O Espírito Burocrático – Sebastian Franck

Original in English: The bureaucratic spirit

[Nota do Crítica Desapiedada]: Sebastian Franck é o pseudônimo de Henry Jacoby (1905-1986), autor alemão que trabalhou como jornalista e foi próximo de Otto Rühle, dedicando-lhe uma obra chamada Soziologie der Freiheit. Otto Rühles Auffassung vom Sozialismus [Sociologia da Liberdade: A concepção de socialismo de Otto Rühle], publicada em 1951. Baseando-se nesta obra que Jacoby escreveu sobre Rühle, a revista Cahiers du Communisme de Conseils [Cadernos do Comunismo de Conselhos] publicou em 1969 um panfleto que resume as principais ideias sistematizadas por Jacoby em seu livro de 1951, apresentando assim a concepção de socialismo em Rühle aos leitores franceses. O panfleto pode ser consultado no seguinte link: La conception du socialisme chez Otto Rühle. O que disponibilizamos para o leitor do CD é o artigo de Jacoby, assinado com o pseudônimo Sebastian Franck, publicado na revista organizada por Paul Mattick nos EUA, que na época assumia o nome de Living Marxism (Marxismo Vivo). Foi o primeiro e único artigo de Jacoby publicado na revista organizada por Paul Mattick, e tudo indica que esse texto foi o esboço inicial de seus estudos sobre o tema da burocracia, o que resultaria, muitas décadas depois, na obra Die Bürokratisierung der Welt [A Burocratização do Mundo], de 1969.
Existem poucas informações sobre o autor disponíveis na internet e seus livros ainda são difíceis de acessar. Deste modo, o presente texto que publicamos de Jacoby é a primeira tradução em português, o que contribui para a análise crítica do tema da burocracia na sociedade capitalista e instiga os leitores a conhecerem outras contribuições desse autor. Boa leitura!


O Espírito Burocrático[1]

A vida do homem moderno tem ficado cada vez mais sob o controle do partido, do sindicato, do exército e do Estado. Estas organizações são constituídas por homens, é verdade, mas o indivíduo humano é pequeno e impotente perante este enorme aparato. Tudo é decidido pelos diretores no topo e o cidadão médio ou o membro médio do partido ou do sindicato não entende nem o funcionamento do complicado aparato nem seu real objetivo. Logo, foi criada uma ideologia para justificar esta relação, uma ideologia que prega que os homens devem se subordinar cegamente à “sua” organização, colocando suas vidas à disposição de um “todo”, seja o Estado ou o partido. A organização racional leva assim à irracionalidade; a organização não existe mais para os homens, mas os homens agora existem para a organização. Originalmente um meio, em nossa época, a organização tende a se tornar um fim, um fetiche a ser venerado. Os burocratas funcionam como os sumos sacerdotes desta nova religião.

A burocratização da vida foi o mais longe na Alemanha nazista e na Rússia soviética, mas a tendência não é nem peculiar a esta nem está limitada aos países totalitários. A produção industrial de massas, a conquista mais orgulhosa dos Estados Unidos, antecipou há muito os princípios organizacionais da Internacional Comunista e do Terceiro Reich. Aqui, a massa dos trabalhadores realiza apenas funções singulares. O conhecimento de propósito não é somente imaterial à execução destas funções como permanece frequentemente oculto dos trabalhadores. O trabalhador individual é levado em conta junto do carvão, do calcário, dos lubrificantes e dos outros materiais de produção; tudo que é exigido dele é que ele se submeta passivamente ao disciplinado processo de produção. O fato de não se esperar que a massa dos trabalhadores compreenda o processo como um todo fica claro quando seus líderes sindicais fazem propostas débeis neste sentido, como no caso dos planos de Reuther e Murray para a produção de guerra. O “planejamento” e a “racionalização” neste caso não elevam a inteligência, a consciência ou a autossuficiência das massas. Pelo contrário, lhes alivia da necessidade de empregar estas faculdades e, portanto, de desenvolvê-las. A compreensão do funcionamento de todo o processo produtivo está limitada aos executivos do topo e é este conhecimento que os ajuda a manter suas posições de poder.

