sofrer não apenas com o imperialismo estadunidense, mas também com o desenvolvimento deficiente deste imperialismo.
Dito de outra forma, o anterior imperialismo estadunidense na região do Caribe, nas Américas Central e do Sul, e provavelmente também em suas formas iminentes no Japão, não servirá aos interesses do capitalismo dos EUA como um todo, mas sim apenas para um grupo relativamente pequeno de exploradores coloniais pretorianos. Em todos estes aspectos, o imperialismo russo é melhor para o mundo hoje do que o imperialismo ianque, e praticamente não há uma terceira possibilidade. As formas em que as “minorias nacionais” não-dominantes, secundárias e periféricas dentro do império russo são igualmente sujeitas a uma especial repressão e exploração (quase colonial) estão, obviamente, ainda muito pouco desenvolvidas, e mostram mais uma questão de fato do que uma discriminação sistemática.
As medidas coercivas aplicadas contra toda a cidadania (por exemplo, deportações em massa, campos de trabalho forçado e outras medidas físicas e sociais contra segmentos suficientemente confiáveis da população) são, naturalmente, mais eficazes, ou seja, mais destrutivas, quando aplicadas contra regiões externamente segregadas, menos densamente povoadas, além de profissional e socialmente menos diferenciadas, onde, por exemplo, estados inteiros pode ser anulados como tal e suas populações removidas. O elemento repressivo e explorador na regra de áreas limítrofes (Balcãs, Checoslováquia, etc., Polónia, zona ocupada da Alemanha) é mais fácil de mostrar, mas até agora tem constituído apenas um fator subordinado, e não necessariamente o fator dominante no caráter destas formas de governo.
Estas reflexões que acabo de inserir aqui têm apenas um pouco a ver com o meu retorno ao estudo de Marx. Elas servem mais como suplemento para a primeira parte da carta, onde eu lidei com a situação do mundo como um todo, e na comparação histórica com o declínio do Império Romano não tomou expressamente em conta o fato de a Rússia no mundo de hoje estar em uma posição muito diferente da dos “bárbaros” fora dos limites imperiais romanos naquela época. Mas é verdade para ambas as vezes que a construção do novo mundo foi começada grosseiramente, e não pode mesmo ser dito como definitivamente hoje, para o futuro, como podemos atualmente dizer para a época passada, que este novo mundo, não importa como ele pode ser em outros aspectos, realmente vai se desenvolver como um mundo “novo” em contraste com o antigo, e que não serão levados de volta ao antigo (como o Império Romano do Oriente em relação ao Império Romano do Ocidente).
Finalmente mais dois pontos pessoais: Por favor, escreva e diga-me quanto tempo você pretende ficar no oeste este ano. Gostaria talvez de ir a Los Angeles para um curto período de tempo em agosto, em parte para visitá-lo, em parte para visitar os colegas do Instituto, que têm desenvolvido uma orientação cada vez mais “ocidental” (em primeiro lugar geograficamente). E o quão eu gostaria de ver o resto da família Brecht (se eu tirar Steff, que tenho aqui, e você, caso você estiver fora por então), se eu ainda for te encontrar lá tem alguma importância para minha decisão. Hanna e eu queremos voar para o México no início de setembro. Eu poderia, no entanto, chegar antes a Los Angeles.
O segundo ponto me leva de volta ao Manifesto Comunista. Parece-me que seria bom se você pudesse ter concluído o seu poema didático até outubro ou novembro deste ano, para que pudesse ser publicado a tempo para o centésimo aniversário do Manifesto Comunista[1]. Gostaria de colaborar de uma forma ou de outra. Uma vez que, provavelmente, seria mais correto não imprimir o texto do Manifesto junto com ele, talvez uma pequena introdução seria que você poderia fazer (riscado. Além de algo ilegível escrito à mão) isoladamente ou em conjunto comigo. E em segundo lugar, gostaria muito de escrever uma apresentação condensada em alemão dos pensamentos que acabamos de discutir; mas ampliá-la a todas as partes e – adequado para a ocasião – com uma dose menor de crítica explícita, que poderia ser publicada como segunda parte do novo livro. [nota marginal ilegível escrita à mão.] Para aparecer nesta boa companhia seria tão importante para mim que eu escreveria anonimamente ou sob um pseudônimo se necessário. Ao mesmo tempo, estou escrevendo o trabalho discutido acima, mais detalhado e, provavelmente, em Inglês, e, se possível, de modo a estar pronto para impressão no final deste ano. Somente agora, no entanto, é difícil para mim ir além da fase de bons pensamentos e todas as outras formas de puro “trabalho cerebral” para a escrita real. [riscado: Além disso, não é possível] para recolher a integralidade eu anteriormente considerei necessário, e só posso me adaptar com dificuldade às futuras consequências do atual desenvolvimento regressivo do mundo. Mas, mesmo em Moscou, onde formalmente tudo é montado, eu temo que em primeiro lugar não estaria disponível a todos, e, em segundo lugar, não mais para mim da mesma forma como foi em um período anterior. A declaração recente de Stalin que “mesmo os clássicos podem errar” incluindo expressamente “os clássicos socialistas”, bem como, se abre naturalmente tudo, mas a perspectiva de uma maior tolerância para com a crítica histórica, que, afinal, não começou para as santas escrituras da Bíblia até o século XIX, e então apenas para a Europa, mas não começou até hoje para a América. Com muitas cordiais saudações de uma casa para outra.
Seu velho K. K.
P.S. Nem lerei meu estenograma completamente, mas vou enviá-lo imediatamente para Hanna, com uma solicitação de que envie a você e a mim uma cópia para cada.
P.P.S. Como pode ter-lhe ocorrido por si mesmo durante a leitura, em breve precisarei novamente de minha cópia do “Catecismo” de Engels de outubro de 1847 (“Princípios do Comunismo”). Felizmente, no entanto, posso encaminhá-lo para o fato de que este trabalho está impresso, com todas as correções e exclusões mais ou menos importantes do manuscrito original, nas Obras Completas de Marx e Engels 16, p. 501-22. Ambas as omissões às respostas das questões 22 e 23 também não são encontradas lá. De acordo com a afirmação do editor na p. 682, elas “não existem”.
Traduzido do alemão por Mark Ritter.
[1] A versificação do “Manifesto Comunista” de Brecht pode ser encontrada em Gesammelte Werke (Frankfurt: Suhrkamp, IO: 1967), 911ff. Os comentários de Korsch sobre este projeto e as melhorias sugeridas foram publicados Alternative 41 (Berlin: 1965).
O presente texto foi traduzido por José Carlos Mendonça. A tradução encontra-se disponível no livro Karl Korsch: Crítico Marxista do Marxismo. Florianópolis: Em Debate, 2016.