A Guerra e a Revolução – Karl Korsch

Nota do Crítica Desapiedada: Confira também o Dossiê: Karl Korsch, Guerra e Nazifascismo.

Publicado em Living Marxism, VI, 1, final de 1941, págs. 1-14.

A relação entre a guerra e a revolução tornou-se um dos problemas centrais do nosso tempo. E, por outro lado, um dos mais desconcertantes de uma época na qual temos visto anti-intervencionistas a reclamar insistentemente a intervenção, pacifistas a pedir a guerra e nazistas a paz, enquanto os apóstolos comunistas da classe revolucionária renunciam, humildemente, a todo o recurso à violência como instrumento da política nacional e internacional.

Uma vez que seria perfeitamente absurdo tratar das questões da guerra e da paz em geral, um estudo histórico aprofundado revela que a guerra, tal como a conhecemos hoje, esteve implícita no seio da sociedade burguesa moderna, desde a origem, nos séculos XV e XVI, e que, principalmente, todos os progressos principais desta sociedade foram realizados, senão graças à guerra, pelo menos graças a uma cadeia de acontecimentos violentos de que a guerra constituía uma parte essencial. Isto não quer dizer, naturalmente, que a guerra e outras formas de violência coletiva não poderiam ser gradualmente reguladas, e no fim das contas, totalmente eliminadas da vida social. Mas não nos interessam aqui estes desenvolvimentos de longo prazo. As páginas que se seguem, são consagradas apenas à relação que tem nos nossos dias a guerra com a revolução, e aos conflitos diversos e tendências complementares que podemos detectar nas fases anteriores do seu desenvolvimento histórico.

Se a maior parte dos historiadores admite facilmente que houve, durante quase todas as fases dos últimos quatrocentos anos, uma relação muito estreita entre formas de guerra bem determinadas e a mudança social, pelo menos dois períodos constituem exceção à regra. Estes dois períodos são também o campo de eleição para toda a sorte de autores que gostam de tratar a guerra, não em uma base estritamente empírica (sob um ângulo estratégico, social, político, econômico, histórico), mas de um ponto de vista mais vasto, estético, filosófico, religioso, moral ou humanitário. É a esta categoria que pertence a célebre descrição que Jacob Burckhardt, o historiador alemão da renascença italiana, deu da guerra (e do Estado), considerada como uma “obra de arte”. Outro exemplo, é a frequente glorificação das guerras do século XVIII pré-revolucionário, apresentadas como o máximo da civilização. Apesar do seu evidente preconceito contrarrevolucionário, esta categoria de literatura tem, para o que nos interessa, a vantagem de ser relativamente isenta das superstições particulares dos séculos XIX e XX. Acontece, que foram precisamente os autores desta categoria — uma espécie singular de “historiadores às avessas” — que se mostraram capazes de trazer à luz do dia um certo número de fenômenos que, por muito ignorados que sejam por outras bandas, se revestem de uma importância fundamental para o estudo da guerra e da revolução.

1.

A primeira das duas “exceções” aparentes à tese sustentada nestas páginas encontra-se no seio da renascença italiana, período que vieram encerrar, a partir do último decênio do século XV, as invasões francesas, espanholas e germânicas, às quais deviam pôr fim, por mais de três séculos, ao desenvolvimento político autônomo da Itália. À primeira vista, quase não existe efetiva unidade entre as mil e uma pequenas guerras que se faziam os chefes dos exércitos, bem armados e bem pagos ao serviço dos príncipes, das repúblicas e dos papas, e as perturbações que se acendiam sem cessar no seio de cada comunidade deste microcosmos político.

Longe de poder encontrar um fio condutor bastante nítido, encontramo-nos neste caso, perante uma multiplicidade desconcertante de conexões superficiais. Recorria-se então, frequentemente à guerra para resolver querelas, tanto de ordem interna, como externa, e o destino das lutas internas, decidia-se, frequentemente, no campo de batalha de uma guerra conduzida contra um inimigo de fora. Contudo, essa imbricação da guerra e da discórdia civil, era de natureza absolutamente fortuita e momentânea; nem os mercenários, que travavam os combates extremamente mortíferos desta época, nem os protagonistas dos partidos em luta se preocupavam com isso. “Uma cidade pode revoltar-se dez ou vinte vezes”, notava um observador, “que não é destruída. Os cidadãos conservam todos os seus bens; tudo o que têm a temer é ter que pagar um tributo”. Apesar de tudo, o grande homem de estado Nicolau Maquiavel tinha sabido, graças ao seu gênio político, elevar à unidade conceitual o conjunto destes elementos díspares. Maquiavel debruçou-se sobre as dissensões políticas e os conflitos bélicos do seu tempo, como Platão e Aristóteles haviam feito sobre a experiência igualmente restrita do tempo deles nesta matéria. Ele estava convencido que uma experiência revolucionária a partir de baixo, ou, em caso de fracasso, uma intervenção revolucionária de cima, do “príncipe”, unificaria à força a nação italiana no quadro de um regime republicano ou monárquico, mas em todo o caso burguês[1]. Este nobre sonho perdeu todo o fundamento e foi varrido — como o foi no nosso tempo o projeto revolucionário ainda mais grandioso, concebido por outro gênio político — por falta de condições exteriores propícias e devido ao curso absolutamente imprevisto tomado pelos acontecimentos. Com efeito, o teatro da grande ação histórica passou do mundo mediterrânico de Maquiavel e das suas cidades-Estado, para as grandes monarquias ribeirinhas do Atlântico, da mesma maneira, que hoje passa da Europa dividida em nações do século XIX para o gigantesco campo de batalha de uma guerra de dimensões mundiais. Apesar de tudo, o raciocínio de Maquiavel permanece válido, face aos fatos históricos em que se baseava. Um pensador mais realista, que não admitisse que as relações caóticas e fragmentárias da guerra e da guerra civil, na Itália do século XV, tivessem apresentado uma base suficiente para justificar as vastas especulações políticas de Maquiavel, poderia, apesar de tudo, detectar nelas, num estado ainda embrionário, esta unidade da guerra e da revolução que, sob formas mais acabadas, devia caracterizar as fases subsequentes da sociedade burguesa moderna.

