
[Nota do Crítica Desapiedada]: Disponibilizamos a entrevista abaixo com a Lola Miesseroff por se tratar de um material que aborda questões pertinentes como: i) crítica às lutas sexuais separadas ou isoladas (os chamados “guetos”) das lutas de classes, o que entra na proposta da autora de uma “frente homossexual pela ação revolucionária” [acrescente-se: com o proletariado]; ii) recusa da noção ideológica de “homossexual como revolucionário”; iii) constatação do recuo das lutas sexuais após a contrarrevolução cultural preventiva e do recuo das lutas operárias no final dos anos 60 e 70. Para além destas observações críticas e de outras questões que leitores e leitoras poderão discordar (a noção de “polissexualidade”, por exemplo), a autora oferece depoimento valioso sobre o meio militante radical francês de sua época e a relação com a militância política, sexualidade, marxismo, situacionismo, etc.
Assim, publicamos esse material abaixo por entender que a autora defende uma perspectiva revolucionária, compreendendo que a luta específica (feminina, racial, nacional, sexual, etc.) contra a opressão precisa estar articulada com a luta de classes. As reivindicações parciais no capitalismo existem e devem ser apoiadas, mas reconhecendo que elas são parciais e limitadas. É somente com uma sociedade autogerida (“comunista”) que a exploração e toda forma de opressão podem ser abolidas.
Revisitando Sexo e Classe – Lola Miesseroff (2023)
Sobre uma infância de gênero fluido, maio de 68, a libertação das mulheres, gays e lésbicas radicais, o #MeToo e um pouco mais: uma entrevista com Lola Miesseroff
Neste ano, a PM Press publica Fag Hag, de Lola Miesseroff (1947), uma história de tempos conturbados e rebeldes
Nesta entrevista, iniciada em 2017 e concluída em 2021, Lola enfatiza a Front homosexuel d’action révolutionnaire [Frente homossexual de ação revolucionária], um dos grupos dos anos 70 que buscava destruir os códigos sexuais. Mas primeiro vamos voltar no tempo.
Educação sentimental pré-68
Lola: Desde o começo da minha infância, homossexuais fizeram parte da minha família e meio social. Perto de Marselha, meus pais tinham um acampamento naturista, que daria para descrever como libertário, e sempre tinha alguns homens e mulheres homossexuais naquele ambiente, e casais de meninas e meninos[1].
Duas amigas lésbicas eram muito próximas da gente: uma teve amantes mulheres, mas também um relacionamento longo com um homem casado, até que finalmente viveu com uma mulher no final da vida dela. Pra mim era muito óbvio que não era necessário classificar a orientação sexual. Parecia ser bem normal que alguém saísse com uma menina ou com um homem em períodos diferentes de sua vida ou quem sabe ao mesmo tempo.
Eu era bem jovem quando tinha amigos que descobriram – muitas vezes depois – que eram homossexuais. A verdade é que eu sempre gostei de meninos femininos. Do mesmo jeito que eu nunca gostei de meninas muito femininas – claro, no sentido estereotipado tradicional da palavra. O que não quer dizer que eu não queira que elas sejam bonitas como meninas: eu diria que sou uma menina também, mas que também sou um menino.
Desde novinha, eu era o que dá pra chamar de “Maria Purpurina”. Meu pai dizia: “Tem a Santa Rita, a padroeira das causas perdidas e dos desamparados, e tem a Santa Lola pros viados”. Não demorou muito tempo para entender alguma coisa das questões sexuais: o aborto ainda era ilegal naquela época, minha mãe fazia trabalho voluntário para a organização Planning familial [planejamento familiar], defendia o direito ao aborto e de vez em quando mulheres viam até nós para interromper a gravidez não sei onde, e então ficavam na nossa casa para descansar. Então eu era bem nova quando aprendi sobre o aborto[2]. E também soube desde cedo que sexo nem sempre vinha junto do prazer das mulheres. Meus pais não conseguiam parar de rir quando disseram pra eles que eu estava fazendo discursos acadêmicos sobre sexo para o bem dos meus colegas no acampamento naturista com 12 ou 13 anos… apesar de minha total falta de experiência no assunto.
Então eu não era mais uma menininha. Virei estudante em Aix-en-Province e me associei bem de perto a um meio em que homossexuais se misturavam com héteros. Aos poucos se formou em torno de mim um grupo de meninos mais umas meninas, incluindo a Mireille, minha melhor amiga da escola que ia até Aix com sua parceira que ela tinha conhecido em uma escola religiosa. Mireille era o que chamam de moleca, não caminhoneira, mas naquela época não fazia ideia que talvez ela fosse lésbica, ela era um dos caras, só isso. Eu gostava bastante da Mireille, a gente veio da mesma cidade.
A gente era um grupinho terrível, bagunçava bastante e adorava desrespeitar todo mundo!
G. D.: Que ano era?
Lola: 1965. A gente era estudante. Não que estudasse muito. A gente já vivia nesse meio de homens e mulheres homossexuais. Tinha essa tribo mista em minha volta, meninos e meninos de todos os gêneros, de todos os sexos, como dizia o cantor francês Charles Aznavour. A gente tinha consciência daquilo que ainda não chamavam de homofobia. A gente era provocadoras profissionais, em particular em relação ao sexo, mas não só. Causava, era subversiva, mesmo sem nenhum grande discurso político. Depois, alguns de nós viraram maoistas do tipo mais dogmático, um de nós inclusive se descobriu um grande fã do Althusser[3]. E eu, eu era uma espécie de anarquista. A gente só tinha certeza de que esse mundo não tinha sido feito pra gente, odiava tudo nesse mundo, passava nosso tempo roubando e bagunçando. Se convidassem a gente pra alguma festa chique, a gente se comportava feito maloqueiras, ia por causa da comida e da bebida, pra gente estava bom assim e quanto mais se comportava mal, mais convites recebia. Era bem divertido. Muitos de nós vinham de famílias da classe trabalhadora e foram ajudados pelo meio homossexual a conseguir uma fachada de “bons modos”. O meio homossexual é bem formador. Me proporcionou uma educação fora da escola. Aprendi bastante: a ler um “jornal de qualidade” toda tarde, a tomar chá sem açúcar, a ir à ópera, onde eu gostava de me exibir com meu amigo Alban, como ler Jean Genet… um meio realmente educativo.
A gente conhecia uma ou duas prostituas de Marselha e dois gigolôs homens. Às vezes essas prostitutas de rua eram mulheres burguesas. Esquisito mesmo. Um dia, eu estava perto da Ópera, um famoso bairro da luz vermelha, tinha putas no lobby de um hotel e uma delas me chamou pelo nome.
– Desculpa, eu não te conheço.
Ela tirou a peruca e disse:
– Olha, sou eu, o Jacques!
Um amigo da minha cidade, Aubagne, que trabalhava como travesti[4]. Havia muitos encontros assim. Era um grupo bem diverso, tinha que ser. Pelo menos em Marselha. O meio da prostituição – não o mais ou menos estabelecido e controlado por cafetões – se misturava ao nosso. Por exemplo, um dos meus melhores amigos era um bombadão que apresentava o que chamavam na época de um ato burlesco travesti com o nome de Lady Jane. Agora ele seria conhecido como drag queen. Só que ele só era drag queen quando estava se apresentando. No resto do tempo, era simplesmente o Jean, um cara gay que se vestia como menino. Às vezes encontrava ele com o pai e o irmão dele – um verdadeiro machão de Marselha… se bem que o comportamento do Jean claramente não era um problema na família.
G. D.: Você não era o que chamam de politicamente consciente.
Lola: Era. Mas não num sentido de “grupo político”. Não por meio de teorias ou ideologias. Primeiro, porque eu só poderia ser contra a URSS e antistalinista. Meus pais, os dois, eram refugiados russos e meu pai tinha morado na URSS até 1925. Eu tinha lido o Escolhi a liberdade, de 1946, do Kravchenko. Conhecia bastante sobre a Rússia, mas também tinha lido coisas sobre a guerra na Argélia, como o La Question, do Henri Alleg, sobre as torturas realizadas pelo exército francês[5].
