Auschwitz: O Grande Álibi – Martin Axelrad

Novamente, a imprensa de esquerda mostra que o racismo e, essencialmente, o anti-semitismo constituem, num certo sentido, o Grande Álibi do antifascismo: é sua bandeira favorita e também seu último refúgio na discussão. Quem resiste à lembrança dos campos de extermínio e dos fornos crematórios? Quem é que não fica indignado com o assassinato de seis milhões de judeus? E como não se horrorizar com o sadismo dos nazistas? Contudo, estamos diante de uma das mais escandalosas mistificações do antifascismo e pretendemos denunciá-la.

Um recente manifesto do M.R.A.P. (Movimento contra o Racismo, o Anti-semitismo e pela Paz) responsabiliza o nazismo pela morte de cinqüenta milhões de seres humanos, dos quais seis milhões eram judeus. Esta posição, idêntica a do “fascismo provocador da guerra” dos que se dizem comunistas, é tipicamente burguesa. Recusando-se a ver no capitalismo a causa das crises e catástrofes que assolam periodicamente o mundo, os ideólogos burgueses e reformistas estão sempre tentando explicá-las com a maldadedesse ou daquele indivíduo. Aqui se constata a fundamental identidade entre as ideologias (se é que assim se pode chamá-las) fascista e antifascista: ambas proclamam que são os pensamentos, as idéias, as vontades dos grupos humanos que determinam os fenômenos sociais. Contra essas ideologias, que chamamos de burguesas porque são ideologias de defesa do capitalismo, contra todos esses “idealistas” passados, presentes e futuros, o marxismo demonstrou que são, ao contrário, as relações sociais que determinam os movimentos ideológicos.

Eis a base mesma do marxismo. E para que se entenda até que ponto nossos pretensos marxistas renegaram o marxismo, é suficiente ver que para eles tudo passa através das idéias: colonialismo, imperialismo e até mesmo capitalismo nada mais são do que estados mentais. Assim, todos os males de que sofre a humanidade são culpa de malvados fomentadores: da miséria, da opressão, da guerra etc.

Porém, o marxismo demonstrou que a miséria, a opressão, as guerras e destruições, longe de serem anomalias devidas à vontade maléfica de quem quer que seja, são parte do funcionamento “normal” do capitalismo. Em particular, isto se aplica às guerras da época imperialista. Este é um ponto que desenvolveremos mais amplamente, dada a sua importância para o nosso assunto: a destruição.

Mesmo quando admitem que as guerras imperialistas se devem a conflitos de interesses, os burgueses e reformistas permanecem incapazes de entender o capitalismo. É visível sua incompreensão do significado da destruição. Para eles, o fim da guerra é a Vitória, e as destruições de homens e recursos do adversário são apenas meios para alcançar esse fim. Alguns ingênuos acreditam numa guerra feita com soníferos. Nós demonstramos que a destruição é, no entanto, o fim principal da guerra. As rivalidades imperialistas, causa direta das guerras, nada mais são do que a conseqüência da superprodução sempre crescente.

A produção capitalista é, pois, forçada a “ajustar-se” à queda da taxa de lucro e a crise nasce da necessidade de aumentar incessantemente a produção sem a possibilidade de vender lucrativamente os produtos. A guerra é a solução capitalista da crise; a destruição maciça das instalações, dos meios de produção e dos produtos permite a retomada da produção, e a destruição maciça dos homens elimina a “superpopulação” periódica que surge emparelhada com a superprodução. É preciso ser um iluminado pequeno-burguês para crer que os conflitos imperialistas poderiam ser resolvidos com um jogo de cartas ou em torno de uma mesa redonda, e que as enormes destruições e a morte de dezenas de milhões de pessoas se deve apenas à teimosia de fulano, à maldade de beltrano e à ganância de sicrano…