Em Estados totalitários modernos, é como se a linha de montagem de uma fábrica racionalizada se estendesse por todo o tecido da vida social, reduzindo o ser humano ao status de um escravo de suas ferramentas. Em seu livro The Worker [O Trabalhador], o romancista fascista Ernst Jünger escreveu em 1932: “Haverá uma ordem baseada no comando em vez de no contrato social”. Para assegurar eficiência e baixos custos de produção, toda liberdade pessoal é destruída, todo individuo é manipulado pelo Estado, que estende seu escopo à esfera intelectual, à vida privada e às crenças pessoais. A despeito das bem-conhecidas limitações da liberdade na sociedade burguesa, como Marx ressaltou em A Ideologia Alemã, ainda haviam deixado ao indivíduo “o prazer do acidente. O direito de tirar vantagem destes acidentes em certas circunstâncias foi chamado de ‘liberdade pessoal[2]’”. Mas na sociedade totalitária, a regulação central se torna tão extensa que mesmo esta liberdade “acidental” cessa e o laissez faire desaparece tanto da vida pessoal como da pública. Toda a experiência humana é orientada à linha de montagem.

O triunfo do Estado burocratizado está amadurecendo há gerações dentro do ventre da democracia burguesa. Foi há mais de um século que o sociólogo francês Alexis de Tocqueville, depois de viajar pela jovem democracia americana, previu a derrota final da democracia pelo Estado burocrático centralizado e a ascensão dos funcionários – a “uma nação dentro da nação” – ocupando a posição de uma nova aristocracia. No quarto volume de seu Democracia nos Estados Unidos, ele previu que os cidadãos nas “nações democráticas que introduziram a liberdade na esfera política ao mesmo tempo em que fomentaram o despotismo na esfera administrativa […] logo se tornarão incapazes de exercer os maiores poderes políticos”. Porém, a previsão mais notável do processo burocratização se encontra nos escritos de Marx, especialmente em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, composta na juventude.

Hoje está na moda enfatizar certas tendências autoritárias em Marx, em todo caso mais temperamentais do que teóricas, e ignorar o conteúdo principal da obra de sua vida que reconhece como o inimigo qualquer coisa que aliene o homem de si mesmo, qualquer coisa que o reduza a um objeto em vez de elevá-lo à dignidade de um sujeito. O sistema político e filosófico de Marx pode ser entendido melhor como a conclusão, não a negação, da tradição humanitária e democrática do século XVIII; e ele mesmo o entendia assim. “O espírito burocrático”, escreveu em 1842,

é um espírito completamente jesuítico e teológico. Os burocratas são os jesuítas do Estado e teólogos do Estado, o sacerdócio do Estado. […] Ele se imagina como o fim último do Estado. Uma vez que a burocracia tornou seus propósitos formais o conteúdo da política de Estado, ela se encontra em conflito em todos os lugares com o conteúdo real desta política. Portanto, deve chamar a forma de conteúdo, e o conteúdo, forma[3].

E a burocracia stalinista, por exemplo, não tornou a forma, isto é, a manutenção da máquina estatal e da organização partidária o conteúdo de sua política? O socialismo internacional foi há muito rebaixado pela Internacional Comunista a um meio de mobilizar a classe trabalhadora internacional a apoiar a política externa do Kremlin. As organizações partidárias em vários países não servem mais a quaisquer fins políticos da classe trabalhadora. Os burocratas mudam suas linhas políticas de acordo com os interesses variáveis da União Soviética, pilar de seu aparato.

“O espírito geral da burocracia”, Marx escreveu em sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,

se embrulha em um véu misterioso de conhecimento que a hierarquia mantém dentro da burocracia e que, de fora, têm a aparência dos segredos de uma fraternidade […]. A autoridade é, portanto, seu artigo de fé e a deificação da autoridade é sua convicção. O espiritualismo (expresso nesta atitude) torna-se dentro da burocracia um materialismo grosseiro de obediência passiva, fé na autoridade, de procedimentos formais, mecanicamente fixos […]. No que diz respeito ao burocrata individual, os fins do Estado se tornam seus fins privados: a promoção, a busca de uma carreira. Ele considera a vida real, em primeiro lugar, materialista, pois o espírito da vida tem uma existência própria na burocracia […]. Em segundo lugar, para a burocracia, a vida é apenas um objeto de manipulação, pois seu espírito é imposto, seus propósitos estão fora dela […]. Agora o Estado existe apenas na forma dos diversos gabinetes cuja interconexão se baseia na subordinação e na obediência passiva […]. Ao passo que, por outro lado, a burocracia é, assim, nuamente materialista, ela revela seu espiritualismo grosseiro no fato de querer fazer tudo, isto é, ela torna a Vontade em uma causa primária. Para a burocracia, o mundo é meramente um objeto a ser manipulado[4].