Meus pais estavam cercados de anarquistas, tinham inclusive feito parte de um grupo anarquista. Teria muitas histórias que vale a pena contar, por exemplo, sobre nossa amiga lésbica que fazia parte do grupo libertário do Draguignan. Ela contou pra gente que, quando era cabeleireira aprendiz na juventude, ela percebeu do nada que estava apaixonada pela chefe dela! Ela não sabia o que significava, não se sentia confortável com isso. Por acaso, ela deu de cara com esse grupo do Draguignan, e dali pra frente o dilema dela acabou, vivia uma espécie de vida comunal com aquelas pessoas e ser lésbica não era mais problema. O empecilho é que o entendimento era que ela tinha que ir pra cama com todos os membros do grupo, inclusive os homens! Era uma comunidade “harmonista”, o que significava que relações sexuais funcionavam numa base rotativa.
“Não faz sentido continuar vivendo durante a noite”
Lola: De repente, com a chegada de maio de 68, a esperança é agora e eu digo pra mim mesma: “Não faz sentido continuar vivendo durante a noite!”. Tudo que eu vinha recusando… agora eu conseguia entender o porquê de rejeitar. Em abril de 68, disse pros meus pais que bastava de universidade pra mim. Em 67, eu tinha lido De la misère em milieu étudiant[6], e depois, no começo de 68, Debord e Vaneigem. Não preciso dizer que Vaneigem me atraiu mais que Debord. Tinha lido coisas anarquistas, um pouco de Marx, não muito, não o conhecia de verdade, e não seus primeiros textos e os conceitos de subsunção formal e subsunção real[7]. Não tinha percebido que era disso que se tratava “o espetáculo”: não tinha entendido a ligação entre os dois. Eu me virava com as referências intelectuais que estivessem disponíveis. Tinha escrito pra Internacional Situacionista para obter uma cópia da IS, mas eu estava lá, só eu, sozinha com minha amiga[8] na época, que eu tinha convertido pra essas ideias. Estava isolada, andando por aí com minhas cópias da IS, meus textos do Vaneigem, etc. Eu não era uma “pro-situ” – os pro-situs só nasceriam nos anos 70 – mas, depois de muito tempo, tinha encontrado meu lar político, digamos. Essa foi realmente uma época formadora. Antes, tinha lido bastante, Armand, Pouget… mas nada tinha dialogado comigo daquele jeito[9].
Se me pedissem pra me definir, teria respondido que era anarquista, mas nada a ver com a Federação Anarquista oficial: era uma anarquista que concordava completamente com as ideias situacionistas.
Em maio de 68, no comitê de ação da minha cidadezinha, me aproximei bastante de um homem bem jovem, o Christian. Eu tinha 20, ele, 15, e era o irmão mais novo de uma amiga da escola. Christian estava na Jeunesse Communiste Révolutionnaire[10](JCR), era homossexual, mas totalmente desconectado do gueto gay. Porque essa era a época do gueto homossexual… uma vida no armário com tudo que ela acarretava. Mas eu também tinha amigas e amigos vistosos que não se importavam em sair do armário e se abrir. Enfim, o Christian preferia transar com héteros. Então passamos juntos pelo maio de 68, ele na JCR, eu me mantendo distante da política de extrema-esquerda, com o meio radical emergente de Marselha. Em dado momento a JCR o expulsou, sob o pretexto de sua “associação com elementos anarcomaoistas” – eu, basicamente! –, mas ele não era o único membro da JCR que se associava comigo: o verdadeiro motivo é que ele era gay. Na verdade, o Christian era descaradamente gay, ele não fazia ideia do quanto o sexo com pessoas do mesmo sexo era reprimido, o que é estranho, porque ele era filho de um pedreiro e vinha de um ambiente bastante stalinista (ou seja, homofóbico).
Polissexualidade
Lola: Em Marselha, fazíamos sexo em grupo, completamente sem planejamento, nada a ver com a bacanália orgiástica nem com o que conhecem agora como gang bang. Todo mundo simplesmente ficava com todo mundo, héteros e homossexuais. Isso inclusive me permitiu conhecer um homem que iniciou um dos meus maiores casos de amor: ele veio com um menino e foi embora comigo. Era sexo sem controle e alegre, carinhoso e amigável. Aliás, tinha muito mais meninos que meninas. O engraçado é que pegamos uma palavra emprestada dos sociólogos de Bordeaux: “fazer um monte” (faire un tas). Mas, originalmente, fazer esse “monte” não incluía transar, só sentir os corpos, se esfregar um no outro e, até onde lembro, a homossexualidade não era prioridade.
No outono de 1970, umas 10 pessoas se mudaram para um apartamento de 3 cômodos em Paris: dois quartos e um cômodo em que ninguém podia dormir, porque estava reservado para quem queria discussões por toda a noite. A gente preferia o que depois foi chamado de polissexualidade, apesar de não ser zoófilo nem pedófilo nem sadomasoquista. Apareceram alguns apartamentos parecidos, tinha um intercâmbio vasto, todo mundo se conhecia e se misturava, a gente conversava até o amanhecer, ia a manifestações, sempre como um grupo, porque não era nem uma comuna nem uma comunidade, porque comunidade é igual a uma comunidade de miséria. A gente vivia como um grupo para conseguir atuar juntos. Foram dias intensos de debate, ação, sexo e polêmica vivos. E é claro que nossos amigos, que eram basicamente homossexuais, estavam particularmente envolvidos na luta pelo fim da repressão da homossexualidade. Do mesmo jeito que a gente participou da luta contra a repressão das mulheres.
A libertação das mulheres & a Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR)
Lola: Pra gente, tudo começou nos primeiros dias de 1971. Uma amiga convidou a gente pra uma reunião do Mouvement de libération des femmes [Movimento de Libertação das Mulheres] (MLF). O grupo inteiro foi, mas os meninos tiveram que ficar no café ao lado. Três de nós entramos, mais essa amiga. Começamos dizendo:
– Desculpa, mas a gente vive em um grupo com meninos, alguns são gays, outros não são totalmente gays, e a gente preferia não ser separadas dos meninos que travam essas lutas.
– Somos contra a mistura de gêneros.
– Então tá…
Não diria que a gente ficou satisfeita. Então a gente se olhou: “Porra, olha como a gente tá mal vestida, a gente parece acabadinha!!” De fato, a gente parecia mendigas comparadas àquelas jovens. E então ouvimos declarações absurdas, tipo “sou lésbica por escolha política”, até que uma de nós, provavelmente eu, disse?
– E não é por prazer, sua idiota?
Um tempo depois, a gente ouviu falar do nascimento da FHAR. Óbvio que a gente mergulhou de cabeça, foi lá com nosso monte de amigos, se jogou de corpo e alma nessa luta: o que atraía a gente não é que era uma frente de libertação homossexual, mas uma frente homossexual para a ação revolucionária. A gente pensava a mesma coisa sobre a libertação das mulheres: é um ponto positivo os grupos se organizarem em defesa de causas específicas contanto que o específico não esteja lá pra sempre, contanto que em algum momento se mescle no caminho revolucionário geral – não esqueça que a gente acreditava que a revolução estava logo ali. A gente tinha certeza de que a existência da Libertação das Mulheres era importante e positiva, se funcionasse como uma ferramenta específica numa gama mais ampla de atividades, isto é, se fosse um espaço misto. Do mesmo jeito que a gente achava que a existência da FHAR era importante e positiva, se ela também fosse um espaço misto de gênero.
