Só depois de compreendermos que o sistema escolar funciona como um ritual básico de criação de mitos nas sociedades industriais poderemos explicar a profunda necessidade que se tem desse sistema, a complexidade do mito que o rodeia e os laços inexplicáveis que o prendem à imagem que forma de si mesmo o homem contemporâneo. Um discurso de formatura pronunciado na Universidade de Porto Rico, em Rio Piedras, ofereceu-me a oportunidade de demonstrar este relacionamento.
Os dias atuais são de crise para a instituição da escola, de uma crise que possivelmente está assinalando o fim da “era da escolarização” no mundo ocidental. Refiro-me à “era da escolarização”, no mesmo sentido com que nos habituamos a nos referir à “era feudal” ou à “era cristã”. A “era da escolarização” teve início há cerca de duzentos anos. Foi, aos poucos, medrando a ideia de que a escolarização representava um recurso indispensável para que o indivíduo se tornasse um membro útil da sociedade. A esta geração cabe a tarefa de enterrar este mito.
Vossa própria situação é paradoxal. Ao término de vossos estudos, e em consequência dos mesmos, estais capacitados a compreender a educação que vossos filhos merecem e hão de exigir uma revolução no sistema escolar de que sois fruto.
O rito da colação de grau que estamos hoje solenemente celebrando confirma as prerrogativas conferidas pela sociedade porto-riquenha aos filhos e filhas de seus cidadãos mais privilegiados, através de um oneroso sistema de escolas públicas estipendiadas. Fazeis parte dos 10% mais privilegiados de vossa geração, do minúsculo grupo que chega a concluir os estudos universitários. As verbas públicas investidas em cada um de vós são quinze vezes superiores às consagradas ao membro médio dos 10% pertencentes às camadas mais pobres da população e que abandonam a escola antes de completar o quinto ano primário.
O diploma que hoje recebeis atesta a legitimidade de vossa qualificação. Não pode ser obtido pelos autodidatas, nem por aqueles que adquirem competência por meios não reconhecidos oficialmente em Porto Rico. Os programas da Universidade de Porto Rico são devidamente credenciados pela Associação das Escolas Superiores e Secundárias dos Estados Centro-americanos.
O grau que vos é hoje conferido pela Universidade implica que, durante os últimos dezesseis anos, ou talvez mais, os mais velhos vos compeliram a vos sujeitardes, voluntária ou involuntariamente, à disciplina deste complexo rito escolar. Com efeito: vossa presença foi obrigatória, cinco dias por semana, nove meses por ano, no recinto sagrado da escola, e este comparecimento prosseguiu ano após ano, geralmente sem interrupção. Os funcionários do governo e das empresas industriais, assim como as associações profissionais, têm boas razões para acreditar que não ireis agora subverter a ordem a que tão fielmente vos submetestes ao longo de vossos “ritos de iniciação”.
Boa parte de vossa juventude transcorreu sob a tutela da escola. Espera-se que trabalheis agora a fim de garantir para as gerações futuras os privilégios que vos foram concedidos.
A sociedade de Porto Rico é a única em todo o hemisfério ocidental que consagra à educação 30% de seu orçamento governamental. Seu nome consta na lista de seis lugares do mundo que aplicam de 6 a 7% da renda nacional à educação. As escolas de Porto Rico custam mais caro e empregam maior número de funcionários que qualquer outro setor público. Nenhuma outra atividade social de Porto Rico envolve uma parcela tão grande da população.
Um número muito grande de pessoas está acompanhando esta cerimônia pela televisão. Seu caráter solene confirma, por um lado, o sentimento de inferioridade educacional dessas pessoas, mas, por outro lado, alimenta suas esperanças – quase todas fadadas ao desapontamento – de virem também um dia a conquistar um diploma universitário.
