A Patologia da “Sociedade de Consumo” Capitalista – Michael Schneider

O quadro patogênico do capitalismo contemporâneo é determinado não só pela esfera da produção, como também e cada vez mais pela esfera da reprodução, isto é, do consumo. Se a “patologia industrial” é a base da “psicopatologia da vida cotidiana (do capitalismo atual)” (Freud), surge nesta base uma correspondente “superestrutura”, da qual novos efeitos patogênicos emanam hoje. Para a solução dos seus problemas relacionados com a realização, tais como as vendas, o capitalismo monopolista desencadeia – como nunca antes – um mundo inflacionário de “belas aparências”, de infinitas “promessas de felicidade e valor utilitário” (W. F. Haug), com sérias consequências para o consciente e a psicologia do consumidor, em especial dos jovens. Conforme demonstrou Haug em seu livro Zur Kritik der Warenästhetik (Sobre a Crítica da Estética de Consumo)[1], a estrutura instintiva de gerações inteiras de compradores, como um cego efeito colateral dos interesses de utilização capitalista, está sujeito a um processo de amoldagem progressivamente compulsivo, baseado na estética mercantil que, conforme demonstraremos, determina também de forma duradoura o quadro da patologia social.

O quadro de maciço comportamento clínico e os sintomas produzidos pelo “princípio da realidade” capitalista por uma eterna obsessão-compulsão para realizar trabalho assalariado, por assim dizer, camuflado pelo “princípio do prazer”, pervertido pelo capitalismo, por uma mania totalmente irrefreada para comprar. Enquanto que a patologia “industrial” gerada pelo processo de produção contém primordialmente uma patologia de perturbações que sempre incluiu um elemento de recusa, de rebeldia inconsciente contra o princípio da realidade (capitalista), a patologia da “esfera de consumo” surge como uma patologia de quadros perfeitos, altamente integrados, de modelos de comportamento, dos quais todos os elementos de recusa e resistência parecem ter desaparecido. Assim, enquanto que previamente lidamos com uma patologia de disfunção mental, que é também sentida pelas vítimas como verdadeiro sofrimento, infelicidade, dor e coisas semelhantes, lidamos aqui com uma patologia de total funcionalismo mental (no sentido exigido pelo processo capitalista de utilização), que em toda a parte é tido como sensação de felicidade, como uma psicodélica “euforia do consumo”. Se a patologia resultante da função produtiva imediata do capital puder ser ainda descrita como palpável e, no sentido clássico, um quadro “clínico” de perturbações de comportamento, (neuróticas, psicóticas, psicossomáticas e outras), a patologia resultante da função de vendas do capital já não pode ser compreendida por meio de conceitos clínicos clássicos. Diante desta dificuldade tornou-se necessário ao autor formular novos conceitos, tais como “psicose de consumo”, ou “o caráter compulsivo da estética de consumo”, que procuram elucidar a dimensão patogênica da economia de consumo do capitalismo recente. Neste sentido recorremos particularmente a W. F. Haug, com sua análise da estética dos bens de consumo em termos do “amoldar da sensualidade”, cuja extensa base político-econômica não foi, porém, aqui recapitulada, sobretudo porque o próprio Haug já a havia proporcionado.

A Estetização do Bem de Consumo e o “Comprador Fantasma”

Segundo W. F. Haug, a origem da estética do consumo tem início numa contradição na relação de troca, embora tenha sido o capitalismo monopolista que inflou o mundo “fantasmal” da aparência dos bens, determinando as percepções sociais e a estrutura instintiva de maneira cada vez mais duradoura. A tendência para a embalagem estética do artigo resulta necessariamente da contradição imanente entre o valor de uso e o valor de troca. Enquanto que o artigo tem verdadeiro valor de uso para o comprador, sendo a sua aquisição o que importa na compra, para o vendedor não passa de um meio para a finalidade de realizar o seu valor de troca em forma de dinheiro. Do ponto de vista do valor de troca, o valor de uso nada é, portanto, senão uma isca. Haug escreve: “Uma tendência tem início com a contradição entre o valor de uso e o valor de troca, distribuído entre várias pessoas, o que impele a sua forma de uso, o feitio do bem de consumo, a transformações sempre novas. Deste ponto em diante, duas coisas são produzidas ao serem fabricados os bens: primeiro, o valor de uso; segundo, como um extra, a aparência do valor de uso (…) Do ponto de vista do valor de troca, tudo depende até ao fim, isto é, até o encerramento do contrato de venda, da promessa de valor de uso no bem de consumo (…) O componente estático do bem no seu sentido mais amplo – a aparência sensória e o senso de valor de uso – então se separam. A aparência se torna cada vez mais importante para a transação – na verdade, mais importante do que aquilo que é fato. O que apenas é fato, mas não parece fato, não é comprado. Mas o que parece ser fato é comprado. No sistema de venda e compra, a aparência estética, a promessa de valor de uso no bem avulta-se como a verdadeira função de venda do bem de consumo.[2]

Com o avanço do capitalismo monopolista, onde o capital privado busca subjugar inteiramente um valor de uso, a “aparência do bem de consumo” assume também gigantescas proporções na forma de propaganda supra-regional. Haug escreve: “Com inúmeros e anônimos produtos de uso diário suprimiu-se o valor de uso geralmente válido como um irritante obstáculo no caminho dos interesses utilitários. Quando o capital privado subjuga determinado valor de uso (…) a estética do artigo destaca-se do próprio artigo, que, graças à embalagem, é aumentado e disseminado por toda parte através da propaganda[3]“. Na medida em que a estética do bem de consumo é separada do próprio bem, surge uma sensualidade “abstrata”, autônoma com respeito ao valor de uso material do qual foi divorciada, um mundo inflacionário de “belas aparências”, uma infinita “promessa de valor de uso” (Haug) e felicidade, que transporta as massas consumidoras a um mundo psicodélico, ilusório, semi-religioso.

Neste sentido, uma sociedade monopolista de consumo, cuja aura religiosa tornou-se um anacronismo, é muito mais revestida de sacralidade, muito mais mística do que a antiga sociedade medieval, fervilhante de religião. Já que na sociedade medieval a relação social dos produtores com os seus produtos era ainda clara e transparente, não podendo, portanto, “assumir uma forma fantástica, diversa da sua realidade” (Marx[4]), ela exigia uma esfera de produção religiosa separada da produção material, que precisava produzir, ela própria, uma aparência “fantasmal”, já que a esfera da produção material ainda não havia gerado uma por si mesma. Pelo contrário, na sociedade monopolista de consumo, a esfera da religião, que é externa, e separada da produção material,  torna-se supérflua porque a produção dos bens cria por si mesma um “mundo fantasmal de aparências” em plano muito mais elevado do que a religião jamais foi capaz de fazer, pois no capitalismo de hoje, “a produção de mera aparência já não está confinada a certos locais que representam o sagrado e o poderoso, mas constitui uma totalidade de sensualidade, na qual em breve nem um só elemento deixará de ter sido submetido ao processo capitalista de utilização” (Haug)[5].

Quando Roland Barthes, em Mitos do Cotidiano[6],comparou “a criação da grande deusa francesa Citroenne com a criação das grandes catedrais góticas”, não explicou por que uma delas era um empreendimento puramente subvencionado, enquanto o outro era um empreendimento de puro lucro. Esta comparação, contudo, expressa o insight de que a mistificação religiosa, que estava protegida da esfera profana da produção material, dissolveu-se, por assim dizer, nesta esfera, profanizou-se e generalizou-se como uma mistificação consumista. O. Münzeberg escreve: “Detroit, a cidade do perverso automóvel americano. Os novos monarcas: General Motors, Ford e Chrysler. Ali, em vez de se dizer “por Deus”, as pessoas dizem “por Ford”, expressando um respeito quase religioso pelos novos deuses. A sede administrativa da Ford em Dearborn lembra uma catedral. O santo dos santos, o carro do ano, um modelo esporte de dois lugares, encontra-se numa sagrada rampa e é chamado de Chefão 302. Os sacerdotes da capital isolam o local de produção – como os padres católicos ocultam a cruz durante a liturgia da sexta-feira santa – durante dois meses dos olhos do público. A festa da ressurreição, o fato psicológico, é celebrado a 1º de setembro, quando o top car, o mais sagrado de todos, o ídolo do ano seguinte, é revelado.[7]

A extensão historicamente nova da mistificação e estetização do mundo dos bens de consumo ao serviço da realização do capitalismo consumista tem como necessária consequência um “deslocamento” (Freud) das energias libidinosas do mundo de pessoas objetificadas para o mundo de objetos personificados, de fetiches de consumo. Já que o universo das relações sociais, como simples relação de troca e dinheiro, está cada vez menos sujeito à catéxis, o universo dos objetos personificados, dos bens de consumo, torna-se ele próprio o objeto “substituto” das energias libidinosas. A libido evapora-se, por assim dizer, da epiderme do bem de consumo humano. Os corpos de consumo e suas múltiplas aparências, que foram despojadas do humano, tornam-se uma multiplicidade de “focos de sugestão” para a libido social.

O capital monopolista transformou as suas metrópoles em imensos palcos, nos quais os “monarcas”, os heróis e estrelas do mundo consumista, apresentam, em certo sentido, um ininterrupto e aristotélico “teatro de empatia” (Brecht). Os corredores e balcões dos supermercados tornam-se o culto, isto é, santuários da arte do mundo dos bens de consumo, inteiramente calculados para despertar a empatia do consumidor. Esta “empatia” é absorvida na aparência exposta do artigo, de modo a ser “afastada” da existência corriqueira diária da produção alienada. O marketing criou o seu próprio conceito de uso estético do bem de consumo, de “estética da empatia” burguesa, ou seja, o da “experiência da compra”. Haug comenta: “A propaganda do capital de construção de lojas fala com um subtom ameaçador: quem quer que pretenda vender deve transmitir experiência (…) Ele (o comprador) ‘não deve ficar à distância’. ‘Deve participar’, diz uma das leis fundamentais do negócio. O artigo em exposição, o fato de ser visto, o processo de compra, e todos os elementos que o constituem e rodeiam acham-se amoldados numa concepção de obra de arte teatral, cujos efeitos são calculados tendo em mente a disposição do público para comprar. Assim, o local da venda como palco é determinado por sua função para transmitir ao público experiências que estimulam um comportamento voltado para aquisição[8].

O “local da venda como palco de experiência” exerce efeito imediato sobre a capacidade do comprador para experimentar. A “dissolução do bem de consumo num processo de experiência” tem como efeito o consumidor se inclinar somente a “experimentar” o que lhe foi previamente transmitido na categoria do artigo, isto é, o que pode ser expresso em categorias de bens de consumo. Isto se torna manifesto mesmo quando ele não tem que lidar com a natureza do artigo, mas somente com a própria natureza. Mesmo que sua experiência seja ainda “natural” no sentido de “intacta”, a “alma do artigo” fala por ele. Foi o que disse Marx, meio de brincadeira, meio a sério. Assim, o turista, o comprador de uma “lembrança” de férias, em geral só percebe aquela parcela da natureza que lhe foi transmitida com antecedência na sua forma tecnicamente reproduzível e adquirível. H. M. Enzensberger escreve: “O turismo é uma indústria cujo produto é idêntico à propaganda: os consumidores são simultaneamente os seus empregados. As fotos coloridas que o turista faz só diferem na modalidade daquelas que adquire como cartão postal e manda para os amigos. É a própria viagem que ele empreendeu. O mundo do qual ele capta uma visão é uma reprodução a priori. O que ele recebe é uma imitação. O turista conforma o fato do cartaz, que foi exatamente o que o tentou de saída[9].

