A Guerra Inter-imperialista na Ucrânia – Fredo Corvo

Original in Dutch: De inter Imperialistische oorlog in oekraine

[Nota do Crítica Desapiedada]: Confiram todos os textos listados pelo Portal que debatem o conflito na Ucrânia na seguinte publicação: Dossiê: Guerra da Ucrânia (2022) – A Perspectiva Proletária – Crítica Desapiedada.


A Guerra Interimperialista na Ucrânia
– de Luxemburgo, Pannekoek, Gorter e Lênin ao “Comunismo de Conselhos” –

A escalada da guerra na Ucrânia pela invasão Russa levou a todos os tipos de posicionamentos no “ocidente democrático” entre aqueles que se autodenominam “de esquerda”, o que surpreendeu alguns. Nisto, a “esquerda” segue, em grande parte impensadamente, as opiniões dos meios de comunicação de massa e das mídias “sociais”: condena a invasão russa como um ataque, um ato de agressão contra a Ucrânia. A Ucrânia é apresentada como uma nação em desenvolvimento, uma jovem democracia. É claro que a defesa heroica deste Davi contra o brutal Golias deve ser apoiada por nós, com pacotes de ajuda aos refugiados e, eventualmente, com fornecimento de armas[1].

Conforme a guerra progride, contradições emergem, fazendo com que as pessoas comecem a fazer perguntas sobre:

  • O Estado ucraniano que defende a sua independência nacional, mas rejeita a independência nacional dos territórios separatistas de língua russa. Acontece até que os ucranianos que falam russo são impedidos de falar a sua língua.
  • Putin luta contra o fascismo ucraniano, mas se comporta como um fascista e tem admiradores fascistas no Ocidente. Por outro lado, descobriu-se que um batalhão fascista foi incorporado no exército ucraniano.
  • A Rússia envia recrutas numa chamada missão de paz. A Ucrânia está separando os homens “aptos para o serviço militar” das suas esposas e filhos que fogem da guerra.
  • A China apoia a Rússia no Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos e os países da OTAN e da UE apoiam a Ucrânia financeiramente e com armas e instrutores militares.
  • Putin esperava que a guerra substituísse Zielinski por um presidente pró-Rússia. Biden revelou que esperava que esta guerra levasse à substituição de Putin por um presidente pró-Estados unidos.

Esses fatos contraditórios levantam questões. A propaganda de guerra em ambos os lados dá inúmeras voltas para responder. Isso também é verdade para a esquerda no ocidente.

O Obreirismo e a Guerra Atual

O espanto pela adesão deles a uma propaganda de guerra democrática de facto é maior e talvez mais honesto entre aqueles esquerdistas que, no seu sempre presente “obreirismo” ou mesmo populismo, já não têm raízes teóricas explícitas no antigo movimento operário.

Estas correntes mencionadas acima partem do que os trabalhadores ou o povo (comum) estão pensando e fazendo num determinado momento, mesmo que sob a influência esmagadora da ideologia burguesa e, sobretudo, da realidade capitalista de exploração e opressão, neste caso também o de uma guerra terrível. Ao vincular realisticamente as suas posições políticas a esta consciência cotidiana, eles são incapazes de apresentar as ideias que advêm da noção da classe trabalhadora como uma classe com um futuro histórico que inclui um novo modo de produção e uma sociedade sem guerra, violência e um estado, o comunismo. Os revolucionários que fazem isso são acusados por eles de “sectarismo.” Não existem esses esquerdistas na minúscula e pequeno-burguesa Holanda, nem em Flanders, até onde nós sabemos. Mas na Inglaterra, eles são o Angry Workers of the World; na Alemanha os Wildcat, Kosmoprolet e Communaut. Como aqueles que eles chamam de seitas, estes grupos organizam-se como organizações minoritárias microscópicas. Embora as seitas tenham uma base programática na qual resumem as suas lições das lutas de classes passadas, os obreiristas organizam-se com base em algumas posições vagas, por vezes até sem quaisquer posições. As lições aprendidas pela esquerda comunista[2] da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, da Guerra Fria, e das chamadas guerras de libertação nacional e outras guerras regionais travadas diretamente ou por estados intermediários entre potências imperialistas são desconhecidas pelos obreiristas, e eles não querem pensar nelas. Com a eclosão da guerra na Ucrânia, eles ficaram sem palavras ou fomentaram bobagens burguesas, e muitas vezes estavam em desacordo entre si se ousassem ter uma discussão interna. Em particular, o fracasso destes grupos obreiristas em tomarem uma posição clara sobre a guerra atual é um prenúncio de um fracasso semelhante numa situação pré-revolucionária, onde uma minoria significativa de trabalhadores militantes e com consciência de classe se organizam de forma independente e exigem uma clara posição dos revolucionários.

A Esquerda Burguesa Participa na Guerra

Esse artigo não irá discutir as organizações da esquerda burguesa que emergiram do velho movimento operário, como a social-democracia e o bolchevismo em todas as suas formas (stalinismo, maoísmo, trotskismo). Basta dizer que todos eles recuam nas suas posições em favor de um campo ou de outro na Primeira Guerra Mundial (social-democracia) e/ou na Segunda Guerra Mundial (social-democracia do lado dos Aliados, bolchevismo do lado da União Soviética). A defesa da União Soviética de 1939 a 1945 foi justificada pelo mito de que esta era um estado socialista ou um estado operário burocratizado. Desde que a República Popular da China rompeu com a Rússia nos anos 1960, e então alinhou-se com os EUA, e agora está novamente alinhada com a Rússia, desde a implosão da União Soviética e do seu bloco imperialista, as organizações que têm as suas raízes ideológicas no bolchevismo têm acompanhado as muitas reviravoltas do Comintern sob o disfarce do direito de autodeterminação das nações de Lênin e sua teoria do imperialismo, estágio superior do capitalismo. E hoje, os stalinistas, maoístas e os trotskistas baseiam-se neste legado ideológico do bolchevismo para ficarem do lado da Ucrânia ou da Rússia, ou tomarem lugar algures nas trincheiras entre os dois. As Obras Completas (Collected Works) de Lênin são para estes fariseus, assim como as obras de Marx e Engels foram para os Kautskys e Cunovs, o baú do tesouro do qual eles podem pescar à vontade citações encorajando os trabalhadores a participar neste enésimo massacre interimperialista.

Internacionalismo Proletário na Primeira Guerra Mundial

O apoio da esquerda à Ucrânia ou à Rússia ignora a verdadeira posição de Lênin na Primeira Guerra Mundial: o internacionalismo proletário contra qualquer envolvimento nessa guerra. Na sua política prática de 1914 a 1918, Lênin assumiu praticamente a mesma posição que os outros socialistas de esquerda que mais tarde se autodenominaram comunistas, a saber: Luxemburgo, Liebknecht, Rühle, Bordiga, Pankhurst, Pannekoek e Gorter[3]. Esta posição, que ficou conhecida como internacionalismo proletário, pode ser resumida simplificadamente da seguinte forma:

  • Com a completa divisão do mundo em esferas de influência capitalista entre os países colonizadores, a Primeira Guerra Mundial representa um ponto de inflexão definitivo na história do capitalismo.
  •  Todos os países que participaram da guerra, direta ou indiretamente (através da “neutralidade” como Holanda e Suíça ou abertamente como fornecedores de crédito e/ou armamento como os EUA até abril de 1917), agiram por considerações imperialistas, ou seja, se esforçaram para aproveitar ao máximo a redistribuição capitalista do mundo que resultou da guerra.
  • A “defesa da pátria” clamada pela maioria dos partidos da Segunda Internacional é apenas o slogan que usam para convocar os trabalhadores dos vários países a massacrarem uns aos outros pelos interesses do capital.
  • O seguinte se aplica à classe trabalhadora em todos os países:
    – O inimigo está no seu próprio país;
    – Guerra (de classe) contra a guerra (“interimperialista”);
    – Não à pacificação das classes, mas a continuação da luta dos trabalhadores até a revolução;
    – Mesmo que isso leve à derrota do “próprio” país na guerra (derrotismo revolucionário);
    – A transformação da guerra imperialista em uma revolução proletária mundial.

A diferença entre Lênin e os outros socialistas de esquerda, os posteriores comunistas, alguns dos quais pertenceriam à esquerda comunista, era que Lênin limitou seu internacionalismo proletário à Primeira Guerra Mundial. Para os demais, a Primeira Guerra Mundial foi um ponto de inflexão histórico que pôs fim a qualquer possibilidade de guerras nacionais.

