A Revolução Espanhola

A Revolução Espanhola[1]

I

O último ministro da finada monarquia espanhola, Conde Romanones, relata que a vitória arrebatadora dos partidos republicanos (que obtiveram, nas eleições municipais de 12 de abril de 1931, a esmagadora maioria dos votos em quase todas as capitais distritais: 47 de 51!) e a queda da monarquia de Bourbon que resultou em poucas horas “foi uma surpresa para todos”. E Leon Rolin, correspondente do New Europe, que conhece os segredos mais íntimos da oposição espanhola, confirmou isso explicitamente. Foi uma surpresa para o rei, que desejara que os “sincerismos” (mais sinceramente) destas eleições (e havia ao mesmo tempo transferido a maior parte de sua fortuna para o outro lado da fronteira); foi uma surpresa para a imprensa espanhola que há poucas semanas ainda havia celebrado o último autocrata espanhol durante sua breve visita a Paris e Londres como o “primeiro político da Espanha”. E também foi uma surpresa para os próprios opositores que só contavam com a vitória nas grandes cidades e já haviam se preparado para novas ações revolucionárias.

Ao invés disso, num golpe só a velha ordem colapsou sem qualquer tentativa de resistência. Os pilares até então mais confiáveis da monarquia, o exército e a Igreja, abandonaram o rei quase que imediatamente e se colocaram à disposição dos émigrés perseguidos, os traidores condenados de ontem que formaram o governo de hoje. Ofereceram ao novo governo a mesma lealdade e fidelidade tradicional com a qual já em 1808, após a renúncia de Fernando VII imposta por Napoleão, uma delegação dos Grandes da Espanha dirigiu-se ao novo Rei José colocado no trono por Napoleão: “Alteza, os Grandes da Espanha sempre foram famosos por sua lealdade a seu soberano, e vossa majestade também encontrará neles a mesma fidelidade e devoção”. O infame chefe da Guarda Civil Monarquista, o General Sanjurjo, fez o mesmo. Este general, que mudara da monarquia para a república imediatamente após sua queda e fora recebido de braços abertos pelos novos detentores do poder republicanos, é a mesma pessoa que suprimiu depois, nas eleições dos Cartes, em nome do Ministro do Interior republicano-conservador Maura, a suposta conspiração do herói revolucionário popular Ramon Franco e, um mês depois, as verdadeiras greve geral e insurreição dos trabalhadores urbanos e rurais em Sevilha e Andaluzia. O General Sanjurjo usou medidas tão brutais que o jornal conservador britânico Daily Mail parabenizou o governo revolucionário espanhol por sua força provada nesta ocasião.

Mas tudo isso ainda estava no futuro nos belos dias de primavera de abril. Essa revolução de abril de 1931 se caracterizou gloriosamente por seus líderes e testemunhas mais como uma festa do que uma luta. Essa foi de fato para a Espanha de hoje a “revolução bela”, seguindo a descrição de Karl Marx da Revolução Francesa de 1848, que foi inclusive seguida no mesmo ano pela catástrofe social da derrota de junho do proletariado de Paris e, em 2 de dezembro de 1851, pelo golpe de Estado de Napoleão III. Na famosa caracterização de Marx, escrita na metade do século passado para a França revolucionária, “foi a revolução bela, a revolução da cordialidade geral, porque os antagonismos que nela explodiram contra o reinado dormitavam lado a lado em harmonia, não desenvolvidos, porque a luta social que formava o seu pano de fundo apenas ganhara uma existência fugaz, a existência da fraseologia, da palavra”[2].

De fato é impressionante o quão pouco, nestes primeiros meses entre as eleições municipais de abril e a reunião da assembleia constituinte (Cortes) em julho, o recém-formado governo provisório estava preocupado com as demandas sociais e de classe do proletariado que exigiam satisfação prática imediata, governo tão adequadamente designado pela The Economist como “conservador-republicano e socialista moderado”. Há uma contundente diferença entre as últimas duas revoluções europeias: a primeira foi desencadeada na Rússia em 1917 por meio da crise da guerra mundial; a segunda, na Espanha, através da nova e “pacífica” crise econômica mundial que tomou o mundo desde o outono de 1929. Essa diferença é parcialmente explicada pela situação geral europeia de hoje basicamente modificada em comparação àquela de 1917-20. Depende, por outro lado, do caráter completamente peculiar do movimento operário espanhol, que não é novo, mas já se desenvolveu nos últimos sessenta anos.

