A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é uma Sociedade Capitalista – Raya Dunayevskaya

Publicado em: Internal Discussion Bulletin of the Workers Party. Março, 1941.

Introdução

Estamos orgulhosos de publicar uma descoberta verdadeiramente histórica – o primeiro ensaio escrito por Raya Dunayevskaya sobre a teoria do capitalismo de Estado. Este documento, que se encontrava perdido havia cerca de cinco décadas, não havia sido localizado na época em que publicamos The Marxist-Humanist Theory of State-Capitalism em janeiro de 1992. Dunayevskaya o considerou de tal importância que o listou como a primeira entrada para seus arquivos, da Coleção de Raya Dunayevskaya- Marxist-Humanism: A Half-Century of its World Development. Estamos felizes em anunciar que o documento foi encontrado recentemente. Aparece aqui na forma impressa pela primeira vez, e agora pode ser estudado junto com os outros documentos sobre a teoria do capitalismo de Estado publicados em The Marxist-Humanist Theory of State-Capitalism (Chicago: News and Letters. 1992).

O ensaio de Dunayevskaya, que levava o título “The Union of Soviet Socialist Republics is a Capitalist Society” foi escrito em fevereiro de 1941 sob o pseudônimo “Freddie James.” Foi publicado pelo Partido dos Trabalhadores em forma mimeografada em um boletim de discussão interna de março de 1941. O ensaio foi escrito antes de Dunayevskaya começar sua colaboração com C.L.R. James, que, desconhecendo-a nessa época, também havia chegado na constatação do capitalismo de Estado. Não muito tempo depois de escrever o ensaio, Dunayevskaya e James começaram uma colaboração teórico-política no que ficou conhecida como a “Tendência Johnson-Forest.” Para um relato do que levou à dissolução da Tendência Johnson-Forest e a subsequente fundação e desenvolvimento da filosofia do Humanismo Marxista por Dunayevskaya, veja The Philosophic Moment of Marxist-Humanism (Chicago, 1989) e A History of Worldwide Revolutionary Developments: Twenty-Five Years of Marxist-Humanism in the U.S. (Detroit, 1980) por Raya Dunayevskaya.

O que se segue é o texto completo do ensaio de 1941. Não foi editado exceto para corrigir erros tipográficos e gramaticais óbvios. Notas de rodapé com asteriscos são da autora; notas de rodapé numeradas foram adicionadas pelos editores.

The Resident Editorial Board News and Letters Committees News and Letters, October, 1992.

I. Regime político e social

E mesmo quando a sociedade segue o caminho certo para a descoberta das leis naturais de seu movimento – e este é o objetivo final deste trabalho, expor a lei econômica do movimento da sociedade moderna – ela não pode nem desobstruir por saltos ousados, nem remover por decretos legais, os obstáculos colocados pelas fases sucessivas do seu desenvolvimento normal. Mas pode encurtar e diminuir as dores de seu nascimento. – Karl Marx em Prefácio ao Capital, Vol. I[1].

Foi afirmação do camarada Leon Trotsky que a existência de propriedade estatizada na Rússia era suficiente para caracterizá-la como um Estado operário, independentemente do regime político no poder. A contrarrevolucionária burocracia stalinista, portanto, poderia e defendeu (embora mal) o domínio social do proletariado. Assim, resumir os elementos constituintes de um Estado operário está em grande desacordo com as opiniões de Marx e Lênin. Olhemos para o nascimento da República Soviética para uma verificação de seus pontos de vista. Ao estabelecer-se como classe dominante, o proletariado russo não só expropriou o capitalista e o latifundiário, mas também garantiu o poder aos pobres; o poder político (um estado controlado por eles através de seus próprios órgãos – os sindicatos, os Sovietes, o Partido Bolchevique) e o poder social, que Lênin definiu como a “participação prática na gestão” do Estado. Lênin enfatizou que era o objetivo do Estado soviético “atrair todos os membros da classe pobre para a participação prática na gestão.”[2]