Imperialismo, uma palavra com muitos significados

Por que deveríamos continuar usando o termo imperialismo quando ele é tão deturpado? Algumas correntes e teóricos marxistas argumentam isso. Existem várias razões para evitar a palavra imperialismo, que não discutiremos aqui. A questão é que, ao não usar o termo, a palavra, as diferenças teóricas e, portanto, extremamente práticas entre os diferentes significados substantivos do imperialismo permanecem obscuras. E é para estas diferenças de conteúdo que devemos nos voltar para observar o problema da atual guerra na Ucrânia – e das guerras que se seguirão – do ponto de vista da classe trabalhadora. O apelo destes negadores da palavra ao dicionário em busca de uma definição que não aceitam, a sua referência às origens da palavra, desde os gregos e romanos até ao Imperialismo de Hobson (1902), não pode justificar a sua ignorância dos vários significados específicos da palavra. Isto deve-se principalmente à importância do imperialismo para Lênin e outros marxistas que insistiram num outro conceito em 1914-1918: o internacionalismo proletário, que é evitado, caluniado ou falsificado naquela altura como agora.

Mas não deveríamos então regressar a Marx, que não usou a palavra imperialismo, mas usou o termo guerra? Isso é perfeitamente possível. E se não queremos reinventar a roda, aproveitemos a feroz polêmica durante a Primeira Guerra Mundial entre os social-democratas de um lado, que apoiaram a guerra da sua burguesia citando Marx, e aqueles do outro lado que se referiram a Marx e disseram: “O inimigo está em nosso próprio país”. Sim, então voltamos ao imperialismo, que adquiriu um significado especial durante a Primeira Guerra Mundial. Em todos os significados que os oponentes da “defesa da pátria” dão ao imperialismo, há uma visão comum do desenvolvimento do capitalismo desde Marx.

Marx argumentou que a competição é “a forma de existência do capital”, e quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais a concorrência deve desenvolver-se. Marx acertou em cheio na sua crítica a Proudhon quando disse que o capital se reproduz na competição, no monopólio e na competição de monopólios[4]. Segundo Marx, o desenvolvimento internacional do capitalismo atingiu um ponto em que o imperialismo é necessário. O imperialismo é a política que todos os estados e capitais devem seguir. Ao mesmo tempo, e não por coincidência, o capitalismo é caracterizado pelo grande capital. O grande capital compete necessariamente em grande escala e com grandes recursos. Portanto, o militarismo é uma expressão da tendência estabelecida e irreversível do capitalismo desenvolvido de sempre competir e adaptar-se à concorrência, procurando estratégias pelas quais possa tentar ocupar uma posição melhor do que os seus concorrentes. O próprio título do trabalho mais importante de Lênin, Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916), mostra que ele concordava com Luxemburgo, Gorter, e Pannekoek nesse ponto.

No entanto, Lênin, como veremos, do seu ponto de vista do direito das nações à autodeterminação, insiste na possibilidade de existirem “países imperialistas” e “países dominados” em determinadas circunstâncias. Isto deixa aberta a possibilidade de apoio aos grupos burgueses. A sua oponente dentro da social-democracia russa, Rosa Luxemburgo, rejeitou a existência de tal direito das nações porque entregaria os trabalhadores à sua burguesia. A história da Polônia e da Ucrânia tragicamente confirmou a posição dela após a revolução na Rússia.

Rosa Luxemburgo e o Imperialismo

A posição particular de Rosa Luxemburgo naquele tempo acerca da questão da Guerra nacional e o direito das nações à autodeterminação foi alimentada pela sua convicção de que as opiniões prevalecentes na social-democracia russa, polaca e alemã sobre este ponto haviam sido ultrapassadas pelo desenvolvimento capitalista. Em sua dissertação O desenvolvimento industrial da Polônia (1893)[5], ela mostrou que a Polônia se tornou parte integrante do Império Russo Czarista em termos econômicos, graças ao grande mercado russo. Fora do Império Russo, o capitalismo não tinha futuro na Polônia, e os trabalhadores lutam com isso. Isto sustentou a sua recusa em apoiar a independência de um Estado-nacional polaco[6], defendido na época por outros social-democratas com referência às opiniões de Marx e Engels[7]. Liebknecht, Kautsky e Plekhanov argumentaram que Marx queria uma Polônia independente e uma Turquia forte para enfraquecer a Rússia. Assim, estes marxistas do “centro” ortodoxo do partido transformaram o que era para Marx uma posição historicamente limitada numa doutrina irrefutável. A equação ortodoxa dos interesses proletários e burgueses foi ainda mais séria na questão da nacionalidade. Da correspondência entre Marx e Engels, que só apareceu depois da morte de Luxemburgo, fica claro que considerações estratégicas e, portanto, mutáveis, ditaram de fato a sua concepção da Polônia. Assim Engels escreveu a Marx em 23/5/1851:

Quanto mais reflito sobre a história, mais claro fica para mim que os polacos são une nation foutue [uma nação condenada] para ser usada apenas como um meio até que a própria Rússia seja arrastada pela revolução agrária. A partir desse momento, a Polônia não tem absolutamente nenhuma raison d’être [razão de existir][8].

Luxemburgo considerou que a visão comum de que o internacionalismo proletário só era possível com base na independência nacional polaca estava ultrapassada pelo desenvolvimento industrial mútuo da Rússia e da Polônia e pela possibilidade de revolução social que o acompanha. A revolução “russa” e, ao mesmo tempo, “polaca” de 1905 deu razão a Luxemburgo. Encorajada pela sua confirmação histórica, Luxemburgo começou a trabalhar para estender a sua tese à obsolescência histórica das guerras nacionais que poderiam impulsionar o desenvolvimento do capitalismo à escala global. Ela desenvolveu uma teoria do imperialismo e da crise econômica ou acumulação de capital que anunciou o fim histórico do modo de produção capitalista e, portanto, o início de um período de revolução social.

Rosa Luxemburgo já salientou a importância da expansão do mercado mundial para continuar a fase de crescimento do capitalismo na sua luta contra o revisionismo. Com base nessa ideia, ela desenvolveu uma teoria da acumulação de capital e do imperialismo para compreender melhor o estágio da revolução social[9]. A teoria do imperialismo de Luxemburgo é consistente com as seguintes declarações de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (1848):

A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por toda a superfície do globo. Ela deve aninhar-se em todos os lugares, estabelecer-se em todos os lugares, estabelecer conexões em todos os lugares.
A burguesia, através da sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para grande pesar dos reacionários, tirou dos pés da indústria o terreno nacional em que se apoiava. Todas as antigas indústrias nacionais estabelecidas foram destruídas ou são diariamente destruídas. Elas são desalojados por novas indústrias…
…como é que a burguesia supera estas crises? Por um lado, pela destruição forçada de uma massa de forças produtivas; por outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais aprofundada dos antigos. Isto é, abrindo caminho para crises mais extensas e mais destrutivas e diminuindo os meios de prevenção de crises.[10]

Este aspecto do desenvolvimento histórico mundial e de longo prazo do capital só vem à tona em “O Capital” quando Marx discute a revolução. O Capital analisa as contradições inerentes ao capitalismo e como dificilmente estas podem ser temporariamente superadas através da expansão do mercado mundial capitalista:

Na explicação da objetificação das relações de produção e da sua independência dos agentes de produção, não abordamos como se processam as inter-relações através do mercado mundial, as suas conjunturas, o movimento dos preços de mercado, os períodos de crédito, os ciclos da indústria e o comércio, a alternância entre prosperidade e crise, parecem-lhes leis naturais avassaladoras que os dominam inconscientemente e afirmam-se como uma necessidade cega para eles. Isto acontece porque o movimento real da concorrência está fora do nosso plano, e só temos de representar a organização interna do modo de produção capitalista, na sua média ideal, por assim dizer.[11]

Luxemburgo, por outro lado, em 1913, em A acumulação do Capital, se focou no imperialismo, isto é, a expansão do capitalismo em áreas não capitalistas. Portanto, ela primeiro teve que esclarecer os pressupostos teóricos do capital:

Vimos que Marx assume consistente e conscientemente como pressuposto teórico da sua análise nos três volumes do capital o domínio geral e exclusivo do modo de produção capitalista. (…) Este pressuposto é um paliativo teórico – na realidade, não houve e não há em nenhum lugar uma sociedade capitalista autossuficiente com o domínio exclusivo da produção capitalista[12].

Rosa Luxemburgo critica a abstração de Marx acerca do mercado mundial porque, conforme ela escreve no prefácio do A acumulação, dificulta a descrição da limitação histórica objetiva da produção capitalista e da prática da política imperialista contemporânea e das suas raízes econômicas. Para tanto, concentra-se na reprodução ampliada do capital social total no Volume II d’O Capital. Deixo aqui de lado esta complicada (e controversa!) questão econômica para me concentrar nos principais aspectos sociais, políticos e históricos da teoria do imperialismo de Luxemburgo:

Quando o esquema marxista de reprodução ampliada corresponde à realidade, indica a saída, o limite histórico do movimento de acumulação, ou seja, o fim da produção capitalista. (…) Daí surge o movimento contraditório da última fase imperialista como período final da trajetória histórica do capital[13].