Primeiramente, nunca houve e não há na Espanha até hoje praticamente nenhum partido comunista. Nem sequer há sinais de que possa surgir um partido assim num futuro próximo. Houve uma época em que os trabalhadores agrícolas, vegetando em pobreza indescritível na Andaluzia e na Estremadura, e os camponeses permanentemente sobrecarregados com excesso de trabalho da Galícia e das Astúrias, obtendo de suas pequenas terras um sustento miserável e o detestado aluguel [fuero] para um proprietário desconhecido, escutavam com atenção quando ouviam falar sobre a divisão do solo agrícola na União Soviética. Mas esses dias se foram faz tempo. O que aparece hoje sob o nome de “comunismo” no movimento revolucionário na Espanha ainda é, como as eleições de Cartes de 28 de junho deveriam ter provado até para os céticos estrangeiros, apenas a sombra de uma sombra. Há apenas três seitas comunistas fracas, que estão lutando mais entre si e com as verdadeiras organizações revolucionárias do proletariado espanhol do que com o inimigo de classe burguês. Destas, uma segue as ordens de Stalin, a segunda, de Trotsky, enquanto que só a terceira organização, os Comunistas Federalistas Catalães, liderados pelo espanhol Maurin, pode ser vista como um produto relativamente local do movimento operário espanhol. Nenhuma destas três direções exerce uma influência prática efetiva no movimento operário espanhol. Nenhuma delas está representada nas Cortes, nem mesmo por um único deputado.

Entretanto, os dois setores do movimento operário encontrados na Espanha que também são forças sociais potentes não ofuscaram nestes primeiros meses a feliz manhã de primavera da jovem revolução espanhola por meio de uma montagem demasiado radical de suas demandas de classe em particular. Não surpreende que uma dessas duas direções, o reformista movimento sindical e partido socialdemocrata tenha se recusado a levar adiante essas demandas radicais à luz de toda sua tradição política e de preservação do Estado, formada já durante o período do pré-guerra. Mas deve parecer estranho e surpreendente no mais alto nível a outra direção, o movimento sindicalista revolucionário, não ter avançado demandas radicais, à luz de todo o caráter histórico deste movimento. “Se observarmos o movimento operário ao sul dos Pirineus apenas do ponto de vista de ameaças que tem à paz social, então o perigo não parece vir tanto do socialismo, mas do anarquismo; é claro, menos sob a forma ideológica que ainda tinha há alguns anos e nas teorias platônicas às quais alguns sobreviventes da Internacional ainda se devotam e nem mesmo nas ações individuais de uma série de fanáticos, mas sim do novo ponto de vista do sindicalismo revolucionário por meio do qual ele pode se reorganizar”.

O prognóstico histórico, que foi apresentado pelo político social burguês Angel Marvaud em 1910, foi confirmado pelo desenvolvimento real num grau surpreendente. Hoje, após 50 anos de desenvolvimento posterior da socialdemocracia espanhola, que desde o seu início representou uma tendência de preservação do Estado, e depois do sucesso acelerado pela guerra da mesma tendência de conservação do Estado em todos os outros partidos socialdemocratas europeus, o partido socialdemocrata espanhol permanece, apesar do seu pequeníssimo número de membros, como o partido mais forte na assembleia nacional constituinte (Cartes), com seus 130 mandatos. Está participando diretamente com seus 3 ministros no novo poder governamental burguês-republicano e, mesmo nesta coalizão do governo, só está formalmente na ala esquerda, enquanto que, na realidade, contudo, está muito mais à direita. Está à direita da tendência burguesa-revolucionária radical que é representada no gabinete atual pelo ministro do exterior Lerroux. E está bem mais à direita dos partidos republicanos federalistas na Catalunha, Andaluzia e Galícia, em particular à direita do partido federalista-popular do presidente do estado da Catalunha, Macia, que ainda hoje se opõe em sua região a todas as instruções demagógicas dos guardiões da ordem de Madrid com uma resistência dura e bem-sucedida.