2.

Não é menos verdade que o desenvolvimento geral, tanto nos sonhos visionários como nas realizações modestas, ficou interrompido, não só na Itália, mas também no conjunto da sociedade europeia com a inauguração violenta de um novo período. Viu-se no decurso deste período a intensidade da guerra, tanto como a sua íntima ligação com os acontecimentos, que sabemos hoje, terem sido o prelúdio das revoluções dos séculos XVII e XVIII, atingir um cume jamais ultrapassado depois, mesmo pelas guerras do século XX, quando das guerras de religião desencadeadas pela reforma e cujo máximo foi marcado pela guerra dos trinta anos e pelo extermínio de um terço dos povos de língua alemã, ou seja, sete milhões e meio em vinte e um milhões de homens. Tratava-se, na verdade, da primeira aparição na história das guerras “ideológicas” do nosso tempo. Razão por que foi denunciada, desde a origem, pelos Thomas More e pelos Erasmo, com uma veemência semelhante a que usam hoje os pacifistas, para denunciar as abominações da “guerra total”. Assim, Francis Bacon dizia-se horrorizado pelos efeitos que a propensão a “pôr o gládio nas mãos do povo”, para resolver as questões religiosas, não deixaria de ter na estabilidade política e cultural do seu tempo. Eis uma “coisa monstruosa” que ele esconjurava “ser deixada aos anabatistas e a outras fúrias”[2]. Em todas as épocas revolucionárias, deparamos com esta revolta de uma parte dos intelectuais contra os aspectos violentos e plebeus de um movimento fundamentalmente progressista. Quem dirá quantos espíritos humanitários descobrindo não sem atraso, que a luta revolucionária tal como as suas repercussões contrarrevolucionárias, não vão, sem violência, se desviar nestes tempos de um objetivo progressista, que visivelmente não pode ser cumprido senão a preço tão horroroso?

Foram feitas múltiplas conjecturas superficiais sobre as razões por que esta primeira fase do desenvolvimento da guerra ideológica moderna teve um fim tão rápido, precisamente, quando parecia atingir a sua máxima intensidade. É puro misticismo, certamente, supor que os homens, em momentos tão extremos como aqueles a que tinham chegado a sociedade romana, no século que precedeu o século de Augusto, ou a sociedade europeia no fim da guerra dos trinta anos, em 1648, conseguiram de algum modo “reequilibrar-se à beira do abismo”[3]. Também nenhuma prova histórica vem confirmar a tese mais interessante segundo a qual, a partir de meados do século XVII, o desencadear da paixão religiosa cedeu gradualmente o lugar a uma sociedade mais tolerante para com as diferenças de religião. Mais vale nesta questão seguir o homem de grande sabedoria, que disse, que neste novo período, “o demônio do fanatismo sectário foi exorcizado”, não “graças a um conhecimento mais íntimo da religião”, mas, pelo contrário, “por um espírito de cinismo desencantado”[4].

Apesar dos progressos inegáveis realizados no século XVIII, e a muito sensível diminuição dos males da guerra que tinham oprimido a época precedente[5], só os reacionários acabados fazem hoje, das guerras do século XVIII, tempos de felicidade sem nuvens, dias verdadeiramente “serenos”, o único “intervalo lúcido” que conheceu a sombria história da loucura humana[6]. “Intervalo lúcido” sim, mas, quanto aos horrores imediatos da guerra. De um ponto de vista mais geral, contudo, este breve intervalo entre duas épocas dinâmicas teve uma virtude de caráter sobretudo negativo: a moderação aparente da guerra tinha origem no fato de que, tendo deixado de ser um instrumento de política religiosa, a guerra não se tinha ainda tornado um instrumento de política nacional. Durante mais de um século, nos tempos geralmente ditos das “Luzes”, a guerra viu-se transformada numa verdadeira instituição, adaptada ao máximo às exigências das potências, que na época eram as únicas capazes de dela fazer uso. Do ponto de vista do socialismo, agora adotado quase por todo o lado nesta matéria, seria inconcebível fazer coro com os vibrantes elogios, ainda recentemente prodigalizados à época em que a guerra se supunha ser o “desporto dos reis”. Na verdade, esta não fazia mais que manifestar um estado de atraso, semelhante ao que manifestava então, em condições de maturidade insuficiente, qualquer outro gênero de operação capitalista. Nos nossos dias, o “interesse pessoal bem compreendido” dos produtores independentes de mercadorias deixou de se ver considerado, mesmo no domínio econômico, como um meio satisfatório de facultar um certo controle social da produção. Desde logo, como considerar modelo um período no decurso do qual se aplicava, ainda ingenuamente, este mesmo espírito do “interesse pessoal bem compreendido” a todos os campos da vida política e social?