No mesmo panfleto, “Sovietes trabalhando”, ele elaborou ainda mais esta visão: “A proximidade dos Sovietes com as massas trabalhadoras cria formas especiais de revogação e outros métodos de controle pelas massas.”[3]  Ele apelou para o desenvolvimento “com diligência específica” dessas formas especiais de revogação e diversos métodos de controle de massa. Por meio de “participação prática na gestão” do Estado, o governo político e social do proletariado é fundido e o poder garantido nas mãos do proletariado. As diversas formas de controle de massas paralisariam “todas as possibilidades de distorcer o domínio soviético”, removendo “a erva selvagem do burocratismo.” Essa foi sua interpretação prática da sua elaboração teórica do Estado em seu Estado e Revolução, a saber: 1) O controle pelos trabalhadores não pode ser realizado por um estado de burocratas, mas deve ser realizado por um Estado de trabalhadores armados. 2) Em um estado proletário, todos devem ser “burocratas” para que ninguém possa ser um burocrata. 3) O Estado deve ser constituído de tal maneira que comece a definhar e não possa deixar se definhar.

Em 1918, Lênin salientou o fato de que a expropriação dos capitalistas era um problema relativamente simples, quando contrastado com o mais complexo de “criar condições em que a burguesia não poderia existir nem voltar a existir.”[4] No desenvolvimento do Estado soviético, Lênin mais uma vez percebeu o significado prático do dito de Marx de que uma sociedade não poderia “nem desobstruir por saltos ousados, nem remover por promulgações legais, os obstáculos oferecidos pelas fases sucessivas de seu desenvolvimento normal.” Mas ele sabia que, enquanto o Estado soviético “garantisse poderes aos trabalhadores e aos pobres” não era necessariamente fatal a “implementação” do capitalismo de Estado.

Nem mesmo o mais devoto trabalhador-estatista iria alegar que os trabalhadores tinham qualquer poder no atual estado soviético. Ele apenas reiteraria que, enquanto houvesse propriedade estatizada, etc., etc. Mas eu nego que as conquistas sociais de outubro [1917] – a participação política e prática consciente e ativa das massas em libertarem-se do jugo do czarismo, do capitalismo e o latifúndio – devem ser estreitamente traduzidos em mera propriedade estatificada, isto é, a propriedade dos meios de produção por um Estado que de modo algum se assemelha ao conceito marxista de um Estado operário, isto é, “o proletariado organizado como a classe dominante.”[5]

II. Capitalismo de Estado ou Socialismo de Estado Burocrático?

O camarada [Max] Shachtman[6] questiona: “Se os trabalhadores não são mais a classe dominante e a União Soviética não é mais um Estado operário e se não há propriedade privada da classe capitalista dominando a Rússia, qual é a natureza de classe do Estado, e o que exatamente é a burocracia que o domina?” E ele responde: socialismo de Estado burocrático, porque, entre outras coisas, o novo termo elucida a “distinção do capitalismo” característica da natureza de classe do Estado soviético.

Mas como o modo de produção difere sob o governo socialista de Estado burocrático daquele sob o domínio capitalista? Qual é a lei econômica de movimento desta presumivelmente nova sociedade exploradora? Estes pontos cruciais o camarada Shachtman não discute. Deixe-me examinar a suposta “distinção do capitalismo” característica da União Soviética e ver se não é uma distinção de uma determinada fase do capitalismo, em vez de um capitalismo como um todo.

O fator determinante na análise da natureza de classe de uma sociedade não é se os meios de produção são a propriedade privada da classe capitalista ou se são estatais, mas se os meios de produção são capital, isto é, se eles são monopolizados e alienados dos produtores diretos. O governo soviético ocupa em relação a todo o sistema econômico a posição que um capitalista ocupa em relação a uma única empresa. A designação de Shachtman da natureza de classe da União Soviética como “socialismo de estado burocrático” é uma expressão irracional por trás da qual existe a relação econômica real do Estado-capitalista-explorador com o explorado sem propriedade.

Shachtman corretamente enfatiza que: “A conquista do poder estatal pela burocracia significou a destruição das relações de propriedade estabelecidas pela Revolução Bolchevique.” No entanto, ele não vê que as “novas” relações de produção não são nada mais do que as relações sob o capitalismo. Ele nem sequer considera a possibilidade de que a “nova” sociedade exploradora é um capitalismo de Estado. O camarada Trotsky considerou essa interpretação variante, mas se opõe violentamente a definir a burocracia stalinista como uma classe de capitalistas de Estado. Vejamos se ele foi justificado na sua oposição.