A ilustração mais gritante deste caráter dos governantes socialistas espanhóis é demonstrada pelo fato de seu líder, Largo Caballero, o atual ministro republicano do trabalho e ao mesmo tempo presidente do Sindicato Nacional Socialdemocrata (UGT), ter a duvidosa fama de que já participara como conselheiro estatal do governo na ditadura de Primo de Rivera. Num momento em que toda a burguesia radical, a pequena burguesia e a parcela revolucionária da classe trabalhadora lutaram com todos os meios contra o regime inconstitucional da ditadura, e até mesmo ex-ministro liberal e conservador do período pré-ditadura boicotaram o ditador e seus projetos, havia um partido espanhol leal ao governo, o Partido Socialdemocrata Espanhol. Apoiaram inclusive os assim chamados comitês (um tipo de comitê arbitral) que foram introduzidos pelo ditador numa imitação da Carta del Lavoro mussolinista e usaram a assim criada organização governamental indireta para a formação coagida de um monopólio factual beneficiando esses sindicatos até então relativamente fracos em sua luta para eliminar os sindicatos sindicalistas proibidos e perseguidos pela ditadura.

A queda da ditadura e da monarquia também mudou esta condição muito pouco e nada em favor da seção revolucionária dos trabalhadores. Os “comitês coletivos” do ditador ainda são conservados intactos pela república hoje, como são as medidas de repressão diretas que o atual governo “revolucionário” aplica aos trabalhadores sindicalistas em greve através dos Sanjurjos e Pistoleros que herdaram da ditadura. Mas servem muito menos ao propósito geral de uma “defesa do Estado” do que à tarefa muito mais palpável de fortalecer os sindicatos reformistas do ministro do trabalho republicano Largo Caballero, que também é um secretário sindical reformista, através da repressão renovada dos sindicatos sindicalistas da Confederação Nacional do Trabalho (CNT).

A aversão do atual partido socialdemocrata espanhol a perseguir energicamente quaisquer demandas da classe proletária revolucionária é tão grande que o partido considerou sua vitória nas eleições das Cortes inoportuna. De acordo com um plano secreto dos aliados da coalizão, os socialdemocratas deveriam ser a oposição na Assembleia Nacional constituinte – agora, talvez esse papel seja tomado pela direita depois de algum tempo. Os socialistas preferiam não ter sido mais participantes num governo de coalizão burguês por um tempo considerável uma vez que, naturalmente, a recente reviravolta revolucionária exige um novo posicionamento das forças sociais numa grande velocidade. Agora, contudo, após sua surpreendentemente grande vitória eleitoral, tiveram que se satisfazer em anunciar sua rejeição categórica de participar num governo burguês enquanto instruem simultaneamente os três ministros socialistas a permanecerem em suas posições até a promulgação final da nova constituição. De fato, eles podem se considerar com sorte por não terem ganhado a maioria absoluta nas eleições, pois a discrepância entre sua conversa socialista e suas ações burguesas teria sido ainda mais vergonhosa e a pressão das massas para que se separassem dos políticos burgueses e seguissem o curso da revolução social da classe proletária os teria assaltado com uma força muito maior.