G. D.: Misto no sentido de ser aberta para quem não era gay?
Lola: Isso, aberta para todos os estilos de vida. De fato, no começo a FHAR apoiava a polissexualidade. Na época, a gente se mudou pra um apartamento na rua Charlemagne (no 4º distrito de Paris, na área de Marais): muita gente ia morar ali ou ia só pra dormir, e o lugar virou uma espécie de anexo da FHAR. Foi ali que conheci o jovem[11] que depois ia virar a Hélène Hazera. A FHAR tinha comitês de bairro, então criamos o comitê de Marais da FHAR. Naqueles dias, o Marais era um bairro de classe trabalhadora em que você ouvia ídiche em todas as ruas, a gente não fazia ideia que depois a área ia se transformar num polo da mercantilização homossexual. Nosso apê virou um caos onde as pessoas debatiam, fumavam maconha, usavam mescalina, faziam amor e se misturavam onde o comitê fazia suas reuniões e preparava seus atos. A gente continuava anunciando como nossa sexualidade era livre. Eu lembro que saía usando umas botonas, pelada numa batina – um traje maravilhoso. Resumindo, a gente estava envolvida em provocação aberta e permanente. A gente transava em lugares públicos – e fazia isso há muito tempo.
G. D.: Que atos você preparava?
Lola: Por exemplo, criar o caos no gueto. No gueto gay, digo: as baladas homossexuais especializadas. A gente ia até a porta da balada e falava: “Saiam do armário!” Outras ações também. Um dia, ouvimos que estavam acontecendo ataques homofóbicos no parque Buttes-Chaumont. Alguns de nossos amigos foram. De repente, agressores homofóbicos se depararam com uma tropa de pocs berrando – mesmo os que não eram pocs exageraram um pouquinho – e os homofóbicos apanharam. Foi legal. Agredir agressores homofóbicos[12]. Assim como a gente gostava de agir como “agentes provocadores” em relação ao gueto gay.
Não fazer as coisas pela metade
G. D.: A FHAR tem essa reputação de reuniões gerais muito desorganizadas, que funcionavam como lugares pra paquerar e transar.
Lola: Esse foi na verdade no final da FHAR e, até onde sei, não acontecia de fato nas reuniões em si. Algumas pessoas transavam nas dependências ou não muito longe, na Faculdade de Artes ali perto. Durante a reunião, bom… algumas pessoas davam em cima de outras, coisas aconteciam, mas eu lembro de uma atmosfera até que boa. Não lembro de ninguém que eu conheço transando enquanto uma reunião da FHAR estava em andamento. Tinha uns flertes, umas cantadas, umas brincadeiras. A gente se divertia, era bastante festivo, convenhamos. Ainda mais com o que viria a ser o grupo Gazolines – a Hélène era uma deles –, eles não faziam as coisas pela metade. Acho que o slogan deles era “Le fard avant tout”, “FHAR acima de tudo”: um trocadilho em francês, “fard” significa maquiagem. A Hélène tinha um interesse bem grande na IS
G. D.: A Hélène é a Marlène.
Lola: Isso, o apelido dela foi Marlène por um tempo[13].
Chefinhos & Sapatas Vermelhas
Lola: Na FHAR, não demorou pra gente encontrar pessoas que gostavam de mandar nas outras. Pequenos burocratas que percebemos que sabiam como manipular uma reunião de modo que algumas coisas já estavam decididas antecipadamente. Isso nos levou a juntar forças com aqueles que depois virariam os Gazolines. E começamos a protestar.
G. D.: Quem eram os chefinhos?
Lola: Guy Hocquenghem, Alain Fleig… Não conseguia lembrar porque a gente não era amigo do Fleig, que estava bem alinhado à gente politicamente. Recentemente perguntei pra Hélène e ela disse: “Porque ele era um dos que gostava de mandar nas pessoas![14]”
G. D.: Esses caras “mandões” tinham uma linha política diferente da de vocês?
Lola: Basicamente, eles eram gauchistes[15]. O Hocquenghem veio da trotskista Ligue Communiste. Além disso, a FHAR começou a ser convidada pra galerias de arte, a eventos da alta sociedade, e éramos contra: isso era como voltar pro gueto. Meu amigo Jacques Desbouit foi a um show de inauguração de uma exposição e escreveu nas pinturas: “viados são vândalos”. A gente gostava de gerar escândalo, entrava em contato com novas pessoas, principalmente meninos, porque naquela época não tinha muitas meninas.
G. D.: Por que muitas mulheres tinham ido embora?
Lola: No começo tinha muitas meninas.
G. D.: E não tinha mais?
Lola: Ainda tinha, mas muitas já tinham começado a ir embora. Uma vez eu me vi em uma relação amorosa com uma menina que me levou a uma reunião das Gouines Rouges [Sapatas Vermelhas]. Um desastre total… uma caricatura. Dava pra identificar visualmente os caras e as meninas. Mulheres viris ao lado de mulheres bem femininas. E dava pra perceber que as viris estavam no controle. Eu achei aquela divisão um pouco estranha. O debate continuou. De repente, teve uma situação. Logo antes, um grupo da FHAR tinha feito uma reunião na mesma sala. Entrou um menino, membro da FHAR, uma poc, se é que eu já vi uma. Ele disse:
– Oi, meninas! Deixei meu casaco no salão. Posso pegar de volta?
– Aaah!! Um homem! Fora daqui! Fora!
Então eu disse:
– Você tá brincando. Você não quer ele aqui porque ele é homem? Desculpa, mas aqui tem gente que é mais menino que ele. E ele só quer o casaco dele. Que loucura!
Levantei, peguei o casaco, saí com minha amiga, várias meninas saíram também, e a gente foi beber com o menino.
G. D.: Esses que você chama de chefinhos, Hocquenghem… eles agiam por necessidade de serem reconhecidos, serem aceitos… um desejo por respeito?
Lola: Não. O Hocquenghem não foi responsável pela FHAR se misturar com artistas, mas ele não ligava. Eles se comportavam como burocratas: eles mantinham a atitude burocrática que já tinham tido no passado trotskista ou maoista. Tinha uma influência cripto-trotskista ou cripto-maoista na FHAR, expressa em sua prática de fato. O Laurent Dispot, por exemplo, não era abertamente maoista, mas, um dia, quando estávamos conversando num café, só nós dois, ele estava explicando como “organizar” os homossexuais, até que ele disse: “Basicamente, sou maoista, ainda sou maoista[16]”.
Era isso. Um jeito bem leninista de fazer as coisas, muito centralizado, de cima pra baixo. Quando você tinha uma reunião, você tinha que manipular os participantes. Esses eram hábitos burocráticos enraizados de seu passado gauchiste e leninista. Muitos eram leninistas de coração. E alguns simplesmente queriam ser líderes. Nem todos eram capazes. Hocquenghem era: ele era muito carismático, era extremamente brilhante.
Dito isso, ao mesmo tempo, a FHAR atuava como um local de reuniões importante, rico em experiência e colaboração, e é verdade que foi uma libertação fantástica.
Destruindo os códigos sexuais
Lola: E então surgiu outra divisão, mais teórica. Testemunhamos a ascensão de um discurso que descrevia a homossexualidade como inevitavelmente revolucionária, como que por natureza, e a bissexualidade como inevitavelmente “recuperada”, uma fuga. Hocquenghem era um dos proponentes dessa concepção. Então a polissexualidade foi pelo ralo. Em contrapartida, explicamos que não estávamos interessadas em nos encaixar na categoria de uma orientação sexual específica… e existiam viados nazistas, não é!! Nós considerávamos a visão do “homossexual como revolucionário” teoricamente falha, absurda. As reuniões da FHAR viraram cada vez mais cada um gritando de um lado. Começávamos brigas, outros membros da FHAR ficaram do nosso lado e acabamos saindo da FHAR com um comunicado convidando as pessoas a se juntarem a nós, fora daquilo que estava virando um novo gueto. E nosso apartamento comunal se tornou um novo local de encontro e centro de discussão, fora da FHAR, fora de qualquer organização, mas extremamente ativo.
G. D.: O título do comunicado era “E é por isso que sua filha é muda”, assinado por Jacques Dansette, Patrick Deregnaucourt, Jacques Desbouit, Karen Gautrat, Philippe Pellen, Jean Schwartz, Roland Simon e você. Assinar foi um compromisso[17].
Lola: Foi. Normalmente, na FHAR todo mundo assinava como “membro da FHAR” ou algo do tipo, mas daquela vez a gente decidiu colocar nossos nomes e sobrenomes.