Basta olhar mais de perto as descrições encantadas que certos entusiastas serôdios nos vêm fazer hoje, nestes “tempos sem entusiasmo”, das guerras “civilizadas” do século XVIII, para descobrir a verdade prosaica que encobrem estas belas metáforas poéticas. Não era uma época em que “a pequenez, a miséria e as leis da honra” ainda travavam tanto os negócios como a guerra? A sobrevivência destas “leis da honra” era assegurada na esfera dos negócios, pelos restos das regras corporativas medievais, e, na esfera da guerra, por uma espécie de código de cavalaria, artificialmente ressuscitado, mas, entretanto, carregado de um conteúdo novo e burguês em todos os sentidos. Eis um quadro do dito “desporto dos reis”, traçado por um dos seus mais fervorosos admiradores modernos:

“Uma guerra é uma partida com as suas regras e apostas: um território, uma sucessão, um trono, um tratado; quem perde a partida, paga; mas há o cuidado de manter sempre a proporção entre o valor da aposta e o risco da partida; e evita-se a obstinação que cega o jogador. Pretende-se dominar o jogo e saber parar a tempo. É por isso, que os grandes teóricos da guerra do século XVIII recomendam que nunca se misture com a guerra a justiça, nem o direito, nem nenhuma das grandes paixões populares. Pobres dos beligerantes que pegam em armas convencidos de se baterem pela justiça e pelo direito! Ambos convencidos de que têm razão, lutarão até ao esgotamento e a guerra será interminável. É preciso ir para a guerra admitindo que a causa do adversário é tão justa como a própria. É preciso evitar fazer seja o que for, mesmo para vencer, que possa exasperar o adversário, fechar o seu espírito à voz da razão ou o seu coração ao desejo da paz. É preciso evitar os procedimentos pérfidos ou cruéis. Nada exaspera mais os beligerantes.[7]

Eis a essência da filosofia burguesa à sua entrada no mundo: Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham[8]. São linhas que elevam as ideias do lojista dos primeiros tempos do capitalismo à dignidade de leis universais, e as aplicam a todas as instituições e a todas as áreas de desenvolvimento humano! Não se vê aí despontar algo do espírito paradoxal do bom velho Mandeville? “Vícios privados, virtudes públicas”, enunciava Mandeville em 1706. “A guerra humaniza-se por avareza e cálculo”, ecoa em 1933 o célebre historiador burguês.

Mesmo nesta época, em que a amplitude e a intensidade das operações militares desceram ao seu nível mais baixo, a relação entre a guerra e a revolução não deixa de subsistir. É verdade que se trata de um tempo, em que os vestígios dos processos revolucionários foram varridos da superfície da sociedade até ao último, um tempo, em que o declínio relativo da guerra se mistura com igual declínio relativo do processo revolucionário. Mas, os acontecimentos da época subsequente provam à evidência, que este século XVIII, com um ar tão pacífico e estável, constituiu precisamente uma fase de incubação, tanto para a guerra como para a revolução. Revoluções e guerras de outra dimensão, chamadas a rebentar em breve na Europa e na América, estavam já em gestação, sob a capa deste equilíbrio aparente das forças políticas e sociais. Do ponto de vista da psicologia, da psicanálise e do que se convencionou chamar “psicologia de massas”, parece curioso ver historiadores e sociólogos persistirem em considerar negligenciáveis as formas e as fases das forças motrizes de uma determinada época, forças que não se manifestam à superfície, mas são reprimidas no inconsciente ou canalizadas em outras direções, através de um processo de “sublimação social”[9]. Todas estas formas, exageradamente elogiadas, com que o “século das Luzes” tentou restringir e civilizar a guerra, não eram na realidade, senão, formas em cujo interior se desenvolvia lentamente este desencadeamento sem precedentes das forças motrizes, lentamente acumuladas, da guerra moderna perfeitamente desenvolvida de estilo burguês, cujo, ponto de explosão, se verificou nas guerras da Revolução francesa.

Torna-se, assim evidente, que no decurso dos três séculos que precederam a chegada à idade madura da guerra burguesa moderna, nunca houve um momento de ruptura na unidade essencial da guerra e da revolução. Particularmente, não é possível olhar o século tão elogiado das luzes como um intervalo, durante o qual, o sentido moral e a razão teriam finalmente conseguido, graças a um esforço supremo, acalmar e dominar as paixões revolucionárias das guerras religiosas. Na verdade, estas paixões apenas haviam sofrido uma quebra provisória, pela incapacidade de qualquer dos partidos obter a supremacia. Entre as pessoas influentes progredia a ideia, de que valia mais optar pelos novos meios de adquirir riquezas materiais, que continuar a sacrificar o seu conforto pessoal ao triunfo da fé mais verdadeira. As grandes forças motrizes revolucionárias da classe burguesa, que após se terem manifestado pela primeira vez no furor das guerras de religião, deveriam reaparecer nas violentas batalhas políticas e sociais da Revolução francesa, não foram, de modo nenhum, destruídas ou enfraquecidas na época intermédia das “Luzes”. Simplesmente, em refluxo nesse momento, vieram a adquirir em seguida uma força extraordinária, precisamente graças ao refluxo por que tinham passado.

4.