Rosa Luxemburgo escreveu em 1913, um ano antes do estopim da guerra mundial: Isso não quer dizer que se deva chegar pedantemente ao seu ponto final. A tendência para este objetivo final do desenvolvimento capitalista já se expressa em formas que transformam a fase final do capitalismo num período de catástrofes”. (ibid. p. 391/2). Isso não é uma previsão de um fim objetivo do capitalismo pelo qual a classe trabalhadora possa esperar de braços cruzados. As catástrofes provocadas pelo capital tornam a rebelião da classe trabalhadora internacional contra o domínio do capital uma necessidade, mesmo antes de ela ter encontrado economicamente a sua barreira natural autocriada.” (ibid. p. 411)

Cinco anos mais tarde, depois de a Primeira Guerra Mundial ter provocado uma carnificina sem precedentes e a Europa estar em ruínas, Rosa Luxemburgo teve de concluir que o domínio de classe da burguesia tinha perdido o seu direito à existência[14]. No programa do Partido da liga Spartacus, durante a Revolução Alemã, Rosa Luxemburgo se referiu a uma passagem do Manifesto Comunista:

As palavras do Manifesto Comunista brilham como uma advertência ardente acima dos bastiões em ruínas da sociedade capitalista: socialismo ou barbárie[15]!

Esta afirmação não pode ser encontrada de forma literal em nenhum lugar do Manifesto Comunista. Marx e Engels escreveram: “A sociedade vê-se subitamente relegada a um estado de barbárie momentâneacausada pelas crises comerciais periódicas. Marx e Engels também salientam – ver acima – que estas crises do capitalismo podem ser superadas através da expansão do capitalismo à escala mundial. Rosa Luxemburgo conclui que a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, uma vez que esta contradição se tornou global, é insolúvel. O período progressista do capitalismo acabou e o período da revolução social começou:

A Guerra mundial confronta a sociedade com a seguinte escolha: ou a continuação do capitalismo, novas guerras, e iminente declínio no caos e anarquia, ou a abolição da exploração capitalista.
Com o fim da guerra mundial, o domínio de classe da burguesia perdeu o seu direito à existência. Já não é capaz de tirar a sociedade do terrível colapso econômico que a orgia imperialista deixou no seu rasto. …
Só a revolução do proletariado mundial pode trazer ordem a este caos…[16]

Após os assassinatos de Luxemburgo e Liebknecht em 1919, cometidos por instigação do governo do SPD, a liderança do partido foi assumida por Paul Levi. Em 1920, a minoria (!) excluiu a maioria do KPD(S) devido às suas posições contra a participação nas eleições e contra o movimento sindical, que tinha sido transformado num órgão estatal. A maioria excluída formou o KAPD, que no seu programa de fundação cita a declaração “Socialismo ou Barbárie” de Rosa Luxemburgo e faz explicitamente da Primeira Guerra Mundial a fronteira entre o período progressista e o período da revolução social:

Hoje, não se trata de crises econômicas periódicas que outrora fizeram parte do modo de produção capitalista; é a crise do próprio capitalismo; estamos testemunhando espasmos convulsivos de todo o organismo social, formidáveis explosões de antagonismos de classe de um nível sem precedentes, miséria geral para amplas camadas da população[17]

No Manifesto, todavia, Marx falou apenas de um período de revolução social conectado com crises periódicas.

Na esquerda comunista alemã e holandesa, diferentes explicações econômicas foram utilizadas para o início deste divisor de águas histórico do imperialismo: a saturação dos mercados por Luxemburgo ou a queda da taxa de lucro por Grossmann/Mattick. Assim, o imperialismo estava ligado à existência de um período de decadência ou declínio do capitalismo, que seria também o período da revolução social. Esta ligação foi geralmente partilhada pelo Comintern e pela esquerda comunista italiana.

A única exceção foi Anton Pannekoek. Pannekoek sempre se opôs à ideia do colapso mecânico ou puramente econômico do capitalismo. Para este fim, ele desafiou os fundamentos teóricos tanto da teoria da crise de Luxemburgo como da posterior teoria de Grossmann/Mattick. Pannekoek assumiu que o capitalismo seria capaz de salvar-se de qualquer crise periódica. O fim só seria alcançado com o esgotamento das matérias-primas ou “mais provavelmente” com a ausência de um exército industrial de reserva no desenvolvimento capitalista da Ásia. Nenhum destes fenômenos ocorreu, mas a destruição da natureza já denunciada por Pannekoek sim[18]. Tampouco o imperialismo tem causas econômicas, de acordo com Pannekoek. Na sua opinião, o imperialismo resultou do domínio do grande capital na indústria siderúrgica combinado com o poder dos bancos imposto a todo o capital[19]. Pannekoek separa assim a era do imperialismo da existência de um período de declínio do capitalismo e/ou do início de um período mais longo de revolução social. Deve-se notar que o capitalismo ainda não entrou em colapso, nem devido à saturação do mercado mundial, nem devido à tendência de queda da taxa de lucro.

Mas retornemos ao assunto deste artigo. Luxemburgo deixa claro sua concepção de imperialismo nos seus Princípios Orientadores sobre as Tarefas da Social Democracia Internacional (1915-1916):

9. Imperialismo, como a última fase em vida e o ponto mais alto da expansão da hegemonia mundial do capital, é o inimigo mortal do proletariado de todos os países. Mas sob o seu domínio, tal como nas fases anteriores do capitalismo, as forças do seu inimigo mortal aumentaram ao ritmo do seu desenvolvimento. Acelera a concentração do capital, a pauperização das classes médias, o reforço numérico do proletariado; desperta cada vez mais resistência das massas; e leva, assim, a um aguçamento intensificado dos antagonismos de classe. Em tempos de paz, como em tempos de guerra, a luta do proletariado como classe tem de concentrar-se antes de mais nada contra o imperialismo. Para o proletariado internacional, a luta contra o imperialismo é ao mesmo tempo a luta pelo poder, o acerto de contas decisivo entre o socialismo e o capitalismo. O objetivo final do socialismo só será alcançado pelo proletariado internacional se este se opuser ao imperialismo ao longo de todo o processo e se fizer da questão: “guerra contra todas as guerras” a linha orientadora da sua política prática; e com a condição de mobilizar todas as suas forças e se mostrar pronto, pela sua coragem ao ponto do sacrifício extremo, para o fazer[20].

Lênin e Luxemburgo concordavam amplamente na caracterização do imperialismo como a fase final e maior desdobramento da dominação política mundial do capital. Lênin, porém, insistiu na possibilidade teórica de guerras nacionais. Isto reflete-se na sua crítica ao Teorema 5 de Luxemburgo sobre os mesmos princípios orientadores no excerto seguinte, que deixa clara a sua opinião de que alguns países são imperialistas e outros – sob certas circunstâncias – não o são:

O primeiro dos postulados errôneos de Junius, o primeiro está contido na tese No. 5 do grupo internacional: “Na época (era) deste imperialismo desenfreado, não pode haver mais guerras nacionais. Os interesses nacionais servem apenas como instrumento de engano, para entregar as massas do povo trabalhador ao serviço do seu inimigo mortal, o imperialismo….” Esse postulado é o fim da tese No. 5, a primeira parte é dedicada à descrição da guerra atual como uma guerra imperialista. O repúdio às guerras nacionais em geral pode ser um descuido ou uma ênfase fortuita e exagerada da ideia perfeitamente correta de que a atual guerra é uma guerra imperialista e não uma guerra nacional. Mas como o oposto pode ser verdade, como vários social-democratas repudiam erradamente todas as guerras nacionais porque a atual guerra é falsamente apresentada como uma guerra nacional, somos obrigados a lidar com este erro.
Junius tem toda a razão ao enfatizar a influência decisiva do “plano de fundo imperialista” da guerra atual quando diz que por trás da Sérvia está a Rússia, “por trás do nacionalismo sérvio existe o imperialismo russo”; que mesmo que um país como a Holanda participasse na guerra atual, também estaria a travar uma guerra imperialista, porque, em primeiro lugar, a Holanda estaria a defender as suas colônias e, em segundo lugar, seria aliada de uma das coligações imperialistas. Isto é indiscutível em relação a presente guerra. E quando Junius dá particular ênfase ao que para ele é o ponto mais importante: a luta contra o “fantasma da guerra nacional, que atualmente domina a política social-democrata” (p. 81, folheto Junius), não podemos deixar de concordar que seu raciocínio é correto e bastante apropriado.
Mas seria um erro exagerar esta verdade; afastar-se da regra marxista para que seja concreto; aplicar a avaliação da guerra atual a todas as guerras possíveis sob o imperialismo; perder de vista os movimentos nacionais contra o imperialismo. O único argumento que pode ser usado em defesa da tese: “não pode haver mais guerras nacionais” é que o mundo foi dividido entre um punhado de “grandes” potências imperialistas e, portanto, todas as guerras, mesmo que se iniciem como uma guerra nacional, transformam-se numa guerra imperialista e afetam os interesses de uma das potências ou coligações imperialistas (p. 81 do folheto Junius)[21].