G. D.: Nem todos os signatários eram gays, nem bissexuais. Na verdade, na FHAR[18], alguns membros eram hétero. Uma pequena minoria.
Lola: Pra gente, ninguém era “hétero” por definição (ou pra sempre), e o Phillippe e o Roland, por exemplo, não tinham relações sexuais com homens.
G. D.: Como seu comunicado foi recebido?
Lola: Não sei como a FHAR reagiu, porque saímos de distribuir nosso comunicado, mas muitas pessoas se juntaram a nós, o que era esperado já que nossa proposta era se encontrar fora do “gueto da FHAR”. Depois que saímos, as pessoas descobriram nosso comitê de bairro e nosso apartamento da rua Charlemagne começou a receber muitos visitantes regulares.
G. D.: Esse texto não tem data.
Lola: Escrevemos em 1971, não lembro se antes ou depois do verão.
G. D.: O que quer dizer que você não ficou muito tempo na FHAR.
Lola: Só alguns meses. A gente criou muito problema. Enfim, depois disso, a FHAR acabou bem rápido.
Luta de classes
G. D.: Então você saiu e pessoas entraram. O que você fez?
Lola: Não esqueça que desde 68 a gente vivia numa agitprop ininterrupta. A gente era bem ativo, fazia muitas coisas na rua. Normalmente não de um jeito organizado. Andava por aí como um bando selvagem, roubava, se envolvia em tudo, era provocador quando tinha vontade, como muita gente em Paris na época. A gente passava nosso tempo bagunçando, se metendo em tudo. Às vezes as pessoas chamavam, a gente ia a uma manifestação, apoiava uma greve ou se envolvia em um ato. Não tinha uma separação entre a vida e o que dava pra chamar de nossa atividade política, mas, no todo, a gente se concentrava na vida cotidiana.
G. D.: E quanto à luta de classes?
Lola: Pra gente isso era parte essencial de nossa vida e atividade… Quando amigos estavam trabalhando, a gente estava envolvido em qualquer coisa que acontecesse nos seus locais de trabalho. Eu em particular fazia enquetes. A gente tinha virado parte de um tipo de coleta informal de coletores de dados, parecido com o que chamam hoje de coordenação, que se encontrava uma vez por mês. Como todos os coletores de dados estavam em empregos intermitentes, essa coleta os ajudava a se inscreverem no sistema de previdência social, a receber seguro-desemprego, etc. E também fornecia informações sobre as empresas que tratavam a gente mal, como tentavam foder a gente e como combater isso.
Também agimos. Invadimos as instalações de empresas de pesquisa, por exemplo, a IFOP e a Makrotest. É engraçado que os chefes nos deram crédito demais: éramos bem menos poderosos do que eles achavam às vezes. Uma vez, no dia que atacamos a Makrotest, que era em Puteaux [um subúrbio a leste de Paris], uns amigos nossos que trabalhavam pra IFOP ouviram a gerência dizendo que coletores de dados estavam marchando rumo a IFOP: quando, na verdade, a IFOP, no 10º distrito de Paris, fica a quilômetros da suburbana Puteaux! Assustamos os chefes. Nós atuávamos onde trabalhávamos. Diferente dos gauchistes, não agíamos em todos os lugares, agíamos se fôssemos chamados. Quando um amigo nosso que trabalhasse em algum lugar precisava de ajuda, estávamos preparados. Independente de onde a gente trabalhasse, obviamente estava envolvido em lutas assim que elas aconteciam. Essa era nossa luta de classes. Na situação pós-68, tudo estava sendo desafiado. E como (apesar de nossa posição antitrabalho) precisávamos trabalhar de vez em quando, não deixávamos de ser ativos no local de trabalho.
A gente também fazia muitos pequenos furtos, ações de “check-out grátis[19]”. Frequentemente no calor do momento. A gente decidia: “Vamos!” e ia. A gente sempre estava em movimento porque nosso propósito era existir como um grupo para poder agir. A gente ajudava a fazerem abortos, oferecia abrigo para pessoas muito jovens, uma que tinha fugido do conselho tutelar, outra de um seminário, abrigava vários tipos de pessoas sem-teto. A vida cotidiana era uma grande questão.
Pra gente, o verão de 71 foi um grande Verão do Amor[20]. Qualquer um podia aparecer na nossa porta, debater, transar muito e usar bastante droga. Foi aí que os Gazolines surgiram: no próximo ano, marchamos juntos para o funeral de Pierre Overney, com os Gazolines vestidos como viúvas alegres[21].
G. D.: Isso foi em 1972. A FHAR foi inaugurada no começo de 71 e você saiu…
Lola: Depois de uns 5 ou 6 meses…
G. D.: …então tudo isso estava acontecendo…
Lola: …num piscar de olhos.
G. D.: Um ano, no máximo.
Lola: Menos. Nossa vida comunal e todo o resto disso… foi tudo num piscar de olhos.
René Lefeuvre
Lola: No verão de 71, em Bordeaux, conheci o Christian Marchadier (mais tarde conhecido como Arthur[22]), a gente se viu de novo em Paris e ele me apresentou o René Lefeuvre, com quem eu contribuí pra tradução do Fascismo vermelho, fascismo marrom do Otto Rühle[23].
A gente começou a visitar o René e seu apartamento era bem familiar: tão desorganizado quanto o dos meus pais, com ainda mais livros, e o René gostava de meninos. A gente falava bastante de sexo. O René era membro do Arcadie[24]. Eu conhecia o Arcadie pelos meus pais, tinha lido sua revista e me pareceu reacionária. Houve um caso que depois me deu vergonha. Eu disse pra ele: “René, você devia ter participado da FHAR. Por que você era do Arcadie, porra?” Ele chorou e respondeu: “O Arcadie foi o primeiro lugar que eu pude dançar com um menino: você não percebe o que isso significou?”
A gente era bem amiga do René e só começou a visitar menos vezes quando a editora dele, a Spartacus, também virou um grupo e uma revista. A gente foi a algumas reuniões, mas uma série de coisas não combinavam comigo. Nossa mentalidade situacionista não deixava a gente se enturmar. Eu só escrevi um artigo na Spartacus, sobre o livro do meu pai[25]. Ainda assim, a gente se manteve próximo. Ele contava muito sobre a vida dele pra gente. Quando eu e o René conversávamos, ele sabia que estava com alguém que tinha bastante consciência do que era ser um homossexual no armário forçado a viver com vergonha – e minha atitude não era tão comum assim no meio radical naquela época. O Daniel Guérin que tinha ajudado o René a se libertar[26]. Antes disso, ele tinha ficado na dele, tinha se dissimulado. Quando era um jovem pedreiro na Bretanha, era horrível, e só quando prestou o serviço nacional foi que ele percebeu que gostava de meninos. Dá pra imaginar o dilema dele.
Reich, Rühle, Korsch, Marx
G. D.: Como você reagiu quando a Fléau Social do Fleig saiu em 1972?
Lola: Nessa época a gente estava ajudando o Arthur com as edições piratas do Reich (ele tinha uma boa compreensão do alemão) e eu estava ocupada descobrindo a ultra-esquerda. A biografia de Marx do Otto Rühle teve um impacto enorme na gente[27]. A gente também fazia amigos, viajava… na Itália a gente conheceu os comontistas[28].
G. D.: Estranho… eu conheci o Fleig em 1973-74, a gente se via bastante, tinha discussões, contribuí pra Fléau Social[29]. Como você, ele era crítico de um discurso que descrevia a homossexualidade como revolucionária em si mesma, então, assim, ele estava fazendo o que você tinha feito antes, só que ele não tinha feito antes porque na FHAR ele era o que você chama de chefinho. Uns anos depois, como você, ele acabou descobrindo a IS e a ultra-esquerda: isso deve ter chamado sua atenção.