Já em 1844, Marx criticava os economistas burgueses por considerarem que a ganância era inata, em vez de explicá-la, e mostrava porque os gananciosos eram forçados à ganância. É, também, desde 1844, que o marxismo tem mostrado quais são as causas da “superpopulação”: «A procura de homens regula necessariamente a produção de homens, como a de qualquer outra mercadoria» (K. Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos). «Se a oferta supera largamente a procura, uma parte dos trabalhadores cai na mendicância ou morre de fome», escreve Marx. Engels acrescenta: «Não há superpopulação onde não há excesso de forças produtivas, em geral» e «… (vimos) que a propriedade privada fez do homem uma mercadoria, cuja produção e destruição dependem unicamente da procura; que, assim, a concorrência assassinou e diariamente assassina milhões de homens…» (F. Engels, «Esboço de Crítica da Economia Política»). A última guerra imperialista, longe de desmentir o marxismo e de justificar a sua “revisão”, confirmou a exatidão de nossas análises.

Era preciso lembrar estes pontos antes de nos ocuparmos do extermínio dos judeus. Isto não aconteceu num momento qualquer, mas em plena crise e guerra imperialistas. Portanto, é no interior dessa gigantesca empresa de destruição que é necessário explicá-lo. Assim, o problema se torna claro; não temos mais que explicar o “niilismo destruidor” dos nazistas, mas o fato de a destruição se concentrar em parte sobre os judeus. Sobre este ponto, também, nazistas e antifascistas concordam: é o racismo, o ódio pelos judeus, é uma “paixão”, livre e feroz, a causa da morte dos judeus. Mas nós, marxistas, sabemos que não há paixão social que seja livre, que nada é mais determinado do que esses grandes movimentos de ódio coletivo. Veremos que o estudo do anti-semitismo serve para ilustrar esta verdade.

É propositalmente que dizemos: anti-semitismo da época imperialista, porque se os idealistas de todo tipo, dos nazistas aos teóricos “judeus”, consideram que o ódio aos judeus é o mesmo em todos os tempos e em todos os lugares, nós sabemos que isso não é verdade. O anti-semitismo da época atual é totalmente diferente do anti-semitismo da época feudal. [1]

Não podemos desenvolver aqui a história dos judeus, que o marxismo já explicou inteiramente. Nós sabemos porque a sociedade feudal manteve os judeus como tais; sabemos que se as burguesias mais fortes, que conseguiram fazer logo sua revolução política (Inglaterra, E.U.A., França), assimilaram quase totalmente seus judeus, as burguesias fracas não puderam fazê-lo. Não vamos explicar aqui a sobrevivência dos “judeus”, mas o anti-semitismo da época imperialista. E não será difícil explicá-lo se, em vez de nos ocupar da natureza dos judeus ou dos anti-semitas, nós considerarmos seu lugar na sociedade.

Em decorrência de sua história, os judeus se encontram hoje na média e pequena burguesia. Ora, esta classe está condenada pelo avanço irresistível da concentração do capital. É isso que nos explica a origem do anti-semitismo, que, segundo Engels, «nada mais é do que uma reação de camadas sociais feudais, em vias de desaparecimento, contra a sociedade moderna que se compõe essencialmente de capitalista e assalariados. Serve apenas a objetivos reacionários sob um véu pretensamente socialista».

A Alemanha do período entre as duas guerras mundiais mostra essa situação num estado particularmente agudo. Sacudido pela guerra, o impulso revolucionário de 1918-1928, e sempre ameaçado pela luta do proletariado, o capitalismo alemão sofreu profundamente a crise mundial do pós-guerra. Enquanto as burguesias vitoriosas mais fortes (E.U.A., Inglaterra, França) foram relativamente pouco afetadas e superaram facilmente a crise de “readaptação da economia à paz”, o capitalismo alemão afunda num marasmo completo. E são talvez a pequena e a média burguesias que sofrem mais, como em todas as crises que conduzem à proletarização das camadas médias e ao aumento da concentração do capital pela eliminação de uma parte das pequenas e médias empresas. Mas aqui a situação era tal que os pequenos burgueses, arruinados, falidos, espoliados, liquidados, não podiam nem mesmo cair no proletariado, ele mesmo duramente golpeado (7 milhões de desempregados, no auge da crise): tombavam então na mendicância, condenados a morrer de fome quando suas reservas se esgotavam. Reagindo a essa ameaça terrível, a pequena burguesia “inventou” o anti-semitismo. Nem tanto, como dizem os metafísicos, para explicar suas desgraças, mas para tentar se preservar concentrando-se num de seus grupos. Diante da horrível pressão econômica, da ameaça de destruição difusa que tornavam incerta a existência de cada um de seus membros, a pequena burguesia reagiu sacrificando uma de suas partes, esperando assim salvar e garantir a existência das outras. O anti-semitismo não deriva de um “plano maquiavélico” nem de “idéias perversas”: ele resulta diretamente da coerção econômica. O ódio aos judeus, longe de ser a causa de sua destruição, é apenas a expressão desse desejo de delimitar e de concentrar sobre eles a destruição.