É quase desnecessário examinar a fundo as fases de desenvolvimento da guerra e da revolução que se sucederam de 1789 a 1914. Sem dúvida, apontamos um rude golpe nos democratas ingênuos da Europa e dos Estados Unidos, que ainda ontem, acreditavam estar de boa-fé a tese contrária à propaganda nazi quando lhes lembramos este fato histórico, que a “guerra total” moderna, longe de ser uma invenção diabólica da revolução nazi, é, inteiramente, em todos os seus aspectos — sem exceção da linguagem — o produto indiscutível da própria democracia e, particularmente, o fruto da guerra da Independência americana e da grande Revolução francesa. Mas trata-se na circunstância de um fato histórico contemporâneo tão evidente, e tão frequentemente exposto em termos desprovidos de ambiguidade por todos os peritos em matéria da história e da arte militares[10], que a absoluta negligência de que é objeto por parte da opinião pública, tanto nos países totalitários como nos países democráticos, não deixa ela própria de colocar um problema. O segredo que até hoje nunca deixou de envolver tudo o que respeita à guerra parece ser uma condição intrínseca e necessária à existência da sociedade atual. “Nada sabemos da guerra” significa, além do mais, que não temos nenhum poder sobre aquilo que ignoramos. Se soubéssemos, recusar-nos-íamos a viver no quadro de uma sociedade baseada na concorrência capitalista, e mesmo no quadro de uma sociedade baseada em formas imperfeitas e fragmentárias de planificação, que continuam compatíveis com a manutenção da propriedade e do trabalho assalariado. Um conhecimento completo da guerra e o domínio que se seguiria dos homens sobre as suas condições de vida, pressupõe, a sociedade de produtores livremente associados que sairá de uma revolução social autêntica. Nesta base a guerra tornar-se-á inútil. Apercebemo-nos, então, que o espantoso grau de ignorância nesta matéria, tal como a falta não menos surpreendente de preparação para refletir sobre a guerra com rigor, clareza e realismo, não derivam de uma qualquer insuficiência da nossa educação política geral. São antes, traços característicos de uma sociedade pré-socialista e ligados à própria essência da guerra.

5.

No decurso dos últimos cento e cinquenta anos a teoria e a prática da guerra burguesa foram, no seu conjunto, dominadas pela ideia da “guerra total”. Concebida numa escala gigantesca e efetuada, pela primeira vez a esta mesma escala pelos quatorze exércitos de cidadãos organizados e postos em campo nas horas mais sombrias da nova república francesa, a guerra total pretendia defender a revolução contra um enxame de inimigos do exterior e do interior. Tal foi o sentido do famoso “levantamento em massa” decretado pela lei de 23 de agosto de 1793 que, fato sem precedente, colocou todos os recursos de uma nação beligerante — soldados, gêneros alimentícios, fábricas, trabalhadores, todo o gênio e toda a paixão de um povo levado pelo entusiasmo — ao serviço da guerra revolucionária. De fato, nos limites impostos pelo nível de desenvolvimento técnico e industrial, tratou-se então, de um “recrutamento universal”, de uma verdadeira “guerra total”. Abstraindo apenas de uma infinita diferença de linguagem — entre um período em que a classe burguesa estava animada de um autêntico e fervoroso espírito revolucionário e a fase atual em que se inicia o seu declínio — o texto dos discursos pronunciados na convenção nacional, tal como o do próprio decreto, poderiam ter sido redigidos ontem:

“Os jovens irão para o combate; os homens casados fabricarão as armas e transportarão os abastecimentos; as mulheres farão tendas e fardas e servirão nos hospitais; as crianças farão tiras com as roupas velhas; os velhos irão para as praças públicas apelar à coragem dos combatentes, pregar o ódio aos reis e a unidade da República.
Os edifícios públicos serão convertidos em casernas e as praças públicas em oficinas de armamento; o chão das caves será lixiviado para dele se extrair o salitre.
As armas calibradas serão entregues exclusivamente àqueles que marcharem contra o inimigo; a defesa no interior far-se-á com armas de caça e arma branca.
Os cavalos de sela serão requisitados para completar os corpos de cavalaria; os cavalos de tiro, não empregues na agricultura, rebocarão a artilharia e os víveres.[11]

Contudo, mesmo neste ponto mais elevado jamais atingido na história da guerra burguesa, a guerra revolucionária total levava a marca fatídica de uma ambiguidade intrínseca. Esta guerra, para defender a revolução e para libertar todos os povos oprimidos, não podia ser concebida e prosseguida, senão, sob a forma de uma guerra nacional do povo francês contra os países inimigos. Guerra de defesa à partida, não tardou em transformar-se numa guerra de conquista; a emancipação prometida aos povos oprimidos foi rebaixada a um mero tema de propaganda, destinada a facilitar a anexação dos respectivos territórios; e a guerra revolucionária atacou indistintamente todos os países, livres ou não, que não tomavam o partido da república francesa na luta de morte, por ela desenvolvida contra as coligações dos seus inimigos. Fato característico, as primeiras medidas no sentido da “guerra de expansão revolucionária”, isto é, visando o emprego de palavras de ordem revolucionárias para fins de política externa, foram tomadas, não pelos extremistas jacobinos, mas pelos moderados girondinos, os quais aspiravam já secretamente a pôr fim ao processo revolucionário, não a alargá-lo e a intensificá-lo. Mas, em seguida, foram os jacobinos revolucionários que prosseguiram com a sua extraordinária energia, a nova política de guerra e de conquista, que, de mau grado, tinham adotado como instrumento de política interna. Desenvolvimento semelhante se deveria reproduzir após um grande intervalo, mas, em condições singularmente análogas na política interna e externa da revolução russa de 1917. Presentemente, o velho slogan girondino da guerra revolucionária tornou-se uma das principais armas ideológicas da propaganda nacional socialista, apesar, da recente conversão da guerra nazi num ataque indiscriminado, tanto contra as “democracias capitalistas decadentes” do ocidente, como contra o novo regime totalitário da União Soviética.