Lola: A gente achava a Fléau OK, mas a gente tinha ido pra outro caminho. A homossexualidade não era mais nossa preocupação principal, nem os nossos amigos homossexuais. Como falei, na época nosso interesse profundo era o Wilhelm Reich. Começou com o Arthur, que tinha conhecido o Michel Jacob, que por sua vez estava em contato com o Constantin Sinelnikoff, o editor pirata completamente sem autorização dos escritos do Reich do período alemão, quando o Reich ainda era marxista[30]. Ser perseguido por policiais, só por causa de livros, difícil de acreditar! Reich, Rühle, Korsch… a gente explorou todas essas avenidas à medida que surgiam. Assim como o jovem Marx, que eu mal conhecia, os Manuscritos de 1844… a gente estava mergulhando em tudo isso.
G. D.: E o meio de que você participava, ele mergulhou nisso também?
Lola: Esse meio tinha se transformado num tipo um pouco diferente. A gente tinha perdido muitos amigos e feitos novos. A comunidade do apartamento estava começando a se desintegrar: alguns visitantes não vinham mais e foram substituídos por outros, de vários gêneros, como antes. A maioria dos laços que tinham se estabelecido ao redor da FHAR estavam sendo desfeitos. Quando a gente encontrava ex-membros da FHAR, a gente ficava feliz de se ver, mas a conexão íntima tinha acabado.
A gente se concentrou mais na teoria e menos na agitprop, porque tinha menos oportunidade de ação. Mas às vezes acontecia. Quando meu parceiro trabalhou para a editora Larousse e a equipe foi demitida, a gente escreveu e distribuiu um folheto na empresa. A gente participava de atos e manifestações, às vezes começava elas, se tivesse oportunidade. Mas a gente estava mais interessado em ler e se divertir.
Regressão da identidade
G. D.: Quase 5 décadas depois, como você enxerga aqueles anos? E como você percebe tudo que aconteceu desde então: o avanço nos direitos de gays e lésbicas, casamento do mesmo sexo, grupos LGBT em todos os lugares…?
Lola: Tenho percebido um aumento de identidades que se desenvolvem, mas se fecham em si mesmas. A própria noção do “homossexual como revolucionário” já era uma categoria identitária. Mas não podíamos prever que evoluiria para uma regressão identitária geral. Os grupos LGBT nascem da separação e mantêm a separação: eliminam a luta de classes da dimensão que eu chamaria de vida cotidiana, a libertação da vida. Aos poucos, as pessoas desistiram da luta de classes. Se é isso que as lutas sexuais viram, acabou a maior parte do meu interesse, assim como o dos meus amigos. Quando o sexo se torna uma luta dividida – e divisiva –, seja uma categoria de mulheres, gays, o que seja, agora uma categoria racial, não posso ser parte dela.
Como a pessoa transgênero Hélène Hazera – mencionei ela antes – continua repetindo: “Vamos rever nossas prioridades. O sofrimento dos migrantes, por exemplo, é mais importante que a questão binário versus não-binário”. Ela ainda apoia as posições de classe – o que não impede que ela esteja profundamente envolvida na luta pelos direitos das pessoas trans. Concordo que há diversas frentes de luta, mas eu preferiria que elas não estivessem separadas. Pra mim, é como voltar ao gueto.
G. D.: Foi a Hélène que disse uma vez: “Os queer são os maoistas do gênero[31]”.
Lola: Ela entende que essas pessoas agem como os gauchistes 40 ou 50 anos atrás.
G. D.: Como você se sente com relação ao queer como movimento?
Lola: Como posso dizer? O conceito em si… acho que todo mundo é queer de algum modo.
G. D.: Por quê?
Lola: Simplesmente porque todos somos yin e yang, masculino e feminino, menino e menina.
G. D.: O que nos leva de volta à polissexualidade.
Lola: Exato. Ainda é um pilar básico meu. Agora, quando pessoas trans são assassinadas, não preciso dizer que sou totalmente a favor de protestar e ir às ruas. Por exemplo, na França, Kara, uma mulher trans presa na primavera de 2016 durante o movimento contra a Reforma da Lei Trabalhista, foi detida na prisão e mantida sem sua terapia hormonal por muito tempo. Sempre me preocupo com essas formas de opressão e repressão, mas não vou participar de identidades ou lutas separadas. Além disso, mudar a lei nunca esteve na minha agenda política.
G. D.: O que você quer dizer?
Lola: Claro que estou feliz que agora o aborto é legal e a homossexualidade foi descriminalizada. Mas lutar por direitos é só uma pequena parte de se esforçar em geral para libertar todas as formas de sexualidade. Nunca partilhei da crença de que transformar a lei era uma prioridade. Não vamos travar as lutas erradas. Nossa luta é parte da luta geral pela emancipação da humanidade. Nos libertarmos do trabalho também é nos libertarmos da divisão do trabalho, o que também quer dizer nos libertarmos da divisão sexual. Tudo está conectado.
G. D.: E, no fim, não importa quais direitos conquistamos ou se são direitos melhores, é o Estado que os garante.
Lola: É claro. E não esperamos nada do Estado! Então não lutamos por direitos. Tem uma coisa bastante positiva nas Paradas do Orgulho Gay na medida em que elas expressam uma rejeição da vergonha e do estigma que tanto oprimiram o René Lefeuvre, mas, pra mim, uma Parada que só reúne gays – e todos os tipos de pessoas LGBT – ou, no melhor dos casos, LGBTs mais seus amigos… nunca participei de nenhuma delas. (Além disso, a música é muito ruim…) Os gays e seus amigos, dizem. Ainda que a apresentem como algo aberto, ainda está confinada àquela luta particular. Se não gritam “abaixo à divisão sexual!”, “abaixo à escravidão do salário!”, é insignificante pra mim, não cria o sentido que eu quero.
G. D.: Isso é pedir demais.
Lola: De fato, estou pedindo demais, mas… Uma frente LGBT contra o capitalismo, eu concordaria com isso. Uma frente pela libertação das pessoas LGBT não me interessa. Como disse antes, uma frente homossexual pela ação revolucionária está bom pra mim, mas não uma frente pela libertação homossexual. Sempre defendi essa posição, e eu não era a única. Meus amigos homossexuais não se definiam como homossexuais, mas como lutadores entre nós que por acaso enfrentavam uma repressão a mais, uma que com certeza piorava sua situação, mas uma que devia ser combatida como também combatíamos minha repressão como mulher ou minha repressão como trabalhadora. Tudo está relacionado. E o que eu aprendi da IS é se opor à separação. Me opus e ainda me oponho. O que não quer dizer que eu desaprove lutas especiais, entendo o porquê de elas existirem, mas sempre senti que elas têm um papel contrarrevolucionário.
G. D.: Eu diria não-revolucionário.
Lola: De fato, não-revolucionário. Mas eles podem virar antirrevolucionários quando avançam demandas democráticas que precisam ser aprovadas e implementadas pelo Estado de modo que os democratas acabam apoiando o Estado. Mesmo que a princípio ajam por bons motivos. Por exemplo, o direito das pessoas trans a seus RGs: concordo totalmente que devemos apoiar o direito delas de terem documentos de identidade consistentes com o que elas de fato são e, portanto, o direito de atualizar seus RGs, isso é necessário, mas sou basicamente contra a identificação e os RGs. É a mesma coisa com manifestações por pessoas sem documentos que exigem “RGs para todos!” Meus amigos e eu estávamos gritando: “Sem RG pra ninguém!”, “Abaixo os RGs!” Tem uma lógica aí.
Minoria, mas…
G. D.: Concordo, mas isso deixa você numa posição realmente minoritária.
Lola: Claro. Como sempre estivemos. Mas há momentos na história… lembro da manifestação em Paris em 1996 depois de a polícia expulsar com violência várias centenas de imigrantes ilegais que tinham se refugiado na igreja de São Bernardo perto de Montmartre. Em protesto, milhares se manifestaram em apoio aos imigrantes. Nós marchamos em Vincennes em uma manifestação espontânea e, quando começamos a gritar “Sem RG pra ninguém!”, muitas pessoas aderiram ao slogan, inclusive imigrantes que entenderam a lógica do que estávamos dizendo: fim a todas as fronteiras, fim aos registros oficiais… Todo mundo pode decifrar o que significa. Não é porque somos uma minoria que devemos nos abster de dizer o que é difícil expressar. E então outras pessoas podem se juntar a nós, como fizeram naquele dia em particular, como fazem em momentos em que algo real está acontecendo.