As táticas empregadas pela outra corrente do movimento operário espanhol foram muito mais dignas de nota do que esse moderado “suporte” dos socialdemocratas durante a fase de desenvolvimento da revolução espanhola que agora está chegando, ao menos pelo que parece, ao fim. Qualquer um que tenha passado algum tempo entre os trabalhadores revolucionários da Espanha nessas semanas e observado não só seus programas teóricos, mas suas atividades práticas e posições reais com relação à nova situação provocada pela revolução de abril, não poderia deixar de ter em mente as seguintes impressões: talvez houvesse uma recém-descoberta consciência do poder ou, como eu prefiro supor, a recém-obtida liberdade de movimento foi ingenuamente vista como uma nova era que continua sem perturbações após tantos anos de opressão. De qualquer modo, toda essa grande massa de trabalhadores ainda estava, depois de sessenta anos de propaganda revolucionária e ação direta e um período recente de oitenta anos de opressão poderosa extremamente acelerada da qual nasceram para uma nova vida, não obstante, unida fanaticamente a seus antigos objetivos revolucionários mesmo hoje. Embora ainda fossem independentes, ativos e estivessem preparados para qualquer sacrifício, neste momento histórico eles nunca pensaram em travar desde o início a “guerra aberta” que declararam teoricamente contra toda forma de Estado, com seu vigor tradicional ou com ainda mais dureza, contra este novo Estado republicano. A república burguesa não correspondeu de maneira alguma a suas demandas programáticas; só proporcionou a libertação momentânea de uma enorme pressão e cumprimento com alguns desejos pequenos, mas importantes e práticos como a libertação de seus prisioneiros, uma pausa para respirar na perseguição infindável e um reconhecimento parcial de suas organizações. Assim, os trabalhadores revolucionários não se opuseram imediatamente à nova república de uma maneira hostil, mas estavam antes de qualquer coisa preocupados em consolidar sua organização de massas revolucionária, a sindicalista CNT, que havia, após destruição quase total, ganhado em menos de dois meses o forte número de 600 mil membros e ainda crescia rapidamente, além de cuidar de todos os outros centros possíveis para moldar uma vida realmente livre e autônoma segundo sua concepção. Quando 432 delegados de todo o país representando trabalhadores rurais e da indústria se reuniram no meio de junho em Madrid para seu primeiro congresso nacional, eles reafirmaram seus princípios tradicionais e declararam expressamente que este congresso da CNT “considera e se relacionará com as Cortes constituintes como o faria com qualquer outro poder opressor”. Ao mesmo tempo, contudo, avançaram um plano de demandas mínimas que dirigiram a estas mesmas Cortes a respeito daquelas áreas da vida social que consideram mais importantes neste momento, a saber: o sistema educacional e escolar (“enquanto o Estado existir é preciso exigir que o mal do analfabetismo seja eliminado!”), as liberdades individual, de expressão e de imprensa, o direito à coligação e à greve, o fim do desemprego na cidade e no campo e a quebra das estreitas concepções burguesas de propriedade onde elas inibem a realização dessas demandas produtivas.

É possível observar logo de cara que entre essas demandas não há uma que não poderia ter sido administrada por uma revolução radical burguesa e democrática que fosse fiel a seus princípios. Na verdade, não havia nenhuma demanda que não tivesse sido reconhecida até mesmo pelos monarquistas liberais do regime pré-revolucionário como teoricamente justificável. Mas, não obstante, neste momento nenhuma dessas demandas foi concretizada na Espanha revolucionária e sequer se pensa a respeito disso. O governo provisório, chocado com uma ruptura definitiva e imediata com os antigos poderes, já durante sua primeira hora estava preocupado em amarrar novamente, em conjunto com esses antigos poderes e o quanto antes, essa liberdade de movimentação das forças revolucionárias criadas inevitavelmente no movimento de derrubada violenta. Tirou vantagem da greve dos trabalhadores da telefonia, iniciada em 6 de julho em Barcelona como, primeiramente, uma mera questão sindical e seguida depois por greves em solidariedade nas outras partes do país, para provocar o levante de Sevilha e de toda a Andaluzia. Então, derrubou este movimento com força brutal e, em 24 de julho de 1931, proibiu finalmente por decreto as organizações sindicalistas em toda a Espanha e assim colocou o movimento sindicalista “fora da lei”. Com este retorno total aos métodos do antigo sistema de supressão militarista-reacionário, o governo provisório do novo Estado espanhol frustrou, como queria e pretendia, as tendências correntes de um proletariado insatisfeito com a revolução burguesa. Assim, também impediu, ao mesmo tempo, enormemente o progresso em direção àquelas tarefas imediatas que reconhecia e que são consideradas hoje, pela esmagadora maioria de todas as classes do povo espanhol, como inadiáveis.

II

As tarefas imediatas da atual revolução burguesa na Espanha são sobretudo as seguintes: (1) criação de uma nova forma de Estado que manterá de uma só vez uma grande área econômica uniforme compatível com o desenvolvimento da produção moderna e que satisfará as demandas turbulentas e implacáveis de catalães, galegos e bascos por governos autônomos de seus próprios assuntos nos campos da educação, cultura, obras públicas, transporte, legislação e polícia; (2) a separação imediata e completa da Igreja e do Estado, Igreja e escola, em conjunto com uma devolução (sem compensação) desses bens móveis e imóveis do povo que hoje estão em posse da Igreja: milhares de monastérios e outras instituições das mãos-mortas; por fim, (3) a tarefa central e principal – sobre cuja solução todas as grandes revoluções dos últimos séculos todo o desenvolvimento, vitória ou derrota do princípio revolucionário dependeram decisivamente, desde a grande Revolução Francesa de 1789 até a grande Revolução Russa de 1917 – é e foi em todos os casos a implantação da revolução agrária. O fracasso na solução desta tarefa já fez com que a última revolução espanhola de 1868 fracassasse e a República Espanhola de 1873 também findasse.