Esse argumento de que o mundo tem se dividido em esferas de influência de estados capitalistas desde a Primeira Guerra Mundial é de fato uma parte essencial da visão tanto de Rosa Luxemburgo como de Gorter e Pannekoek de que o imperialismo é uma política de todos os estados. Por outro lado, Lênin mantém aberta a possibilidade teórica de que certas nações poderiam escapar a esta divisão do mundo pelo imperialismo através da sua luta de libertação nacional.

Anton Pannekoek e o Imperialismo

A visão de Pannekoek do imperialismo está em O Colapso da Internacional, que apareceu em holandês em agosto de 1914 e foi traduzido para o alemão e inglês. Foi o primeiro texto contra a participação na guerra, escrito por um membro da antiga oposição de esquerda dentro da social-democracia. Na Parte III deste artigo, Pannekoek descreve o imperialismo como “a política e a ideologia do grande capitalismo moderno” que conquistou toda a burguesia e exerce a sua influência profundamente na classe trabalhadora[22].

Lênin recebeu esse artigo com entusiasmo, não por causa do conceito de imperialismo de Pannekoek, mas porque ressaltava a morte da Segunda Internacional e a necessidade de uma nova, a Terceira Internacional. Lênin escreveu para Shlyapnikov em 27/10/1914 sobre o artigo de Pannekoek:

O único que disse a verdade aos trabalhadores – embora não em pleno volume e por vezes não muito inteligentemente – foi Pannekoek, cujo artigo lhe transmitimos (por favor, enviem a tradução aos russos). As suas palavras de que “já não tem sentido” quando agora os “líderes” da Internacional, empurrados até à morte pelos oportunistas e por Kautsky, se unem e procuram “colar” a ruptura – estas palavras são as únicas e verdadeiras palavra socialistas. Essa é a verdade. Amarga, mas a verdade. E os trabalhadores precisam agora mais do que nunca da verdade, de toda a verdade, e de nenhuma diplomacia suja, de nenhuma “colagem” frívola, de nenhum encobrimento do mal através de resoluções de borracha[23].

Notavelmente nessa carta, Lênin fala apenas da “traição” de Kautsky e Troelstra[24] e a mudança dos mesmos para a ideia de “defesa da pátria.” Pannekoek, por outro lado, discute nesse artigo as causas dessa “traição” dos líderes, a obsolescência das táticas parlamentares e sindicais, as novas táticas dos movimentos de massa, e a necessidade das massas agirem por si mesmas:

O período que agora começa no movimento operário será o período das massas e das suas ações. Esta luta deve emergir do novo mundo capitalista que surgirá da guerra, com o seu desenvolvimento mais violento, as suas diferenças de classe mais acentuadas, a sua pressão mais forte sobre as massas. Talvez no início a burguesia ainda triunfe arrogantemente, o proletariado pareça mais impotente, o socialismo mais fraco do que antes, como aconteceu depois de 1871, quando o então novo método teve de crescer aqui e ali a partir de pequenos começos; talvez a nova luta também emerja em breve, de forma espontânea e meio inconsciente, da miséria da guerra. Mas certamente o proletariado começará a sua luta de novo, de forma diferente, mais energética, com ciência e conhecimento mais recentes, minando o capitalismo em movimentos gigantescos. Então surgirá uma nova Internacional, mais sólida, mais profunda, mais poderosa e mais socialista do que aquela que agora entrou em colapso. Nas ruínas, bem acima das chamas da terrível conflagração mundial, nós, os social-democratas revolucionários, erguemos a bandeira do novo e vindouro internacionalismo[25].

Essa diferença entre Lênin e Pannekoek era expressa na disputa do KAPD em 1920 pelas ações de massa contra as “táticas dos líderes” imposta pelos bolcheviques nos partidos comunistas afiliados de outros países através da Terceira Internacional. Esta tática de liderança baseava-se na continuação dos antigos meios de luta social-democratas, mas sob uma liderança diferente, a liderança bolchevique.

Na versão inglesa do mesmo artigo, O Colapso da Internacional, o qual Pannekoek publicou na revista nova-iorquina The New Review, sua descrição do imperialismo na mesma Parte III é ligeiramente diferente. Imperialismo aqui significa as políticas e teorias que compõem o espírito e a natureza do capitalismo moderno. Segue-se então, como na versão holandesa, uma descrição do que também chamamos de colonialismo, cujo desenvolvimento leva à seguinte situação: Cada governo esforça-se por conquistar ou controlar a maior parte possível da terra para a sua burguesia, para que possa estar em posição de proteger os interesses do seu capital. Cada governo, portanto, esforça-se por assegurar a maior quantidade possível de poder mundial e arma-se contra os outros, a fim de dar o maior peso possível às suas exigências e forçar os outros a reconhecerem as suas reivindicações. Assim, vemos cada nação europeia a esforçar-se para se tornar o centro de um império mundial composto por colônias e esferas de influência. Esta política de “imperialismo” controla hoje em dia, em maior ou menor grau, a vida política de todas as nações e a atitude mental da burguesia[26].

Pannekoek omite a explicação de que as nações europeias, na sua busca separada pelo império colonial, finalmente travaram uma guerra interimperialista umas contra as outras na própria Europa em 1914. Lênin teria concordado com a afirmação de que o imperialismo é uma política do grande capital e das nações europeias. Pannekoek não aborda a questão de Lênin sobre se certas nações poderiam escapar à política imperialista. Foi Herman Gorter quem elaborou em cima deste ponto vital.

Herman Gorter e o imperialismo

No primeiro capítulo do seu panfleto, Imperialismo, a Guerra Mundial e a Social-Democracia, publicado na Holanda em 1914, Gorter descreve como o imperialismo se desenvolve a partir do colonialismo.

O enorme aumento do capital, provocado pelo crescimento das forças produtivas no século XIX, deu origem ao imperialismo: o esforço dos Estados todo poderosos para conquistar novos territórios, especialmente na Ásia e na África.
Tal como no campo econômico, a livre concorrência deu lugar ao monopólio do conglomerado e do cartel, também no campo político, todos os estados capitalistas poderosos lutam pelo monopólio da propriedade da terra e da exploração de países estrangeiros. [3]
O primeiro despertar do novo imperialismo, o seu primeiro ato, foi a ocupação do Egito por parte da Inglaterra. Depois veio a guerra do Japão contra a China, o Japão conquista a Coreia, a guerra da EUA contra a Espanha, os EUA tomam Cuba e as Filipinas, a guerra dos ingleses contra os bôeres, as expedições dos estados europeus contra a China, a guerra do Japão contra Rússia.
Enquanto isso, o mundo estava dividido. Quase não restaram terras desocupadas, nem mesmo na África.
Então, uma após a outra, as crises eclodiram. Os poderes desejavam as posses uns dos outros[27].

Gorter destaca que todos os principais estados envolvidos na conquista e controle das colônias e dos mares formaram alianças, que lutaram entre si na guerra mundial.

Portanto, era absurdo falar de uma guerra defensiva, como todos os partidos e jornais burgueses e social-democratas fizeram para fazer com que a sua participação na guerra parecesse mais bonita do que realmente era (nova edição, p. 5).

Lênin recebeu na Suíça, logo após a publicação de Imperialismo…, um exemplar que tentou compreender com a ajuda de um dicionário alemão-holandês. Segundo suas informações, ele conseguiu fazê-lo por volta de 30-40%. Em maio de 1915, Lênin escreveu:

Está mil vezes certo o marxista Gorter quando, no seu panfleto Imperialismo, a Guerra Mundial e a Social-Democracia, publicado na Holanda (p. 84), compara os “radicais” da laia de Kautsky com os liberais de 1848, que foram corajosos em palavras, mas traidores em ações[28].

Assim como o artigo de Pannekoek O Colapso da Internacional, o entusiasmo de Lênin é principalmente por causa da condenação de Pannekoek e Gorter da “traição” de Kautsky e líderes similares. Uma condenação à qual o panfleto de Gorter dedica muitas páginas, bem como a ação revolucionária das massas que Gorter opõe à política dos líderes:

A ação revolucionária de massas “significa que as massas finalmente acordam.” Significa que se preparam para agir sem líderes, ou pelo menos sem que a sua participação signifique muito. Significa que estamos dando um passo à frente tão grande quanto a classe trabalhadora outrora já deu.
Isso significa que estamos muito próximos do nosso objetivo final.
Não há outro caminho para o proletariado rumo ao socialismo.
As massas devem agora começar a agir por si mesmas, e as massas irão.
O desenvolvimento do capitalismo no truste, no grande banco, no parlamento imperialista e no governo imperialista quer isso. Não pode ser de outra forma.
E as massas já o alcançaram nas últimas décadas desde a chegada do imperialismo.
Apesar de todas as pretensões e de todas as promessas e de todos os acordos com a burguesia, apesar de todo o engano aos trabalhadores, apesar de todos os esforços por parte dos dirigentes sindicais e dos deputados para fazer o trabalho sozinhos de cima, as massas tomaram a tarefa em suas próprias mãos.
Na Suécia, Noruega, Dinamarca, Inglaterra, Holanda, França e Bélgica, em Itália e Espanha, na Áustria e na Rússia, o próprio proletariado, empregando greves gerais e de massas, através de protestos, manifestações e greves críticas, utilizando greves econômicas e políticas, recorrendo a greves de populações inteiras de trabalhadores ou seus grupos, mostrou que sentiu o novo desenvolvimento[29].