O capitalismo de Estado, argumentou Trotsky, não existe na Rússia, uma vez que a apropriação dos meios de produção pelo Estado, ocorreu na história pelo proletariado com o método da revolução social e não pelo capitalista, pelo método da trustificação estatal[7]. Mas a maneira em que uma coisa é realizada determina o uso a que é posta por seus usurpadores mais do que cada tarefa a ser realizada determina o grupo para executá-la. “O caráter burguês de uma revolução”, escreveu Trotsky em polêmica contra a tese menchevique de que desde que a Revolução Russa era uma revolução burguesa, o proletariado devia renunciar ao poder em favor da burguesia, “não poderia responder antecipadamente à questão de saber que classe resolveria as tarefas da revolução democrática.”[8] Ao expor sua teoria da revolução permanente, Trotsky escreveu: “A socialização dos meios de produção tornou-se uma condição necessária para tirar o país da barbárie. Essa é a lei do desenvolvimento combinado para os países atrasados.” Precisamente! Mas é necessário entre os marxistas enfatizar o fato de que a socialização dos meios de produção não é socialismo, mas tanto uma lei econômica do desenvolvimento capitalista quanto é monopólio. A fraca burguesia russa era incapaz de realizar as tarefas democráticas da revolução ou o desenvolvimento das forças produtivas. “Sua” tarefa foi realizada pelas massas com o método da revolução social. No entanto, a tarefa dos jovens governantes proletários foi muito complicada pelo atraso da Rússia; e a traição da social-democracia deixou-os desamparados pelo proletariado mundial. Finalmente, a contrarrevolução stalinista identificou a si mesma com o Estado. A forma como os meios de produção foram convertidos em propriedade do Estado não os privou de se tornarem capital.

Provar que o capitalismo-monopolista de Estado existente na Rússia não surgiu através da trustificação estatal, mas por métodos de revolução social, explica a sua origem histórica, mas não prova que a sua lei de movimento econômico difere da analisada por Karl Marx, Engels e Lênin. É mais que tempo de avaliar “a lei econômica do movimento da sociedade moderna”, como se aplica à União Soviética e não apenas para reter para a propriedade estatificada a mesma “reverência supersticiosa” que os oportunistas entretiam pelo Estado burguês.

III. Nenhuma defesa da sociedade capitalista existente na Rússia

Porque não compreendemos claramente a natureza de classe do atual Estado soviético, a participação integral da União Soviética na Segunda Guerra Imperialista Mundial veio como uma surpresa monstruosa. A marcha do Exército Vermelho sobre a Polônia, a conquista sangrenta de parte da Finlândia e a conquista pacífica dos estados bálticos provaram que o Exército Vermelho stalinizado não tinha mais conexão com o espírito, propósito e conteúdo de outubro do que o Estado stalinista, de quem ele é o poder armado. Que recaída abominável das conquistas de outubro são as conquistas stalinistas!

Muito antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, as massas russas suportaram o peso desta “recaída abominável.” O operário teve uma primeira premonição quando, como opositor de esquerda, combateu os termidorianos[9] que o privaram do seu trabalho juntamente com o seu cartão de membro do Partido Comunista. O vislumbre de esperança que ele tinha quando a burocracia stalinista, no entanto, adotou a prancha da oposição para a industrialização e coletivização, desapareceu assim que ele percebeu que o desenvolvimento das forças produtivas não aumentou seu padrão de vida. Ele aprendeu rapidamente o suficiente que a “pátria socialista” sabia como acumular para outros fins. Ele teria sentido a moagem de Stakhanovism[10] se o nome não tivesse sido russificado para ele, mas tivesse a insígnia original Ford-Taylor speed-up. Chamar de “normas de trabalho socialistas” o sistema peça, mais adequado à exploração capitalista, não alivia o grau de exploração do pedreiro que tem de pôr 16.000 tijolos por dia, ou para um datilógrafo (se me é permitido um interesse pequeno-burguês no meu próprio negócio) para digitar 45 páginas de 30 linhas cada e 60 traços em cada linha por dia[11]. Decretar “sufrágio universal igual e livre” não torna possível para o jovem de 14 anos votar “não” ao ser recrutado nas reservas de trabalho, “educado” (leia-se: ensinado um comércio) e no final do programa de treinamento de dois anos ser colocado para trabalhar em empresas estatais para trabalhar por quatro anos consecutivos – mesmo que a este recém-educado jovem de 16 anos de idade seja garantido “a taxa de salário estabelecido.” Não é só que a renda do trabalhador da fábrica é de 110 rublos por mês, e a do diretor 1.200 por mês, mas que todo o modo de produção produz e reproduz as relações de produção capitalistas. O capitalismo de Estado, é verdade, mas o capitalismo de qualquer jeito. Poderíamos ter esquecido que as formas de propriedade do Estado (e é apenas forma, não relação, pois é sem controle pelas massas) são o objetivo da revolução proletária apenas como um meio para alcançar de maneira mais rápida o mais pleno desenvolvimento das forças produtivas para melhor satisfazer as necessidades do homem?