O fato de o burocrata[5] enxergar o mundo apenas como um objeto é a base de sua moralidade, uma moralidade fundada no desprezo pela humanidade. Onde o homem é reduzido a um mero fator em um cálculo político, qualquer coisa que serve para torná-lo obediente aparece como moral – por exemplo, a mentira. O uso sistemático da mentira[6] como um “meio técnico” para liderar as massas só pode surgir deste espírito. Em uma passagem do Mein Kampf, omitida em edições posteriores, Hitler escreveu que os “alemães não fazem ideia de como é necessário ludibriar o povo a fim de conquistar seguidores em massa”. Aqui, a antítese irreconciliável entre a concepção marxiana e aquela da liderança burocrática se revela. A tese marxiana básica é de que a sociedade de classes será derrubada apenas quando a classe oprimida se apresentar como o sujeito da transformação da sociedade. Porém, o burocrata está interessado nas pessoas apenas como objeto. Não está preocupado com o que as pessoas podem fazer elas mesmas, mas com o que ele pode fazer com as pessoas. “Nós temos que tomar os homens como eles são e levar em consideração também sua fraqueza e brutalidade”, escreveu Hitler no Mein Kampf. Ele está interessado não em mudar as qualidades humanas existentes, mas em usá-las.

Porque a burocracia sempre se vê como mais sábia que e superior a todas as outras pessoas, ela crê que a obediência das pessoas é algo que interessa a elas próprias. Se sente no direito de usar quaisquer meios contra adversários que perturbem a relação entre líderes e seguidores. A burocracia não sofre de consciência pesada. Seus adversários são agrupados em um amálgama (judeus, trotskistas, etc.) e investidos com toda propriedade diabólica, pois todos os adversários, independente de quais sejam seus motivos, frustram os sábios objetivos da liderança burocrática e incitam as massas a pensarem por si mesmas. No que diz respeito à burocracia, a oposição é o princípio maligno. Faz uso de fórmulas como a “Führer-Gefolgschaft” (líder-séquito), “Mannestreue” (lealdade) e “disciplina do Partido” a fim de condenar a oposição em princípio. A burocracia stalinista justifica todas suas ações, mesmo que covardemente, com a disciplina do partido. O partido como fetiche justifica todos os meios. Espalha-se a ideia de que apenas cálculos astutos e o menosprezo por todos os sentimentos podem construir um revolucionário. Isto é chamado de “dureza bolchevique”. Já que a burocracia entende a disciplina como significando apenas submissão a si, ela também entende o heroísmo como apenas dureza contra outros no interesse de sua própria posição de poder.

Onde tal moralidade se torna um princípio de Estado, todo humanismo cessa. Exaltada ao nível de um fetiche, o interesse de Estado não só subordina a esfera política a si mesmo, mas também à ciência. O psicólogo alemão N. Ach[7], por exemplo, afirmou em seu artigo Toward a More Modern Study of Will, lido à frente do encontro da Associação Alemã de Psicologia em 1936, que a “vontade é um hábito de resposta voluntária ao comando do líder superior”. A teoria política degenera em apologia pura e simples e a arte se torna um queimar de incensos. Os indivíduos buscam melhorar suas situações pessoais através da servidão bizantina. Denunciar alguém como servo desleal do único verdadeiro fetiche e de sua hierarquia se torna um ato moral e um método diário de ascender no interior da burocracia.

Nos lugares em que o desprezo pela humanidade se torna um princípio universal, o respeito por si próprio não vale mais nada. A adesão acrítica a comandos, a renúncia a suas opiniões pessoais e a aceitação do credo oficial como infalível levam finalmente a um tipo de masoquismo intelectual, a uma prontidão a imediatamente cumprir penitências por qualquer ideia independente. O pensamento se transforma automaticamente em uma justificativa para atos oficiais. O psicólogo nazista Pintchovius escreveu que somente uma ideia pode preencher a alma e que o objetivo da propaganda é o “estreitamento da consciência”.