#MeToo
G. D.: Aconteceu uma coisa desde a primeira parte desta entrevista em 2017: a ascensão do “movimento #MeToo”. O que você acha que ele está conquistando?
Lola: Eu esperava que pudesse ajudar mulheres trabalhadoras, sejam operárias ou trabalhadoras de escritório, especialmente as não qualificadas, precárias ou mal pagas, a reagir ao assédio sexual no trabalho. Não vou perder as esperanças, mas está longe de ser assim. Falar sobre esses abusos é necessário, mas extremamente difícil no chão de fábrica, mais em geral no contexto do trabalho assalariado.
No local de trabalho, é inevitável que casos de estupro e assédio sejam resolvidos no tribunal, porque o trabalho implica uma relação contratual. Em outros lugares, duvido muito que priorizar a abordagem jurídica do estupro e do assédio seja uma boa maneira de lidar com essas questões – com certeza não é a melhor. A justiça restaurativa do Estado nunca restaura muita coisa, principalmente porque tende a manter a vítima na condição de vítima.
Eu reconheço que a atenção midiática causada por estes casos e os posteriores julgamentos podem ter um impacto considerável no comportamento social. “Tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública”, como escreveu Marx, e depois os situacionistas[32].
No entanto, embora incesto, maus-tratos, estupro e violência ocorram em todos os meios sociais, são os que acontecem na elite intelectual, artística e política que recebem cobertura da mídia. Em grupos não privilegiados, são a assistência social e os tribunais de justiça que lidam com eles sem que as pessoas fiquem sabendo, mesmo aqueles próximos dos indivíduos envolvidos. No escritório, ninguém sabe que o Sr. Bonzinho, o contador, bate na esposa, no restaurante, que o cozinheiro estupra a auxiliar de cozinha, ou que o vizinho bem educado abusa da filha. Vivemos em um mundo de separação em que se espera ou se exige que todo mundo cuide de sua própria vida. Deveria ser exatamente o contrário: nós temos que cuidar da vida dos outros: foda-se a vida “privada”!
Por outro lado, simetricamente, dá pra dizer, um efeito perverso do #MeToo é gerar um fluxo sem fim de denúncias. Em medida tal que estamos ficando incapazes de diferenciar entre um estupro e uma relação sexual que fracassou, entre uma agressão e uma tensão que envolve dois indivíduos, de modo que alguém pode usar essas acusações para seus próprios fins: por exemplo, acusar um pai de estupro para retirar a custódia de sua filha ou acusar um ex-amante de estupro por vingança. Essas coisas sempre existiram, mas são exacerbadas quando decidimos que a vítima necessariamente fala A verdade e que essa verdade não deve ser contestada. Sem esquecer como a internet exagera e distorce tudo. Então só posso aprovar o #MeToo, mas me preocupo com algumas de suas consequências.
G. D.: A “cultura do cancelamento” é uma das consequências que te preocupa?
Lola: Claro. Antes de tudo, banir um livro, filme, um escritor ou um site faz com que eles sejam atraentes, é idiota e contraproducente; entre outros efeitos, faz o jogo dos viciados em conspirações. Deletar um personagem ou uma obra de arte me lembra da época que Stálin removeu pessoas das quais ele tinha se livrado das fotos oficiais. Quem teria coragem de publicar Lolita (que na verdade não era uma apologia da pedofilia, muito pelo contrário) se fosse escrito hoje? Ou Lautréamont? Ou Flaubert, que teve a coragem de dizer “a Madame Bovary sou eu”? Logo qualquer coisa considerada desviante ou incorreta poderia ser banida: homens que se atrevem a escrever se colocando no lugar de mulheres, “brancos” que se atrevem a traduzir livros escritos por negros. Manet e sua Olympia, Tintim, Astérix, agora expulsos das bibliotecas públicas canadenses, Céline, é claro, O Mercador de Veneza e A Megera Domada de Shakespeare, não preciso mencionar o Sade, mais inúmeros títulos de canções de blues e canções francesas. É mais do que preocupante: é francamente revoltante.
Discurso identitário
G. D.: Você é uma crítica da “política identitária”. Desde que você a mencionou há 4 anos, ela ficou ainda mais na moda, mais influente na universidade e na mídia: mas ela é uma força política? Ela reforça esses movimentos que tentam desafiar o capitalismo ou confunde questões fundamentais? Simplificando, qual é a importância dela?
Lola: Não chamaria a política identitária de uma força social, mas ela com certeza invadiu gradualmente o espaço público. Positivamente, ela contribui para o surgimento de uma reflexão sobre as designações de gênero e o que chamam de não-binaridade e fluidez de gênero. Sempre fui fascinada pelo A mão esquerda da escuridão, da Ursula K. Le Guin, em que as pessoas vão livremente de um gênero a outro. Mas não acho que seja possível que cada luta específica em razão de ser mulher, gay, uma pessoa de cor, uma pessoa trans, inválido etc. seja travada com cada uma das categorias lutando contra sua própria opressão específica. Pelo contrário, acho que essas lutas só podem ser bem-sucedidas se envolverem todos aqueles que estão sujeitos à opressão geral que é a condição comum de todas elas. Solidariedade e autodefesa contra a homofobia, a transfobia… são preocupação de todos. Essas lutas só são significativas se manter sua especificidade não impedir que elas ocorram no interior da luta comum pela emancipação de todos de nossos inimigos comuns: o capitalismo e o Estado.
G. D.: Não-binaridade, fluidez de gênero… e quanto à linguagem inclusiva?
Lola: A língua francesa não possui um gênero neutro: também usa o masculino para o neutro (para indicar algo nem “masculino” nem “feminino”). Pra evitar isso, a inclusividade produz algo muito difícil de escrever, compreender e geralmente de se ler em voz alta. Me parece melhor não ser preguiçoso e usar ambos os gêneros quando necessário; ou criar novas palavras em vez de toda essa baboseira. De modo geral, duvido muito que uma limpeza da língua possa beneficiar nossa luta contra a discriminação. Palavras expressam o mundo, elas não o constroem, então dificilmente são capazes de nos proteger de um mundo explorador e opressivo: só ir à raiz do sistema fará isso. Mudar as palavras é, em todo caso, uma compensação ruim por nossa dificuldade extrema de realmente mudar o mundo.
Quando a liberdade é uma ilusão
G. D.: Alguns diriam que o mundo está mudando mesmo – em certa medida. É muito mais fácil viver nossa sexualidade (ou sexualidades) hoje que em 1960 (claro, nem em todos os lugares, não muito na Nigéria, e mais na França que na Polônia, mas mesmo em Cracóvia gays agora têm mais jeitos de se expressarem e organizarem do que tinham). Ao mesmo tempo, o “capitalismo de vigilância” e “uma sociedade de controle” estão crescendo e isso está sendo reforçado pela maneira com que a crise da covid está sendo gerida. Por um lado, um estilo de vida mais livre e mais escopo para o indivíduo, por outro, maiores restrições sociais. Como explicar isso? Essas tendências são contraditórias… ou compatíveis?
Lola: Liberdade de estilos de vida… isso é uma ilusão. Primeiro, só se aplica ao mundo Ocidental, e não a ele todo: basta olhar para a repressão da homossexualidade na Hungria, ou do aborto na Polônia ou no Texas. Quando a ser abertamente gay em um subúrbio de Cracóvia, não tenho tanta certeza… Segundo, por um lado a pornografia agora é um produto de consumo comum, o mercado para minorias – minorias sexuais em particular – está se expandindo, as propagandas às vezes mostram comportamento transgressivo, namoros online se disseminaram, mas, por outro lado, agressões homofóbicas e transfóbicas nunca pararam, ainda mais porque a internet faz com que elas ressoem mais. O capitalismo vai fazer com que tudo vire lucro, inclusive a liberdade sexual. Restrições sociais nascem da exploração e o controle busca aumentar a produtividade das populações para forçá-las a serem dóceis e submissas. A covid só está dando aos Estados a oportunidade de controlar ainda mais. Não vejo nenhuma contradição aqui. A única contradição estrutural profunda é aquela inerente ao capitalismo: o antagonismo de classe em que o capitalismo se baseia.