Ainda em 1916, numa nota de rodapé ao artigo A Revolução Socialista e o Direito à Autodeterminação das Nações, Lênin criticou Gorter por rejeitar o princípio do direito das nações à autodeterminação no seu “esplêndido” panfleto sobre o imperialismo.:

Em alguns pequenos estados não envolvidos na guerra de 1914-1916, como a Holanda e a Suíça, a burguesia está a explorar vigorosamente a palavra de ordem do direito das nações à autodeterminação, a fim de justificar a participação na atual guerra imperialista. Este é um dos motivos que levou a social-democracia de tais países a rejeitar o direito à autodeterminação das nações. Eles justificam pela correta política proletária, nomeadamente a rejeição da “defesa da pátria” na guerra imperialista, com a ajuda de argumentos incorretos. Obtém-se, em teoria, uma mutilação do marxismo e, na prática, uma espécie de paroquialismo de pequenos estados, a ignorância de centenas de milhões de uma população subjugada por nações de grandes estados. O camarada Gorter está errado quando rejeita o princípio do direito à autodeterminação no seu esplêndido panfleto Imperialismo, a Guerra Mundial e a Social-Democracia.Mas na prática, ele aplica muito corretamente este mesmo princípio quando exige a imediata “independência política e nacional” das Índias Holandesas e castiga os oportunistas Holandeses por se absterem de fazer esta exigência e de lutar pela mesma.[30]

Deve-se notar que a exigência de Gorter pela independência holandesa não foi um apelo ao proletariado das Índias Orientais Holandesas para apoiar a sua “própria” burguesia nacional. A história posterior também mostrou que Sukarno, como líder da autodeterminação nacional indonésia na Segunda Guerra Mundial, prosseguiu uma política imperialista ao aliar-se ao Japão, o que intensificou a exploração e a opressão dos proletários indonésios e dos camponeses pobres durante a ocupação da Indonésia.

No mesmo artigo, Lênin distingue na tese 6 três tipos de países relativos ao direito das nações à autodeterminação:

  1. Os principais países capitalistas da Europa Ocidental e os Estados Unidos da América. Aqui os movimentos nacionalistas burgueses e progressistas foram abolidos há muito tempo.
  2. Europa Oriental: Áustria, os países dos Balcãs e, em particular, Rússia. Aqui, especialmente no século XX, desenvolveram-se movimentos nacionais democrático-burgueses e intensificou-se a luta nacional.
  3. Os países semicoloniais como a China, a Pérsia, a Turquia e todas as colônias com uma população total de cerca de 1 bilhão de pessoas. Aqui os movimentos democrático-burgueses mal começaram e estão longe de terminar.

Esta distinção, contudo, não desempenha qualquer papel na atitude de Lênin em relação à Primeira Guerra Mundial; Lênin quis apenas manter aberta uma possibilidade teórica que, segundo Gorter, foi ultrapassada pelo desenvolvimento do imperialismo. Isto não quer dizer que Gorter negue a existência de movimentos nacionais na Europa Oriental, nem que movimentos de libertação nacional possam surgir em países semicoloniais ou totalmente coloniais. Nem Gorter afirma que os objetivos da revolução burguesa foram alcançados em todos os países. A questão é, como já vimos na crítica de Lênin a Junius/Luxemburgo: que o mundo está dividido entre um punhado de “grandes” potências imperialistas e que, portanto, cada guerra, mesmo que comece como uma guerra nacional, é transformada numa guerra imperialista e afeta os interesses de uma das potências ou coligações imperialistas.

Nas palavras de Gorter:

(…) o imperialismo cresceu – o esforço dos estados poderosos pela expansão territorial. O imperialismo, que, aparentemente como uma tendência nacional, aparentemente luta apenas com o proletariado da sua nação, mas na realidade, porque todos os estados são imperialistas, todos estão em guerra uns com os outros, e todos estão lutando pelo poder mundial, está lutando como um todo contra todo o proletariado do mundo.
E em resposta a isto, a esta primeira ação conjunta do capital mundial contra o proletariado mundial, a primeira ação internacional do proletariado deve agora começar. (negrito por Fredo Corvo.)[31]
Lênin queria manter aberta a possibilidade de autodeterminação nacional para enfraquecer o czarismo russo, que governava o seu império como uma prisão de nações. Além disso, Lênin e Trotsky viam a revolução na Rússia como uma revolução burguesa levada a cabo pelo proletariado, ou melhor, pelo partido proletário. Eles derivaram esta ideia de declarações de Marx sobre a revolução de 1848 na Alemanha, por exemplo, no Manifesto Comunista[32].

Nesse ínterim, mais de 100 anos se passaram. A Primeira Guerra Mundial foi seguida – como previsto por Pannekoek e Gorter – por uma Segunda Guerra Mundial. Depois veio a Guerra Fria e as guerras por procuração que as grandes potências têm travado entre si através de outros países e movimentos de libertação nacional desde então. Cada guerra dita “nacional”, cada guerra de libertação nacional, revelou-se uma guerra interimperialista que as grandes potências travam entre si através de estados e movimentos mais pequenos que aspiram a tornar-se estados. Mesmo antes de a luta aberta começar, estes últimos subordinam o seu “povo”, especialmente a classe trabalhadora, ao capital nacional, da tributação à militarização e à morte. Não só durante a luta, mas mesmo antecipadamente, asseguram o apoio financeiro e militar dos Estados maiores em troca de servirem os seus interesses imediatos e futuros. Esta também é a política imperialista, o imperialismo das “nações oprimidas”, a acomodação à divisão do mundo em esferas de influência capitalistas e ao esforço para impor os próprios interesses capitalistas em todos os conflitos. O imperialismo é a política de todos os estados e dos estados em formação, não apenas a de certos estados dominantes. Isso está acima de todos os trotskistas, stalinistas e maoístas que, apesar de séculos de experiência com o caráter antioperário das “nações oprimidas”, se apegam às numerosas distinções de Lênin entre países opressores e nações oprimidas, países imperialistas e não-imperialistas.

Mas mesmo aqueles que não baseiam a sua teoria nesse “leninismo” burguês de esquerda ou mesmo se autodenominam explicitamente anti-leninistas e ao mesmo tempo querem trabalhar com base no que os trabalhadores ou o povo (comum) pensam e fazem em um determinado momento, tem que ficar transtornados relativamente à atual guerra na Ucrânia para determinar qual o país que é o agressor e qual o que se defende, qual povo tem direito à autodeterminação e qual não tem, e o quê esse direito à autodeterminação significa, o que significa o apoio diplomático, financeiro e militar de países não diretamente envolvidos na guerra, especialmente a política do seu “próprio” país, o que significa anexação, o que significa neutralidade, até mesmo o que significa paz. Estas pessoas e grupos também são receptivos a todos os tipos de análises “concretas” e sutis das diferenças entre os países. Podem considerar “simplista” uma posição internacionalista baseada nas posições assumidas por Luxemburgo, Pannekoek e Gorter na Primeira Guerra Mundial. Isto é especialmente verdadeiro para os grupos obreiristas na Alemanha, a terra do materialismo “contemplativo” e da “crítica da crítica”. Por uma questão de brevidade, remeto aqueles que levantam esta objeção de simplificação às análises, também muito concretas e sutis, feitas por Gorter no seu panfleto sobre as políticas imperialistas de vários países na Primeira Guerra Mundial. Não quero sobrecarregar o leitor com a reprodução desta informação.

Lênin e o Imperialismo como Fase Superior

Para Lênin, os bolcheviques tinham falta de uma teoria do imperialismo que serviria para dois propósitos diferentes:

  1. A rejeição da defesa da pátria na Primeira Guerra Mundial.
  2. O uso do direito das nações à autodeterminação especificamente para enfraquecer o czarismo, geralmente para enfraquecer as grandes potências.

Para esse fim, Lênin escreveu na Suíça na primavera de 1916, Imperialismo, fase superior do capitalismo. Um esboço popular. Foi publicado em livro apenas em meados de 1917 em Petersburgo. Ao escrevê-lo em 1916, Lênin considerou os censores czaristas, por isso não podemos encontrar declarações claras sobre a guerra mundial neste texto. Ele baseia-se principalmente em comentários de teóricos burgueses sobre a tendência para formar cartéis e monopólios. Lênin tenta ocasionalmente – em vão – relativizar o contraste absoluto entre um período de capitalismo privado amante da liberdade e uma fase subsequente de capitalismo monopolista dominante e parasitário. Mas isto não o impede de realizar um truque de magia “dialético” com o qual Lênin atinge – aliás, de forma completamente inconsciente – um terceiro e futuro alvo do bolchevismo:

3. o capitalismo monopolista de Estado como base do “socialismo” e, especificamente, o capitalismo de Estado gerido pelo partido.