Porto Rico foi escolarizado. Não digo instruído, e sim escolarizado. Os porto-riquenhos já não podem imaginar a vida sem a relacionarem com a escola. Na verdade, seu desejo de se instruírem cedeu lugar a uma compulsão pela escolarização. Porto Rico adotou uma nova religião. De acordo com a sua doutrina, a educação é um produto da escola, um produto que pode ser definido através de números. Alguns desses números indicam quantos anos um estudante passou sob a tutela dos professores; outros representam a proporção de respostas corretas que deram durante um exame. Recebido um diploma, o produto educacional adquire um valor comercial. O comparecimento a uma escola constitui, assim, uma garantia suficiente de inclusão na sociedade de consumidores da tecnocracia – exatamente como no passado o comparecimento às igrejas era uma garantia de participação na comunidade dos santos. Do governador ao “jibaro” (camponês), Porto Rico em peso aceita hoje em dia a ideologia de seus professores, tal como aceitava em tempos idos a teologia de seus sacerdotes. A escola está agora tão identificada com a instrução quanto a Igreja esteve outrora com a religião.
As instituições credenciadoras atuais trazem-nos à memória o patrocínio que a realeza concedia outrora à Igreja. O auxílio federal à educação constitui um paralelo moderno das antigas doações régias à Igreja. O poder do diploma cresceu tão rapidamente em Porto Rico que os pobres atribuem a responsabilidade por sua miséria exatamente à falta daquilo que vos garante, a vós, hoje diplomados, uma participação nos privilégios e poderes da sociedade.
Vários inquéritos já demonstraram que o número de diplomados do ensino secundários desejosos de seguirem cursos universitários é duas vezes maior em Porto Rico que nos Estados Unidos; enquanto isto, a probabilidade que se oferece a um estudante porto-riquenho de conquistar seu diploma superior é muito menor que a do estudante norte-americano. Esta discrepância cada vez mais acentuada entre as aspirações e as possibilidades só pode redundar em frustrações cada vez mais profundas para os habitantes da Ilha.
Quanto mais tarde uma criança porto-riquenha abandona a escola, mais doloroso lhe parecerá o seu fracasso. Contrariando a opinião popular, a crescente ênfase atribuída à escolaridade tem, na verdade, exacerbado os conflitos de classes em Porto Rico, aumentando também o sentimento de interioridade que os porto-riquenhos experimentam com relação aos Estados Unidos.
Sobre a vossa geração pesa a obrigação de desenvolver, em benefício de Porto Rico, um processo educacional totalmente diferente do atual, e desligado do exemplo de outras sociedades. É vosso dever investigar se Porto Rico deseja realmente transformar-se num produto passivo da profissão docente. É vosso dever decidir se ireis ou não sujeitar vossos filhos a uma escola que busca respeitabilidade na aprovação norte-americana, sua justificação na qualificação da mão-de-obra, e sua função na autorização dada às crianças da classe média para se manterem no mesmo nível que os filhos dos Jones, que vivem no Condado de Westchester, Nova Iorque.
A verdadeira vaca sagrada em Porto Rico é a escola. Tanto os partidários da Comunidade, como os do estado e os da independência, todos a consideram como um assinto indiscutível. Na verdade, nenhuma dessas correntes políticas poderá libertar um Porto Rico que continue a depositar sua fé primordial na escolarização. De modo que, se realmente desejar a independência deste país, esta geração terá de inventar outras opções educacionais que provoquem o fim da “era da escolarização”. Será uma tarefa difícil. A escola deu origem a um formidável folclore. Assistimos hoje a um desfile de professores em suas becas acadêmicas, lembrando as antigas procissões de clérigos e de anjinhos do dia do Corpo de Deus. A Igreja, santa, católica e apostólica, encontrou uma rival na escola, credenciada, obrigatória, intocável e universal. A Alma Mater substituiu a Mãe Igreja. O poder que tem a escola de salvar o morador da favela equivale ao poder que tem a Igreja de salvar do inferno o mouro muçulmano. (Em hebraico, “gehenna” tanto significava “inferno” como “bairro miserável”). A diferença entre a Igreja e a escola está sobretudo no fato de se haverem tornado muito mais rígidos e dispendiosos os ritos desta última que os da Igreja durante os dias mais negros da Inquisição espanhola.