G. D.: Antes você mencionou a polissexualidade – e também no seu livro sobre 68. O que você quer dizer com isso?
Lola: Polissexualidade é a capacidade de amar quem quisermos e transar livremente com quem quisermos sem qualquer distinção de gênero, mas também, se tivermos vontade, de fazer isso com várias pessoas ao mesmo tempo, separado ou junto – agora conhecida como poliamor. A gente chamava de pansexualidade, um termo que agora parece incluir zoofilia, pedofilia, undinismo, coprofilia e Deus sabe lá o que mais… não é minha praia. Então eu prefiro ficar com “polissexualidade”.
(Entrevista conduzida em 2017 e 2022)
Lola Miesseroff, Fag Hag, PM Press, 2023, com Posfácio de Hélène Hazera (Em francês: Fille à pédés, Libertalia, 2019)
Entrevistamos Lola Miesseroff pela primeira vez em 2017 para uma série de artigos sobre a (homo)sexualidade no blog francês DDT 21 (Ver “La Série Homo” na página inicial do DDT 21.) Em 2018, esses artigos foram transformados em um livro pela Niet! Éditions: Question sociale & question sexuelle de 1864 à nos jours, que foi traduzido em uma versão modificada publicada pela PM Press em 2022: Your Place or Mine? A 21st Century Essay on (Same)Sex.
Uma versão mais curta desta entrevista foi publicada pela The Anarchist Review of Books, 4ª edição, verão/outono de 2022.
Em francês, Lola também escreveu:
Voyage en outre-gauche : Paroles de francs-tireurs des années 68, Libertalia, 2018. Um dos melhores livros sobre os aspectos radicais desse período.
Davaï ! Une lignée d’insoumises juives, russes et apatrides, Libertalia, 2022. Da Rússia do século XIX à Marselha nos anos 1950 e maio de 68, as vidas agitadas de mulheres jovens e desafiadoras.
[Nota do Tradutor]: Nesta entrevista, traduzida a partir da versão em inglês publicada no site troploin.fr, tanto Lola Miesseroff quanto o entrevistador alternam entre registros mais baixos, informais, e, em exposições e explicações de conceitos, registros mais altos, formais (ainda que não tão formais quanto numa escrita acadêmica): a tradução tenta refletir estas diferenças, trazendo marcas da oralidade para esses registros mais baixos, como o uso de “a gente” em vez de “nós”, e uma escrita mais formal nos momentos de exposições conceituais. Lola também utiliza algumas gírias do universo LGBTQIA+, algumas das quais têm origem pejorativa, mas que foram reapropriadas; tento aproximá-las o máximo possível da realidade brasileira atual e, nisso, agradeço muito a meu querido amigo radiozebra pela colaboração. As notas da tradução são indicadas como [n. t.] e as notas da edição da troploin aparecem sem qualquer indicação.
[1] Sobre o acampamento naturista: Comment peut-on être naturiste? Textes et tribunes libres 1968-77. Anotado por Lola Miesseroff (L’Harmattan, 2023). O pai de Lola (1907-1992) escreveu um relato de seu papel na resistência armada na França durante a II Guerra Mundial: Oxent Miesseroff, Au maquis de Barrême : souvenirs en vrac (Ed. Egrégores, 2006).
[2] A França só legalizou o aborto em 1975, ainda que com restrições, algumas das quais – não todas – foram suprimidas com o passar dos anos.
[3] Louis Althusser (1918-1990), filósofo marxista estruturalista anti-humanista, membro do Partido Comunista Francês desde 1948, bastante na moda nos anos 60 e 70. Ele estrangulou sua esposa em 1980.
[4] No masculino no original. [n. t.]
[5] Dois livros de inspiração muito diferentes.
Victor Kravchenko (1905-1966), funcionário público ucraniano, desertou a URSS, e Escolhi a Liberdade, seu livro altamente crítico sobre o regime, se tornou um best-seller da Guerra Fria. Na França, quando os stalinistas acusaram Kravchenko de ser um mentiroso financiado pelos EUA, o autor processou por difamação, o que resultou no bastante divulgado “julgamento do século”. Kravchenko ganhou a causa. Anos depois, quando foi encontrado morto com um tiro em seu apartamento, sua morte foi considerada suicídio.
Em 1958, durante a guerra da Argélia, Henri Alleg (1921-2013), membro do Partido Comunista Argelino, escreveu um livro testemunho, La Question (na França do Ancien Régime, “la question” significava tortura), descrevendo sua tortura pelo exército francês. Depois, se tornou quadro do PC francês.
[6] Da miséria no meio estudantil, PDF em português disponível aqui. [n. t.]
[7] Na subsunção formal do trabalho, o capital funciona “com base em vários processos anteriores de produção e outras condições de produção”. Ao passo que “a subsunção real do trabalho ao capital, o modo de produção capitalista propriamente dito, ocorre apenas quando capitalistas de certa importância assumiram diretamente o controle da produção” (Marx, Results of the Direct Production Process [Karl Marx, O capital: livro I, capítulo VI (inédito). Tradução do castelhano: Eduardo Sucupira Filho; revisão a partir do alemão: Célia Regina de Andrade Bruni. Livraria Editora Ciências Humanas, São Paulo, 1978, p. 52, p. 58]). Esquematicamente, a subsunção formal implica a extensão da jornada de trabalho e a exploração extensiva. A subsunção real pode reduzir as horas de trabalho que se tornaram mais intensivas: o capitalismo domina completamente uma sociedade que ele tende a reger e reproduzir segundo sua própria lógica.
[8] Em inglês aparece como “woman friend” simplesmente. Em francês, as mesmas palavras, copine e amie, são usadas para namorada e amiga; é possível que seja uma ex-namorada e não só uma amiga. [n. t.]
[9] E. Armand (1872-1962) foi um anarquista “individualista”, defensor do amor livre e das práticas “armandistas” ou “harmonistas” mencionadas antes. Émile Pouget (1860-1931), anarquista e anarcossindicalista, é o autor do clássico A sabotagem (disponível em português no marxists.org em PDF).
[10] Juventude Comunista Revolucionária, organização trotskista francesa, fundada em abril de 1966 e que se dissolveu logo após maio de 68, no dia 12 de junho de 1968. [n. t.]
[11] No masculino no original (“young man”). [n. t.]
[12] Evento descrito por Lola em Un Paris révolutionnaire (L’Espirit frappeur/Dagorno, 2001).
[13] Ela depois se tornou Hélène Hazera e escreveu o prefácio para o livro Fag Hag.
[14] Depois de ser brevemente membro da trotskista Ligue Communiste, Guy Hocquenghem (1946-1988) se tornou teórico da sexualidade e da homossexualidade, acadêmico, jornalista e escritor de ensaios e romances. Seu livro O desejo homossexual (1972) está disponível em inglês (Duke University Press, 1993 [o livro também está disponível em português, com edição de A Bolha, 2008)]. Um trecho informativo de seu Amphitheater of the Dead, escrito em seu leito de morte (ele morreu de AIDS), sobre o período de 68, gays, esquerdistas etc. foi publicado pela Pinko, 1ª edição, 2019 (pinko.online).
Depois de a FHAR se desfazer, Alain Fleig (1942-2012), influenciado por ideias situacionistas e comunistas libertárias, elaborou uma crítica do reformismo gay (isto é, limitada a demandas pela igualdade sexual aceitáveis) em sua resolutamente provocativa Fléau Social (“praga social”, 1972-74). A Fléau Social era “queer” em tudo menos no nome, ainda que não tentasse advogar uma nova identidade subversiva. Fleig nunca se encaixou na nascente “comunidade LGBT” e, mais tarde, seu profundo interesse pela arte o levou a se tornar fotógrafo, crítico de arte e historiador.
Para uma breve história da Fléau Social em inglês: blastemeor.noblogs.org. Misère de l’amour, uma coletânea de artigos da Fléau Social, pode ser lida em francês no website quatre.zone. Ver também a nota 22.