A possibilidade de ascender na hierarquia está ligada a qualidades especiais. O espírito burocrático corresponde a um tipo específico de personalidade. Os nazistas tentam cultivar este tipo artificialmente em sua assim chamada Ordensburgen [Castelos da Ordem] em que, segundo uma frase do líder da juventude Baldur von Schirach, deve ser formada uma elite em que cada indivíduo é formado e “carimbado” de acordo com um tipo determinado. Nenhuma personalidade sensível tem chance; a falta de escrúpulos é o único método de prosperar no aparato burocrático. Ideias críticas são vistas com suspeita. Os governantes totalitários possuem um sentimento de inferioridade na presença de pessoas que representam o pensamento crítico que meramente os provocam a demonstrar a extensão de seu poder. Os homens vigorosos e práticos que conhecem e exploram com sucesso as qualidades médias do povo são aqueles que avançam. Sua única paixão é o poder. Possuídos por esta paixão, eles não conhecem nem a sensibilidade nem o lazer contemplativo, pensam cinicamente um sobre o outro. Hermann Rauschning, que pertenceu outrora à hierarquia nazista, escreve: “Nos círculos mais altos da burocracia, se fala abertamente das limitações pessoais de certos membros da elite. Rivalidades e inimizades mortais são admitidas cinicamente”. Em lugares nos quais as ideias são apenas um meio para o poder e não estão enraizadas na convicção, o cinismo, é claro, continua sozinho.

Hoje, as pessoas estão fascinadas com o fato de que a forma totalitária de organização é bem-sucedida, que o uso implacável e calculado com precisão do material humano é superior à forma de organização não planejada. E como a fábrica planejada é mais lucrativa que a não planejada, o Estado planejado é mais poderoso do que o não planejado. No entanto, a crença de que a sociedade de classes pode ser derrubada por uma liderança burocrática se provou um erro. “Um dos principais momentos no desenvolvimento histórico anterior foi a consolidação de nossa própria criação em um poder real acima de nós, um poder que cresce para além de nosso controle, que destruiu nossas expectativas e frustrou nossas esperanças”, escreveu Marx em A Ideologia Alemã[8]. O Estado totalitário e o partido totalitário – não importa que ideologia utilizem – só continuam esta tendência histórica.

No entanto, quando o aparato organizacional se coloca acima dos homens e os torna seus escravos, descobrimos que por detrás dos “interesses gerais” pressupostos, aos quais se exige subordinação, estão escondidos os interesses da burocracia que se considera final. Dissemos antes que métodos modernos de produção acostumam o povo à direção burocrática e, assim, nós conhecemos a fundação psicológica da crença na liderança. Por exemplo, para aqueles que compartilham esta crença, mesmo o despojamento de todos os direitos da classe trabalhadora na Rússia pode parecer como um primeiro e necessário passo rumo à verdadeira democracia. As diferenças crescentes na renda podem parecer necessárias para a realização do socialismo, pois tudo isso – concebido por uma liderança astuta – pode, a despeito de todas as aparências, levar a um bom desfecho. A lenda de que um partido com disciplina de ferro que exclui todas as críticas será o pré-requisito para a luta rumo à sociedade sem classes ainda não foi destruída. Muitos antifascistas creem que é possível eliminar toda opressão pelos mesmos meios do fascismo. Muitos ainda acham que Hitler nos mostrou como nós mesmos temos de agir. Os trotskistas, por exemplo – perseguidos incansavelmente pelos stalinistas – nunca compreenderam que o objetivo socialista real precisa de meios organizacionais diferentes daqueles utilizados pelos stalinistas, pois um partido totalitário necessariamente gera um espírito burocrático.