Às vezes, até os operários aderem ao racismo. Isso acontece quando, ameaçados pelo desemprego em massa , eles tentam concentrar a ameaça sobre certos grupos: italianos, poloneses, árabes, negros etc. Mas, no proletariado, esses tendências ocorrem somente nos piores momentos de desmoralização, e não duram. Tão logo entra em luta, o proletariado vê clara e concretamente onde está seu inimigo. O proletariado é uma classe homogênea que tem uma perspectiva e uma missão histórica.

A pequena burguesia, ao contrário, é uma classe historicamente condenada. E, ao mesmo tempo, condenada a não poder entender nada, a ser incapaz de lutar: só consegue se debater cegamente na engrenagem que a esmaga. O racismo não é uma aberração do espírito: é e será a reação pequeno-burguesa à pressão do grande capital. A escolha da “raça, ou seja, do grupo sobre o qual tenta concentrar a destruição, depende evidentemente das circunstâncias. Na Alemanha, os judeus preenchiam as “condições exigidas” e eram os únicos a preenchê-las: eram quase exclusivamente pequenos burgueses e, na pequena burguesia, o único grupo suficientemente identificável. Sobre eles, a pequena burguesia podia canalizar a catástrofe.

Era, pois, necessário que a identificação fosse fácil, que fosse possível definir exatamente quem seria destruído e quem seria poupado. Assim, excluíram os que tinham avós batizados, o que, em flagrante contradição com a teoria da raça e do sangue, era uma suficiente demonstração de incoerência. Mas não se tratava de lógica… O democrata que se contenta em demonstrar o absurdo e a ignomínia do racismo passa, como sempre, ao largo da questão.

Encurralada pelo capital, a pequena burguesia alemã lançou os judeus aos lobos para aliviar seu fardo e se salvar. Não de modo consciente, é claro, mas era esse o significado de seu ódio dos judeus e de sua satisfação pelo fechamento e o saque das lojas dos judeus. De sua parte, o grande capital estava felicíssimo com o que acontecia: ele podia liquidar uma parte da pequena burguesia com o consentimento da pequena burguesia. Melhor ainda, a pequena burguesia se encarregava dessa liquidação. Mas esta maneira personalizada de “apresentar” o capital é só uma imagem ruim: assim como a pequena burguesia, o capitalismo não sabe o que faz. Ele sofre a coerção econômica e segue passivamente as linhas de menor resistência.

Ainda não falamos do proletariado alemão. Isso porque ele não interveio diretamente nesses fatos. Tinha sido derrotado e, bem entendido, a liquidação dos judeus só poderia ter sido realizada depois de sua derrota. Mas as forças sociais que conduziram essa liquidação já existiam antes disso. A derrota do proletariado apenas permitiu que a liquidação dos judeus se “realizasse”, ao deixar o capitalismo com as mãos livres.

