O presente texto foi retirado do seguinte site: https://www.oocities.org/autonomiabvr/esqrev.html.
Há 58 anos, o escritor francês Georges Sorel afirmava que “os historiadores e os atores no drama histórico são incapazes de ver o que mais tarde será entendido como a essência do que aconteceu”[1]. Esta verdade genérica é também particularmente válida para a esquerda (revolucionária). Semelhantes àqueles que, na Idade Média, marcharam com o “Bundschuh”[2] para implantar o Reino de Deus na Terra, quando, na verdade, estavam lutando contra a sociedade feudal, muitos esquerdistas revolucionários dos séculos XIX e XX tinham ideias falsas sobre o real significado de seus pensamentos e atos. Estavam convencidos de que dirigiam uma revolução proletária, mas a revolução pela qual se empenharam levou à transformação do capitalismo privado em capitalismo estatal.
Recentemente, afirmou-se que “com o colapso do socialismo real… a esquerda ficou profundamente abalada”[3]. Ninguém negará a realidade deste abalo. Mas deve-se acrescentar imediatamente que o que entrou em colapso não pode ser definido como socialismo real. E, por mais que este abalo cause preocupação, ele finalmente forçou a esquerda a abrir mão de suas ilusões.
No entanto, o fim das ilusões ainda não levou a uma reorganização. No máximo, pode-se ver apenas uma de suas precondições. Isto se deve ao fato de que a esquerda tradicional pode ser caracterizada não somente por suas ilusões sócio-políticas, mas também por suas formas de organização e suas pretensões. Talvez, por razões históricas específicas, esta esquerda entre na cena pública como um partido ou grupo político que se apresenta como “a vanguarda da classe operária” e considere que sua tarefa é estimular o que ela define como “consciência de classe” dos trabalhadores. Esta tarefa é considerada urgente porque a esquerda considera que os trabalhadores são “o agente da revolução que ela prevê”.
De fato, é justamente o contrário: a revolução proletária é o resultado da luta diária dos trabalhadores. Para a esquerda tradicional, o ponto de partida não é a luta de classes, mas a revolução. Seu princípio é a tese leninista “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”. Isto é, a prática revolucionária tal como ela a entende.
Quer a esquerda tradicional acredite ou não, ela se caracteriza pela crença errônea de que se substituirmos as ideias falsas pelas verdadeiras, a realidade existente irá desabar. Sem dúvida, o equívoco pode ser explicado pelo fato de que, embora a esquerda saiba que não é a interpretação que importa mas a transformação, ela considera esta transformação não como um ato do proletariado, mas como um ato da vanguarda. Ou seja, resultante da ação desta. Não obstante, como já sabia Marx: “Não se trata do que este ou aquele proletário ou mesmo o proletariado em seu conjunto se apresenta como objetivo. Trata-se do que o proletariado é na realidade e do que ele será historicamente compelido a fazer de acordo com seu ser”[4]. Contrariamente à Marx, a esquerda tradicional pensa que a classe operária precisa aprender que deve lutar para superar a sociedade capitalista e que a vanguarda está lhe ensinando isso! Deste modo, ela se torna um estrato intelectual acima da classe. E isto é verdade desde o início.
À primeira vista, a pretensão da esquerda tradicional parece ter uma certa base na realidade, mas só à primeira vista! Tão logo essa esquerda explica sua posição em relação à assim chamada “passividade dos trabalhadores quando deixados a si mesmos”, torna-se claro que a prática dos trabalhadores está longe de ser o que essa esquerda crê que deveria ser, não é o que deveria ser de acordo com essa esquerda. A realidade, assim, não está de acordo com o que a esquerda tradicional pensa. Em suma: essa esquerda vê a realidade de cabeça para baixo.
Não é verdade que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária. Não é verdade que certas opiniões e ideias, que uma certa quantidade de consciência é uma precondição absoluta para a luta. É justamente o contrário! Afirmou-se muitas vezes que a “teoria se torna uma força material assim que se apossa das massas”. Porém, uma teoria nunca é mais do que um balanço das experiências do passado e de suas consequências. Não é por causa de uma certa teoria que se têm novas experiências de luta, mas novas experiências que surgem da luta dão nascimento a uma nova teoria. Isto é um processo contínuo. Não é um processo na cabeça dos trabalhadores. Eles não sacam consequências teóricas, mas práticas. Eles não lutam para cumprir nenhum tipo de teoria, eles lutam por seus interesses. Sua prática não é o resultado de uma certa teoria, ao invés disso, sua prática é que tem consequências para a teoria. Quando as circunstâncias que levam à luta não existem, a voz da esquerda, que pensa a teoria como precondição da luta, permanece a voz de um pregador no deserto. O fato de este comportamento permanecer ainda hoje – e não desde há poucos anos – é mais claro do que nunca a essência da crise.
Que possibilidades tem a “esquerda revolucionária” de superar essa crise? A discussão de sua reorganização implica em dizer com clareza para os trabalhadores que a transformação do capitalismo privado em capitalismo de Estado não muda sua condição de classe. Porém, isto também não contribui para superar a crise. Não difere de quando os “esquerdistas” dizem que a libertação da classe trabalhadora não significa um ato político, mas social. E de quando eles dizem que uma mudança nas relações de produção – em outras palavras, a abolição do trabalho assalariado – não pode ser realizada por um partido ou vanguarda. Isto requer a luta autônoma, de modo que os trabalhadores criem suas próprias organizações, completamente diferentes das tradicionais. Nada disso tem a ver com abandonar a luta.
A derrocada do falsamente chamado “socialismo real” parece ser a causa de uma crise crescente, mas certamente não é bem assim. Ao contrário, tem a ver com o fato de que o velho movimento operário, cujos líderes proclamavam estar agindo em favor dos trabalhadores e tomavam decisões em nome deles, se tornou um anacronismo. Hoje, pode-se ver um abismo crescente entre os pretensos líderes e os trabalhadores, que são impedidos pelos tais líderes de agir por si mesmos e fazer seu próprio destino.
A autoproclamada “esquerda revolucionária” crê que sua reorganização significa que ela deve apresentar outros slogans e, com outros princípios e perspectivas, continuar agindo como vanguarda, tentando ensinar e conduzir os trabalhadores. Ela apenas continuará vendendo gato por lebre. Mas agindo assim, ela está apenas sendo coerente com a lei que rege sua própria forma de organização. A realidade mostra que os revolucionários têm mais a aprender dos trabalhadores do que a lhes ensinar. Ou seja, não tentando impor suas próprias ideias, mas compreendendo o que os trabalhadores estão fazendo. Mas se fizesse isto, a esquerda não seria mais uma vanguarda e isto iria interferir nas intenções de reorganização.
Cajo Brendel[5]
[1] Georges Sorel, “Reflexões sobre a Violência”.
[2] Bundschuh (União dos Sapatos). Seu símbolo, um sapato, era pintado na bandeira dos camponeses rebelados. Era, aliás, muito diferente dos belos sapatos dos senhores feudais, para que não houvesse dúvidas sobre quem empunhava aquela bandeira.
[3] A revista alemã “Spezial” julho/agosto de 1993, p. 24.
[4] Marx & Engels, “A Sagrada Família”.
[5] O autor se define como marxista. Ainda? Que significa este “ainda”? Se alguma teoria desmoronou, não foi o marxismo. O autor quer ressaltar que o que se entende aqui por “esquerda revolucionária” é a esquerda tradicional, que existe desde o início do movimento operário e que hoje experimenta uma crise devido ao surgimento de novas formas da luta de classes que não correspondem às velhas tradições. [nota do autor]