A escola se transformou na igreja oficial dos tempos seculares. A escola moderna originou-se do impulso para a escolarização universal, iniciado há dois séculos, como uma tentativa empreendida com o objetivo de incorporar todos os indivíduos ao Estado industrial. Na metrópole industrial, a escola foi a instituição integradora. Nas colônias, ela inculcou nas classes dominantes os valores do poder imperial e confirmou nas massas o sentimento de inferioridade diante dessa elite escolarizada. Tanto a nação como a indústria da era pré-cibernética seriam inconcebíveis sem o batismo universal conferido pela escola. Nesta era, o indivíduo que não completa os seus estudos corresponde ao marrano relapso da Espanha, no século XI.
Espero que possamos sobreviver à era do Estado industrial. Em todo caso, não poderemos viver muito tempo se não encontrarmos algum sucedâneo para o anacronismo da soberania nacional, da autarquia industrial e do narcisismo cultural – que as escolas nos oferecem, de cambulhada. Somente dentro dos sagrados recintos da escola pode esta mixórdia de velharias ser oferecida aos jovens porto-riquenhos.
Espero que vossos netos possam viver numa Ilha onde a maioria dê tão pouca importância ao comparecimento às aulas, quanto a que hoje se dá ao comparecimento às Missas. Ainda está longe este dia, e espero que vos responsabilizeis pela tarefa de o fazer raiar, sem receio de serdes condenados como heréticos, subversivos ou ingratos. Que vos sirva de consolo a certeza de que todos aqueles que assumirem idêntica responsabilidade nos países socialistas serão igualmente condenados.
Nossa sociedade porto-riquenha se encontra dividida por uma série de controvérsias. Os recursos naturais estão ameaçados pela industrialização, o patrimônio cultural está sendo adulterado pela comercialização, a dignidade subvertida pela publicidade, a imaginação pela violência característica das mass-media (meios de comunicação para as massas). Cada um desses assuntos tem sido tópico de intermináveis debates públicos. Há quem proponha limitações para a indústria, para o ensino do inglês, para a venda da Coca-Cola, e há quem deseje incentivar tudo isto. Todos estão de acordo quanto à necessidade de criar muito mais escolas em Porto Rico.
Não quero dizer que a educação não constitua um tema de discussões em Porto Rico. Muito pelo contrário. Seria difícil encontrar uma sociedade cujos dirigentes políticos e industriais estejam tão interessados em educação. Todos eles desejam a ampliação do ensino, dirigido para o setor específico de cada um deles. Contudo, toda esta polêmica serve apenas para confirmar a opinião pública na ideologia escolar, que reduz a educação a uma combinação de salas de aula, de currículo, de fundos, exames e diplomas.
Espero que, ao findar este século, o que agora qualificamos de escola seja apenas uma relíquia histórica, que floresceu no tempo das ferrovias e do automóvel particular, tendo sido abandonada ao mesmo tempo que essas coisas todas. Estou certo de que em breve se há de tornar evidente que a escola está tão à margem da educação quanto o curandeiro o está da saúde pública.
Na minha opinião, já se está processando um divórcio entre a educação e a escola, acelerado por três forças: o Terceiro Mundo, os guetos e as universidades. Entre as nações do Terceiro Mundo, a discriminação feita pela escola prejudica à maioria e desqualifica o autodidata. Muitos habitantes dos guetos “negros” encaram a escola como um agente do “branco”. Os estudantes que protestam contra a universidade alegam que a escola os aborrece e se interpõe entre eles e a realidade. Isto tudo não passa de caricatura, sem dúvida alguma, mas a mitologia da escolarização dificulta a percepção das realidades subjacentes.