O desperdício sensório e o empobrecimento dos consumidores capitalistas do artigo aumenta à medida que o próprio mundo dos bens de consumo expõe a sua total sensualidade. O campo de percepção e experiência dos seres humanos tende a retrair-se até o domínio povoado de cenas de estética de consumo, que se interpõem como um filtro entre os sentidos humanos e a natureza – e a própria natureza surge apenas como “o fundo dourado do bem de consumo”. Os sentidos do consumidor transformam-se visivelmente em “receptores” de meros sinais de aquisição. A sua sensualidade torna-se cada vez mais um meio de comunicação, uma passiva “membrana” do artigo, sua linguagem estrangeira e monopolizada torna-se uma segunda “língua materna”.

O íntimo psicológico do comprador tende a transformar-se num “campo de associações”, numa “colônia” psicológica do mundo exterior dos bens de consumo. Segundo Haug, a tendência vai tão longe que o caráter de valor de uso recua cada vez mais diante do seu caráter associado de “significação”, inconsciente e semi-consciente (era o caso de se dizer do seu caráter artístico). Haug declara: “Os fenômenos aqui descritos se multiplicarão de acordo com sua quantidade e insistente significado; segundo sua qualidade, o efeito será que a estrutura do valor de uso dos bens é deslocada para ainda mais longe, na direção de uma superênfase nas relações com as necessidades de um tipo fantástico. Um número cada vez maior de bens se deslocará no sentido daquilo em cujo extremo se encontra ‘a coisa que meramente significa’. A expressão ‘coisa que meramente significa’ indica, ao que se supõe, que o grau de realidade e a natureza do próprio bem de consumo, como valor de uso encontram-se deslocados para longe de um ‘objeto externo, que satisfaz necessidades humanas definidas, através dos seus atributos físicos’ (Marx) surgindo simplesmente como ele é e na direção de uma progressiva acentuação do que significa e se relaciona no bem de consumo. O peso se deslocará ainda mais longe do material imediato, de valor de uso proposital para ideias, sentimentos, associações, que a pessoa identifica com o artigo, ou que se supõe que outros identifiquem. Como a embalagem e a propaganda rodeiam o artigo de uma aura de associações, as auras de associação dos artigos e satisfação de necessidade serão amoldadas de acordo com o seu suposto valor de uso[10].”

À medida que o verdadeiro valor de uso dos bens de consumo decresce de acordo com sua planejada deterioração, o valor imaginário, ideal, aumenta, de certo modo. É uma espécie de “ironia da sorte” para a economia capitalista de consumo que, quanto mais matéria e material humano vende, mais “idealista” e até “fantástica” ela se torna. O verdadeiro valor de uso material tem muitas vezes a simples função de expressar uma ideia, uma associação que inspire o comprador a adquirir. Já que ele precisa decidir-se entre artigos da mesma espécie, que já não se distinguem pelo seu valor de uso, seleciona aquele que transpira a “aura” mais promissora, isto é, dentro do mesmo gênero de artigos – e isto é exato tanto para detergentes como para “mensagens políticas” – ele tem apenas uma escolha entre os nomes, formas, quadros concorrentes, em suma, entre aparências “fantasmas”. As “aparências concorrentes” (Haug) dos artigos que se oferecem ao comprador educam-no cada vez mais para ser um “idealista”, ou “fantasista”, que persegue ideias, associações, parcelas da imaginação e alucinações, que rondam o âmago em visível deterioração do valor de uso material do bem de consumo.

O mundo “fantasmal” das associações consumistas lembra o mundo psicótico das associações no sentido de que parece buscar meios cada vez mais aperfeiçoados para evitar a censura crítica do comprador, isto é, a função de “testar a realidade”. A relação do comprador com o mundo consumista torna-se assim cada vez mais irreal. W. Alf escreve: “Os bens de consumo oferecem, e nisto são comparáveis ao estilo Luís XV, um revestimento cada vez mais brilhante e fino, que promete mais e mais porém cumpre cada vez menos aquilo que na verdade deveriam cumprir: se a ideologia da felicidade não fosse constantemente alimentada com o bem de consumo, dificilmente produziria sentimentos de felicidade.[11]O comprador tende a tornar-se o “psicótico consumista”, que nega o valor de uso visivelmente real e essencial em diminuição, à medida que é enganado acerca de seu valor de uso aparente, sua promessa de felicidade. Considerado desta maneira, o comprador sofre uma crescente “perda de realidade” com respeito ao mundo dos bens de consumo. Seu comportamento aquisitivo adquire atributos cada vez mais “fantásticos”, quase “delirantes”, na verdade.

A Euforia Consumista e a Euforia das Drogas

Já que os mercados externos se acham cada vez mais bloqueados pela expansão de campos socialistas e movimentos de libertação anti-imperialistas nos países do Terceiro Mundo, o capitalismo monopolista de hoje está cada vez mais dependente da intensiva exploração e abertura de mercados internos. As novas estratégias de vendas resultantes da realização e dos problemas de vendas do capital monopolista têm graves consequências para a psicologia do consumidor, em especial a do jovem consumidor. O rígido tipo renunciatório, protestante, que segurava a Bíblia numa das mãos e a caderneta de poupança na outra, ergueu um excesso de “resistência de caráter” às excessivas estratégias de venda do capital. Precisaria, portanto, ser “reamoldado”, isto é, amaciado e degelado de modo a permitir que o capital “atraísse os pássaros dourados dos seus bolsos” (Marx[12]) com mais facilidade. A consciência religiosa, em sua forma ascética protestante, precisava ser desmantelada porque transformava em obstáculo a realização dos interesses do capital: hoje inclina-se a ser substituída pela “má consciência” quando não segue os “imperativos categóricos” da mais recente oferta de bens. O capital já não pode usar a moralidade “anal-retentiva” renunciatória da classe média, que ainda funcionava na fase clássica do capitalismo (não, pelo menos, na esfera da circulação e do consumo). Em vez disso, atrai o rígido caráter compulsivo protestante para longe do banco da igreja ascética e atira-o na lasciva poltrona das feiras industriais; coloca os Beatles contra a “canção da renúncia” religiosa, o pop moderno contra o velho estuque, a deusa do sexo contra a Virgem Maria, em suma: um “paraíso” lucrativo de consumo sobre a terra, em lugar do “paraíso no além”, sem lucro algum.

Este processo de reeducação e reamoldamento do caráter anal-obsessivo-compulsivo clássico num “artigo fetichista altamente variável” (que pode ser abordado e seduzido em determinado momento) foi descrito por R. Reiche como um “processo de substituição de rígido funcionalismo por dessublimação repressiva”. Reiche declara: “Os indivíduos precisam aprender a consumir. A consumir sempre que o sistema queira e a consumir o que quer que o sistema queira. O clássico caráter anal-compulsivo precisa afrouxar-se.[13]Segundo Reiche, este novo caráter social “repressivamente afrouxado” é puramente uma “fachada genital. A estrutura instintiva desses indivíduos foi insuficientemente preparada para o ‘primado genital’. Mas não parece que se vigiem por causa de restrições instintivas (tais como o pervertido clássico), e sim por causa de insuficiente treinamento dos instintos e do ego.[14]

Tão problemático como o conceito de “fachada genital”, pode ser, uma vez que ainda depende da ficção freudiana do “caráter genital” e evoluiu somente das condições da esfera de realização, isto é, do consumo. A descrição de Reiche é correta no sentido de que o comportamento do consumidor, em especial o da jovem classe média, está hoje assumindo uma forma regressiva, ou seja, a forma do vício. O caráter de bem de consumo atribuído ao caráter viciante coloca também o seu selo na estrutura instintiva do consumidor. Conforme demonstramos anteriormente, as qualidades caracterológicas dominantes do caráter social clássico, que se firmou com a acumulação do capital, foram os mecanismos de defesa anal e formação reativa; enquanto que as qualidades do caráter “oral”, tais como a capacidade psicossexual para divertir-se, para a sensualidade, a entrega e a embriaguez eram correspondentemente reprimidas. Hoje, porém, essas modalidades de caráter “oral” são de novo içadas de seu estado recalcado pelo infindável apelo sensório de uma paisagem psicodélica de bens de consumo. Claro que o caráter “oral”-viciante do capitalismo, que precisa realizar o máximo de consumo, já nada tem em comum com o caráter do prazer feudal. Onde este era ainda capaz de adquirir sensualmente os prazeres do mundo econômico-natural, o primeiro cai na crescente dependência de uma sensualidade totalmente abstrata, de estética de consumo, determinada por forças alienadas; e isto mantém o caráter oral-viciante preso ao círculo debilóide entre a pseudo e a não-gratificação, de modo a impelir o usuário a progressivas “realizações” consumistas.

Segundo Freud, a religião, a arte e os narcóticos são algumas das “grandes gratificações substitutas” dos seres humanos[15]. A função ideológica da religião e da arte (burguesas) como domínios exteriores da superestrutura, a produção de um “mundo fantasmagórico de aparências” e sua função psicológica de massa, a exibição ritualista de gratificações coletivas substitutas (para as frustrações da vida real) – tudo isto tende a ser substituído pela imanente religiosidade, estética, e narcotizante, do mundo dos bens de consumo. Isto altera também a tradicional relação entre base e superestrutura: à medida que a cúpula de São Pedro se torna propaganda do artigo celeste e as histórias dos mártires religiosos são substituídas pelo rosto das bonecas felizes do mundo consumista, também a arte e a religião se tornam (do ponto de vista do capital) cada vez mais supérfluas fora deste mundo. O capital libertou as “grandes gratificações substitutas” do homem de seu gueto religioso e artístico, propagou-as e massificou-as, espalhando por toda parte a “canção” do bem de consumo e o “teatro empático do artigo” aristotélico. Combinando um “estado de euforia” religioso, artístico e narcotizante com a “euforia do consumo”, proporciona uma síntese de todas as “grandes gratificações substitutas” do homem.

Walter Benjamin já descreveu a estetizante, mistificante e narcotizante atmosfera que as metrópoles da sociedade capitalista dos bens de consumo disseminam por toda parte, em sua obra Charles Baudelaire Um Poeta Lírico na Era do Alto Capitalismo: “Baudelaire era um conhecedor de narcóticos e, no entanto, um de seus mais importantes efeitos sociais escapou-lhe, provavelmente. Consiste ele no charme manifestado pelos viciados sob a influência das drogas. Os artigos de consumo produzem o mesmo efeito na multidão que os rodeia, intoxicando-os. A concentração de costumes constitui o mercado, que por sua vez torna o artigo um artigo, sublinha seu atrativo para o comprador médio. Quando Baudelaire fala do ‘estado de inebriamento religioso das grandes cidades’, o bem de consumo será provavelmente o sujeito não-mencionado deste estado[16]. E Benjamin descreve como o flaneur do “segundo império”, ainda interessado na utilidade das coisas e dos seres humanos (“em pedras, lanternas a gás e fiacres”) e protestou como uma “personalidade” total contra a “divisão do trabalho” na produção de bens industriais, que é finalmente corrompido pelo “artigo narcotizante”. O flaneur (já no declínio) acha-se à mercê das multidões. Com isso partilha a situação dos bens de consumo (…) Ela o permeia bem-aventuradamente, como um entorpecente que pode indenizá-lo de muitas humilhações. A euforia a que o flaneur se entrega é a do bem de consumo com o burburinho da multidão ao redor[17].

