Gramsci: entre o Idealismo e o Marxismo – Onorato Damen

O texto que se segue é o primeiro tópico do ensaio “Gramsci: entre o Idealismo e o Marxismo”, de Onorato Damen. Luiz de Oliveira realizou a tradução, a partir da versão disponível em: http://www.istitutoonoratodamen.it/joomla34/index.php/onorato-damen-scritti/raccoltascritti/56-gramsci-tra-marxismo?fbclid=IwAR2Jxis9jBNECaqHFcBVK4Df7PaklxyYI1lF8NQwKiSg33R32-SDjAEiENA.
Em breve, estaremos disponibilizando a tradução de todo o ensaio.

Premissa

O destino de Gramsci, merecido ou não, certamente não deve ser invejado por todos aqueles que, junto com ele, viveram a época da ascensão revolucionária no clima da fogosa[1] Revolução de Outubro. A sua história pessoal tornou-se, nas mãos de um aparelho partidário sem escrúpulos, um instrumento de infecção ideológica e política para as novas gerações de combatentes que pretendiam tornar própria a causa do proletariado e aprender a teoria revolucionária.

Digamos, já em consideração que sua história humana, é algo que deve ser lembrado no contexto de uma situação excepcionalmente grave e dolorosa para o proletariado, mas sobretudo para os militantes do partido comunista que estavam na primeira fila da luta contra o capitalismo fascista para dar uma solução revolucionária à crise que tinha atropelado nas estruturas econômicas e políticas do primeiro pós-guerra, e uma coisa, porém, foi a exploração sistemática e interessada do sacrifício de Gramsci para encobrir uma política de capitulação e traição.

O Gramsci posto em circulação pelos senhores da via delle Botteghe Oscure[2] é feito sob medida, proporcionalmente à sua estatura de politiqueiros desenvoltos que precisam de um nome e de um sacrifício para torná-lo motivo de propaganda e venda de crânios dispostos a lavar, seja o que for. Tal necessidade, que deveria suscitar repugnância, cansa biógrafos e exegetas, historiógrafos e hagiógrafos, escritores e até poetas que em uníssono têm preenchido e preenchem o mercado do livro nos últimos vinte anos, em benefício de um partido que os mobiliza, com a reconstrução de um Gramsci de maneira episódica e com mais perfis ideológicos agravantes.

Quem conheceu Gramsci de perto e viveu com ele a época de sua maior maturidade política, aprofundando então esse conhecimento com o estudo preciso e objetivo de seus escritos posteriores, só pode concluir seu julgamento de uma maneira, a saber: sem considerar a obra de Gramsci orientada no marxismo e feita com a mente de um marxista, com as ferramentas que oferece seu método de interpretação e com os objetivos  que lhe são próprios

Se nele prevalecia o interesse pelos problemas contingentes e a urgência por soluções imediatas e concretas, gostava, no entanto, de idealizar tudo isto com fervorosa criatividade como se quisesse equilibrar assim a carga idealizadora com a incapacidade física para uma séria e constante conduta realizadora.

Entre o materialismo dialético e a filosofia gerada pelo mito, Gramsci era aparentemente o primeiro, mas na verdade estava ligado pela educação, pelo gosto e pela tendência à segunda. O que quero dizer, talvez isso, signifique que a especulação feita e continua a se fazer, pelo oportunismo, sobre a personalidade de Gramsci encontra sua razão de ser na incompletude, na insuficiência de sua elaboração teórica e no empirismo de suas indicações políticas. Sua justificativa? Pode-se dizer que essa macabra vivissecção de mesa anatômica de intelectualismo de “esquerda” sobre Gramsci encontrou em seu pensamento e em sua obra, um vasto conjunto de pressupostos e perspectivas irreconciliáveis ​​com o marxismo.

Alguns esclarecimentos, mesmo que apressados, se tornam necessários. Perante a Primeira Guerra Mundial, Gramsci não só está indeciso no caminho a seguir e não vê a real natureza da guerra, mas também não consegue ouvir e julgar o próprio fenômeno do imperialismo do ponto de vista de classe e da estratégia revolucionária nos mesmos anos, durante esses anos em que Lênin e Luxemburgo deram uma contribuição de importância fundamental para a elaboração da teoria revolucionária sobre o problema da guerra.

Ainda sobre o problema da guerra, em seu primeiro artigo no Grido del Popolo[3] (outubro de 1914) Gramsci escreveu:

[…] Os revolucionários que concebem a história como a criação do seu próprio espírito, constituída por uma espécie ininterrupta de ruptura operada sobre as demais forças ativas e passivas da sociedade, e preparam o máximo de condições favoráveis ​​para a fissura definitiva (a revolução), não devem contentar-se com a fórmula provisória “neutralidade absoluta”, mas devem transformá-la noutra “neutralidade ativa e operacional”.

É desta posição ativista de “neutralidade ativa e operacional” que levará Mussolini à teoria da guerra revolucionária, um prelúdio lógico ao fascismo, mas não levará Gramsci à teoria ou à prática do derrotismo revolucionário.

Afinal, não é nenhum mistério que Gramsci foi incapaz de conceber o marxismo senão em uma chave idealista, por isso, ele permaneceu ancorado no historicismo de Croce (a história como criação do espírito) e em seu conceito de liberdade. Ao examinar a Revolução de Outubro (L’Avanti! 25 de julho de 1918)[4], Gramsci escreveu com efeito que: “o desenvolvimento histórico é governado pelo ritmo da liberdade” que “é a força imanente da história que faz explodir todo esquema preestabelecido”.

A mesma inclinação idealista levou-o a ver nos conselhos a possibilidade objetiva de antecipar as formas e das instituições da sociedade socialista no próprio tronco do capitalismo, enquanto permanecia cego e surdo para a necessidade histórica da formação do partido revolucionário. O último Gramsci, como o conhecemos desde o Congresso de Livorno ao de Lyon[5], do crime de Matteotti[6] às leis excepcionais, no papel de líder partidário, é muito menos original e menos consequente.


[1] [N.T.] Para se ter uma maior ideia, seguem dois ensaios de Gramsci sobre a Revolução Russa. https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1917/04/29.htm https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1917/04/24.htm

[2] [N.T.] A Via das Lojas Escuras é uma rua de Roma, situada no bairro de Santo Ângelo, que deve seu nome aos numerosos estabelecimentos comerciais e artesanais, sem janelas e, portanto, escuros, que durante a Idade Média se instalaram entre as ruínas do Teatro de Balbo.

[3] [N.T.] Aqui o autor está falando sobre o ensaio Neutralidade Ativa e Operante que foi lançada no jornal Grito do Povo. Neste ensaio, Gramsci defende a posição de intervenção assumida por Mussolini, então diretor da revista socialista Avanti!, em contraposição à visão de neutralidade absoluta defendida pelo companheiro Angelo Tasca.

[4] [N.T.] https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1918/07/25.htm

[5] [N.T.] Sobre o congresso de Lyon, há um ensaio chamado A Situação Italiana e as tarefas do PCI: Teses de Lyon https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1926/01/26.htm

[6] [N.T.] “As eleições de 6 de abril, mostrando a que ponto a estabilidade do regime não era mais que aparente, encorajou as massas, provocando nelas certo movimento, marcou o início da onda democrática que culminou no dia que se seguiu imediatamente ao assassinato de Matteoti[5], conformando a situação atual.” Nesse ponto, Gramsci percebe não as condições críticas do fascismo, mas uma ruptura democrática. https://lavrapalavra.com/2020/07/03/a-crise-italiana-1924/