As críticas hoje formuladas pelos estudantes contra seus mestres são tão fundamentais quanto as outrora formuladas por seus avós contra o clero. O divórcio da educação e da escola encontraria um modelo na desmistificação da Igreja. Estamos agora lutando em nome da educação contra um ensino profissionalizado que constitui, involuntariamente, um interesse econômico, tal como em tempos idos os reformadores lutaram contra um clero que, por vezes também relutante, fazia parte da antiga elite detentora do poder. A participação num “sistema de produção”, seja ele qual for, sempre representou uma ameaça para a função profética da Igreja, tal como hoje representa para a função educacional da escola.
A contestação da escola tem razões mais profundas que os pretextos enunciados por seus mentores. Estes pretextos, embora de natureza frequentemente política, são expressos sob forma de exigência de várias reformas no sistema. Contudo, jamais teriam conquistado o apoio das massas se os estudantes não houvessem perdido a fé e o respeito pela instituição que os nutriu. As greves estudantis refletem uma intuição profunda, amplamente compartilhada pela geração mais jovem: a intuição de que a escolarização degradou a educação, de que a escola se tornou anti-educacional e antissocial, tal como noutras eras a Igreja se tornou anticristã, e Israel idólatra. Acredito ser possível formular esta intuição em termos explícitos e sucintos.
O protesto hoje formulado por alguns estudantes é análogo à dissidência de alguns líderes carismáticos sem os quais a Igreja jamais teria sido reformada: suas profecias os levaram ao martírio, os raciocínios teológicos à perseguição como heréticos, e sua santa atividade muitas vezes os conduziu até a fogueira. O profeta é sempre tachado de subversivo, o teólogo de irreverente, e o santo é tido como louco.
A vitalidade da Igreja sempre dependeu da sensibilidade de seus bispos aos apelos dos fiéis, que encaram a rigidez do ritual como um obstáculo à sua fé. Incapazes de aceitar o diálogo entre os clérigos dirigentes e seus dissidentes, as Igrejas se transformaram em peças de museus, e o mesmo poderia facilmente acontecer ao sistema escolar de hoje. Para a universidade, é mais fácil atribuir a dissidência a causas efêmeras do que à profunda alienação dos estudantes com relação à escola. Para os líderes estudantis, também é mais fácil agir utilizando “slogans” políticos do que lançar ataques fundamentais contra vacas sagradas. A universidade que aceita o repto lançado por seus alunos dissidentes e os ajuda a formular de maneira coerente e racional a ansiedade por eles experimentada por estarem rejeitando a escolarização, expõe-se ao risco de se ver ridicularizada por sua suposta credulidade. O líder estudantil, que procura desenvolver em seus companheiros a consciência de uma profunda aversão pela escola (e não pelo ensino em si mesmo), descobre que está criando um nível de ansiedade que poucos dentre os seus seguidores estão dispostos a enfrentar.
A universidade deve aprender a distinguir entre a crítica estéril da autoridade escolar e o apelo a um retorno da escola aos propósitos educacionais para que foi criada; entre a fúria devastadora e a exigência de formas de educação radicalmente novas – dificilmente concebíveis por espíritos formados dentro da tradição escolástica; por um lado, entre o cinismo que busca novos benefícios para os já privilegiados e, por outro lado, o sarcasmo socrático que põe em dúvida a eficácia pedagógica das formas consagradas de instrução nas quais a instituição investe seus maiores recursos. Em outras palavras, é preciso fazer uma distinção entre a arruaça alienada e a contestação profunda baseada na rejeição da escola como símbolo do status quo.
Em nenhum outro lugar da América Latina, os investimentos, a procura e a informação na área do ensino conheceram um desenvolvimento tão rápido quanto em Porto Rico. Não existe, por conseguinte, lugar algum onde os membros da vossa geração possam sair tão depressa em busca de um novo estilo de ensino público, quanto em Porto Rico. A vós compete a tarefa de nos obrigar a voltar atrás, reconhecendo que as gerações anteriores à vossa enveredavam por caminhos errados quando se esforçavam por alcançar a igualdade social através da escolarização universal compulsória.