Este “estado de embriaguez religiosa das grandes cidades” parece, entretanto, estar chegando ao seu apogeu dentro da paisagem capitalista do consumo: onde quer que os dionisíacos “deuses da felicidade”, conclamados pelo capital, iniciem a “canção dos seus bens”, despertam a volúpia daqueles de quem desejam lucrar. Onde quer que manifestem a “sacralidade do bem de consumo”, encantam com o seu sex-appel, de modo a transportar o comprador a um estado erétil de euforia semi-religiosa.

Na verdade, a pesquisa americana demonstrou que as donas-de-casa fazem 50 por cento das compras de supermercado por impulso, isto é, as compras já não são motivadas por uma necessidade racional. Os compradores estão tão cegos pela aparência “sensória-supra-sensória” do mundo dos bens de consumo que sua capacidade crítica entra em colapso. De fato, disposições com vistas à estética do artigo sistematicamente a afasta. Assim – para citar apenas um exemplo – o Color Research Institute de Chicago especializa-se no design de embalagens de efeito profundo e não permite que qualquer uma chegue ao mercado sem ter sido submetida a “testes de atração visual”. Embora os compradores se sintam particularmente “livres” dos supermercados, porque, ao que parece, são eles próprios que se servem, isto é, escolhem “livremente”, na realidade as estratégias de propaganda há muito assumiram o controle de seus reflexos aquisitivos. Segundo Vance Packard, o El Dorado do supermercado transporta o comprador, as mulheres em especial, a um “estado de transe”, que lembra o estágio inicial da hipnose[18].

Considerando psicanaliticamente, o estado de hipnose, isto é, euforia, é uma condição ligeiramente psicótica, onde o ego nega uma parte da realidade,  a  fim de render-se ao desejo alucinatório, isto é, o mundo substituto do “id”. Em contraste com o genuíno psicótico, que produz seu mundo alucinatório de aparências por própria vontade, isto é a partir das concepções do id, o “psicótico do consumo” delega o seu poder alucinatório, em certo sentido, ao “mundo fantasmagórico do faz de conta”, dos bens de consumo, que usurpa o poder do próprio psicótico para imaginar e desejar. Assim como o primeiro é dominado pelas imagens livres de seu mundo interior, também o último é dominado pelos modelos da estética de consumo de um anônimo mundo exterior. Assim como o primeiro se perde no labirinto de seus desejos insatisfeitos (de infância), o último se perde no labirinto dos desejos consumistas, nele constantemente estimulados e que o deixam insatisfeito porque já não são dele. Contudo, enquanto o verdadeiro psicótico se afasta mais ou menos por completo da realidade exterior, a fim de entregar-se inteiramente ao seu próprio mundo psíquico e cheio de desejos, o “psicótico de consumo” desliga todas as luzes do desejo, a fim de mergulhar completamente na claridade psicodélica do cenário de consumo. Seu mundo mental interior, por assim dizer, torna-se o “mundo interior do mundo exterior” dos bens de consumo, ou seja, uma escuridão  interior iluminada apenas pelo clarão do mundo exterior do consumo. O “aparelho psíquico” é, de certo modo, reconstruído e transformado numa “tela” para o filme consumista que se passa lá fora.

O artigo de consumo, porém, conserva a sua força psicodélica, isto é, psíquica, somente dentro do ritual da compra. Já que o valor de uso real se reduz à proporção que o valor de uso brilha nas cores sempre renovadas da “inovação estética” (Haug) de sua superfície, a euforia é necessariamente seguida pela ressaca. Brecht já descreveu o efeito: “Quando passamos por uma loja, as roupas expostas na vitrine parecem em geral tão bonitas que se sabe imediatamente: a estética esteve aqui em jogo; pessoas especialmente adestradas desenharam isto e sua principal finalidade era compor algo de bom gosto. Além disso, as roupas aqui em exposição revelam o seu lado melhor. Foram feitas especialmente para a vitrine e só revelam o quanto são inferiores depois que as compramos e usamos. Torna-se então logo evidente que não foram feitas para a grosseira realidade. O material é inferior, isto é, não dura muito e muda rapidamente a aparência. o terno velho é irmão do novo e dele toma conta[19].

Fora da relação de compra, o artigo perde a sua força psicodélica, ou seja, “psicótica”. Uma vez que o filme do consumo termina, o comprador sóbrio se encontra diante do falso valor de uso, como ante os remanescentes de sua auto-ilusão. R. Heuer escreve: “Afora o lucro, o capital – antes do final de sua história – está interessado apenas num efeito colateral de seus produtos: em sua bela frustração. Ele produz somente (pelo menos na área dos bens de consumo – autor) eméticos de maravilhoso sabor, coisas que satisfazem somente até certo ponto, para que o próximo ato de compra seja realizado o mais depressa possível, isto é, antes que a inutilidade daquilo que acaba de ser adquirido seja plenamente compreendido. Este é o quadro clássico do vício: é a experiência que sempre promete mais do que cumpre; mas no final a única coisa que promete é prometer-se a si mesma[20].

O vício das drogas é um extremo da ampla escala produzida pela sociedade de consumo capitalista. Haxixe, LSD, euforia das drogas, que arrebata em especial a juventude consumista de hoje, produz um “estado hipnóide” (Vance Packard), no qual o consumidor é impelido ao seu extremo limite no mundo dos bens de consumo. Considerados desta maneira, o haxixe ilegal, o LSD e o cenário das drogas são apenas uma extensão do cenário de consumo legal, onde todo mundo mais ou menos se torna “viciado” em nicotina, álcool, Coca-Cola, televisão, ou seja o que for. Não só a sociedade “pária” dos viciados em drogas, mas também toda a sociedade “no interior” dos consumistas encontra-se numa viagem sonambúlica que, é claro, termina sempre nas prosaicas caixas registradoras das grandes lojas de departamentos.

São os jovens consumidores os mais expostos ao fogo cruzado das várias campanhas de publicidade. Quanto mais psicodélicos os anúncios, melhores as vendas. As ideologias propagandistas destinadas à juventude, porém, assumem um caráter progressivo de ideologias de consumidores de drogas. Se Marx chamou a religião de “ópio do povo”, a sociedade de consumo capitalista inverteu a sentença: o consumidor de narcóticos e o consumidor de psicotrópicos já não precisam de ideologia religiosa, ambos estão de tal modo embriagados pelo artigo, que já sentem o “além” aqui e agora. O ópio genuíno e o do artigo tornaram-se hoje a “religião do povo”.

É por isso que a luta oficial contra o vício das drogas torna-se tão hipócrita, pois a única coisa combatida é o ilegal e, portanto, não-lucrativo limite extremo do vício, mas não a sua forma cotidiana, legal e lucrativa.

O verdadeiro fascínio da psicose da droga, como um caso extremo de “psicose do consumo”, consiste no efeito altamente dinâmico decorrente do “deslocamento” e da “condensação” (Freud) de ideias e conceitos inconscientes num estado de sonho, isto é, eufórico. Osborn escreve: “De modo peculiar, a vida onírica (e também a euforia) está ligada mais de perto à natureza dinâmica da realidade do que à vida em vigília. Pois o consciente tende a representar os processos do meio ambiente como rígidos e distintos (…) Por outro lado, a vida onírica apresenta o seu conteúdo na forma de ações altamente dramatizadas (…).[21] A suscetibilidade, em especial entre os jovens consumidores, aos alucinógenos pode ser atribuída, entre outras razões, ao fato de que suas relações sociais, que se petrificaram em pura relação de troca e dinheiro, são artificialmente dinamizadas e dramatizadas nos estados alucinatórios do sonho e da euforia. Vistas desta maneira, a dinâmica e a dramática artificiais do estado de embriaguez são uma tentativa repressiva para romper com a verdadeira desolação e petrificação da sociedade de troca capitalista.

A dinamização da realidade no estado de euforia está ao mesmo tempo ligada a uma concretização altamente sensória: enquanto no estado de vigília a realidade concreta é predominantemente assimilada em conceitos abstratos, no sonho, ou seja na euforia, os pensamentos abstratos, os “devaneios” (Freud) são levados a uma forma altamente concreta e sensória pelo “deslocamento” e a “condensação” do “trabalho onírico”. Se considerarmos o haxixe, o LSD, ópio ou outros sonhos artificialmente induzidos, ou seja, a euforia dos jovens trabalhadores, sob este aspecto, parece uma tentativa inapelavelmente regressiva de compensar, através da concretização sensória, o trabalho que se torna cada vez mais abstrato e determinado por forças alienadas.

O panorama do artigo de consumo psicodélico tem efeito similar, embora em dosagem bem mais tênue. Suas imagens parecem criadas segundo as leis da “análise dos sonhos” freudiana; também elas são marcadas por um grau extremamente  elevado de condensação. Quanto mais “planejada” é a exposição visual dos artigos, isto é, quanto mais aqueles desejos e anseios conscientes e inconscientes são “condensados” em seus elementos pictóricos, maior é a sua “adesão”, ou seja, seu valor de propaganda. A palavra como mensagem publicitária só tem agora uma função secundária; já não está à altura da “planejada” linguagem pictórica da estética de consumo. Assim como as drogas produzem um estado de sonho interior artificial, através de uma revivificação regressiva de memórias visuais, o mundo do artigo psicotrópico produz, pela fixação de sua aparência pictórico-visual no consumidor, uma condição artificial e externa para o sonho. Os quadros de sonho da estética de consumo são, de certo modo, as cenas de sonho padronizadas e massificadas do consumidor, projetadas na superfície do artigo depois de ter sido previamente a ele arrebatada pelo marketing e a psicologia publicitária. Fixação e regressão ao “nível sensório do reconhecimento”. (Mao Tse-tung[22]) – isto o bem de consumo real e do sonho têm em comum – conduzem um bloqueio de “reconhecimento racional” das relações sociais que assumiram “a forma de uma relação de coisas” no bem de consumo. O preço pago para tornar a droga e o consumidor visualmente sensíveis é a imobilização da linguagem: diante do poder sugestivo das imagens que o mundo dos bens de consumo falsamente promete, o comprador psicodélico fica tão mudo quanto o sonhador e o viciado em drogas.

A burguesia reage, finalmente, com tal horror ao viciado por nele reconhecer a “face de Janus” de seu próprio movimento econômico: a “euforia”, o “prazer” de um lado e do outro a ruína (econômica e mental). O viciado, que em geral ainda tem que negociar, isto é, tornar o maior número possível de consumidores dependentes de droga, a fim de poder financiar seu hábito, elabora, portanto, a interpretação extrema do “mercado livre”, de uma “livre ” troca de bens de consumo: “Cada qual especula a ideia de criar uma nova necessidade para o outro e colocá-lo em estado de dependência, a fim de levá-lo ao uma nova modalidade de prazer e, portanto, à ruína econômica”. (Marx[23]).

O vício das drogas é o reflexo psicológico do vício “econômico”, o vício do lucro, que surge das leis obsessivo-compulsivas da produção de bens. Tão indiferente como o viciado em drogas em relação a todas as necessidades individuais que não sirvam à satisfação do seu vício é o capitalista em relação a todas as necessidades sociais (por exemplo, a redução da semana de trabalho) que não sirvam à satisfação do seu vício de lucro. A única necessidade, no caso, de uma embriaguez mais alta corresponde no outro à necessidade única de uma proporção de lucro cada vez mais elevada. O vício total e a total indiferença para com tudo o que não sirva à satisfação do vício são os dois pólos patológicos da droga e da “alma do bem de consumo”.