Este desenvolvimento, o mais recente, teve por prelúdio a dissolução progressiva, durante todo o século XIX, do conteúdo da guerra total burguesa e o enfraquecimento correspondente desta formidável força de combate, que se tinha manifestado entre 1792 e 1815, na época das guerras revolucionárias e napoleônicas. Segundo o marechal Foch, o longo período de desagregação e declínio graduais das guerras ditas nacionais, conhecido pela Europa do século XIX, teve três fases sucessivas:

“A guerra foi inicialmente nacional para conquistar e garantir a independência dos povos: franceses em 1792-1793, espanhóis em 1804-1814, russos em 1812, alemães em 1813, Europa em 1814 e incluiu então manifestações gloriosas e poderosas da paixão dos povos que se chamam Valmy, Saragoça, Tarancon, Moscou, Leipzig, etc.
Foi nacional, em seguida, para conquistar a unidade das raças, a nacionalidade. É a tese dos italianos e dos prussianos de 1866 e 1870. Será a tese em nome da qual o rei da Prússia, tornado imperador da Alemanha, reivindicará as províncias alemãs da Áustria.
Mas nós a vemos ainda agora como nacional, para conquistar vantagens comerciais, tratados de comércio vantajosos. Depois de ter sido o meio violento que os povos empregavam para arranjar um lugar no mundo como nações, a guerra tornou-se o meio por eles ainda utilizado para enriquecer.[12]

Eis incontestavelmente uma descrição brilhante das diversas fases que atravessou a guerra burguesa, ao mesmo tempo, que as tendências e as pretensões revolucionárias da classe burguesa dominante conheciam um declínio paralelo. E, mais uma vez, importa evidenciar o erro comum dos pacifistas, que confundem os períodos de paz relativa com fases verdadeiramente progressivas do desenvolvimento humano. Como nota Rougemont, o último período de paz de que a Europa pôde gozar de 1789 a 1914, foi afinal, um período de absoluto declínio cultural.

“A guerra aburguesava-se. O sangue comercializava-se. (…) A guerra colonial não é afinal, senão a continuação da concorrência capitalista por meios mais onerosos para o país, não para as grandes companhias.”

Este estado de coisas teve, por consequência, o mais impressionante esmagamento definitivo das concepções estratégicas revolucionárias napoleônicas e clausewitzianas, ligadas ao capitalismo da concorrência e ao nacionalismo burguês, quando da primeira guerra mundial de 1914-1918. Preparada há muito, esta guerra, que constitui o culminar da era do nacionalismo, opôs já, não nações particulares, mas grupos de nações extremamente heterogêneos. Ela provou, que a antiga forma concorrencial da guerra total até ao fim se tornava absolutamente incapaz, quer de procurar a vitória, quer de permitir a conclusão de uma paz real após o fim das hostilidades. Até as repercussões revolucionárias da derrocada militar e as impossibilidades da paz que se seguiu nos países derrotados da Europa Central parecem melhorar mais do que prejudicar o quadro geral de um esmagamento e deterioração irrecuperáveis, apresentados por toda a estrutura tradicional da sociedade capitalista do Ocidente.

Quanto à relação entre a guerra e a revolução, ela não conheceu uma nova fase positiva no decurso do pós-guerra. De um ponto de vista puramente formal, pode-se dizer, que a importância revolucionária da guerra aumentou no último quarto de século, no sentido em que a separação marcada outrora existente entre a guerra e a guerra civil se tornou cada vez mais fluida, até desaparecer completamente. Enquanto que durante a primeira guerra mundial, o projeto de “transformar a guerra capitalista em guerra civil” era ainda olhado como uma palavra de ordem sem a menor importância prática pela maioria dos próprios operários socialistas[13], vimos, 20 anos mais tarde, a guerra da Espanha começar numa guerra civil e, no desenvolvimento do seu processo, metamorfosear-se em ensaio geral da atual guerra entre países totalitários e países democráticos. Esta levou a confusão a um grau ainda mais elevado. Desde o primeiro dia, e em todos os seus momentos críticos, esta guerra revestiu um carácter “ideológico” e “político”, isto é, de luta mobilizando as diversas facções de uma guerra civil, bem mais que de uma guerra à antiga entre um país e outro.

O desenvolvimento traçado neste estudo parece, portanto, ter percorrido um círculo. Não acabamos por voltar às guerras ideológicas dos sécs. XVI e XVII? Olhando mais de perto, este retomar de vigor que marca à primeira vista a íntima ligação da guerra com a revolução, parece afinal ser aparente e longe de ter um alcance histórico real. Para dar conta do efetivo curso das coisas, é preferível recorrer à fórmula paradoxal, segundo a qual, não apenas a guerra, mas também a guerra civil, perderam na época atual o seu caráter revolucionário de outrora. Guerra civil e revolução deixaram de ser sinônimos.