É então que começa a liquidação econômica dos judeus: expropriação sob todas as formas, exclusão das profissões liberais e da administração pública etc. Pouco a pouco, os judeus são privados de todos os meios de existência: vivem com as reservas que puderam salvar. Durante todo esse período que vai até o início da guerra, a política nazista para os judeus se resume a duas palavras: Juden raus! Judeus fora! De todas as maneiras, é favorecida a emigração dos judeus. Mas se os nazistas queriam se desembaraçar dos judeus e não sabiam como fazê-lo, e se os judeus por sua vez queriam sair da Alemanha, nenhum país queria acolher os judeus. O que não é surpreendente, porque nenhum podia deixá-los entrar: não havia um só país capaz de absorver e manter alguns milhões de pequenos burgueses arruinados. Só um número reduzido de judeus pode partir. A maior parte permaneceu, apesar dos judeus e dos nazistas. De um modo ou de outro, com a vida em suspenso.

A guerra imperialista agravou a situação, quantitativa e qualitativamente. Quantitativamente, porque o capitalismo alemão, obrigado a reduzir a pequena burguesia para concentrar o capital europeu, estende a liquidação dos judeus à toda Europa central. O anti-semitismo havia sido posto à prova: só podia avançar. A isso correspondia, por outro lado, o anti-semitismo específico da Europa central, ainda que este fosse mais complexo (uma horrível mistura de anti-semitismo feudal e pequeno-burguês, cuja análise não faremos aqui).

Ao mesmo tempo, a situação se agravou qualitativamente. As condições de vida se tornaram mais difíceis, por causa da guerra; as reservas dos judeus se esgotavam; eles estavam condenados a morrer de fome em pouco tempo. Mas não foram todos mortos de uma só vez. Para começar, foram retirados de circulação, reagrupados, concentrados. E forçados a trabalhar, subalimentados e superexplorados até a morte. Matar o homem de tanto trabalhar é um velho método do capital. Marx escreveu, em 1844: “Para ser conduzida com sucesso, a luta industrial exige que numerosos exércitos sejam concentrados num ponto e dizimados copiosamente.” Mas era necessário que essa massa pagasse por sua vida, enquanto vivesse, e por sua morte depois. E que produzisse mais-valia enquanto fosse capaz de fazê-lo. Porque o capitalismo não pode executar os homens que condenou se não lucrar com isso.

Mas o homem é resistente. Reduzidos a esqueletos, os judeus demoravam para morrer. Era preciso massacrar os que não podiam trabalhar e, depois, os desnecessários porque o desenvolvimento da guerra tornava sua força de trabalho inutilizável.

Em condições “normais” e quando se trata de um pequeno número, o capitalismo pode deixar morrer os homens expulsos do processo de produção. Mas era impossível fazer isso em plena guerra e com milhões de homens: uma tal “desordem” teria paralisado tudo. Era necessário que o capitalismo organizasse a morte dos judeus.

O capitalismo alemão não se decidia pelo assassinato puro e simples. Não por humanitarismo, é claro, mas porque não era lucrativo . Foi assim que nasceu a missão de Joel Brand, da qual falaremos porque ela esclarece quanto à responsabilidade do capitalismo mundial [2]. Joel Brand era um dos dirigentes de uma organização semiclandestina dos judeus húngaros. Essa organização procurava salvar os judeus por todos os meios: esconderijos, emigração clandestina, e também corrupção dos SS. Os SS do Juden-Kommando toleravam essas organizações, que tentavam mais ou menos utilizar como “auxiliares” nas operações de rastreamento e classificação.

Em abril de 1944, Joel Brand foi convocado ao Juden-Kommando de Budapeste para encontrar Eichmann, que era chefe da seção judia dos SS. Eichmann, com a concordância de Himmler, encarrega-o da seguinte missão: negociar, com os anglo-americanos, a venda de um milhão de judeus. Os SS queriam em troca 10.000 caminhões, mas aceitavam discutir tanto a natureza quanto a quantidade das mercadorias. E propunham a entrega imediata de 100.000 judeus no ato do acordo, para mostrar sua boa fé. Era um negócio sério.

Infelizmente, se havia oferta, não havia procura. Não somente os judeus, mas os SS se deixaram convencer pela propaganda humanitária dos anglo-americanos. Estes não queriam um milhão de judeus. Nem por 10.000 caminhões, nem por 5.000, nem gratuitamente.

