Publicado no jornal O Inimigo do Rei, 1980, e no jornal O São Paulo, 17 a 23/10/1980.
Na Alemanha, em 1933, Hitler sobe ao poder, estrutura o Estado totalitário, a ditadura do partido único, campos de concentração para negros, judeus, e dissidentes políticos, alemães ou não, e monta os fornos crematórios onde milhares serão queimados.
Essa a lembrança que me ocorreu após reler a Tribuna Metalúrgica, órgão do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, de dezembro de 1978, referindo-se ao clima existente na Volks sob o título de “Volkswagen reedita o holocausto”.
A reedição do holocausto na Volks se dá com existência de câmeras de TV e guardas com binóculos que vigiam 44 mil operários por toda a fábrica, dia e noite. Mais de trezentos policiais à paisana acompanham de perto os trabalhadores. Qualquer suspeita, falta ou atrito com chefes, os operários são escoltados até as salas de “Segurança”, onde os interrogatórios são mais duros do que numa delegacia de polícia. Ameaças de agressão do tipo “Você vai para o pau de arara” são frequentes. Outros trabalhadores ficam presos nas salas durante as horas de serviço até por uma semana, como num cárcere privado. Muitos são obrigados a confessar roubos que não fizeram. Até crianças, alunos da escolinha da fábrica, são ameaçadas pelos guardas. Suspeita-se que esse esquema de segurança fora montado por criminosos de guerra, nazistas. Um deles, pelo menos, trabalhou quatro anos na empresa até ser preso. Segundo Lula, a “segurança” da Volks é a mais policialesca de todas as empresas do setor.
As primeiras vítimas do holocausto da Volks não foram os judeus, mas operários brasileiros. Onze participantes do 3º Congresso de Trabalhadores Metalúrgicos foram demitidos por se revelarem lutadores conscientes pelos interesses da categoria metalúrgica. Foram demitidos um a um.
Os acidentes de trabalho não são comunicados com a devida precisão ao Inamps, resultando o operário ficar sem seguro, sem indenização e, em caso de morte, a família fica sem pensão. Foi o caso do eletricista Adilson, vítima de um forte choque na cabeça quando executava seu serviço. O choque elétrico afetou-o internamente, acabando internado num hospital. Desconhecendo os antecedentes, os médicos consideraram-no louco. Medicado sem diagnóstico certo, Adilson morreu. A família do acidentado viu-se desamparada sem a pensão do Inamps, porque este não reconheceu a morte como fruto do acidente de trabalho. E não reconheceu porque a empresa escondeu o fato.
O horário das refeições que, por lei, é de 1 hora, foi reduzido para 45 minutos; em troca, a Volks exigiu que os operários trabalhassem uma hora a mais.
Outra denúncia do jornal sindical: a malandragem da empresa com relação aos aumentos previstos no acordo intersindical, ao mesmo tempo que concedia o aumento a Volks aumentava o preço de alimentação, cantina e transporte.
Quem compra carro da empresa gozando de um minúsculo desconto fica “amarrado” seis meses, não pode vendê-lo antes, caso contrário é dispensado. Também não pode usar o ônibus da empresa. Ela alega que o ônibus está com lotação completa e que o operário deve aguardar uma vaga. Por se oporem a um método desumano de controle da produção – MTM movimento, tempo, minuto – cujo objetivo é reduzir o número de funcionários na linha de montagem sem prejuízo da produção, dispensando 20 numa linha e 5 noutra 25 trabalhadores foram dispensados.
Por duas vezes o pessoal foi atacado de desinteria devido a refeição estragada. Em geral, a comida é de péssima qualidade; quando não vem estragada, é mal temperada, com sabor desagradável.
A Volks fornece 6 mil marmitas por dia para outras empresas, o pessoal foi obrigado a fazer horas extras. Quem entrava em serviço às 15 horas, entra às 12:30 horas e sai às 23 horas.
A “Tribuna Metalúrgica” denunciava ainda a morte do vigilante Luis Ferreira de Oliveira, ocorrida a 13/11/1979, no pátio da fábrica, atropelado por um veículo que transportava, em excesso de velocidade, pessoal para a Ala 3. Daí levantar-se uma série de questões: 1) Qual a necessidade dos veículos da Segurança Industrial desenvolverem alta velocidade no pátio da fábrica? 2) Não seria mais lógico e justo que só as ambulâncias e carro de bombeiros ultrapassassem a velocidade de 30 quilômetros por hora? 3) Finalmente, quem será o responsável por mais essa morte?
Quanto à higiene e segurança no trabalho, deixam a desejar. Faltam exaustores em diversas alas da produção, notadamente nas de números 2, 3, 4, 5 (porões) e 6. Daí acumular-se grande quantidade de fumaça, perturbando a respiração e visão do pessoal. Nem o adicional de Insalubridade é pago para o pessoal que faz o teste de motores, que funciona numa seção sem ventilação mínima.
O ex-chefe de montagem da Volks, capitão Franz Paul Stangl, responsável pela morte de 700 mil pessoas no campo de concentração de Treblinka, trabalhava na indústria em 1967 como chefe encarregado da seção de montagem, trabalhou na Volks durante 4 anos até ser descoberto, preso e extraditado para Alemanha Ocidental, pela justiça brasileira.
Mauro Massami trabalhou cinco anos na Volks. Segundo ele, a “segurança” da empresa não é igual à de outras firmas. Colocaram na cabeça do guarda que ele é uma autoridade; resultado: atemoriza a todos e ninguém troca uma palavra com ele. Nas outras empresas, os guardas, inclusive, brincam com os trabalhadores. Até as secretárias se portam de modo policialesco. A segurança tem circuito interno de TV que cobre a empresa no todo e os arredores; há um fichário completo dos funcionários, duzentos guardas e pessoal que colhe depoimentos de quem chegar atrasado ou faltar ao serviço, vai explicar-se com a “segurança”.
Os investigadores andam à paisana e nas vésperas de greves seu número aumenta.
Segundo Maurício Soares, advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, na Volks os operários são mandados para “segurança” com a ameaça: “se você não confessar te entregamos à polícia”. Houve casos de diretores do sindicato seguidos pela “segurança” na fábrica. Coisa odiosa é o “chá de banco”. O operário entra de manhã e fica sentado, chega a hora de ir embora e ele não vai. Fica assim durante cinco, seis, sete dias, assinando ponto de entrada e saída. Isso mortifica o sujeito, daí vem a “segurança” e diz: “O seu caso está resolvido, pode voltar ao trabalho, ou tá despedido, volte amanhã e acerte as contas”.
É essa a empresa que é a pioneira no país na instituição de uma Comissão de Colaboração, onde o operário não tem poder em nenhuma decisão e se torna um “contínuo de luxo” fabril. Isso tudo e mais, a tentativa de esvaziar o sindicato da categoria através da comissão que se transformará, sem dúvida, num sindicato de empresa. Note-se que as empresas americanas tentaram isso em 1935 e a Suprema Corte Americana condenou-as por “prática trabalhista desleal” para com os sindicatos.
É que nos EUA, apesar dos pesares, o trabalhador é organizado, pois classe que não é organizada é classe “ferrada”.
Transcrito por Ana Bombassaro. O texto encontra-se presente no livro Autonomia Operária, editora UNESP, 2011, com o título “Volkswagen – Alemanha, 1933, Brasil, 1980”.