No Capítulo VII, como resumo do anterior, encontra-se a seguinte formulação, que atende a este terceiro objetivo:

O imperialismo surgiu como o desenvolvimento e a continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral. Mas o capitalismo só se tornou imperialismo capitalista numa fase definida e muito elevada do seu desenvolvimento, quando algumas das suas características fundamentais começaram a transformar-se nos seus opostos, quando as características da época de transição do capitalismo para um sistema social e económico mais elevado tomaram forma e se revelaram em todas as esferas. Economicamente, o principal neste processo é o deslocamento da livre concorrência capitalista para o monopólio capitalista[33].

Como Jan Appel mais tarde mostrou em sua crítica do livro Estado e Revolução, Lênin emprestou suas visões capitalistas de estado do reformismo da social-democracia alemã, em particular a teoria de Hilferding[34]. Em Imperialismo, a Fase Superior, Lênin repetidamente cita Hilferding.

Então no Capítulo VII, Lênin tenta dar uma “definição de imperialismo que irá incluir as cinco características básicas a seguir:

(1) a concentração da produção e do capital atingiu um nível tão elevado que criou monopólios que desempenham um papel decisivo na vida económica;
(2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, com base neste “capital financeiro”, de uma oligarquia financeira;
(3) a exportação de capitais, distinta da exportação de mercadorias, adquire uma importância excepcional;
(4) a formação de associações capitalistas monopolistas internacionais que partilham o mundo entre si e
(5) a divisão territorial do mundo inteiro entre as maiores potências capitalistas está concluída. O imperialismo é o capitalismo naquele estágio de desenvolvimento em que o domínio dos monopólios e do capital financeiro é estabelecido; em que a exportação de capitais adquiriu pronunciada importância; em que começou a divisão do mundo entre os trustes internacionais, em que se completou a divisão de todos os territórios do globo entre as maiores potências capitalistas.[35]

Note que no ponto 5, Lênin diz que a divisão territorial do mundo está completa. Anteriormente, ele havia admitido que este era o argumento decisivo para a tese de Luxemburgo: “Guerras nacionais não podem mais existir”[36].

Ao mesmo tempo, Lênin salienta que se trata de uma definição econômica, que mais tarde complementará com uma definição histórica[37]. Isso ocorre no Capítulo VIII, onde Lênin explica:

Uma das deficiências do marxista Hilferding é que neste ponto ele deu um passo atrás em comparação com o não-marxista Hobson. Refiro-me ao parasitismo, que é característico do imperialismo. …
Por essa razão, o termo “Estado rentista” (Rentnerstaat), ou Estado usurário, está se tornando uso comum na literatura econômica que trata do imperialismo. O mundo ficou dividido num punhado de Estados usurários e numa grande maioria de Estados devedores[38].

Enquanto Hilferding descreveu a função do capital financeiro no capitalismo do seu tempo, Lênin acrescentou a avaliação negativa de Hobson. O fato dele ter descrito o capitalismo monopolista na sua “manifestação judaica suja” – o que Marx acusou Feuerbach de fazer[39] – não incomodou minimamente Lênin. Afinal de contas, esta qualificação caiu bem na Rússia, em grande parte antissemita. Na utilização de termos como “usurário” e “parasitismo” fica claro que Lênin queria acomodar a “grande maioria dos Estados devedores”, como salienta no Capítulo IX em formulações que passariam pela censura czarista. No Capítulo X está resumido:

Os monopólios, oligarquias, a luta pela dominação e não pela liberdade, a exploração de um número crescente de nações pequenas ou fracas por um punhado das nações mais ricas ou mais poderosas – tudo isto deu origem aquelas características distintivas do imperialismo que nos obrigam a o definir como capitalismo parasitário ou decadente. Emerge de forma cada vez mais proeminente, como uma das tendências do imperialismo, a criação do “Estado rentista”, o Estado usurário…[40] 

Finalmente, no Capítulo X, Lênin pode revelar a sua visão visionária do lugar do imperialismo na história, do capitalismo moribundo, incluindo o desenvolvimento do capitalismo de Estado da União Soviética:

Vimos que na sua essência econômica o imperialismo é capitalismo monopolista. Isto por si só determina o seu lugar na história, para o monopólio que cresce do solo da livre concorrência, e precisamente da livre concorrência, é a transição do sistema capitalista para uma ordem socioeconômica superior. …
De tudo o que foi dito neste livro sobre a essência econômica do imperialismo, segue-se que devemos defini-lo como capitalismo em transição, ou, mais precisamente, como capitalismo moribundo. É muito instrutivo a este respeito notar que os economistas burgueses, ao descreverem o capitalismo moderno, empregam frequentemente palavras de ordem e frases como “entrelaçamento”, “ausência de isolamento”, etc.; “em conformidade com as suas funções e curso de desenvolvimento”, os bancos “não são empresas comerciais puramente privadas: estão cada vez mais a ultrapassar a esfera da regulação empresarial puramente privada”. E este mesmo Riesser, cujas palavras acabo de citar, declara com toda a seriedade que a “profecia” dos marxistas sobre a “socialização” “não se tornou realidade”!…
Quando uma grande empresa assume proporções gigantescas e, com base num cálculo exato de dados de massa, organiza de acordo com um plano o fornecimento de matérias-primas primárias na proporção de dois terços, ou três quartos, de tudo o que é necessário para dezenas de milhões de pessoas; quando as matérias-primas são transportadas de forma sistemática e organizada para os locais de produção mais adequados, por vezes situados a centenas ou milhares de quilômetros uns dos outros; quando um único centro dirige todas as etapas sucessivas do processamento do material até a fabricação de numerosas variedades de artigos acabados; quando estes produtos são distribuídos de acordo com um plano único entre dezenas e centenas de milhões de consumidores (a comercialização de petróleo na América e na Alemanha pelo American Oil Trust) – então torna-se evidente que temos a socialização da produção, e não a mera “interligação”, que as relações econômicas privadas e de propriedade privada constituem uma concha onde seu conteúdo já não cabe, uma concha que irá inevitavelmente decair se a sua remoção for atrasada artificialmente, uma concha que pode permanecer num estado de decadência durante um período bastante longo (se, na pior das hipóteses, a cura do abscesso oportunista é prolongado), mas que será inevitavelmente removido.[41]

Lênin apresenta uma teoria do imperialismo que, apesar da sua admitida divisão do mundo em esferas de influência capitalistas, permite uma distinção totalmente arbitrária entre os países imperialistas “genuínos” e os países que eles oprimem. Como era comum no seu tempo, Lênin associou o imperialismo a um suposto período de declínio ou transição do capitalismo. Considerando a produção e a distribuição como já socializadas nos cartéis e monopólios (e especialmente na economia de guerra alemã, que Lênin não mencionou por razões de censura), a socialização limitada, substituindo a propriedade privada dos meios de produção pela propriedade estatal, seria suficiente para começar um suposto socialismo:

… Pois o socialismo é apenas o próximo passo em frente do monopólio capitalista de estado. Ou, por outras palavras, o socialismo é apenas um monopólio capitalista de estado que é feito para servir os interesses de todo o povo e, nessa medida, deixou de ser um monopólio capitalista…[42]

As políticas internas e externas da União Soviética e as “nações oprimidas”

Na sua publicação póstuma, A Revolução Russa, Luxemburgo apontou as consequências desastrosas do direito de secessão das nações oprimidas pelo czarismo em vez de se comportar como Lênin e companhia. Como esperado, enquanto aliados leais da revolução na Rússia, estas nações se alinharam com o imperialismo alemão como o inimigo mortal dessa revolução. A autodeterminação das nações entregou, entre outros, os trabalhadores da Polônia e da Ucrânia à sua burguesia[43]. A autodeterminação das nações entregou, entre outros, os trabalhadores da Polônia e da Ucrânia à sua burguesia. Depois, os bolcheviques tentaram reconquistar a Polônia para a “sua” Rússia através de uma ação militar do Exército Vermelho. Isso falhou. No caso da Ucrânia, foi bem-sucedido. A partir de 7 de Novembro de 1917, Stálin, como Comissário do Povo para as Nacionalidades, com a aprovação de Lênin e Trotsky, vinculou à força muitas “nações” independentes à Rússia.

O primeiro resultado do direito das nações foi o cerco contrarrevolucionário da Rússia revolucionária com um anel de pequenos estados governados pela extrema direita. Para dar apenas um exemplo: a Polônia nacionalmente independente era governada por Józef Piłsudski, um antigo membro do partido de Luxemburgo, que advogava pela dependência nacional da Polônia contra ela.

Quando os bolcheviques perceberam, por volta de 1920, que a União Soviética não poderia romper o seu isolamento através de uma revolução proletária na Alemanha, começaram a procurar a cooperação com os generais alemães. Karl Radek começou a fazer contatos a partir da sua prisão na Alemanha durante a revolta dos trabalhadores no Ruhr contra o Kapp Putsch. Presumivelmente, com a aprovação de Moscou, o KPD aderiu ao Acordo de Bielefeld, que desarmou o Exército Vermelho que os trabalhadores tinham formado em Ruhr. Milhares de trabalhadores revolucionários foram posteriormente massacrados pelo Reichswehr e pelas Freikorps, dando origem mais tarde ao Nacional-Socialismo.