Por outro lado, não é certo que este novo caráter pseudo-revolucionário da guerra em curso, que tem como efeito desencadear tão vivas paixões no mundo inteiro, seja chamado a perdurar. A hipótese contrária permanece também possível, e esta possibilidade mostra-se acrescida depois da recente extensão da guerra à Rússia. Pode acontecer, que o regime nazi seja levado a romper com a sua tendência atual, que consiste em reforçar a sua posição relativamente fraca no campo da concorrência capitalista, reconstruindo o sistema social numa base totalitária, sem para tal, diminuir o seu esforço de guerra. O conflito iniciaria, então, um regresso às formas de guerra capitalista tradicionais, conduzida de um lado e do outro, com vista a adquirir no exterior um acréscimo de poder nacional. Mas nada impede de pensar que a continuação da guerra, regressada assim ao antigo estilo burguês, não possa, afinal, conduzir a uma mudança no interior da estrutura dada da sociedade. Nesta hipótese, contudo, as repercussões da guerra não decorrerão da ação consciente de nenhum dos partidos beligerantes, quaisquer que sejam os “fins” proclamados pela respectiva propaganda. Nesse caso, elas decorrerão da força de circunstâncias imprevistas, tais como a intervenção de uma nova classe revolucionária, que não está representada nos conselhos desta guerra. Elas surgirão fora das intenções comuns dos dois campos beligerantes e contra essas mesmas intenções. Quanto a saber, se podemos esperar semelhante desenvolvimento da crise atual, voltaremos a esta questão na seção final do presente estudo.

6.

Tanto os nazis, como os seus adversários democratas, atribuem de bom grado as diferenças que a guerra “totalitária” atual apresenta relativamente às suas formas passadas, ao fato de que a sociedade burguesa abordaria hoje uma fase nova do seu desenvolvimento revolucionário. Se esta afirmação releva claramente da propaganda, não deixa de ser verdade que estas diferenças são a expressão de uma mudança bem real ocorrida na estrutura e no desenvolvimento econômicos desta sociedade. Desde sempre, convém lembrar, a guerra constituiu na sociedade capitalista um complemento indispensável à condução normal dos negócios. O general Carl von Clausewitz, o grande teórico da arte da guerra no século XIX, completava já a sua célebre definição da guerra, “continuação da política por outros meios”, com esta observação, de que a guerra

“mais ainda que à arte, assemelha-se ao comércio, que também se apresenta como um conflito de interesses e atividades humanas, e que a própria política devia ser considerada como uma espécie de comércio em grande escala.[14]

Dizia ainda da guerra da primeira metade do século XIX que incluía

“muito de concorrência comercial levada até às últimas consequências e submetida apenas à lei do momento”.

Tal era a forma como se cuidava dos “grandes interesses da nação”, em outros termos, o interesse geral da classe capitalista e muito especialmente dos seus meios dirigentes, numa época, em que a produção capitalista se encontrava ainda regulada predominantemente pela concorrência a que se entregavam os produtores aparentemente livres de mercadorias. Identicamente, os últimos métodos da arte da guerra, que os dois campos hoje em luta põem mais ou menos perfeitamente em prática, pertencem a uma forma de gestão mais recente e bem mais elaborada que a dos velhos negócios capitalistas.

“As novas formas da produção material”, sublinhava Marx, “desenvolvem-se na guerra antes de se desenvolverem na produção do tempo de paz”. Assim, portanto, a guerra totalitária atual prefigura as novas formas econômicas que em seguida vão ser concluídas com a passagem de todos os países do mundo a um modo de produção capitalista mais planificado, que determinado pelo mercado, e a um capitalismo monopolista e estatal mais que concorrencial e privado. É, antes de tudo, por esta razão, que a guerra atual, longe de ser uma “repetição” pura e simples da anterior, não deixa de apresentar com esta uma “diferença essencial”[15].

Esta diferença é notória na pouca importância da “horda armada”. Segundo uma fonte, em geral bem informada, apenas um terço do exército alemão pertence mesmo nominalmente à infantaria, e que muitas tarefas, talvez a maioria, reportam por outro lado a militares de carreira dos blindados e da aviação[16]. Até à campanha da Rússia, quase todas as operações da Wehrmacht foram cumpridas por “tropas de choque” bem selecionadas e cujo efetivo, espantosamente reduzido, não sofreu senão perdas relativamente ligeiras.

Outro traço distintivo do caráter próprio da guerra totalitária de hoje, traço desta vez ligado ao declínio universal que experimenta o espírito da concorrência sem limites na fase atual do capitalismo monopolista, não é senão, a redução da vaga de entusiasmo geral que engendravam as guerras nacionais do século passado, e que atingiu a sua máxima amplitude no início da guerra de 1914-1918. Apesar do enorme acréscimo dos esforços dos serviços de propaganda especializados, nada na atitude da opinião pública perante a guerra atual se assemelha, de qualquer modo, à intoxicação ideológica massiva de nações inteiras, que foi tão característica das guerras da época precedente.

Enfim, se bem que todas as guerras do século passado e depois, cada ano de guerra, de 1914 a 1918, tenham visto o princípio da planificação ser estendido para além dos limites tradicionais do domínio militar a esferas sempre mais numerosas, este princípio, é agora aplicado sistematicamente pela primeira vez à mobilização completa dos recursos materiais e humanos de uma sociedade, que no seguimento do seu desenvolvimento técnico e industrial, se situa num nível incomparavelmente mais elevado que as do passado. O que é novo na circunstância não é a ideia de “recrutamento universal” por si, mas o fato, de que nem a iniciativa individual, nem o empenho concorrencial terem já o menor papel a desempenhar na sua efetivação. Outra novidade ainda: os princípios da “economia de guerra” foram desta vez aplicados desde o tempo de paz. O sistema industrial de países como a Alemanha e a Rússia foi, no seu conjunto, conformado antecipadamente, metodicamente, às exigências de uma guerra que não deveria surgir senão muitos anos mais tarde[17]. E, após o desencadear da atual guerra, as fronteiras que tradicionalmente separavam produção de guerra e produção de paz, desapareceram por todo o lado. Os recursos de todos os países foram postos em comum no quadro de uma economia de guerra à escala mundial.

