As primeiras feministas que se dirigiram às trabalhadoras – Nuevo Curso

Na edição anterior desta série acompanhamos o nascimento do feminismo como um movimento social desde suas origens até a fundação da “União Social e Política das Mulheres” (WSPU), de Emmeline Pankhurst, em 1903. A WSPU foi a primeira organização feminista a abordar diretamente as trabalhadoras.

Seu objetivo sempre foi a obtenção imediata do sufrágio “nos mesmos termos” que os homens. Ou seja, o sufrágio feminino restrito às mulheres que tinham um certo limite de propriedade, o que excluía as mulheres da classe trabalhadora. As frustrações de Emmeline Pankhurst com o Partido Trabalhista Independente (ILP), as percepções de sua filha Christabel sobre as limitações do Partido Trabalhista a respeito dos direitos das mulheres, foram determinadas por seus interesses de classe. Emmeline Pankhurst estava frustrada com a União Nacional das Sociedades do Sufrágio Feminino (NUWSS) não porque se opusesse ao seu caráter pequeno-burguês, do qual compartilhava, mas porque considerava que sua estratégia não era suficientemente agressiva.

Em março de 1903, mesmo ano em que a WSPU foi formada, Christabel Pankhurst — a filha mais velha de Emmeline e Richard — escreveu ao editor do “Líder Trabalhista”. Christabel apresentava como solução à privação do direito ao voto das mulheres da classe trabalhadora: o sufrágio censitário. Os Pankhursts queriam mobilizar as mulheres trabalhadoras para obter os direitos ao voto das mulheres pequeno-burguesas, através da implantação de uma retórica que unisse as mulheres da classe trabalhadora com as mulheres burguesas.

O que o movimento de representação dos trabalhadores fará por essa grande parte da classe trabalhadora que, devido à sua falta de poder político, é incapaz de garantir uma representação direta… milhares de mulheres são privadas de seus direitos pelo simples fato de serem mulheres… Dirão, talvez, que os interesses das mulheres estarão seguros nas mãos do Partido Trabalhista dos homens. Nunca na história do mundo os interesses daqueles que não têm poder para defenderem-se foram atendidos adequadamente por outros…. Espero que as mulheres da Inglaterra não tenham que dizer que nem os liberais, nem os conservadores, nem os trabalhistas são seus amigos.

O nascimento do feminismo como interclassismo consciente

O importante desta retórica é que com ela podemos falar pela primeira vez sobre feminismo em seu sentido político. “As mulheres” são definidas como um sujeito histórico e político, como uma categoria acima das classes. Não haveria proletariado, mas “trabalhadores e trabalhadoras”, e estas últimas não poderiam ser representadas nem compartilhar uma luta genuína com alguém que não fosse de sua condição sexual. Por isso, quando se constitui a WSPU em outubro de 1903 na casa de Emmeline Pankhurst, a associação à WSPU é reservada exclusivamente para mulheres.

Emmeline deixou o ILP, mas estava em conflito com a organização pela forma como o sufrágio feminino era abordado. Em “Minha própria história”, sua autobiografia, ela conta:

Na primavera de 1904, assisti à conferência anual do Partido Trabalhista Independente, determinada a persuadir os membros a preparar um projeto de lei de sufrágio a ser apresentado ao Parlamento na próxima sessão. Embora eu pertencesse ao Conselho Diretor Nacional e supostamente tivesse alguma influência sobre o partido, eu sabia que uma minoria forte, que argumentava que o Partido Trabalhista deveria direcionar todos os seus esforços para alcançar o sufrágio universal de adultos, tanto para homens como para mulheres, se oporia amargamente ao meu plano. Em teoria, certamente, um partido trabalhista não pode contentar-se com nada menos do que o sufrágio universal dos adultos, mas está claro que uma reforma tão ampla não poderia ser realizada naquele momento, a menos que o Governo a torne uma de suas medidas. Além disso, se a grande maioria dos membros da Câmara dos Comuns se comprometeu a apoiar um projeto de lei que concede às mulheres os mesmos direitos de voto que os homens, é de se duvidar que uma maioria possa ser confiável para apoiar um projeto de lei que concede às mulheres os mesmos direitos de voto que aos homens, é duvidoso que uma maioria possa ser confiável para apoiar um projeto de lei que conceda sufrágio a adultos, até mesmo aos homens. Esse projeto de lei, mesmo que seja uma medida do governo, provavelmente será difícil de aprovar.