Em Porto Rico, de cada dez estudantes, três abandonam a escola antes de terminar o sexto ano. Isto significa que somente metade dos filhos de famílias cujos rendimentos anuais são inferiores à média chegam a completar o curso primário. Assim, metade dos pais porto-riquenhos estará alimentando uma triste ilusão se julgar que seus filhos poderão ter mais do que uma probabilidade mínima de ingressar na universidade.
As verbas públicas destinadas à educação vão diretamente para as escolas, sem que os estudantes exerçam o menor controle sobre elas. Tem-se procurado justificar politicamente esta prática, alegando-se que ela oferece a todos possibilidades iguais de acesso à escola. Contudo, o elevado custo deste tipo de educação, ditado por educadores treinados em grande parte fora de Porto Rico, desmente publicamente o conceito de igualdade de acesso. As escolas públicas talvez beneficiem a todos os professores, mas beneficiam sobretudo ao pequeno número de estudantes que conseguem alcançar os escalões superiores do sistema. É justamente a nossa insistência em financiar diretamente a “escola gratuita” que provoca esta concentração de recursos escassos em benefícios que só atingem os filhos de uns poucos.
Estou convencido de que todo porto-riquenho tem o direito de receber uma cota equitativa do orçamento educacional. Isto representa algo muito diferente e muito mais concreto que uma simples promessa de um lugar na escola. Acredito, por exemplo, que uma criança de treze anos que só teve quatro anos de escola tem muito mais direito aos recursos educacionais restantes que os estudantes da mesma idade que tenham frequentado a escola durante oito anos. Quanto menor for o número de “vantagens” de que goza um cidadão, mais necessidade tem ele de ver garantidos os seus direitos.
Se Porto Rico resolvesse respeitar este direito, a escola gratuita teria de ser imediatamente posta de lado. Evidentemente, a cota anual que caberia a cada indivíduo em idade escolar seria insuficiente para custear um ano de escolarização pelos preços atuais. Está claro que a insuficiência seria ainda mais dramática se o orçamento total para o ensino em todos os níveis fosse dividido pela população de 6 a 25 anos, isto é, da faixa compreendida entre o jardim de infância e os estudos superiores, aos quais teoricamente todos os porto-riquenhos devem ter livre acesso.
Estes fatos abrem-nos três opções: deixar o sistema tal como está, sacrificando a justiça e nossa consciência; utilizar as verbas disponíveis apenas para a escolarização das crianças cujos pais recebem salários inferiores ao rendimento médio; ou ainda aplicar os recursos públicos disponíveis de forma a proporcionar a todos o grau de instrução que uma distribuição equitativa desses recursos pudesse proporcionar a cada um. Os mais abastados poderiam evidentemente pagar esta cota e continuar a oferecer a seus filhos o duvidoso privilégio de tomar parte no processo que estais hoje concluindo. Os pobres, com toda a certeza, usariam a sua cota para se educarem de maneira mais eficiente e menos onerosa.
As mesmas opções se aplicam, com ainda maior razão, a outras partes da América Latina, onde frequentemente verbas públicas não superiores a 20 dólares anuais seriam destinadas a cada criança se os 20% das receitas fiscais atualmente consagrados à educação fossem distribuídos equitativamente entre todas as crianças que deveriam estar nas escolas, de acordo com as leis atuais. Esta quantia jamais chegaria para custear um ano de escolarização convencional. Seria, no entanto, suficiente para proporcionar a muitas crianças e adultos um mês de ensino intensivo durante anos afio. Seria igualmente suficiente para financiar a distribuição de jogos educativos que ensinem a lidar com números, letras e símbolos lógicos. Assim como para patrocinar períodos sucessivos de aprendizado intensivo. Na região Nordeste do Brasil, Paulo Freire provou ser possível alfabetizar com um único investimento deste tipo, 25% de uma população analfabeta, capacitando-a para a leitura funcional. Mas segundo ele próprio deixou bem claro, isto só pode ser feito quando o programa de alfabetização focaliza as palavras-chaves que são politicamente controvertidas no seio de uma comunidade.