De todas as perguntas que são feitas hoje e enchem a agenda da Revolução Espanhola, a relativamente mais fácil de responder é a do assim chamado federalismo. Quando visto superficialmente de fora, parece um perigo catastrófico para o novo estatuto de Estado republicano quando o governo central de Madrid (onde também há alguns seguidores da Catalunha federalista no parlamento!) permite agora não só que as Cortes constituintes se submetam a um conceito constitucional unitário, mas extremamente centralista quando, ao mesmo tempo, o “Presidente-Estado” catalão Macia organiza em sua área um plebiscito formal que determina com uma maioria esmagadora, quase unânime, um conceito bastante diferente da constituição para as províncias catalãs unificadas, a saber, o assim chamado Estatuto Catalão. Mas a britânica The Economist já aponta, corretamente, a diluição dos privilégios que haviam sido realmente exigidos neste estatuto “para o Estado catalão independente na República Espanhola” e que não estaria à altura nem daquilo que na constituição não escrita do Império Britânico são chamados de “domínios”. E outro inglês prosaico chamado o que está atualmente formado sob o nome de “Generalidad de Catalunya” (como uma mistura de um Estado com uma associação de províncias meramente utilitária), de uma maneira bastante desrespeitosa, de “um tipo de condadinho glorificado”.

Seja como for, vê-se que o ex-separatista extremo Macia e seus seguidores já reduziram em grande medida suas demandas originais pela independência. O graveto está com o cachorro. Não é um acidente o fato de o Estado catalão deixar para as autoridades questões como as relações exteriores, declarações de guerra e o correio, bem como “impostos indiretos e os direitos aduaneiros”. A burguesia catalã sempre sabe muito bem que só porque a Catalunha é a região da Espanha mais desenvolvida industrialmente, ela também dependerá no futuro de todo o mercado espanhol para a venda de seus produtos que hoje são protegidos por impostos altos. Décadas atrás o bem conhecido ideólogo revolucionário Miguel de Unamuno acusou a burguesia catalã numa situação similar de que, durante suas negociações pela autonomia catalã, “haviam vendido sua alma em troca de uma pauta aduaneira”.

Por outro lado, por meio dessa moderação inteligente das demandas catalãs, o governo central de Madrid é colocado numa posição na qual dificilmente pode recusar acordar com esta proposta bastante aceitável. Quando o fizeram até hoje, Madrid e Barcelona hoje se opõem aparentemente nesta questão como duas facções inimigas, então não é neste caso meramente uma controvérsia política formal sobre princípios. A preocupação aqui não é só um contraste mais geral entre uma atmosfera burocrática e servil retrógada de Madrid e a atmosfera bastante indiferente da Catalunha, que não é só industrial mas socialmente muito mais desenvolvida (onde, a propósito, a classe trabalhadora assume uma posição bastante diferente na vida pública do que em qualquer outro lugar da Espanha, já que aqui ela segue sem divisões a linha anarquista e sindicalista revolucionária). A proibição das organizações sindicalistas decretada pelo governo central de Madrid para toda a Espanha continua sendo ignorada oficial e realmente até hoje na Catalunha.

Bem mais crítico para a continuidade da revolução espanhola do que a controvérsia entre o centralismo e o federalismo é a luta inevitável entre o velho Estado republicano e a principal força reacionária da velha Espanha monarquista, a Igreja Católica. Não é como se a Igreja estivesse se opondo ao novo poder estatal republicano com algum tipo de inimizade escancarada; exatamente o contrário, a Igreja Católica (que foi até a queda do ditador Primo de Rivera uma seguidora leal do regime ditatorial e até a derrubada de Alfonso XII uma verdadeira aliada da monarquia) pôs-se firmemente em defesa do novo Estado republicano a partir do dia do colapso da monarquia. Ele nem sequer retirou sua confiança completa dum governo que havia perdoado o assalto de monastérios em maio, um governo cujos dois filhos leais da Igreja Católica serviram nas mais importantes funções (o ministro-presidente Aleala Zamora e o ministro do interior Miguel Maura). E quando o reacionário Arcebispo de Toledo, o infame Cardeal Segura, teve que fugir da Espanha por causa de uma declaração descuidada, foi o Bispo de Taranza que encaminhou os católicos espanhóis, através de uma carta pastoral à jovem república alemã onde o catolicismo floresceu pacificamente, como nunca dantes sob os Kaisers.