A “Boneca Consumista” e a “Boneca Sexual”

Conforme já debatido, o princípio da troca está ligado a uma certa animosidade em relação à sensualidade, uma notória indiferença à diversidade sensória do valor de uso e às necessidades e satisfações sensórias por ele transmitidas. A abstração da sensualidade reproduz-se com a evolução da sociedade de consumo (capital), em plano cada vez mais elevado. A sensualidade sexual está também sujeita a este processo de abstração na medida em que é arrebatada como função de venda pelo capital. A obsessão-compulsão para a produção uniforme e estandardizada, que é um dado na produção em escala mais ampla, estende-se também à produção industrial do sexo, isto é, à produção de bens sexualizados. Haug escreve: “A sensualidade sexual pode ser utilizada pelo capital industrial apenas em forma abstrata, em sua maciça reprodutibilidade.[24]Bens sexualizados só podem realizar seu particular valor de uso erótico (em condições capitalistas) quando assumem a “forma de generalidade abstrata”, ou seja, oferecem-se às necessidades sexuais de modo generalizado, abstrato, padronizado. Haug acrescenta: “A necessidade sexual e a oferta para satisfazê-la não estão especificadas. Em certo sentido, as formas sexuais do artigo principiam a parecer dinheiro, com o que Freud, nesta conexão, comparou a ansiedade: tornam-se livremente conversíveis em todas as coisas. O valor de troca põe a sexualidade a seu serviço e a transforma em valor de troca. As fachadas de felicidade sexual tornam-se o revestimento mais usado do bem de consumo, ou então o fundo dourado no qual o artigo se estampa.[25]

A boneca consumista sexualizada mostra o espelho de sua superfície ao consumir pelo tempo que for necessário para que ele finalmente ali se reconheça. No processo desta imperceptível mímica, ele atola tudo que ainda lembra os seus traços individuais imutáveis, faciais e de caráter, a fim de adiantar-se purificado para o purgatório da produção em massa padronizada, como um refinado valor de troca sexual. A boneca consumista sexualizada e a “boneca sexual” dela retirada representam, portanto, o mesmo papel na estética da sociedade de consumo capitalista que o dinheiro na economia desta mesma sociedade: já que o dinheiro é o equivalente econômico geral, em que todos os artigos mortos de consumo representam seu valor de troca, a boneca sexual é o equivalente estético geral em que os bens de consumo vivos representam sua intercambialidade. É por isso que o dinheiro e a propaganda de crédito assumem hoje em dia, cada vez mais, a forma de anúncios sexuais: “O sexo é simplesmente normal e tão moderno quanto possuir títulos. A pessoa que deixa o dinheiro cobrir-se de poeira numa conta bancária é tão antiquada quanto os sexualmente inibidos” (Twen).

A não-especificação das formas sexuais e o simultâneo embonecamento dos traços humanos faciais e de caráter manifesta-se no retratar pornográfico do mundo dos bens de consumo, assim como na prática sexual promíscua do consumidor de sexo e pornô (da classe média). A “grande venda sexual” na forma de “pornô, pop e sexo grupal”, celebrada pela máquina de vendas como uma “revolução sexual”, não prova a libertinagem sexual de uma cultura progressiva; prova somente que o capital das lojas de departamentos consegue maior lucro com a nudez, hoje, do que com a discrição burguesa. A pornograficação de toda esfera de consumo, como a promíscua conversibilidade dos objetos sexuais, significa, porém, a total abstração do valor de uso da sexualidade. Isto se torna particularmente evidente no Relatório Leigh, citado por Reiche: “É característico de todos os casos descritos por Leigh, que cada indivíduo resolva o seu descontentamento na vida por meio de uma espécie de acontecimento esportivo permanente. Mesmo quando se torna viciado, o que acontece, em geral, não compreende o vício como uma não-realização da prática de sua vida e sim como um aumento de entusiasmo esportivo. A forma dominante do comportamento sexual, agarrar-se a um parceiro, ou melhor, o senso obsessivo-compulsivo do dever de usar um parceiro, é apenas aparentemente eliminado pela compulsiva anarquia e indiferença na escolha de todos os parceiros (…) O resultado é que a sexualidade é radicalmente levada à forma de bem capitalista, cuja expressão adequada é o seu valor publicitário e o infinito aumento de consumo. Traduzido para a categoria da sexualidade, esse aumento de consumo significa: bens individuais não me satisfazem, deixam-me insatisfeito porque só os posso consumir, mas não posso realmente utilizá-los. Assim, quero “realmente” consumi-los, afixar-lhes o valor de troca mais alto possível e deles fazer propaganda, fotografá-los, transformá-los numa série, tratá-los de maneira sádica, etc…[26]

A forma capitalista de promiscuidade demonstra de maneira impressionante como a estrutura dos bens de consumo e do dinheiro, das necessidades e gratificações sociais determina também de maneira crescente a estrutura social. A ânsia de dinheiro e a ambição de sexo promíscuo têm o mesmo movimento: o que é desejado não é o valor de uso erótico do objeto sexual e sim a forma abstrata geral indistinta, que surge em sua promíscua conversibilidade. Esta espécie de ânsia sexual, não específica e desqualificada, é então medida de preferência em conceitos de dinheiro e realização, isto é, em conceitos quantificados (comparar também com Reiche, em “namoro americano[27]”), assim como, pelo contrário, a potência do dinheiro torna-se a medida da potência sexual. H. M. Plato observa: “Na minha opinião existe uma conexão entre potência e dinheiro. A boneca de ouro aumenta a potência daquele que a possui como um tesouro. Aumento de dinheiro e aumento de potência caminham de mãos dadas (…) Você pode fazer a boneca dançar com o dinheiro. A dança ao redor da boneca dourada é a dança ao redor da força, do poder total.[28]

A troca promíscua de parceiros é, em certo sentido, a última consequência da troca equivalente. A indiferença sexual do sexo capitalista e do consumidor de pornografia é a expressão psicológica extrema da equivalência de seu valor econômico e da indiferença às relações de troca abstratas. O alto índice de frigidez e impotência psíquica (sobretudo entre os consumidores classe média do sexo e do pornô) prova que o “gelo da economia de consumo” (Walter Benjamin[29]) penetra até as mais íntimas expressões sexuais e podem ir ao ponto de “isolamento insensível do indivíduo em seus interesses privados” (F. Engels[30]).

Uma sociedade de consumo pode portar-se mais livremente, portanto, em relação à sexualidade porque o seu conteúdo subversivo está sendo progressivamente liquidado pela coordenação capitalista e pela uniformização de conteúdo e aparência sexual. Os consumidores de sexo e pornô menos capazes devem passar por uma relação “nua” de troca e dinheiro, a que ficam reduzidas todas as relações sociais, tanto mais voyeuristicamente se portarem em relação à nudez do corpo humano. A “educação sexual” que o capital injeta hoje nos consumidores de sexo e pornô é, portanto, a contrapartida exata da “Educação Amorosa” de Brecht: “Contudo, meninas, recomendo / algum atrativo nos gritos. / Carnal, amo a minha alma / desalmado, a minha carne[31]“.Quando os interesses capitalistas liberam o tabu de sexualidade burguesa, quando desnudam a carne peça a peça, como se fosse uma tentadora embalagem de artigo, esta dialética de amor “carnal” e “espiritual” se desarvora: nem a “alma capitalista”, nem a carne desnudada pelo capital “sopra o espírito” nos que dependem do amor.

A “revolução sexual”, que está sendo incrementada sob o signo de “revolução nas vendas”, contribui mais ainda para a fragmentação e a parcialização da estrutura instintiva. A cada aquisição, o comprador, por assim dizer, recebe a promessa de uma “amada”, ou pelo menos de parte dela: seios, pernas, coxas. Assim, o capital de hoje traz à luz os fragmentos eróticos que a “moral sexual cultural” costumava manter nas sombras, isto é, traz à luz de neon, já que mesmo a exibição de fragmentos fetichizados da boneca consumista são lucrativos. A tendência à fragmentação da estrutura instintiva, no rastro da especialização progressiva e da fragmentação do trabalho industrial, torna-se ainda mais nítida graças à “provocação parcial” da estética consumista dentro da esfera da circulação. Amoldando a sensualidade, a estética consumista contribui decisivamente, portanto, para a autonomia regressiva dos “impulsos parciais”. Com a finalidade de ilustrar o mecanismo da regressão instintiva, Freud comparou, certa vez, a estrutura dos instintos a um sistema de tubos comunicantes, cujo principal canal “genital” se acha bloqueado a ponto de gerar uma pressão excessiva nos canais “pré-genitais” subsidiários. Assim, a aparência do valor de uso sexual no mundo dos bens de consumo produz também um imenso excesso de pressão nos “canais subsidiários” da estrutura instintiva: a energia libidinosa é impelida para os canais subsidiários da libido, ou seja, é impulsionada para uma fixação exibicionista e voyeurista. Haug escreve: “O valor de uso da pura aparência sexual, por exemplo, reside na gratificação da curiosidade. Com aparente gratificação através da mera aparência sexual é característico que a demanda pela aparência se reproduza simultaneamente na gratificação e fixação compulsivas (…) Aqui, a única forma de valor de uso adequada à utilização maciça tem efeito retroativo sobre a estrutura das necessidades dos seres humanos, isto é, a fixação voyeurística[32].

Por outro lado, quanto mais fracionada e fragmentada se torna a estrutura instintiva do operário industrial e do erotista parcelado, mais aumenta a demanda de modelos eróticos que personifiquem a “totalidade” sensual que lhes foi até então negada. Toda a “arte” da mecânica de vendas capitalista consiste em reunir os “objetos de venda” do artigo, isto é, a boneca sexual, de modo que suas costuras e fragmentos não se tornem aparentes. O corpo de um carro, ou seja, de uma boneca sexual, torna-se mais dispendioso, iridescente e “total” à medida que o “motor” sensual de seus consumidores se encaminha para a sucata. A “tecnocracia da sensualidade” (Haug), que permite ao capitalista do mundo consumista brilhar e ressoar em todas as cores e sons, significa simultaneamente o crescente desmantelar da sensualidade por parte do consumidor. Quanto mais colorido, cheio de truques e diversificada é a face do artigo, tanto mais pálido, uniforme, monótono e pobre se torna o comprador.

Há três mil anos, os seres humanos dançavam ao redor do “bezerro de ouro”, isto é, à volta da encarnação da riqueza “abstrata”. Hoje é a própria riqueza abstrata, o consumo e a boneca de ouro que dançam diante dos olhos do consumidor nas vitrines, na tela da televisão e em toda parte. No decurso da história da sociedade de consumo, o “bezerro de ouro” revelou-se, de certo modo, um “cavalo de Tróia”, que veio à vida na proporção em que solapou a existência e a vivacidade de seus adoradores.

A Disciplina da Realização Anal e a Dependência Oral

“A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto  só é nosso se o possuímos, se ele existe para nós como capital, ou se for imediatamente por nós possuído (…) Daí terem sido todos os  sentidos físicos e espirituais substituídos pela simples alienação de todos eles, o sentido de posse.[33] A “sociedade de consumo” capitalista concretizou plenamente a afirmativa de Marx: todo o mundo objetivo dos valores de uso, que o homem já não pode “adquirir”, foi substituído pelo mundo dos fetiches que ele só pode “possuir”, isto é, comprar. O sentido de “possuir”, de comprar, tornou-se o sentido por excelência, o “sentidos dos sentidos”, o “sentido” da sociedade capitalista como tal. A identidade de comprar e amar é a perversa identidade da “alma do bem de consumo”, que hoje fala até pela “alma das crianças”.