Enfim, por muito que tivesse somado ao trabalho na época, acreditava que era melhor lutar pelos interesses das mulheres proprietárias do que pelos interesses da classe trabalhadora. Embora a WSPU declarasse que o sufrágio restrito era uma etapa necessária para obter o direito ao voto das mulheres trabalhadoras, o tipo de direito ao sufrágio que defendia contradizia essa afirmação. E, obviamente, sua concepção da organização e a mensagem com a qual tentava atrair novos militantes, expressava sem rodeios sua incompatibilidade com qualquer forma de consciência de classe. Desde o primeiro número de sua revista, deixava claro os limites de sua chamada às mulheres trabalhadoras:

Às mulheres de todo o mundo lhes soam a trombeta, venham lutar conosco em nossa batalha pela liberdade… venham e junte-se a nós, qualquer que seja sua idade, sua classe, sua inclinação política… se têm algum sentimento de classe, devem deixá-lo para trás quando entrar neste movimento. Porque as mulheres que estão em nossas fileiras não conhecem distinções de classe (“Votos para as Mulheres”, edição 1, outubro de 1907).

Ativismo das pessoas de bem

Segundo Emmeline Pankhurst, “os fatos, não as palavras, viriam a ser nosso lema permanente”. O primeiro ato público a favor do sufrágio da WSPU ocorreu em outubro de 1905. Duas membras da WSPU, Christabel Pankhurst e Annie Kenney, foram presas por interromper uma reunião dos liberais no “Salão do Livre Comércio” na véspera das eleições gerais que levaram novamente os liberais ao governo.  Durante a rodada de perguntas, Christabel levantou uma bandeira que dizia “Votos para as mulheres” enquanto Annie Kenney perguntava aos liberais: “Se o Partido Liberal voltar ao poder tomariam medidas para dar às mulheres o direito de votar?” Pankhurst e Kenney acabaram sendo expulsas da sala e foram presas quando enfrentaram a polícia do lado de fora enquanto tentavam iniciar uma reunião paralela.  Em vez de pagar a multa correspondente, Annie Kenney decidiu cumprir três dias de prisão.

Na verdade, tratou-se tão somente de um pequeno alvoroço em uma reunião pública de algumas dúzias de senhores liberais. E aqui estamos numa época em que as reuniões de trabalhadores aglutinavam dezenas de milhares de pessoas e eram muitas vezes dissolvidos em sangue e fogo deixando um inevitável rastro de mortos e feridos sem despertar o menor escândalo. Mas uma coisa eram os trabalhadores e a ordem pública, e outra “as pessoas boas”. As Pankhurst e a WSPU, com suas presunções moralizantes, seus vestidos que custavam um ano de salário e seus impecáveis véus e chapéus representavam teatralmente um rompimento inconcebível até recentemente nas famílias burguesas tradicionalmente autoritárias. Eram ao mesmo tempo escandalosas e inofensivas à ordem estabelecida, como um segredo de família que se torna público. Capas de revista e comentários da sociedade.