A partir de então, os bolcheviques aplicaram arbitrariamente o direito dos povos à autodeterminação e a distinção entre povos imperialistas e oprimidos a todos os aspectos da política externa russa. A sua rejeição inicial do “nacional bolchevismo” de Hamburgo, que defendia a cooperação com os generais alemães e a União Soviética na defesa da Alemanha contra a França e a Inglaterra, deu lugar à sua aprovação. De repente, o Comintern descobriu que o Tratado de Versalhes tinha feito da Alemanha uma nação devedora, oprimida pelo imperialismo da França e da Inglaterra. O KAPD e o GIC documentaram extensivamente esta traição ao internacionalismo proletário por parte do Comintern e dos seus partidos comunistas afiliados. Para um resumo do caso da Alemanha até o pacto Hitler-Stálin na Segunda Guerra Mundial, ver Rússia e a Grande Derrota da classe operária alemã em 1933[44].

Para a reorientação da política externa russa para o Oriente desde 1923, veja O Desenvolvimento da Política Externa Soviética[45]. Esta política teve consequências desastrosas para os comunistas e trabalhadores revolucionários da China, que foram massacrados em 1927 pelo burguês Kwo Min Tang, que Moscou lhes impôs como aliado. Veja no texto acima, parte 2, os capítulos No Caminho para o Oriente e O Massacre da Revolução Operária Chinesa.

No fim dos anos 1930, o GIC foi confrontado com qual posição a tomar frente à aproximação da Segunda Guerra Mundial: Deveriam os trabalhadores europeus defender a Rússia?[46] A resposta a esta pergunta confrontou o GIC com a sua própria (na minha opinião, incorreta)[47] visão de que a revolução na Rússia foi uma revolução burguesa, semelhante à Revolução Francesa de 1792, embora com algumas diferenças. Em plena concordância com a visão de Lênin sobre o Imperialismo como a Fase Superior, o GIC argumentou que a Rússia…

foi fortemente explorada pelo governo czarista como agente do capital da Europa Ocidental. A revolução Russa estava, ao mesmo tempo, aliviando o peso da dívida deste capital. Lênin e os bolcheviques conheciam o grande capital sobretudo como capital colonial que explorava povos estrangeiros; portanto, a sua simpatia era para com todos os outros povos da Ásia, também saqueados, e apelaram-lhes – Pérsia, China, Índia – para lutarem contra o capital opressivo, principalmente britânico. Assim, a Rússia tornou-se a vanguarda de uma luta mundial dos povos coloniais ou semicoloniais da Ásia contra o capital colonial europeu. Eles identificaram a luta dos trabalhadores da Europa Ocidental e da América pelo comunismo com esta luta[48].

Contra esta identificação das lutas dos trabalhadores no Ocidente com as dos trabalhadores e dos povos saqueados no Oriente, o GIC apontou as diferenças de caráter e objetivo:

  • Destruição do capitalismo e eliminação de toda exploração em oposição à expulsão do capitalismo estrangeiro para se tornarem eles próprios exploradores e colherem os frutos da exploração.
  • Aperfeiçoamento do alto nível de tecnologia de produção nos países mais desenvolvidos através da auto-organização da população produtora, em contraste com um primeiro início com a nova tecnologia na produção primitiva pobre nos países coloniais libertados.
  • A vitória dos trabalhadores significa uma fusão da produção e dos povos produtores numa unidade mundial internacional. As vitórias dos povos asiáticos na sua luta contra o capital mundial significam vitórias do nacionalismo, a fundação de novos Estados-nação.

Partindo dessas diferenças, o GIC escreveu as seguintes conclusões:

Os trabalhadores precisam de toda a sua força para a sua própria tarefa, a sua própria libertação e, ao fazê-lo, acabarão por prestar o maior serviço à libertação do mundo inteiro. Muito mais do que se tentassem construir ou apoiar novas classes de exploradores no Oriente[49].

O GIC recusou-se a tomar partido da Rússia ou de qualquer outro campo durante a Segunda Guerra Mundial. Esta foi uma das principais razões pelas quais muitos antigos membros do GIC, que foi dissolvido após a invasão alemã em 1940, se juntaram à Frente Marx-Lênin-Luxemburgo, que também era uma frente internacionalista e proletária.

Conclusão

Lênin foi capaz de adotar uma posição proletária internacionalista na Primeira Guerra Mundial ao reconhecer, inicialmente em Luxemburgo, que todos os países participantes e neutros nessa guerra estavam motivados para assegurar a sua parte num mundo já capitalisticamente dividido. Ao fazê-lo, fez a reserva de que, no entanto, noutras situações o direito das nações à autodeterminação ainda poderia ser aplicado. No Imperialismo, a fase superior, Lênin conseguiu, em 1916, salvar o direito à autodeterminação com uma explicação vulgarizante do papel do capital financeiro. Diz-se que o mundo está dividido em países imperialistas e não-imperialistas. Ao mesmo tempo, consegue apresentar o capitalismo como em declínio e o capitalismo monopolista de Estado como a socialização dos meios de produção, que só precisa de um governo bolchevique para ser considerado socialista.

Em contraste, o KAPD e o GIC e os seus teóricos Gorter e Pannekoek, cada um com as suas fraquezas, sustentaram que a Primeira Guerra Mundial foi o ponto de virada em direção ao imperialismo, uma vez que todos os estados – incluindo aqueles em processo de fundação – usaram a sua classe trabalhadora na luta sangrenta para redividir o mundo. O imperialismo é a procura, por parte de todos os grandes e pequenos capitais nacionais, de uma forma de obter o melhor espaço possível para si mesmos, da única forma possível num mundo capitalista dividido, nomeadamente através da celebração de alianças econômicas e militares com outros capitais nacionais, menores ou maiores.

A teoria do imperialismo de Lênin pode ser usada – e tem sido usada – para defender tanto a Rússia como a Ucrânia, tanto a Ucrânia como as repúblicas separatistas do Donbass, tanto os EUA como a OTAN e os países da UE, tanto a China como a Rússia, em suma, todos os países como vítimas do imperialismo ou como os próprios imperialistas.

A teoria do imperialismo da esquerda comunista germano-holandesa, para o qual Gorter lançou as bases no seu panfleto de 1914, torna possível aplicar o internacionalismo proletário desde a Primeira Guerra Mundial à matança que agora ocorre diariamente na Ucrânia:

  • A guerra na Ucrânia resulta da divisão do mundo em esferas de influência capitalistas.
  • Rússia e Ucrânia estão diretamente envolvidas na guerra. Todos os outros países são indiretamente afetados. Os países mais poderosos no pano de fundo são os Estados Unidos e a China, que se preparam para uma Terceira Guerra Mundial como uma potência econômica mundial em declínio e outra em ascensão. Todos os países, mesmo os menos poderosos, estão a tentar tirar o máximo partido da redistribuição capitalista do mundo que é o resultado desta guerra na Ucrânia e das guerras inter-imperialistas que se seguirão.
  • A “defesa do próprio povo” que tanto a Rússia como a Ucrânia reclamam é apenas o slogan que usam para apelar aos trabalhadores dos seus países para que se massacrem uns aos outros pelos interesses do capital.
  • Para a classe trabalhadora de todos os países, aplica-se o seguinte: o inimigo está no seu próprio país, da guerra (de classe) à guerra (interimperialista), não há paz de classe, mas uma continuação da luta dos trabalhadores para a revolução, mesmo que isto leve à derrota do “próprio” país na guerra (derrotismo revolucionário), à transformação da guerra imperialista na revolução proletária mundial.

Amsterdã, 8-4-2022

Posfácio

Após a publicação do artigo acima, recebi um comentário sobre o fragmento onde o texto afirma que não houve “guerras nacionais” desde a Primeira Guerra Mundial. Este fragmento pode ser mal compreendido como uma negação da realidade da formação de novos Estados nacionais. Obviamente, surgiram novos Estados desde 1914. A questão é que estes Estados se formam no contexto determinante e irreversível do imperialismo capitalista. Nenhum destes novos Estados representou o que costumava acontecer no período anterior a 1914: nas guerras nacionais, os interesses do capitalismo em desenvolvimento estavam a ser resolvidos contra as relações pré-capitalistas do passado.

Uma guerra nacional é uma guerra pela defesa de uma nação ou pelo seu surgimento histórico. No período imperialista, uma guerra nacional não perdeu as suas características nacionais, mas estas são determinadas pelo caráter imperialista da dominação capitalista do mundo.

Após a Primeira Guerra Mundial, quando as nações foram vitoriosas numa guerra nacional (e mesmo em escaramuças e pactos, nem todas foram exclusivamente guerras), o que venceu não foi o capitalismo sobre o passado pré-capitalista, mas um lado burguês contra o outro, tudo dentro do imperialismo capitalista.