A atrofia e o empobrecimento da sensualidade humana têm aumentado historicamente à medida que cresce o processo de reificação, ou seja, a abstração da particular e concreta forma de uso (econômico-natural) do trabalho e as necessidades e satisfações concretas por ele mediadas. O que parece contradizê-lo é o fato de que a produção de bens de consumo plenamente desenvolvida, em especial a do capitalismo de hoje, despertou e também gratificou tipos inteiramente novos de necessidades, que na Idade Média, por exemplo, devido ao subdesenvolvimento econômico e técnico, nem sequer existiam. A patologia da sociedade de consumo capitalista não consiste no fato de ter baixado o nível de satisfação da necessidade social em termos quantitativos e absolutos. Pelo contrário, este subiu quantitativa e absolutamente com a evolução das forças produtivas. O que é patológico é que a produção de necessidades e satisfações sempre novos ande de par com a destruição da capacidade psicossexual para a necessidade qualitativa, isto é, a extrema satisfação.

O ato da compra por parte do consumidor, escolher de uma vitrine a outra, de uma moda, catálogo, cinema, ao seguinte, assume cada vez mais o caráter de prazer substituto, isto é, antegozo. No ato da compra, o consumidor busca adquirir por procuração uma fração daquilo que os produtores lhe arrebataram. O fetiche do artigo torna-se então, de certo modo, a folha da parreira que cobre a sua expropriação, o seu “despojamento” como produtor. Quanto mais capaz de comprar, isto é, quanto mais frequentemente puder mudar os seus atributos fetichistas, tanto menos expropriado, ou “castrado” parecerá e maior será a sua potência individual aparente. Marx escreve: “Tudo que o economista nacional tirar de sua vida e humanidade ele o substituirá, na forma de dinheiro ou riqueza, e tudo o que você puder fazer o seu dinheiro também pode: comer, beber, ir a festas, ao teatro; ele sabe subjugar a arte, a cultura, as raridades  históricas, o poder político; pode viajar; pode adquirir tudo para você; poder comprar tudo isso é a verdadeira potência.[34] O bem de consumo, isto é, o fetiche do dinheiro, torna-se o substituto como tal da satisfação fálica, o objeto substituto totalitário para a totalidade das potências e capacidades humanas, que seus proprietários, assim como seus produtores, perderam. Para eles a defasagem entre o mundo da riqueza abstrata e o mundo da riqueza sensório-concreta, entre o acúmulo de valores de troca abstratos e a aquisição sensual de valores de uso concretos torna-se cada vez mais profunda. Assim, a sociedade do capitalista consumidor lembra cada vez mais o paraíso de Midas: objetivamente falando, quanto mais oportunidades de satisfação tem um homem, menos satisfeito ele se torna.

O capitalismo alcançou hoje um estágio onde (como anteriormente, durante a transição do feudalismo para o capitalismo primitivo) toca os fundamentos do caráter social. Pela crescente fragmentação do trabalho industrial  e das capacidades e qualidades a ele ligadas, por uma provocação “parcial”, a estética consumista cada vez mais penetra a “esfera do consumo” e por uma crescente perda de autoridade nas clássicas agências de socialização (sobretudo a família), a estrutura instintiva da juventude de hoje está cada vez mais “afrouxada”, isto é, desintegrada. A progressiva parcialização e fragmentação da estrutura instintiva tem como consequência tornar cada vez menos possível conseguir relações de objeto amadurecidas e firmes com o parceiro sexual. O conteúdo da relação de objeto sexual torna-se tão “indiferente” e fugidio como o conteúdo do trabalho. Esta “indiferença” em relação ao trabalho, aos objetos de consumo, ao parceiro sexual, refletindo, como o faz, o caráter totalitário da relação de bem de consumo, é a verdadeira razão do maciço comportamento regressivo e dos sintomas que se encontram na juventude de hoje. Conforme já observamos, R. Reiche classificou esse novo caráter social “regressivo” de “fachada genital”: “A estrutura instintiva desses indivíduos foi insuficientemente preparada para o “primado genital” (…) Esses indivíduos devem ser “propositalmente” equipados com egos frágeis e em seguida amoldados na adolescência graças a exercícios de afrouxamento sexual intencionais. Esse “afrouxamento” – que é o que eles são de uma perspectiva histórica – estão individualmente ligados a um treinamento deficiente dos instintos, isto é, a uma incapacidade de conter os impulsos parciais[35].

Contudo, uma “educação instintiva deficiente”, ou seja, uma “incapacidade para conter os impulsos parciais”, não é a consequência primordial do fracasso das autoridades clássicas de socialização (entre outras a família). O “afrouxamento” regressivo da estrutura instintiva expressa a invasão da relação do bem de consumo com os seus níveis mais profundos. O total nivelamento, esvaziamento e abstração das relações sociais ligadas ao caráter do bem de consumo esvazia também progressivamente a estrutura instintiva, ou seja, a capacidade psicossexual para a catéxis libidinosa dos objetos. Pois a abstração da forma de uso particular, concreta (econômico natural) das relações e objetos libidinosos é idêntica à perda de sua totalidade sensória, que passa a existir somente através do conjunto de diferentes impulsos parciais, diferentes funções sensórias parciais, tais como ver, saborear, cheirar, tocar. Já que a totalidade das funções parciais sensórias foi reprimida pelo “sentido” totalitário do bem de consumo, e já que todos os “sentidos espirituais e físicos” foram reprimidos pelo “sentido de posse” (Marx), a estrutura instintiva permanece também rudimentar e subdesenvolvida.

Tão certo como a descoberta de R. Reiche no sentido de que o destino distintivo dos jovens consumidores (especialmente os de classe média) ocorre somente em nível quase agressivo, pré-genital, é errada a rígida e mecanicista alternativa do “caráter anal-obsessivo-compulsivo”, que se supõe historicamente ultrapassado, e do caráter de dependência “aparentemente genital” que se está transformando no caráter social dominante. A absolutização do conceito de dependência resulta necessariamente do fato de Reiche ter investigado somente amoldamentos instintivos específicos dentro da esfera do consumo. Embora o clássico “caráter anal-obsessivo-compulsivo”, com os seus rígidos estereótipos behavioristas, esteja também cada vez mais afrouxado pelas mudanças estruturais do processo de produção – graças a uma disposição cada vez maior para modificar as exigências do trabalho – o processo produtivo capitalista, com suas rígidas obsessões-compulsões para o trabalho e a realização, continua a gerar comportamento anal-retentivo e obsessões-compulsões de caráter (adiamento, assim como abstinência dos instintos, ordem, pontualidade e limpeza obsessivo-compulsivas). Na esfera da produção, o capital ainda maneja o açoite do trabalho parcelado, ao mesmo tempo que oferece, por assim dizer, uma cenoura, somente na esfera do consumo: de um lado exige ainda um rígido caráter de renúncia, a realização máxima no trabalho; e de outro um caráter dependente repressivamente “afrouxado”, que precisa gerar o máximo de consumo. De um lado os desejos instintivos são cada vez mais reprimidos pela intensificação e abstração do trabalho; e de outro são cada vez mais reforçados por apelos provocantes e “psicodélicos” para a compra. P. Schneider escreve: “Em primeiro lugar, o capitalismo dos últimos tempos precisa fortalecer a censura sobre os desejos mobilizados, convencer os trabalhadores e produtores de que não têm direito a tais desejos despertados e amoldados pela máquina de vender, que precisam trabalhar e esforçar-se. Mas precisa romper o dique que acaba de erguer antes que tais desejos invadam o consciente com imagens sempre novas de desejo de realização capitalista, de modo a manter o trabalhador como consumidor de seu produto alienado; o capitalismo precisa de ambos: mobilizar os sentimentos de culpa contra os desejos capitalistas, assim como os desejos capitalistas contra os sentimentos de culpa.[36]

Característico do destino instintivo do “caráter social” da juventude, que R. Reiche tem em mente, é que um extremo instintivo, a compulsão “anal-retentiva” para a realização, é alternadamente negada e mantida pelo outro, ou seja, a dependência “oral” (do consumo). A extrema tensão do produtor no processo de trabalho gera necessariamente o seu contramovimento patogênico: extremo relaxamento e afrouxamento na “euforia psicodélica”. O movimento instintivo em ziguezague, que cai de um extremo a outro no ritmo de produção e circulação capitalista, tende a destruir todos os fundamentos psicossexuais seguros, toda dialética da sequência instintiva e, portanto, também a capacidade de criar amadurecidas e firmes relações de objeto. U. Ehebald escreve: “Neste mundo (…) onde os adultos, por assim dizer, são forçados a assumir posições anais, onde a realização, a posse e o poder são os únicos objetivos dignos de esforços, a capacidade de amar perde-se cada vez mais. Assim, a relação entre adultos e crianças torna-se cada vez mais determinada pelas exigências da realização e não do amor. No melhor dos casos, jovens e adultos podem ainda amar de forma oralmente dependente neste mundo de consumo e propriedade (…) Também a sexualidade é assim, consumida como um vício. Mas isso é o extremo oposto de uma relação de objeto amadurecida[37].

Indeciso entre a repressão obsessivo-compulsiva dos instintos na esfera da produção e a libertação obsessivo-compulsiva dos instintos no consumo, o operário consumidor entra numa espécie de infindável situação “de dupla mensagem”. Esta contradição “esquizofrênica” entre a disciplina e a realização “anal” e a dependência “oral” é característica do comportamento do “caráter social” da juventude organizada de modo “aparentemente genital”.

O Caráter Obsessivo-Compulsivo da “Estética de Consumo

A inversão das qualidades sociais em “características naturais” resultantes do “caráter fetichista” do bem de consumo de hoje estende-se cada vez mais para a psicologia da “máscara de caráter econômico”. Isto é particularmente exato para os agentes do capital dependentes de salário, o pessoal de vendas. Desses empregados e vendedores “é exigido um esforço no sentido de exibirem o artigo (a sua força de trabalho); e sua aparência, a aparência dos empregados do capital, representa nesta situação o mesmo papel que a estética dos bens de consumo para os proprietários desses bens (…) O que é uma função de realização do seu capital em bens para o capitalista da loja de departamentos, a aparência dos seus agentes de venda, torna-se para eles uma função da venda da força de trabalho consumista” (Haug[38])..

No final da década de vinte, Krakauer, em seu livro Os Empregados, descreveu a compulsão para uma exposição estética dos bens pelos agentes de vendas. A crescente insegurança social da classe média na década de vinte forçou muitos empregados e secretárias a incrementar a rentabilidade e sua força de trabalho, que tinha baixa demanda, exibindo-se como artigos estéticos. “Temendo ser afastados como bens usados, senhoras e senhores tingem os cabelos e gente de quarenta anos dedica-se aos esportes para permanecer esguia”, escreveu Krakauer (citado por Haug[39]). Contudo, não só a aparência pessoal do vendedor como também o seu comportamento, na verdade toda a sua psicologia, fica afinal incluída na função da venda. Esta precisa tornar-se para ele segunda natureza, porque ele não é auto-suficiente e vende em nome de outra pessoa. Sua notória delicadeza e cordialidade, sua aparente preocupação, suas lisonjas e sempre agradável subserviência – todos esses elementos calculadores na sua função de vendas assumem a forma de qualidades caracterológicas pelo medo de “não ser aceito” pelo cliente. Sob o impulso de sua função de vendedor, ele precisa imitar constantemente um sujeito “simpático”, “cordial”, “jovem” e reprimir todas as qualidades, necessidades e sentimentos “naturais” que contradigam a função, pois do ponto de vista da realização, todos esses sentimentos “pessoais”, todos os humores, temores e agressões temporários são apenas “fatores prejudiciais” à sua função de vendedor. A máscara de caráter econômico do vendedor contém, portanto, um sintoma clínico, uma “resistência de caráter” clínica do tipo que Wilhelm Reich certa vez descreveu num paciente que tentava rebater o ódio reprimido pelo pai com um eterno sorriso compulsivo[40].Aqui, a máscara clínica do “eterno sorriso” era a expressão de um desvio no desenvolvimento caracterológico individual; no caso do pessoal de vendas é a expressão e consequência de uma função economicamente determinada, a que o vendedor, por mais psicologicamente “sadio” que seja, não pode escapar. Como personificação da função de venda precisa estar constantemente de “cara alegre” diante de um “jogo sujo”, ou seja, ocultar seus verdadeiros sentimentos primários, formas de expressão e comportamento por detrás de seu “segundo rosto”, amoldado pela estética do bem de consumo.