Em 1905, Emmeline Pankhurst e sua filha deixaram o Partido Trabalhista Independente. No final de 1906 a WSPU já havia adquirido 47 sedes. Em 1907 realizaram 5.000 atos em toda a Grã-Bretanha e começaram a publicar seu próprio jornal: “Votos para as mulheres”. Com sua própria base social, realizaram ações cada vez mais espetaculares. Sua estratégia sempre se baseou na encenação de seu confronto com políticos. No início suas ações consistiam principalmente em interromper os políticos em eventos públicos e enviar porta-vozes à Câmara dos Comuns para desafiar ou reprovar o primeiro-ministro. Em fevereiro de 1907, em protesto por conta de que o Rei não mencionara o sufrágio feminino no primeiro “Parlamento de Mulheres” em Caxton Hall, levaram uma resolução do protesto ao Parlamento. Apenas 400 mulheres marcharam até a Câmara dos Comuns, mas foram recebidas por um enorme cordão policial. No entanto, sua aparência — ou seja, sua imagem de classe — sua recusa em ceder à polícia que, por outro lado, em nenhum momento atingiu “às senhoras” e a decisão das sufragistas de cumprir pequenas sentenças em vez de pagar multas, geraram um forte efeito propagandístico.

Violência e milenarismo

O sucesso das marchas e as prisões plantariam as sementes da estratégia da WSPU de seus últimos anos: fazer das militantes da WSPU mártires da “causa heroica” do sufrágio. O salto da representação simbólica, teatralizada, as automutilações, as tentativas de suicídio, o vandalismo e um crescimento da violência, foi motivado pela impaciência e a desmoralização causada pela postura antisufragista do primeiro-ministro liberal eleito em 1907.

As ações “militantes” da WSPU estavam definitivamente ligadas ao milenarismo cristão herdado da tradição puritana da revolução cromweliana e ao liberalismo britânico. Greves de fome, a destruição de propriedades, as campanhas incendiárias, a tentativa de suicídio de Emily Davison na prisão para se tornar mártir, e a retórica e ideologia da WSPU, era parte de uma verdadeira estratégia e moral de martírio da WSPU. No inédito “O Preço da Liberdade”, de Emily Wilding Davison, o fetiche do martírio e a moral milenar é totalmente expresso:

Posso livrar-me desta angústia? Grita a militante em agonia, mas imediatamente, como se estivesse arrependida por ter estado tão perto de  perder a Pérola Impagável, com as palavras de todos os lutadores em busca do progresso, ela especula: “No entanto, pagarei até este preço”; e ao se retorcer se pergunta que outra reivindicação pode ser extraída dela. O glorioso e insondável Espírito da Liberdade tem apenas mais um desgosto em seu poder: a rendição da própria Vida. É a consumação suprema do sacrifício, nada pode ser alto ou maior. Dar a vida pelos amigos, isso é glorioso, altruísta, inspirador! Mas recriar a tragédia do Calvário para as gerações que ainda não nasceram, esse é o último sacrifício consumado do Militante! Não se curvará a este Nirvana. Ela será fiel até o fim.

A obsessão por Joana D’Arc, a ênfase no martírio e na pureza, o incentivo à castidade tanto para homens quanto para mulheres —, simbolizadas no uso constante das cores violeta e branco — não podem ser separadas da estratégia política geral e da visão do mundo do feminismo. A batalha milenar entre o bem e o mal, entre a lei de Deus e a “lei dos homens”, entre a “cidade de Deus” e a “cidade terrena” faziam parte essencial da imaginação da WSPU.

Christabel Pankhurst articulou claramente esta visão em uma reunião,

Finalmente nos colocamos em marcha e provamos a alegria da batalha. Nosso sangue ferve.  Vamos parar? Nunca, nunca, nunca! Não trairemos as mulheres na prisão……  Nossos métodos são moralmente corretos… em uma luta por nossos direitos como seres humanos pode-se fazer coisas que não estariam certas noutra causa… porque é divino quando os fracos usam sua pequena força contra as enormes forças da tirania.

Traduzido por Jaciara Veiga e revisado por Gabriel Teles a partir da versão disponível em: https://nuevocurso.org/las-primeras-feministas-que-se-dirigieron-a-las-trabajadoras/