Pode ser confuso declarar que não houve guerras nacionais após a Primeira Guerra Mundial. O seu caráter histórico-social mudou desde que o imperialismo determinou irreversivelmente essa mudança.

Por não compreender isto, o bolchevismo condenou-se à infame política leninista da defesa de alguma burguesia nacionalista, que descreveu como progressista e não-imperialista – anti-imperialista foi o termo que cunharam – mas Rosa, Gorter e Pannekoek acertaram. Bordiga e companhia não o fizeram, deram alguns passos à frente, mas demoraram muito tempo a ver isso com mais clareza, tentando encontrar uma desculpa para Lênin e companhia.F.C. 9-5-2022


[1] Para não cansar desnecessariamente o leitor, o uso posterior de vírgulas invertidas é amplamente dispensado.

[2] A Esquerda Comunista consistia na oposição inicial dentro dos partidos comunistas e dentro da Internacional Comunista, que logo foi dominada pelos interesses da política externa do governo bolchevique da Rússia. As principais alas esquerdas eram os italianos, também chamados de bordiguistas, e os alemães/holandeses (KAPD, Gorter e Pannekoek). Esta última defendeu uma teoria do imperialismo que diferia consideravelmente da de Lênin. A esquerda italiana estava mais alinhada com Lênin e permaneceu mais tempo no Comintern do que no KAPD.

[3] Está além do meu conhecimento e interesse entrar em todos os detalhes – senão nas reviravoltas – das visões de Lênin, como fazem alguns camaradas na Itália, confrontados com dúvidas e até traições de classe dentro do bordiguismo. Veja por exemplo: Circolo Internazionalista “coalizione operaia”. Para uma refutação ver: Aníbal, Critical evaluation of the text of the Circolo internazionalista “coalizione operaia”.

[4] Karl Marx, The Poverty of Philosophy [A Miséria da Filosofia], Chapter Two: The Metaphysics of Political Economy.

[5] Na verdade, a tese de doutoramento de Rosa Luxemburgo foi publicada em 1897. [NT]

[6] Peter Nettl, Rosa Luxemburgo (1965), Kapitel II, S. 113

[7] Graças a Aníbal, refiro-me como exemplo a carta de Engels a Kautsky de 7.2.1882, MEW, Bd. 35, S. 269.

[8] MEW, Bd, 27, S. 266. Citado por Peter Nettl, Rosa Luxemburgo (1965), Anhang 2, Die nationale Frage, S. 810. Inúmeras referências a abordagem estratégica de Engels em particular.

[9] A seção sobre a teoria do imperialismo de Rosa Luxemburgo foi retirada do meu texto de 2016 sobre Fasen in de ontwikkeling van het kapitalisme. Apaguei fragmentos que defendiam a teoria da decadência do capitalismo. Considero agora esta visão insustentável e errada desde o início. Ver: Capitalism is coming to an end. But how?

[10] Karl Marx & Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista. Cap. 1.

[11] Karl Marx, Das Kapital, Band III, MEW Bd. 25, S. 839

[12] Luxemburg, R, Gesammelte Werke Band 5, Berlin 1975, S. 297

[13] Luxemburg, R. Gesammelte Werke Band 5, Berlin 1975, S. 364.

[14] Rosa Luxemburgo, O que quer a Liga Spartacus? (Dezembro de 1918).

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Program of the Communist Workers Party of Germany(KAPD), Maio 1920.

[18] Anton Pannekoek, A destruição da Natureza (1909).

[19] Anton Pannekoek, A necessidade econômica do Imperialismo. (1916). Veja em mais detalhes a rejeição de Pannekoek de várias teorias da crise econômica em: Pannekoek, A teoria do colapso do capitalismo (1934).

[20] Junius (ps. Rosa Luxemburgo), Teses sobre as Tarefas da Social-democracia Internacional (Fim de 1915).

[21] Lênin, O Folheto Junius (1916).

[22] Anton Pannekoek, De ineenstorting van de Internationale (1914), p. 5 (em idioma holandês).

[23] Lenin Werke Bd. 35, S.143, Berlin 1979. Lênin Obras Completas, vol. 15, Moscou, 1966, p. 168.

[24] Pieter Jelles Troelstra (1860-1930) foi membro fundador do SDAP (Sociaal-Demokratische Arbeiders Partij) na Holanda. Ele empurrou para fora a ala esquerda do partido, que então fundou o SDP (Sociaal-Demokratische Partij) em 1909. Os seus membros proeminentes foram Pannekoek e Gorter.

[25] Anton Pannekoek, De ineenstorting van de Internationale (1914), p. 9/10.

[26] Anton Pannekoek, The downfall of the International, no The New Review, p. 11/12. Aqui, Pannekoek não menciona a necessidade de exportação de capital.

[27] Herman Gorter, Het imperialisme, de wereldoorlog en de sociaaldemocratie (1914). Um total de três edições desta versão apareceram. Gorter rejeitou uma tradução alemã de Pannekoek porque Pannekoek teria feito dela seu próprio panfleto. Augusta de Wit teria então traduzido a primeira edição para o alemão (1915), relativamente ruim. Gorter rejeitou uma tradução do alemão para o inglês pela International Socialist Review. Esta versão pode ter aparecido no marxists.org. A versão referida pelo biógrafo de Gorter, De Liagre Böhl, apareceu depois da guerra em Munique, em 1919. (Fonte: edição SUN, p. 127/131). Esta última tradução alemã está correta e foi republicada recentemente. Aqui sempre citamos esta nova edição.

[28] Lênin, Die Sophismen der Sozialchauvinisten (1915). Lenin Werke, Bd. 21, S. 176. Pode-se encontrar a citação de Gorter na nova edição da brochura de Gorter, p. 88/9

[29] Nova edição da brochura de Gorter, p. 61/2

[30] Lênin, A revolução socialista e o direito à autodeterminação (Vorbote 1916). Obras de Lênin, vol. 22. A nota de rodapé no. 3 citada aqui está faltando no Obras de Lênin em inglês e por isso ela foi traduzida da edição em alemão, Lenin, Die sozialistische Revolution und das Selbstbestimmungsrecht. Thesen (Vorbote 1916). Lenin Werke, Bd. 22, p. 153. 

[31] Nova edição da brochura de Gorter, p. 61/2.

[32] Fiz uma crítica à ideia de “revolução permanente” em The fatal myth of the bourgeois revolution in Russia.

[33] Lênin, Imperialism as the Highest Stage of Capitalism, Chap. VII. Imperialism as a special stage of capitalism

[34] GIC, Marxism and state communism. The withering away of the state. Além disso, Pannekoek, mesmo antes de 1917, criticou repetidamente as tendências capitalistas estatais e comunais do reformismo., cf. Staatsmonopol und Sozialismus (1911)

[35] Lênin, Imperialism as the Highest Stage of Capitalism, Cap. VII. Imperialismo como um estágio especial do capitalismo

[36] Lênin, O folheto Junius (1916)

[37] Lênin, Imperialismo Fase Superior do Capitalismo, Cap. VII. Imperialismo como um estágio especial do capitalismo

[38] Lênin, Imperialismo fase superior do Capitalismo, Cap. VIII. Parasitismo e decadência do capitalismo

[39] Karl Marx, Theses on Feuerbach, thesis 1.

[40] Lênin, Imperialismo fase superior do Capitalismo, Cap. X. O lugar do Imperialismo na História.

[41] Ibidem.

[42] Lênin, A catástrofe iminente e como combatê-la (Setembro de 1917).

[43] Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa (1918). As citações aqui relevantes foram reproduzidas pelo GIC no artigo Die Ideologie des Nationalismus, Radencommunisme, Novembro de 1939. Veja também o livro recentemente publicado com traduções para o alemão, Rätekommunismus 1938 bis 1940, editado por Thomas Köningshofen, p. 323.

[44] Publicado em Radencommunisme, Junho de 1939. Tradução alemã em Rätekommunismus 1938 bis 1940, herausgegeben von Thomas Köningshofen, p. 229

[45] „Die Entwicklung der russischen Außenpolitik von 1917-1935“/ [Marxistisk Arbejder Politik, Dänemark]. – Em: Internationale Rätekorrespondenz: Theoretisches und Diskussionsorgan für die Rätebewegung.  – Ausg[abe] der Gruppe Int[ernationaler]. Kommunisten, Holanda. – 1935, Nr.13 (Oktober). No relançamento de todo o Internationale Rätekorrespondenz 1934-1937/ Gruppe Internationaler Kommunisten (Holanda), p 253

[46] Fevereiro de 1939 publicado em Rätekommunismus 1938 bis 1940, p. 146.

[47] ver Fredo Corvo, O Mito fatal da Revolução Burguesa na Rússia.

[48] Rätekommunismus 1938 bis 1940, p. 148.

[49] Ibidem, p. 149.

Traduzido por Guilherme Henrique. Revisado por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.

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