Não podemos detalhar as desventuras de Joel Brand. Ele viajou para a Turquia e foi parar nas prisões inglesas do oriente médio. Os países aliados se recusaram a “levar o negócio a sério”, e tudo fizeram para desacreditá-lo. Finalmente, Joel Brand reencontrou, no Cairo, Lord Moyne, ministro britânico para o oriente médio. Suplicou-lhe, então, que obtivesse ao menos um acordo escrito que, mesmo não respeitado, teria permitido a salvação das 100.000 pessoas.

« – E qual será o número total?

– Eichmann falou de um milhão.

– Como pode imaginar uma coisa dessas, senhhor Brand? Que farei com esse milhão de judeus? Onde os meterei? Quem os acolherá?»

– Se, na terra, não há mais lugar para nós, nada mais nos resta senão nos deixar exterminar» [3] disse Brand desesperado.

Os SS foram mais lentos para compreender: eles acreditavam nos ideais do Ocidente. Depois do fracasso da missão de Joel Brand e durante o extermínio, tentaram ainda vender os judeus ao Joint (organização dos judeus nos E.U.A.), propondo uma entrega de 1.700 judeus na Suíça. Mas, excetuando os SS, ninguém quis fechar este negócio.

Joel Brand havia entendido, ou quase. Entendera as conseqüências da situação, mas não suas causas. Não era a terra que os excluía, mas a sociedade capitalista. E não por serem judeus, mas por terem sido rejeitados do processo de produção, por que eram inúteis para a produção de mais-valia.

Lord Moyne foi assassinado por dois terroristas judeus, e Joel Brand aprendeu tarde demais que ele havia se compadecido do destino dos judeus: “Sua política era ditada pela administração desumana de Londres”. Mas Brand não tinha compreendido que essa administração desumana é somente a administração do capital e que o capital é desumano. O capital não sabia o que fazer com essa gente. E nem mesmo saberia o que fazer com os raros sobreviventes, essas “pessoas deslocadas” que não sabia onde recolocar.

Os judeus sobreviventes conseguiram finalmente encontrar um lugar. Pela força, e aproveitando a conjuntura internacional, o estado de Israel foi constituído. Mas isso não seria possível sem “deslocar” outras populações: centenas de milhares de árabes arrastam desde então sua existência inútil (para o capital!) nos campos de refugiados. [4]

Vimos como o capitalismo condenou à morte milhões de seres humanos, expelindo-os da produção. Vimos como os massacrou, extraindo-lhes toda a mais-valia possível. O que nos resta ver como é como são explorados, mesmo depois de mortos.

São, antes de tudo, os imperialistas do campo aliado que se servem dessa matança para justificar sua guerra e justificar, depois de sua vitória, o tratamento infame infligido ao povo alemão. Como se precipitam sobre os campos de concentração e seus cadáveres, divulgando por toda a parte horríveis fotografias e clamando: vejam que canalhas são esses alemães! E como tínhamos razão em combatê-los! E como temos razão, agora, quando os humilhamos! Quando se pensa nos crimes inumeráveis do imperialismo; quando se pensa, por exemplo, que no momento mesmo (1945) em que nossos Thorez cantavam sua vitória sobre o fascismo, 45000 argelinos caíam sob os golpes da repressão; quando se pensa que é o capitalismo mundial o responsável pelos massacres,, o ignóbil cinismo dessa hipócrita satisfação nos dá náusea.

Ao mesmo tempo, todos os nossos bravos democratas antifascistas se lançam sobre os cadáveres dos judeus. E os agitam sob o nariz do proletariado. Para fazer-lhe sentir a infâmia do capitalismo? Não, ao contrário: para fazê-lo apreciar por contraste a verdadeira democracia, o verdadeiro progresso, o bem-estar de que goza na sociedade capitalista! Os horrores da morte capitalista devem fazer o proletariado esquecer os horrores da vida capitalista e o fato de que as duas, vida e morte capitalistas, estão indissoluvelmente ligadas. As experiências dos médicos SS devem fazer esquecer que o capitalismo experimenta, em grande escala: produtos cancerígenos, efeitos do alcoolismo sobre a hereditariedade, radioatividade para ser usada em bombas democráticas. Se mostram um abajur feito com pele humana é para fazer esquecer que o capitalismo transformou o homem vivo em abajur. As montanhas de cabelos, os dentes de ouro, os cadáveres transformados em mercadoria devem fazer esquecer que o capitalismo fez do homem vivo uma mercadoria. É o trabalho, a vida mesma do homem, que o capitalismo transforma em mercadoria.