A “guerra total” nazi difere, sob todos estes aspectos, das antigas formas de guerra total, nas quais se vinha repercutir o espírito de um capitalismo de dominação concorrencial. A guerra total de hoje revela-se, portanto, uma forma nova de guerra total: guerra total do capitalismo dos monopólios e do capitalismo de Estado, por oposição às guerras totais ligadas ao sistema da concorrência, que foram próprias de um período econômico passado.

7.

Os mesmos desenvolvimentos econômicos, que destruíram gradualmente a função positiva da guerra enquanto instrumento da revolução burguesa, criaram as premissas objetivas de um novo movimento revolucionário. O desenvolvimento do movimento independente da classe operária, teve por efeito, dar um aspecto novo ao problema da guerra e da revolução. Face a esta ameaça, a classe burguesa dirigente deve assumir desde então uma função repressiva. Nos nossos dias, dada a mudança das condições históricas, torna-se cada vez mais difícil considerar que uma determinada forma de guerra, ou a guerra em si, conserva ainda qualquer valor positivo para a revolução do século XX.

Em primeiro lugar, é forçoso constatar, a propósito das diversas ocasiões em que, no decurso dos últimos vinte ou trinta anos, a classe proletária se lançou numa luta pelos seus objetivos próprios, que a revolução social dos trabalhadores não tirou nenhuma vantagem das funções positivas, que é suposto preencher uma guerra revolucionária no que respeita à emancipação da classe oprimida. É um capítulo particularmente sombrio da história da revolução bolchevique na Rússia, o das “guerras revolucionárias”. E este capítulo teve como remate trágico a mensagem radiodifundida de 3 de julho de 1941, em que Stálin se abstinha de qualquer referência ao socialismo ou à classe operária. Em vez disso, exortava os povos da URSS a defender a existência do seu Estado nacional, no quadro do Império russo, e a mostrar o que eram “as qualidades inerentes ao nosso povo”. Desde então, as forças prodigiosas a que a revolução de 1917 deu livre desenvolvimento, foram utilizadas como instrumentos para a defesa do status quo capitalista na Europa e nos Estados Unidos, contra as inovações não menos ambíguas, que se seguiriam à derrota das potências “democráticas” ocidentais à saída do conflito que as opõem às forças “totalitárias” do nazifascismo.

Em que sentido se deve entender a tese paradoxal, segundo a qual a guerra, esse poderoso instrumento da revolução burguesa do passado, teria perdido toda a importância positiva para a revolução socialista da época atual? Porque, enfim, o movimento histórico do século XX não está separado dos seus antecessores por nenhuma muralha da China. E, se fosse exato que a guerra tivesse preenchido uma função absolutamente positiva na transformação revolucionária da sociedade, teríamos dificuldade em compreender, como teria ela perdido hoje tal função progressista.

É nas ambiguidades, acima delineadas, que, desde a origem, foram inerentes à guerra burguesa, e nas ambiguidades escondidas da própria revolução burguesa, que se encontrará a resposta para tal questão. Não há dúvida, que as guerras revolucionárias e nacionalistas dos séculos XVIII e XIX, constituíram etapas necessárias do processo que levou ao estabelecimento da sociedade capitalista atual e da sua classe burguesa dirigente. Contudo, apesar de toda a paixão de que estavam animados os soldados-cidadãos chamados a vencer ou a morrer, a função real destas guerras tinha muito menos a ver com o elemento autenticamente emancipador e democrático da revolução, que com os efeitos simultaneamente repressivos desta. Apresentar a guerra de massa moderna como o produto da Revolução francesa em geral, é entregar-se a uma generalização histórica abusiva. Um exame mais atento revela, com efeito, que ela esteve ligada a uma fase particular desta revolução. De fato, a sua origem situa-se no momento crítico, em que o levantamento da Vendeia e a agressão estrangeira impuseram a substituição dos princípios bem mais democráticos da primeira fase da revolução, pelas medidas autoritárias e violentas da ditadura revolucionária dos Jacobinos.

Em segundo lugar, o desenvolvimento do recrutamento universal e de todas as outras características da “guerra total”, foi prosseguido no século XIX, menos pela França que pelo estado antidemocrático da Prússia. Mas não se tratava de modo nenhum de uma simples ironia do destino, como por vezes se defende. Na base deste fenômeno está o fato de que o uso desenfreado da força convinha mais ainda aos objetivos dos governos reacionários da Europa central, os quais pretendiam limitar a “guerra de libertação” ao restabelecimento da independência nacional dos seus estados, submetidos ao Império francês, recusando ao mesmo tempo, outorgar aos seus súditos instituições verdadeiramente democráticas. Por outro lado, muito mais que a democracia, foi o nacionalismo burguês mais patrioteiro que estas guerras cada vez mais violentas e sanguinárias acabaram por implantar no centro da Europa, nos decênios seguintes, enquanto que a guerra da secessão americana, e as três guerras bismarckianas de alargamento da Prússia, faziam progredir ainda de forma nova, a guerra de massa.