A crescente divisão na esfera da circulação, que tem como consequência uma correspondente divisão do trabalho dentro da função de vendas, deixa o seu rastro também na máscara do vendedor. Haug escreve: “A exposição e disposição dos artigos, o arranjo do local de vendas, sua arquitetura, iluminação, cores, fundo sonoro, aromas, vendedores, sua aparência externa, o acontecimento da venda – todos os elementos da transformação do bem de consumo e das circunstâncias em que ele ocorre são calculados e funcionais[41].Como a capacidade e funções do operário industrial, as do vendedor industrial tornaram-se também cada vez mais especializadas, fragmentadas, monótonas. Cada vendedor representa um elemento progressivamente debilóide na totalidade da função da venda: uma pessoa senta-se à caixa registradora, a outra ocupa-se exclusivamente em dispor os artigos, outra cria condições de iluminação favorável, etc. O “caráter obsessivo-compulsivo” da função de venda e comportamento esteticamente amoldados reproduz-se assim num campo cada vez mais estreito. Com isso a “face” da máscara de venda torna-se cada vez menor e mais monótona.

A aparência do comprador, como a do vendedor, sucumbe também progressivamente a este processo compulsivo de moldagem, baseado na estética de consumo, pois no “mercado do amor” e do trabalho, os competidores precisam fazer a melhor propaganda possível de si mesmos, a fim de manter o valor de mercado, ou aumentá-lo. Haug comenta: “Ao capital personificado, os clientes surgem como compradores de embalagem, na qual vendem a si mesmos. Sua própria função é a do embalador para a autovenda das compradoras.”[42]Isto é também demonstrado pelas estratégias que oferece ao comprador para o “sucesso no amor”. Todo um ramo industrial, a chamada “indústria da beleza”, que na República Federal tem o mais elevado índice de crescimento e lucro, ocupa-se em preparar a fêmea – e em medida crescente também o macho – para o “sucesso” no palco dos bens de consumo. A indústria de cosméticos promete “transformar toda garota numa deusa”[43],e a indústria têxtil aconselha as mulheres a oferecerem-se lindamente embaladas, em variações sempre novas.

A aparência do comprador é constantemente remodelada ao ritmo econômico das indústrias têxteis, de cosméticos e outras. O rosto torna-se, portanto, cada vez menos a expressão pessoal do ser humano, e antes um meio para o comprador anunciar a si mesmo, meio externamente determinado; pois o comprador gostaria de ter uma aparência tão “agradável” quanto possível, de modo a exercer efeito que se torne um incentivo para a sua “compra”. Esquisitices na aparência, ou na expressão de sua máscara facial, os traços de seu “próprio caráter são gradativamente apagados. Haug escreve: “Vestir-se como uma ‘deusa’ funciona  simultaneamente  como  uma  brilhante  ‘camisa  de força’, uma cintilante compensação para a condição de jugo e degradação a um ser de segunda classe (…) No processo de aquisição desse rosto, o outro se perde (…)[44]. Assim, passa a existir um novo “caráter obsessivo-compulsivo” social, não no sentido psicanalítico, no sentido de fixação em certas posições (pré-genitais) da libido (como no clássico caráter anal-obsessivo-compulsivo), mas no sentido da máscara de caráter altamente variável, de estética consumista, na qual tudo o que expressa se acha constantemente sujeito ao ritmo circulatório do capital, a uma permanente revolução. R. Reich observa: “Ele precisa modificar constantemente os seus atributos fetichistas e, em certas circunstâncias, com a mesma rapidez o objeto sexual a que afixa os fetiches (…) A moda manipulativa, que não pode sequer ser colocada a par da moda no velho sentido, proporciona o modelo para este tipo, ao mesmo tempo que o agrilhoa ao anteprazer. A publicidade não só prescreve o tipo de roupas que ele tem que usar e os focos de erotização parcial (saia máxi ou mini) com que ele e sua companheira devem decorar-se para serem dignos do amor, como prescreve também a sua cútis, o colorido e feitio do cabelo, os gestos que ele e sua companheira têm que executar em atividades específicas, como fumar charutos ou cigarros, dançar, segurar o copo de uísque, fazer amor, caminhar na rua, de modo que seu valor de identidade atual permaneça elevado no índice de preços. Todos esses acessórios, diante dos quais as qualidades individuais soçobraram e tornaram-se simultaneamente fetichizadas, pelas quais um objeto se torna digno de apreço, podem, em caso de dúvida, mudar a sua aparência de um dia para outro e passar ao extremo oposto. O tipo em discussão não é, portanto, realmente perverso (…) É apenas um fetichista altamente variável. A alegria com que troca de fetiches é, em último caso, uma função da velocidade circulatória do capital.[45]

O modelo dominante e simultaneamente uniforme, segundo o qual esta máscara de caráter altamente variável de estética consumista é amoldada, é a juventude. Segundo Haug: “A juventude torna-se o padrão do quadro, não só daqueles que são bem-sucedidos nos negócios, como também da pessoa sexualmente atraente, que surge, portanto, como bem-sucedida e feliz. Uma nova função circular se estabelece. Primeiro existe ansiedade por ser afastado pelo capital por razões de idade. Este temor foi afastado pelo capital pela oferta de bens que promovem proporcionar uma aparência de juventude. Em breve ninguém pode ignorar este padrão de aparência juvenil nos adultos sem causar repulsa e, portanto, ser rejeitado (…) A consequência é – sob pena de senilidade sexual e isolamento – uma compulsão universal para o “adorno” dos seres humanos e a atualização do seu interior[46].

Já que a juventude foi dominada e massificada pelo capital como função de venda, todos os que não querem ser derrotados na luta competitiva precisam submeter-se a uma espécie de rejuvenescimento “compulsivo”. O rosto, como espelho das verdadeiras experiências, sofrimentos, temores e esperanças do ser humano, como espelho do que a sua vida e seu envelhecimento foram realmente, recua de modo visível por detrás da máscara facial, isto é, arruma-se para parecer jovem. Esta máscara facial petrifica-se numa larva viva de consumo na paisagem rejuvenescedora do consumismo. Acontece o mesmo nos velhos do livro de science-fiction de Ray Bradbury[47], que são colocados num carrossel, tornando-se um ano mais jovens a cada volta. Os que foram compulsivamente rejuvenescidos, porém, tornam-se esquizofrênicos porque têm a aparência de crianças e são tratados como tais, no entanto pensam e sentem como velhos. Assim, o processo de utilização do capital condena gerações inteiras de vendedores e compradores a um “rejuvenescimento compulsório”, isto é, a uma regressão na aparência, comportamento e estrutura instintiva, cuja extensão nem mesmo Freud poderia ter imaginado. Pois não se trata de um caso individual de regressão, isto é, histórico-individual, que poderia ser explicado por conflitos de infância não-resolvidos, e sim de uma regressão maciça, resultante da função de venda dos bens de consumo, em especial o da força de trabalho. O rejuvenescimento compulsivo do novo caráter compulsivo de estética consumista, que é mais marcante no pessoal assalariado de vendas, torna-se assim a tendência dominante da “sociedade infantil”.

A Invasão Psicológica em Profundidade da Estética Consumista

É característico da patologia da “sociedade de consumo” que o que se torna decisivo – através da maciça formação de estruturas instintivas e caracterológicas – é cada vez menos o destino específico da socialização individual, o “destino” da evolução instintiva primária, e sim, em grau crescente, o da socialização secundária, ou seja, o adestramento em estética de consumo no sentido do máximo de funcionalismo para o processo capitalista de realização. Esta realização secundária penetra cada vez mais a estrutura instintiva dos seres humanos, até os seus mais secretos temores e anseios, destruindo velhos tabus, firmando padrões inteiramente novos do que é “bonito”, “jovem”, “limpo”, e o mais, e revolucionando a aparência, a auto-representação de gerações inteiras de compradores e vendedores.

Um exemplo particularmente drástico é a incursão ao nível mais profundo da “personalidade”, pela indústria de cosméticos em expansão, do recondicionamento do sentido do olfato. A psicanálise clássica derivava dos tipos e características do sentido do olfato as concepções daquilo que considerava “limpo”, isto, é, “repulsivo”, da repressão mais ou menos profunda do erotismo anal (que era por sua vez dependente de um estilo educacional especificamente rígido ou permissivo, durante a fase anal). A indústria de cosméticos realizou, de certo modo, uma socialização secundária do sentido do olfato, que ultrapassa em muito os efeitos da primária. Haug escreve: “Um exemplo drástico é a introdução do ‘desodorante íntimo’ e outros recursos contra o cheiro do próprio corpo. Uma verdadeira campanha conseguiu divulgar uma antipatia social contra os odores, sobretudo os sexualmente estimulantes, e a radicalizar esta antipatia. Quanto a isso é para se observar o efeito específico desses meios sobre os sentidos humanos, pois quando são usados o limiar do estímulo recua, isto é, os odores proibidos são percebidos com muito mais intensidade. Onde ainda surgem os intervalos, sua irrefutável percepção foi fixada com antipatia. Agora o corpo cheira de maneira repulsiva. A náusea embebida de medo, causada por um cheiro nauseabundo, conduz à rejeição e à recusa cheias de pânico, isto é, a antipatia assim desenvolvida tende a divulgar-se de maneira agressiva. Surge então uma nova regra social, ancorada imediata e arrasadoramente nos sentidos do indivíduo, uma regra dizendo o que é normal, limpo e o que é repulsivo, baixo[48].

O que determina as formações reativas anais referentes ao que é “limpo”, isto é, repulsivo, é cada vez menos, portanto, a qualidade do aprendizado anal primário e sim os cegos interesses de realização daqueles ramos industriais que exploram os temores anais. O que é exato para as normas daquilo que é olhado com antipatia, é também exato para normas aceitáveis e seus modelos. Se a “escolha do amado” pelo adulto, segundo Freud, é decisivamente constituída pelas suas relações de objeto e identificação infantis, o significado destas formações primárias é em grande parte relativizado hoje pelo amoldar secundário da estética consumista da estrutura dos instintos, se não revisada. O objeto sexual visto como “belo” e “desejável”, ou “repulsivo” e “odioso”, é cada vez menos determinado pela qualidade da escolha de objeto primário edipiana e pré-edipiana, e cada vez mais pelos ditames dos modelos produzidos pela estética consumista, que afetam de maneira crescente as camadas mais profundas da “personalidade”.