[15] Naqueles anos, a palavra em francês gauchistes significava algo distinto de “esquerdista” e “de esquerda” em inglês: se referia à extrema-esquerda majoritariamente trotskista e maoista da época, então mantivemos, por questão de clareza, o francês gauchistes. Como aponta Hélène Hazera em seu breve Posfácio a Fag Hag, o meio gauchiste, embora fosse em sua maioria indiferente ou hostil à homossexualidade, não deixava de ter suas próprias contradições: parte do “movimento gay” se originou no grupo Vive la Révolution e em sua revista Tout !, “ambas de convicção maoista” (neste caso em particular, no entanto, um maoismo misturado com doses de espírito libertário).
[16] Antes de cofundar a FHAR, L. Dispot foi membro da Gauche Prolétarienne, o grupo maoista mais ativo na época, que se autodissolveu em 1973. Depois, tornou-se jornalista e escritor.
[17] Et voici pourquoi votre fille est muette (pode ser lido aqui). O título foi emprestado de uma famosa frase na peça Le Médecin malgré lui (1666), de Molière, aplicada frequentemente a discursos insignificantes e abstrusos. O texto defendia que “o problema da homossexualidade é apenas um aspecto parcial do problema geral das relações. (…) Nós exigimos que toda a questão dos relacionamentos seja colocada e solucionada de uma maneira que só pode ser revolucionária”. Um dos signatários, Roland Simon, é um dos principais escritores da Théorie Communiste.
[18] No original, FHAT; creio se tratar de um erro de digitação. [n. t.]
[19] Basicamente, sair sem pagar. [n. t.]
[20] Uma referência ao Verão do Amor americano (especialmente californiano) de 1967, com a diferença de que nos EUA esse foi um fenômeno principalmente hippie.
[21] Em 1972, Tramoni, segurança na usina Paris-Billancourt da Renault, atirou em Pierre Overney, um maoista que participava de um ato em frente aos portões da fábrica. Cerca de 200 mil pessoas compareceram a seu funeral, um dos maiores eventos após o surto de 68 e possivelmente seu canto do cisne. Para os Gazolines, marchar disfarçados como enlutados provocadores foi uma maneira de ridicularizar a respeitabilidade da esquerda e da extrema-esquerda e de disromper seus rituais. Não é preciso dizer que os gauchistes, bem como uma série de outros, pensavam que esse comportamento era totalmente inadequado: por exemplo, o anarquista e gay Daniel Guérin, membro da FHAR, não aprovou, e esse foi um dos motivos pelos quais ele saiu da FHAR.
Tramoni ficou 2 anos na cadeia. Em 1977, ele foi morto a tiros por maoistas num ato de vingança e retaliação. Os assassinos nunca foram encontrados.
Comunista libertário e gay, Daniel Guérin (1904-1988) foi um escritor prolífico sobre o fascismo, a Revolução Francesa, a Frente Popular, o colonialismo, os EUA, o anarquismo e a sexualidade. Na metade do século XX, ele foi um dos pouquíssimos membros ativos da esquerda e da extrema-esquerda que ousou sair do armário a despeito do desprezo e da oposição dentro desses meios, mas só se sentiu seguro para ser completamente aberto com relação ao sexo depois de 1968. Entre outras obras disponíveis em inglês: Fascism & Big Business (1936), no libcom; e Anarchism. From theory to practice (1965), no site The Anarchist Library [em português, está disponível apenas o texto O anarquismo na Revolução Russa].
[22] Christian Marchadier (1947-2014), também conhecido como “Arthur”, “ex-vândalo de Bordeaux” (Debord), foi revisor, escritor, tradutor e editor. Ver Arthur est mort no site lexicomaniaque.
[23] Fascisme brun, fascisme rouge é uma das diversas versões de um importante texto de Otto Rühle (1939). Em inglês, The Struggle Against Fascism Begins with the Struggle Against Bolshevism [a versão em inglês é uma tradução parcial da versão em francês, esta integral, do original Brauner und roter Faschismus; a tradução para o português, A Luta Contra o Fascismo Começa Pela Luta Contra o Bolchevismo, se baseia na tradução inglesa]. Foi traduzido para o francês em 1975 pela editora Spartacus com liderança de René Lefeuvre.
Lefeuvre (1902-1988), primeiro pedreiro, depois revisor na maior parte de sua vida, foi membro da SFIO [Seção Francesa da Internacional Operária] (partido socialista francês) e depois do PSOP (1938-1939, uma dissidência da SFIO). Voltou à SFIO após a guerra, saiu em 1955 em oposição ao apoio dos socialistas à guerra colonial na Argélia. Era mais um feroz luxemburguista antistalinista do que um comunista de esquerda no sentido de Bordiga ou Pannekoek, mas, por causa de sua cabeça aberta, a Spartacus acabou publicando uma ampla gama de pensamento crítico (incluindo Bordiga e Pannekoek). Ver também a nota 22.
[24] Na época em que a homossexualidade era infame e reprimida, o Arcadie (1954-1982) era uma associação não-política que mantinha reuniões fechadas regulares e publicava uma revista. Buscava romper com o isolamento forçado dos gays, ao mesmo tempo em que exigia que seus membros fossem discretos e respeitáveis. Exatamente o contrário da alta visibilidade praticada mais tarde pelo movimento gay e, é claro, pela FHAR. Daniel Guérin (ver nota 14) foi um dos membros.
[25] Entre 1975 e 1979, a Spartacus também foi uma revista que publicou 15 edições. O artigo de Lola foi publicado na edição nº 12, dezembro de 1978 [Des autonomes existent, p. 15, assinado como L. M., pdf disponível aqui]. Outras edições também estão disponíveis aqui no site archivesautonomies.org, uma rica e extensa biblioteca da “esquerda radical” na França.
[26] Ver a nota 18 sobre Daniel Guérin.
[27] Otto Rühle, Karl Marx. Leben und Werk (Avalun, Hellerau, 1928). A obra está disponível em inglês na libcom [em formato .docx aqui; disponível em html na marxists.org. Em português, há o dossiê do Crítica Desapiedada aqui]. Decididamente uma biografia marxista não-conformista de Marx.
[28] Esse grupo foi influenciado pela IS e pelo comunismo de conselhos. O nome “Comontismo” é a tradução italiana da Gemeinwesen [comunidade] marxiana. O Comontismo publicava folhetos, panfletos e livros em 1972 e 1973. Era próximo da Invariance, que publicou a primeira tradução francesa de Apocalipse & Révolution de Giorgio Cesarano e Gianni Collu (até onde sabemos, não há uma versão completa em inglês). Algumas informações aqui.
[29] Escrevi um artigo sobre o feminismo, disponível em pdf inglês: Feminism illustrated, or Diana’s Complex. Para mais sobre a Fléau Social e este ensaio, ver Your Place or Mine.
[30] Depois que Reich morreu na prisão americana em 1957, seus direitos autorais foram administrados pelo Wilhelm Reich Trust, que só autorizou uma versão despolitizada e higienizada de seus textos (publicados na França por Payot). Por sua vez, com o apoio de alguns amigos, inclusive Lola Miesseroff, Constantin Sinelnikoff estava traduzindo para o francês e publicando ilegalmente textos fiéis ao enfoque “classe + sexo” de Reich. Entre outras, uma tradução de A Função do Orgasmo (1927), uma impressão pirata de 1975 pela Editions du Nouveau Monde (localizada no número 17 da Impasse Lénine na Ceinture rouge parisiense – impasse significa rua sem saída em francês).
[31] Entrevista de Hélène Mazera, 2012, “Les queer sont les maoïstes du genre”, no radiocanut.org (em francês).
[32] A frase de Marx “tornar a ignomínia ainda mais ignominiosa, tornando-a pública” vem de sua Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843-1844 [“Introdução” in- Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel (tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo, Boitempo, 2ª edição, 2010), p. 148]) e foi retomada pelos situacionistas em Da miséria no meio estudantil.
Traduzido por Thiago Papageorgiou.
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