Desde então, e até 1914, todas as guerras capitalistas haviam de confrontar-se com a oposição mais ou menos resoluta das diversas correntes, que integravam o movimento internacional da classe operária. Foi apenas sob o efeito do choque provocado pela guerra mundial, e pela crise política e econômica subsequente, que as duas minorias do socialismo alemão redescobriram o valor “positivo” da guerra para a revolução socialista. Uma destas minorias dirigiu a revolução abortada dos operários alemães, para se refugiar em seguida nas atividades pró-russas do partido comunista. Quanto à outra, consentiu na própria guerra como uma realização indiscutível das aspirações sociais dos trabalhadores e, assim, antecipou a guerra “revolucionária”, que as forças contrarrevolucionárias do nacional-socialismo fazem hoje à Rússia soviética, tal como ao capitalismo democrático.

Na hora atual, continua a reinar a mais absoluta indecisão no que concerne ao alcance da guerra para o futuro movimento revolucionário da classe operária. Quaisquer que sejam as consequências da guerra “total” em curso para as facções rivais da classe dirigente internacional, uma coisa é certa: para os operários, esta guerra taxada de “revolucionária” não é mais que outra forma, e uma forma agravada, da sua condição normal de opressão e de exploração. Apesar de tudo o que se diz e se vocifera, esta luta interna da classe dirigente capitalista não é de modo nenhum — como foi o caso das antigas guerras capitalistas — uma forma necessária e uma parte integrante do progresso histórico. Ela tem mesmo por efeito, desnaturar até as mudanças menores da estrutura econômica e política atual, exigidas pela manutenção do antigo sistema. A guerra capitalista esgotou todas as suas potencialidades revolucionárias.

É em outro lugar que não nos campos de batalha da guerra capitalista que se trava a luta pela nova ordem social. A ação decisiva dos trabalhadores começa onde acaba a guerra capitalista.


[1] Esta alternativa é exposta com toda a imparcialidade nas duas grandes obras de Maquiavel: Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio e O Príncipe.

[2] Bacon, Ensaios, III, “Da unidade religiosa”.

[3] Hofman Nickerson, The Armed Horde, 1793-1939, New York, 1940, pag. 35.

[4] A. J. Toynbee, A Study of History, t. 4, Londres, 1939, p. 139. O autor do presente artigo deve aos seis volumes de Toynbee ora aparecidos muitas informações e ideias preciosa.

[5] Segundo Toynbee “o mal da guerra viu-se no século XVIII reduzido a um mínimo que, nem antes nem depois, jamais foi atingido em nenhum outro capítulo da história do Ocidente”.

[6] H. Nickerson, op. cit., p. 63.

[7] As palavras citadas são as que o historiador italiano Guglielmo Ferrero utiliza para pintar a guerra do século XVIII em Peace and War, Londres, 1933, pag. 7-8.

[8] Reconhecem-se as palavras com que Marx definia “o que reina na esfera da circulação das mercadorias” (O Capital, Livro I, cap. 6, in fine).

[9] Para uma crítica desta atitude — crítica assaz enigmática na forma, mas judiciosa no fundo — cf. Denis de Rougemont, L’Amour et l’Occident, Paris, 1939, livro V, “L’amour et la Guerre”, pag. 239 sgs.; e o ensaio do mesmo autor “Passion and the origin of Hitlerism”, Revue of Politics, III, 1, Jan. 1941.

[10] Pode encontrar-se a exposição mais atual e rica de fatos, do aumento gradual, da permanência e do hipotético declínio dos exércitos de massa e de outros fatores da guerra moderna, na supracitada obra de Hoffman Nickerson. Para um tratamento magistral deste assunto sob forma condensada, cf. o capítulo respeitante às “repercussões da democracia e da industrialização na guerra”, no tomo 4 da obra de Toynbee (pag. 141-151).

[11] Citado de Le Moniteur Universel de 25 de agosto de 1793.

[12] F. Foch, Les principes de la guerre (1903), citado por D. de Rougemont, op. cit., pag. 263-264.

[13] Cf. Beta (Karl Korsch), “The Fight for Britain, the fight for democracy and the war aims of the working class (Prolegomena to a political discussion)”, in Living Marxism, V, 4, Primavera de 1941, pag. 1-6.

[14] C. von Clausewitz, Da Guerra.

[15] Cf. Clement Greenberg e Dwight MacDonald, “Ten propositions on the War”, Partisan Review, vol. VII, agosto 1941, pág. 271. Estes dois autores divergem nas opiniões sobre o caráter desta “diferença” efetiva. (Segundo um, a guerra em curso caracteriza-se pelo fato de existir desde já um “tipo novo de sociedade” na Alemanha.) Mas, sem procurarem aprofundar esta questão, perdem-se em seguida na discussão do que poderá o fascismo ter de “desejável” e de outras questões em grande parte subjetivas. Esta tendência diminui em certa medida o interesse, de resto considerável, deste ensaio em discutir seriamente um dos principais problemas do nosso tempo.

[16] H. Nickerson, op. cit, pag. 397.

[17] Quis a ironia do destino que não fossem nem a Rússia soviética nem a Alemanha as primeiras, na Europa do pós-guerra, a dar uma consagração formal ao princípio da “guerra total”. Com efeito, foi na França que, a 3 de março de 1927, a câmara dos deputados adotou por uma maioria esmagadora, apenas com os votos contra dos comunistas, uma proposta de lei que, defendida pelo líder socialista Paul Boncour, previa a mobilização de todas as forças e recursos do país com vista à “guerra total”.

O presente texto foi retirado do seguinte site: https://www.marxists.org/portugues/korsch/1941/mes/guerra.htm. A revisão do português de Portugal para o português do Brasil foi feita por Ana Bombassaro.