Ainda assim, nesta prudente conformação da Igreja com sua derrota sofrida com a queda da ordem estatal monarquista católica, está um dos grandes perigos para o desenvolvimento futuro da Revolução Espanhola. Tanto como poder nacional espanhol e internacional europeu, a Igreja Católica logo pouco depois do crítico doze de abril começou uma batalha magistral de retirada, que ao mesmo tempo já portava as sementes para um novo ataque. O partido católico foi o primeiro e o único dos antigos partidos derrotados nas eleições de 12 de abril que reuniu seus seguidores e uma grande seção dos antigos monarquistas (bem como de seu principal jornal, El Debater, e seu grupo parlamentar, Acción Nacional) para as eleições dos Cartes constituintes em 28 de junho. Ao mesmo tempo, organizou imediatamente todos os principais jornais católicos em escala internacional numa campanha defensiva unificada contra a alarmante secularização dos novos assuntos de Estado republicanos na Espanha católica: a Vie Intellectuelle dos dominicanos franceses, o “correspondente” da escola católica Montalernbert, os Études dos Jesuítas, o Vita e Pensiero editado pelos estudiosos da Universidade Católica de Milão e a alemã Hochland. A tendência representada hoje por todos estes jornais católicos modernos é mais bem expressa pela Vie Intellectuelle, que clara e sucintamente caracterizou no dia 10 de maio a nova situação que estava surgindo: “Diz-se que a Igreja perdeu a batalha. Isso é precipitado. Na pior das hipóteses, perdeu uma batalha que não era sua, mas sim de sua aliada, a monarquia. Agora haverá uma batalha a ser travada e, desta vez, em seus próprios domínios – e essa é a batalha da democracia cristiana”. É preciso comparar isso com a declaração dada pelo atual ministro-presidente, Aleala Zamora, durante os primeiros dias seguintes à criação da nova república: “É imperativo que tenhamos a cooperação dos elementos da ordem, do capitalismo e do clero porque sem eles a república seria efêmera e estaria logo condenada, já que seu fracasso prolongaria infinitamente a possibilidade de estabilizar este regime”. Assim, é possível ter uma imagem suficientemente clara de uma das possíveis maneiras com que a república pode e vai evoluir, quando a ruptura radical com o poder reacionário, até agora evitada tenazmente pelos poderes republicanos atuais, não estiver no programa dos eventos impostos e realizados por forças sociais novas e mais fortes.

A única forma da qual se pode esperar a liberação dessas novas formas sociais nas condições de hoje da Revolução Espanhola – que, contudo, já está claramente indicada pelos levantes revolucionários recentes na Andaluzia – é o confronto com a pendente questão agrária, agora por necessidade histórica – e provavelmente assumirá esta forma. Seria necessário escrever um ensaio separado se quiséssemos fazer um esboço aproximado da posição mais miserável e suprimida dos trabalhadores rurais espanhóis e dos assim chamados pequenos agricultores independentes, cuja miséria desesperada é de fato igual àquela dos trabalhadores sem-terra. Ou, do contraste monstruoso entre os grandes imóveis dos grandes proprietários e a vida servil dos trabalhadores da fazenda [braceros], temperada ainda com períodos recorrentes de desemprego sem fim, de suas revoltas desesperadas que despontam sendo esmagadas sangrentamente de novo e de novo, do desperdício e do crescimento retardado da capacidade de produção agrícola assim condicionada. Todos os partidos representando a consciência pública da Espanha reconheceram unanimemente estas condições insuportáveis por muitíssimo tempo. Mas nenhum dos projetos de reforma bem intencionados deu, reiteradamente, em nada frente às mil obstruções públicas e secretas que teriam que surgir num país onde o rei, o corpo de oficiais, a Igreja e os líderes dos partidos de governo pseudoparlamentares do dinâmico período de restauração de 1876-1923 estavam enraizados até a alma, com todo seu poder, privilégios e emolumentos, em enormes terrenos imobiliários.