Eis a origem de todos os males. Utilizar os cadáveres das vítimas do capital para tentar esconder esta verdade, servir-se desses cadáveres para proteger o capital é o modo mais infame de explorá-los até o fim.

Notas:

1) O comércio, sobretudo o comércio de dinheiro, era estranho ao esquema fundamental da sociedade feudal, e atribuído às pessoas que não pertenciam a essa sociedade, geralmente os judeus. O ostracismo em que eram mantidos traduzia a tentativa de manter essas atividades, por necessárias que fossem, à margem da sociedade. Mas o comércio e a usura eram as formas primárias do capital: o ódio aos judeus exprimia de forma mistificada e inadequada a resistência que as classes da sociedade feudal – do camponês ao fidalgo provinciano, passando pelo clérigo e o artesão das guildas – opunham ao irresistível desenvolvimento do mercantilismo, que dissolvia sua ordem social. Mesmo depois do estabelecimento do capitalismo e da grande indústria, a tradição “popular” pequeno-burguesa continuou freqüentemente a identificar o judeu com o Capital.

2) Ver: L’Histoire de Joel Brand, par Alex Weissberg, Editions du Seuil.

3) Idem, Ibidem.

4) O tema do artigo não era, obviamente, o estado de Israel e a questão palestina. Mas podemos, aqui, fazer algumas considerações.
O movimento comunista sempre condenou o sionismo como uma falsa solução, posto que burguesa, do “problema judeu”, um problema que, na realidade não é um problema nacional, mas social; e mostrou que um estado judeu na Palestina só podia ser um instrumento da dominação imperialista no oriente médio. É o que afirma, nos anos 20, a Internacional Comunista, e os fatos posteriores nada mais fizeram do que confirmar tal posição. O triunfo da contra-revolução, o esmagamento internacional do proletariado e sua ausência da cena histórica como força independente, durante decênios, permitiram ao imperialismo utilizar para seus próprios fins suas vítimas, os sobreviventes dos extermínios.
O estado que devia eliminar o anti-semitismo, a discriminação e a opressão racial, não somente não resolveu a “questão judia” em escala mundial, mas está fundado sobre a discriminação e a opressão racial e religiosa. Não é sequer um estado nacional, no sentido moderno, isto é, burguês: fundado sobre a igualdade jurídica de todos os cidadãos, mas um estado colonial. A tal ponto que pode retomar, contra os árabes, as mesmas leis discriminatórias que o colonialismo britânico impôs aos judeus. O que o imperialismo obteve foi que milhões de suas vítimas identifiquem a defesa de sua sobrevivência com a defesa desse estado colonial e racista, ponta de lança e gendarme regional do imperialismo made in USA.
É verdade, também, que a constituição do estado de Israel contribuiu para revolucionar os países árabes: mas ao contrário, como sempre faz a penetração capitalista. As massas palestinas, expropriadas e dispersas por toda a região, desempenham um papel de fermento revolucionário. A coalizão contra-revolucionária que inclui os estados árabes mais reacionários ao estado judeu, capitalista e imperialista, englobando os estados progressistas e o imperialismo mundial, submetem essas massas a uma opressão e uma repressão ferozes. Através de um longo e doloroso caminho, essas massas proletárias têm visto fracassar todas as soluções nacionais e burguesas, preparando-se para se lançar contra todo o sistema de estados locais e todo equilíbrio mantido pelo imperialismo. Essas massas palestinas são a força motriz da luta de classes no oriente médio e, como tal, devem se juntar à luta do proletariado mundial.

FONTE: «Programme Communiste», n. 11, abril-junho de 1960

Publicado originalmente em: https://www.oocities.org/autonomiabvr/galib.html.