O fato de que os modelos eróticos de gerações inteiras de compradores foram amoldados pelas cegas leis de realização capitalista é demonstrado pelo modelo de “juventude” que já descrevemos. Este modelo não só impôs um padrão inteiramente novo daquilo que é “belo” e “jovem”, como também produziu um novo “temor social”, o temor de envelhecer. O medo da velhice tem a sua base racional no fato de que a força de trabalho “jovem e dinâmica” tem um valor de mercado consideravelmente mais elevado que o deteriorado pela idade. A vida do trabalhador expulso do processo de produção capitalista – com seguro social e pensões com as quais mal pode sobreviver – é uma fraude, porém, para todo jovem trabalhador. O anseio de juventude surge, portanto, de um sistema em que o velho não tem do que se rir, e envelhecer significa o mesmo que declinar em status econômico e social, tornar-se déclassé e isolado. A constante repressão dos velhos e gastos pela força de trabalho “jovem e dinâmica” empresta ao medo da velhice uma dimensão verdadeiramente traumática. De fato, é possível descrevê-lo de forma mais marcante dizendo que os clássicos medos da infância descritos por Freud estão perdendo em importância comparados ao trauma da velhice. De qualquer modo, a psicologia do trabalhador adulto de hoje é mais marcada por esse “temor social” secundariamente produzido que pelos temores infantis estimulados no decorrer de sua socialização primária e que só a psicanálise considera relevantes.

A imagem daquilo que é “masculino”, como a imagem daquilo que é “belo” e “jovem”, acha-se também mais ou menos determinado pelas clássicas “imagens” edipianas geradas pelo processo de socialização familiar: ou antes, o caráter do que hoje é “masculino” sucumbe a um amoldamento anônimo, feito pela estética de consumo, que se afasta cada vez mais da influência dos agentes de socialização pessoal (pais, professores e outros). O que deve ou não ser considerado “masculino” é primordialmente determinado pelos ramos da indústria que descobriram o mercado da juventude. Novos ramos industriais inteiros, em especial no campo dos cosméticos, entraram no mercado tradicionalmente vazio das relações do homem com seu corpo. Segundo Haug, a produção de roupas masculinas, interiores ou não, aumentou aos saltos nos últimos anos. O narcisismo e o exibicionismo, que até recentemente eram considerados atributos específicos das mulheres, são também sugeridos aos homens como um novo impulso para aquisição progressiva de roupas masculinas. A indumentária masculina adquire cada vez mais o caráter fálico-exibicionista. De fato, mesmo o nu masculino, tabu até recentemente, surge hoje em dia como o “clímax” no palco do consumo e a figura do pênis como símbolo universal do sexo, prometendo equipar o artigo e seus possuidores com inesgotável potência fálica. Desnudando assim o “revestimento” patriarcal da masculinidade, a tradicional relação de homem para homem e de homem para a mulher sofre também uma profunda transformação. A aparência do homem e a linguagem publicitária são sexualizadas, e, portanto, em certo sentido, feminilizadas: esta relativa coordenação dos sexos (que possui também um progressivo efeito colateral não pretendido pelo capital) afeta somente, é claro, a aparência e as formas de comportamento entre os sexos, não a atribuição de papéis específica dos sexos, que persiste devido ao status econômico e social desprivilegiado das mulheres.

Em sua busca de mercados novos, o capital liberta constantemente novos “níveis” da estrutura instintiva. O “id” que – segundo Freud – contém o “dote instintivo” antropológico-biológico dos seres humanos, já não pode suportar o processo psicológico de colonização pelos psicopioneiros do mundo consumista. O que o “id” ainda oculta na forma de paixões, sentimentos, temores e anseios é, mais cedo ou mais tarde, trazido à luz do palco consumista e refletido de volta nos compradores como “modelo” do bem de consumo. O simbolismo “arcaico” do inconsciente (Freud) é progressivamente decifrado pelos augúrios das grandes empresas e gravado como design “arcaico” particularmente atraente na epiderme do artigo de consumo. Assim, o simbolismo sexual arquetípico dos sonhos povoa agora o “mundo onírico” dos bens de consumo; gravatas, cigarros, pára-choques são vendidos não só como valores simbólicos materiais, como também valores sexuais (fálicos, digamos).

Segmentos cada vez mais numerosos da estrutura instintiva sucumbem como produtos colaterais do processo capitalista de realização, a um tratamento secundário inato e amoldamento, cujo significado ultrapassa o amoldamento primário do processo de socialização familiar. O capitalismo tem assim, de certo modo, relativizado o primado freudiano das formações infantis da estrutura da personalidade adulta, se não o negou completamente. Quais os “impulsos parciais” que evoluem dentro da estrutura instintiva e quais os reprimidos torna-se cada vez menos uma questão de “formações” e “fixações” individuais e “pré-genitais”. O narcisismo e o exibicionismo do cliente masculino, ou o voyeurismo e fetichismo do consumidor de sexo e pornô já não representam uma perversão individualmente compreensível (no sentido da psicanálise clássica). Trata-se agora de um caso de perversão socializada, desencadeada pelos interesses do capital pertinente (em especial os das indústrias de roupas, cosméticos e sexo) como um cego efeito colateral de suas estratégias de lucro.

À medida que uma sexualidade infantil antes desprezada é utilizada pela estética consumista, é também simultaneamente privada de suas qualidades erógenas específicas e, portanto, “formadora de caráter”. Ainda que a riqueza dos bens de consumo – que transforma a capacidade sensual do ser humano de modo que este se sinta sensoriamente estimulado apenas pelo estímulo da aquisição – esteja em constante aumento e se torne externamente mais diversificada, refinada e ardilosa, os “impulsos parciais” orais, anais e fálicos, que foram satisfeitos, ou aparentemente satisfeitos, pelo bem de consumo socializado renegam progressivamente a sua qualidade original. A curiosidade despertada pela estética consumista já não é idêntica à curiosidade original da criança. O exibicionismo do comprador equipado segundo a última moda já nada tem em comum com a natural auto-representação da criança. Enquanto que esta ainda representa o seu self, o consumidor, amoldado segundo a estética consumista, representa na realidade somente o modo como é determinado por uma influência alienada. Enquanto a curiosidade da criança procura ainda “adquirir” o seu próprio corpo, ou o do outro sexo, o consumidor curioso de sexo e pornô adquire somente o seu ideal uniforme e padronizado.

A sexualidade tratada pela estética consumista é, portanto, o exato oposto da “sexualidade infantil”. Enquanto que esta ainda se interessa pela forma de uso sensória das coisas, corpos e pessoas, a primeira só se interessa por isso como decalques. Segundo Haug: “A abstração estética, o desabrochar incorpóreo e desinibido (porque liberto dos limites da realidade objetiva), a sensualidade florescendo sem fruto e sem idade têm um efeito retroativo sobre a estrutura da percepção e dos instintos dos seres humanos.[49]O material sensório da “sexualidade infantil” sucumbe também progressivamente a esse “processo de abstração estética”. O material instintivo original da criança, que segundo Freud, constituía o âmago psicossexual da personalidade, é assim cada vez mais impelido para a periferia, enquanto “impressões separadamente produzidas”, isto é, a sensualidade determinada por influências alienadas do mundo consumista, penetram até os planos mais profundos da personalidade.

A Perversa “Parceria Social” entre o Princípio do Prazer e o Princípio da Realidade

Se a libido, segundo Freud, é um impulso que procura “criar unidades cada vez maiores”, o “impulso para o amor” do capital tem cumprido de maneira perversa o programa freudiano da libido: o “anseio” do comprador defronta-se com ofertas progressivamente excessivas, que ele pode “amar” no sentido de “adquirir”. Os bens sexualizados, aqueles seres “sensório-supra-sensórios”, como Marx os chamou, oferecem-se a ele, cada vez mais, como “objetos instintivos”. A paisagem consumista que o rodeia torna-se cada vez mais uma paisagem sexual, que parece nada negar-lhe: cada segmento de bem parece destinado à satisfação de determinado segmento instintivo; e a “catéxis de objeto libidinoso” dá a impressão de não ter limites, exceto a capacidade do indivíduo para pagar. Haug escreve:

“A paisagem da vida, que se transformou numa proliferação de bens de consumo domésticos, já não é simplesmente rodeada de objetos sexuais individuais, de bens individuais, como antes; agora, todo um complexo de bens transforma-o num ambiente totalmente sexualizado. Quem possua um apartamento tem na forma reificada do apartamento o desejo objetivo de um meio de vida correspondente, corresponda este ou não aos seus desejos subjetivos (…) O apartamento é tão sexy quanto costumava ser aconchegante. A atitude lasciva manifesta, os tecidos fofos e a iluminação indireta sugerem praticamente ao visitante que se dispa como as figuras humanas dos anúncios espelhados pelo apartamento. O instinto sexual é invariavelmente antecipado nesta paisagem, é dele característico. Embora esta paisagem sexual possa ser produto de instintos emancipatórios descobertos pelo capital como ocasião para suas ideias decorativas e realizados na forma de bens de consumo – uma vez que esta paisagem sexual tenha sido adquirida, porque prometia gratificar os desejos instintivos do comprador, ela amoldará por sua vez uma certa estrutura instintiva, que já não é idêntica à origem da ideia (…)[50].

A tendência a amoldar a sensualidade vai tão longe que segmentos cada vez mais amplos das estruturas social, instintiva e de necessidade são passados pelo moedor do processo capitalista de realização, de modo que necessidades outras que as que foram real ou aparentemente satisfeitas pelos bens de consumo em breve se acham incapazes de penetrar o consciente do comprador. Já que este se defronta somente com objetos em forma de bens de consumo, nas quais partes de seu ser insatisfeito parecem encontrar perfeita expressão e satisfação, sua estrutura instintiva e de necessidade é também integrada de maneira nova e historicamente perversa: uma vez que somente são despertadas aquelas necessidades que – do ponto de vista da realização do capital – podem ser transformadas em dinheiro, um número cada vez menor de necessidades se apresenta ao consciente como “realizadas” ou “frustradas”.

Neste sentido, um quadro patogênico da “sociedade de consumo” é cada vez menos caracterizado pelos clássicos conceitos freudianos de doença, pois a “máscara de caráter econômico” perfeitamente integrada já mal pode gerar necessidades e desejos próprios, cuja realização ou frustração (pressupondo uma certa capacidade para a aquisição, é claro) poderia “suportar”. Inclina-se somente a desejar aquilo que pode adquirir, isto é, aquilo que dá lucro ao capital. Uma vez que os seus desejos “autênticos” foram deformados a ponto de se tornarem irreconhecíveis, sua frustração já não é sentida como sofrimento. Se o neurótico clássico (isto é, psicótico) sofria pela não-realização dos seus desejos de infância, o capital aparentemente “aliviou-o” desse sofrimento, apresentando-lhe em toda parte o clichê e o decalque estandardizado desses “desejos infantis”, só que de forma aquisitiva. A utilização da estética consumista nos “desejos de infância” e sua aparente realização por meio da compra diminui assim a tensão antes neurotizante (isto é, psicotizante) entre desejo e realidade frustrante.