Minhas sugestões podem desagradar a muitos. Mas foram os positivistas e os liberais que nos transmitiram o princípio de utilizar as verbas públicas na administração de escolas dirigidas por educadores profissionais; exatamente como os dízimos outrora pagos à Igreja forma administrados pelos padres. A vós é que compete combater a escola pública gratuita, em nome da verdadeira igualdade de oportunidades educacionais. Admiro a coragem daqueles que se dispuserem a entrar nesta luta.
A juventude exige instituições de ensino capazes de lhe dar instrução. Não quer, nem precisa, de paternalismo, nem de certificados, nem de doutrinação. Evidentemente, será difícil obter instrução de uma escola que recusa educar a não ser que seus alunos se submetam ao mesmo tempo à sua tutela, a uma estéril competição e a uma doutrinação. É difícil, evidentemente, financiar um professor considerado simultaneamente como um guardião, um árbitro, um conselheiro e o diretor dos currículos. É antieconômico combinar estas funções numa única instituição. É precisamente a fusão destas quatro funções, frequentemente antitéticas, que eleva o custo da educação transmitida pela escola. É esta igualdade a causa de nossa crônica escassez de recursos educacionais. Cabe a vós a tarefa de criar instituições que ofereçam instrução a todos dentro dos limites econômicos dos recursos públicos.
Somente quando chegar a superar psicologicamente a escola, terá Porto Rico condições para financiar o ensino para todos, e somente então as formas de educação realmente eficazes e não-escolásticas poderão ser aprovadas. Enquanto isto, essas novas formas de educação terão de ser indicadas como meios provisórios de compensar a deficiência das escolas. Para criar novas formas de educação, teremos de apresentar alternativas para a escola, que possam oferecer melhores opções para os alunos, para os professores e para os contribuintes.
Nenhuma razão intrínseca impediria que essa instrução – que as escolas atuais se mostram incapazes de transmitir – fosse adquirida de maneira ainda mais satisfatória no ambiente familiar, no trabalho ou no ambiente das atividades da comunidade, em livrarias de um tipo diferente, e em outros centros que proporcionassem os meios necessários ao ensino. Mas ainda não podemos visualizar claramente as formas institucionais que o ensino irá assumir na sociedade futura, tal como os grandes reformadores não puderam antever concretamente os estilos institucionais que iriam resultar de suas reformas. O receio de que as novas instituições, por sua vez, também venham a ser imperfeitas não justifica nossa servil aceitação das atuais.
Este apelo para que imaginemos um Porto Rico sem escolas pode soar a muitos de vós como uma surpresa. E é precisamente para a surpresa que a verdadeira educação nos prepara. A finalidade da educação pública não deveria ser menos fundamental que a da Igreja, embora a desta última seja mais explícita. A finalidade básica da educação pública deveria ser criar uma situação em que a sociedade obrigasse cada indivíduo a avaliar-se a si mesmo e à sua pobreza. A educação implica o desenvolvimento de um sentido de vida independente e de um relacionamento que caminham pari passu com o acesso a memórias preservadas no seio da comunidade humana e com a utilização dessas mesmas memórias. A instituição educacional oferece-nos um centro de convergência para este processo. Isto pressupõe um lugar na sociedade, onde cada um de nós é despertado de surpresa; um ponto de encontro onde outros me surpreendam com sua liberdade, tornando-me consciente de minha própria liberdade. A própria universidade, se quiser se mostrar digna de suas tradições, deve constituir uma instituição cujos objetivos se identifiquem com o exercício da liberdade, e cuja autonomia se baseie na confiança pública no uso dessa liberdade.
Meus amigos, tendes pela frente a tarefa de surpreenderdes a vós mesmos, assim como a nós, com a educação que havereis de inventar para vossos filhos. Nossas esperanças de salvação dependem de sermos surpreendidos pelo Outro. Cuidemos de aprender a receber novas surpresas. Há muito que decidi esperar por surpresas até no ato final de minha vida – isto é, na própria morte.
O presente texto encontra-se disponível no livro: ILLICH, Ivan. Celebração da Consciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975.