Não, a existência de propriedade estatizada na Rússia não torna sua defesa um imperativo, mesmo que a União Soviética fosse atacada por outras nações imperialistas com o propósito de abolir a propriedade estatizada (o que é menos provável agora do que a adesão do estado stalinista à “nova ordem” de Hitler ) – a menos que mudemos nossa política e apelemos à defesa, digamos, da França, porque o trabalho dos fascistas alemães na divisão do país é de um caráter decididamente retrógrado.

É a irracionalidade da caracterização de Shachtman da natureza de classe da União Soviética como “socialismo de estado burocrático” que o leva a expor a defesa condicional do atual Estado soviético. São as relações econômicas reais por trás dessa expressão irracional que leva a: nenhuma defesa da sociedade capitalista existente na Rússia.


[1] Karl Marx, Capital, Vol.1 (New York; Vintage. 1977), p.92; ver também Capital, Vol. I (Chicago: Charles H. Kerr, 1906), pp. 14-15.

[2] Veja V. I. Lênin, “The International Position of the Russian Soviet Republic and the Fundamental Tasks of the Socialist Revolution,” em Collected Works, Vol. 27 (Moscow: Progress Publishers, 1965), p. 273.

[3] Ibid., pp. 274-75.

[4] Ibid., p. 245.

[5] Esta expressão de Marx encontra-se no Manifesto Comunista.

[6] Max Shachtman (1903-72) foi um líder do Partido dos Trabalhadores que argumentou que a Rússia stalinista era uma forma de “coletivismo burocrático.” Para uma apresentação das opiniões de Shachtman, veja The New International, Outubro, 1941, pp. 238 ff.

[7] Veja Leon Trotsky, The Revolution Betrayed (New York: Doubleday, 1937), p. 248.

[8] Leon Trotsky, The Permanent Revolution (New York: Pioneer, 1931), p. xxvii.

[9]A “Oposição de Esquerda” refere-se à oposição política contra Stálin agrupada em torno de Trotsky a partir de 1923. “Thermidor” foi o mês no calendário adotado pela Revolução Francesa, no qual Robespierre foi derrubado por uma ala reacionária da revolução. Trotsky frequentemente usava o termo para descrever aqueles agrupados em torno de Stálin após 1923.

[10] “Stakhanovism” foi um sistema de aceleração da produção introduzido na Rússia em 1935, o que levou a um aumento na diferenciação de renda. Encontrou muita resistência pelos trabalhadores. Para a análise de Dunayevskaya deste fenômeno, veja The Marxist-Humanist Theory of State-Capitalism (Chicago: News and Letters, 1992), pp. 61-62 especialmente.

[11] As normas devem ser mais altas agora. As normas acima vigoraram até 26 de junho de 1940, quando a jornada de trabalho foi alterada de 7 para 8 horas. Este decreto foi complementado por uma lei que interpreta este alongamento da jornada de trabalho, instruindo as diversas instituições a “aumentar as normas de produção e baixar os preços da peça em proporção ao alongamento da jornada de trabalho”.

Traduzido por Brenda Santos, a partir da versão disponível em: https://www.marxists.org/archive/dunayevskaya/works/1941/ussr-capitalist.htm. Revisado por Guilherme Fernandez.