Os impulsos “associativos” do “id”, os sonhos de felicidade, amor e juventude são, em certo sentido “ressocializados” e “reabilitados” pelo funcionalismo para o processo capitalista de realização; contudo, com o seu caráter patogênico, eles também rejeitam o caráter subversivo e rebelde. Haug escreve: “Interpretando a natureza humana para os seres humanos desta maneira, a estética de consumo distorce a tendência progressiva dos impulsos, nos seres humanos, para o seu desejo de gratificação, alegria e felicidade. Os impulsos parecem terem sido contidos e transformados num impulso de conformidade[51].Assim, a “cisão patológica” entre ego e id, entre o princípio da realidade e o princípio do prazer, parece ter sido também ultrapassada. Satisfazendo a “libido”, o desejo de prazer, na forma do prazer de comprar, integrou-se por assim dizer, no princípio capitalista da realidade. O clássico potencial para o sofrimento, isto é, a neurose, é assim tendenciosamente desligado, refletindo os desejos anteriormente frustrados do comprador, embora de modo deformado, distorcido e abstrato, de volta para ele na superfície dos bens de consumo. Já que até o “desejar” lhe foi arrebatado, ele não pode sequer “adoecer” por causa dos seus desejos.

As estratégias de venda do capital monopolista de hoje assumem um caráter progressivamente “permissivo”, “acentuado pelo prazer” e até mesmo “lascivo”: o capital dos negócios apresenta-se, de certo modo, como o “eterno amante”, que promete aliviar as tristezas de suas clientes com a “felicidade da aquisição”. Assim, no outono de 1971, uma loja de departamentos de Berlim Ocidental lançou o seguinte anúncio: “Venha relaxar conosco! No fascinante mundo da grande loja de departamentos! Onde você pode adquirir por pouco dinheiro uma porção de felicidade. E mesmo sem dinheiro! Simplesmente com o seu cartão de ouro de cliente! E como é divertido comprar na XYZ![52] A loja de departamentos, como “palco de experiências”, torna-se a casa do prazer, só que não são corpos físicos e sim sexualizados que transportam o comprador a um estado latente de ereção, do qual só é “aliviado” se enfiar a mão no bolso. A ideologia fascista da “força pela alegria”, que já não surge tão abertamente hoje em dia, foi absorvida, por assim dizer, pela epiderme do artigo de consumo. O slogan do capital da loja de departamentos, em vez de “força pela alegria”, diz “alegria pelo poder da aquisição”.

O capital dos negócios literalmente inverteu a sentença de Freud, “felicidade é a realização subsequente de um desejo pré-histórico”, de um desejo de infância, divulgando por toda parte a “felicidade” de comprar como a realização imediata de um desejo consumista há muito adiado (na verdade, já quase obsoleto). O clássico conflito entre ego e instinto é cada vez menos sentido como tal, porque a estrutura instintiva é determinada tanto pelas forças alienadas, como pela estrutura do ego. A tensão entre ego e instinto abranda-se à medida que este parece encontrar “relax” na “felicidade” de comprar. Se a psicanálise clássica compreendia o instinto ainda como um fundamento biológico elementar da personalidade, o capitalismo de hoje há muito solapou este fundamento e o reestruturou. Se os instintos e paixões humanas foram amplamente excluídos do intercâmbio social e do tráfico de mercadorias nas fases primitivas é clássicas do capitalismo, isto é, recalcados para o underground da personalidade, onde levavam uma existência patogênica e simultaneamente subversiva, então o capitalismo de hoje arranca-os, fragmento a fragmento, de sua repressão, de modo a transformá-los em igual número de paixões para a aquisição. Se a instintividade humana penetrou no passado um conflito tendenciosamente patogênico com o princípio da realidade da razão calculadora e abstrata, hoje este conflito se resolve na medida em que a própria estrutura dos instintos está sujeita aos cálculos abstratos do mercado capitalista. Em vez de continuar a produzir uma “cisão patológica” entre o ego e o “racional” e o instinto “irracional”, o capital intervém hoje cada vez mais, entre os dois pólos do aparelho psíquico, de modo a criar entre eles uma harmonia perversa. Já que o anseio de funções agradáveis atua como o disparador do próprio interesse de realização capitalista, o ego, como representante da realidade capitalista, isto é, do princípio de realização, vê este anseio cada vez menos como uma ameaça. O ego e o id se tornam cada vez mais capazes de “entrar num contrato”; o clássico antagonismo é agora substituído por uma “parceria social” entre duas “facções” do aparelho psíquico.

Mas isto também altera o quadro da “psicopatologia da vida cotidiana”. É característico da patologia da “esfera de consumo” que – por causa do crescente nivelamento e “desdinamização” das estruturas instintivas e caracterológicas – os “sintomas clínicos” no sentido clássico são cada vez menos encontrados (ao contrário do que ocorre na esfera de produção, onde ainda lidamos com a patologia das disfunções psíquicas, com evidentes perturbações de comportamento). Esta patologia da “esfera de consumo” parece cada vez menos assumir a forma dos sintomas clássicos, circunscritos em si mesmos, que poderiam ser imediatamente localizáveis como um defeito, uma disfunção, um elemento alienado “clínico”, dentro de uma personalidade total de outro modo “sadia”. Ou antes, a própria personalidade total torna-se uma entidade patogênica altamente integrada, a ponto de tornar-se uma personificação total da função de venda. Assim, o que determina o quadro patogênico do comprador e do vendedor já não tende a ser o recalque de certas necessidades instintivas específicas, que encontraram resistência e “proibição” no ego, isto é, superego, mas a tendência para que a estrutura da necessidade instintiva seja determinada por forças alienadas e compulsivamente amoldadas.

Se a patologia da esfera de produção ainda se manifesta na forma de perturbações especificamente verificáveis e localizáveis de expressão e comportamento (como nos sintomas psicossomáticos, como na “neurose orgânica”, como no breakdown psicótico), então a patologia da esfera de circulação é particularmente caracterizada pela perfeição, estereotipia, automatismo e abstração do comportamento expressivo total, no sentido do máximo funcionalismo para o processo de realização capitalista. Se o sintoma clássico da neurose e psicose fosse ainda a expressão de rebeldia do princípio do prazer contra um princípio da realidade frustrante, este elemento de protesto tende a ser eliminado pela nova integração de “parceria social” do princípio do prazer (no sentido do prazer de adquirir) e do princípio da realidade (no sentido do trabalho assalariado). Se o clássico neurótico (isto é, psicótico) fosse ainda “sincero” no sentido de suas necessidades instintivas rebeldes buscarem uma expressão anômala, isto é, sintomática, então a anormalidade “normal” da máscara do comprador e do vendedor altamente integrada consiste em começar a suportar a função de um princípio do prazer da estética consumista totalmente determinado por forças alienadas. A clássica neurose de sintoma recua, portanto, na medida em que, com crescente subsunção de trabalho anteriormente autônomo, continua a subsunção das necessidades anteriormente autônomas sob o processo de realização capitalista. A clássica neurose sintomática disfuncional tende a ser substituída por uma espécie de neurose de caráter funcional, um caráter obsessivo-compulsivo de estética de consumo, que é menos a expressão de um desvio primordialmente psicossexual, do que um processo de amoldamento compulsivo secundário da estética de consumo.

Esse caráter obsessivo-compulsivo maciçamente reprodutível, sem sintomas, de estética consumista, cujas contradições externas foram integradas de maneira perversa, determina somente, é claro, o quadro patogênico da esfera de circulação, isto é, do consumo. Em contraste, na esfera da produção encontramos um significativo aumento de perturbações “funcionais” e defeitos patogênicos. O quadro patogênico da sociedade capitalista de hoje divide-se, por assim dizer, em duas partes: um quadro superficial, sem sintomas, esteticamente amoldado, do funcionalismo psíquico total, resultante da função de venda totalitária do capital, e um quadro de sintomas clínicos sob o primeiro, um quadro do crescente disfuncionalismo psíquico resultante das funções de produção totalitárias do capital.


[1] W. F. Haug, Kritik der Warenästhetik, op. cit.

[2] W. F. Haug, ibid., p. 16.

[3] W. F. Haug, ibid., p. 27.

[4] K. Marx, Das Kapital, vol. I, p. 91.

[5] W. F. Haug, op. cit.

[6] R. Barthes, Mythen des Alltags, Frankfurt/Main, 1964, p.76.

[7] O. Müzberg manuscrito inédito, Berlim, 1969.

[8] W. F. Haug, op. cit., p. 87.

[9] H. M. Enzensberger, “Eine Theories des Tourismus”, in Einzelheiten I, Frankfurt/Main, 1966, p. 203.

[10] W. F. Haug, op. cit., p. 127.

[11] W. Alf, Der Begriff des Faschismus und andere Aufsätze zur Zeitgeschichte, Frankfurt/Main, 1971 p. 23, rodapé 17.

[12] K. Marx, MEW, Erganzungband, Parte I, p. 547.

[13] R. Reiche, op. cit., p. 41.

[14] R. Reiche, ibid., p. 91.

[15] S. Freud, G.W., vol. 14, pp. 432  ff.

[16] W. Benjamin, Charles Beaudelaire – ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus, Frankfurt/Main, 1969, p. 59.

[17] W. Benjamin, ibid., p. 58.

[18] V. Packard, Die Geheimen Verführer, Düsseldorf, sem data.

[19] B. Brecht, citado por R. Heuer Komkret, setembro de 1972.

[20] R. Heuer ibid.

[21] R.Osborn, op. cit., p. 161.

[22] Mao Tsé-Tung, Über den Widerspruch, Verlag für fremdsprachige Leiteratur, Pequim, Ausgewählte Werke, col. I. pp. 365  ss.

[23] K. Marx, MEW, Enganzughband, Parte I, pp. 546  ss.

[24] W. F. Haug, op. cit., p. 157.

[25] W. F. Haug, ibid.

[26] R. Reiche, Sexualität und Klassenkampf, op. cit., p. 104

[27] R. Reiche, ibid., p. 107.

[28] H. M. Plato, op. cit., pp. 55 ff.

[29] W. Benjamin, Charles Baudelaire…, op. cit.

[30] Citado por Walter Benjamin, op. cit., p. 127.

[31] B.Brecht, “Liebesunterricht”, G.W., vol. 10, p. 890.

[32] W. F. Haug, op. cit., p. 80.

[33] K. Marx, MEW, Ergänzungsband, Parte I, p. 540.

[34] K. Marx, ibid., p. 549.

[35] R. Reiche, op. cit., p. 91.

[36] P. Schneider, “Die Kulturrevolution und das Schicksal der Phantasie ir Spätkapitalismus”, in Kursbuch 19, 1969, p. 14

[37] U. Ehebald, op. cit., p. C43.

[38] W. F. Haug, op. cit., p. 28.

[39] S. Krakauer, Die Angestellten, Schriften, vol. I, Frankfurt/Main, 1971, pp. 222-224.

[40] W. Reich, Charakteranalyse, op. cit. (cap.: “Zür Erschutterüng des narzisstischen Schutzpanzers).

[41] W. F. Haug, op. cit., p. 85.

[42] W. F. Haug, ibid., p. 92.

[43] Hauriet Hubbard Ayer, citado por Haug, ibid., p. 95.

[44] W. F. Haug, ibid., p. 96.

[45] R. Reiche, op. cit., p. 95.

[46] W. F. Haug, op. cit., p. 117-118.

[47] Ray Bradbury, Das Böse Kommut auf leisen Sohlen, 1969.

[48] W. F. Haug, op. cit., p. 98.

[49] W. F. Haug, op. cit., p. 150.

[50] W. F. Haug, op. cit., p. 121.

[51] W.F.Haug, ibid., p. 65.

[52] Kadewe, anúncio no Tagesspiegel de 17 de outubro de 1971.

Transcrito por Ana Bombassaro. O presente texto foi retirado do livro Neurose e Classes Sociais: Uma síntese freudiano-marxista, Zahar, Rio de Janeiro, 1977.

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