Todas estas forças e seus instrumentos voluntários regiam a sociedade oficial e não oficialmente: as cidades comuns do interior e de tamanho médio foram exploradas pela especulação brutal por interesses particulares e pelos infames kaziks que preparavam o terreno para a eleição em prol dos governadores de Madrid. Todas as condições agrárias na Espanha agora estão, assim, há quinhentos anos na mesma condição imutável desconsolada, que recentemente se tornou mais inflamatória e urgente devido às evidências científicas e experimentais para as possibilidades técnicas e a produtividade econômica de uma reforma radical. Fora isso, devemos reconhecer o fato de que um desenvolvimento industrial progressivo só ocorreu em algumas províncias no leste e no nordeste e a produção agrícola na Espanha determina, portanto, toda a vida econômica e social da nação num grau muito diferente do que nos países industrialmente desenvolvidos. O problema agrário é, portanto, de enorme importância para o destino da atual revolução espanhola. Ao mesmo tempo, seria possível imaginar os problemas fatais e no final das contas sem solução com os quais um governo revolucionário se depara quando evita docilmente qualquer interferência com privilégios medievais empoeirados em vez de resolver este grande problema com coragem e desconsideração. E é possível se ver, como o atual “governo provisório” o fez, que os primeiros projetos ínfimos e insuficientes de reforma social podem ser alcançados somente durante e depois de uma revolta agrária já em progresso que este governo suprimiu com uma repressão sanguinolenta.

Não podemos caracterizar nem um pouco melhor as circunstâncias nas quais o governo provisório da república espanhola já está hoje visivelmente mais e mais envolvido do que recapitulando a descrição dada por um inimigo aberto de seu governo, que é ao mesmo tempo um dos maiores proprietários da Espanha, o Conde Romanones, que escreveu no artigo na Revue des Deux Mondes que já mencionamos:

Em último caso, não serão as grandes cidades que forçarão suas diretrizes nesta nova ordem política mas sim o país. As pessoas no país estão menos interessadas no regime político do que na questão da distribuição da terra. E é entre os trabalhadores diurnos nos campos que encontramos a maior ameaça do momento atual.

A agitação rural, em particular nas províncias da Andaluzia, não deve ser negligenciada quando se sabe como compreender as lições da história. O que aconteceu nas províncias entre 1870-92, com “a Mão Negra”, um tipo de organização “Máfia de Camorra” no sul da Espanha, com a revolta dos trabalhadores rurais em Jerez, com as convulsões de Córdoba, Espejo, Montilla, etc.; todos estes eventos se repetirão agora com mais força destrutiva. A mentalidade da população rural da Espanha hoje é a mesma de sessenta anos atrás; as condições econômicas de sua vida não mudaram para melhor e os meios de contê-los são mais frágeis que os de antes. Esta população rural está menos isolada que há meio século. Está em contato com seus irmãos nas cidades e está organizada em sociedades com as convicções mais extremas em alguns lugares e está muito mais inclinada à ação violenta e tumultuosa do que em 1873. Também não é necessário nenhum incentivo de Moscou; suas almas já passaram por tempestades terríveis antes que os ventos russos chegassem neles; não só a propaganda soviética pode induzi-los a uma revolta, mas essa já é sua própria tendência, desenvolvida através das condições sociais sob as quais vivem há séculos.

Não precisamos acrescentar nada na medida em que essas palavras bem escolhidas pelo Conde Romanones e adequadas para mais de um propósito são apenas uma caracterização da situação atual. Se, contudo, o propósito tácito de sua descrição é assustar os estadistas hesitantes e indecisos da república com essas dificuldades estarrecedoras de cumprir seu dever, então é preciso dizer que um dever como a solução radical ao problema agrário na Espanha atual não pode ser desaparecer com truquezinhos diplomáticos e passes de mágica – ainda mais quando o dever está claramente situado em toda a situação objetiva e é considerado com urgência pela maioria esmagadora de todas as classes do povo. Independentemente de esses homens que foram convocados a liderar a primeira fase da revolução espanhola através das eleições de 12 de abril e 28 de junho desejarem avançá-la ou atrasá-la, o ponto de partida e conteúdo da segunda fase dessa revolução será, não obstante, a luta pela revolução agrária.


[1] Tradução feita pelo Coletivo Proelium Finale, a partir da versão disponível em: https://www.marxists.org/archive/korsch/1931/spanish-revolution.htm.  

[2] Karl Marx. As lutas de classes na França. São Paulo, Boitempo, 2012, livro digital.