A democracia real, realizada apenas quando aqueles que produzem deixam de ser os escravos de suas ferramentas e eles mesmo têm o poder de dominar os meios de produção, só pode ser alcançado por meios democráticos. Todos os meios refletem os fins aos quais servem. Como Hegel ressaltou em sua Lógica, um fim só pode ser alcançado quando os meios já foram penetrados pela natureza do fim. Os objetivos do controle democrático sobre os meios de produção não podem, portanto, ser alcançados com a ajuda de uma organização sobre a qual seus membros não possuem nenhum controle. A fim de realizar este objetivo, deve haver uma mudança progressiva do ambiente por meio da expansão permanente dos setores democráticos, bem como uma mudança nas próprias pessoas. As pessoas só podem adquirir a capacidade de decidir elas próprias seu destino por meio de sua própria experiência política. Marx insistia, portanto, que a tarefa revolucionária não consiste em uma partilha momentânea do espólio da demagogia, mas em dizer aos trabalhadores: “Vocês terão de passar por 15, 20, 50 anos de guerra civil e lutas nacionais não só para mudar as condições, mas para mudarem a si mesmos de modo que vocês possam se qualificar para a dominação política[9]”.

O espírito burocrático vê no problema da organização apenas um problema técnico. O marxista que enxerga relações entre seres humanos por detrás de tais “problemas técnicos” desmascara a organização burocrática como uma nova forma de dominação que pode ser superada apenas por uma concepção política na qual as massas se apresentem como os agentes da ação. Mudanças importantes na sociedade não são provocadas por meio de arranjos astutos. Argúcia, capacidade comercial, chicana política e conquistas de gabinetes organizacionais não substituem ideias que se tornam uma força material quando se apoderam das massas. As ideias, sem as quais nenhuma transformação progressiva da sociedade será realizada, não vêm de políticos astutos e práticos que as subordinam e as adaptam a uma organização poderosa, mas de personalidades revolucionárias, que estão preparadas a todo momento para dar a seus críticos burocráticos a resposta que Friedrich Engels deu a eles: “Nenhum partido em lugar algum pode me condenar ao silêncio quando estou determinado a falar […]. Vocês do partido precisam da ciência do socialismo e esta ciência não pode viver sem a liberdade de expressão”.

As massas não são despertadas por fórmulas burocráticas ou resoluções táticas astuciosas. Quando chegar a hora, elas estarão receptivas a ideias corajosas e inspiradoras. Estas ideias não podem ser mantidas afastadas do mundo por quaisquer derrotas, por queimas de livros, por campos de concentração, por julgamentos de Moscou ou por execuções. “Pode se responder com armas”, escreveu Marx, “a atos evidentes, ainda que sejam realizados en masse, assim que eles se tornarem perigosos. Mas ideias que conquistam nossa inteligência e que superam nossa convicção, as quais a razão soldou em nossa convicção, estas ideias são correntes que não podem ser arrancadas de um homem sem romper seu coração[10]”. O Estado totalitário pode alcançar a vitória por seus princípios apenas quando a faculdade crítica for exterminada. A superação do espírito burocrático começa com a crítica que ataca toda instância do rebaixamento do ser humano, com a doutrina, para falar mais uma vez num linguajar marxista, de “que o homem é o ser supremo da humanidade” e, portanto, com o “imperativo categórico de derrubar todas as condições em que o homem é um ser degradado, servil, negligenciado e desprezível”.

Obras de Marx e Engels

A ideologia alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007.

Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus, São Paulo, Boitempo, 2010.

Die deutsche Ideologie. MEW 3, Dietz Verlag, Berlin, 1978.

Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. MEW 1, Dietz Verlag, Berlin, 1981, p. 201-336.


[1] Tradução do ensaio The Bureaucratic Spirit, de Sebastian Frank, publicado originalmente em Living Marxism, International Council Correspondence, Vol. VI (1941-1943), nº 3 (primavera de 1943). Frank não indica uma bibliografia, então optei por incluir nas notas as fontes das passagens de Marx e Engels, quando as tenho disponíveis; primeiro, em português, e entre colchetes, em alemão (também indico qualquer correção à tradução utilizada por Frank. [N. T.]

[2] A ideologia alemã, 2007, p. 67 [MEW 3, 1978, p. 75]. [N. T.]

[3] A tradução utilizada por Frank acrescenta “o sacerdócio do Estado” à passagem, inexistente no original (Marx, 2010, p. 65-66 [MEW 1, p. 248-249]). [N. T.]

[4] A tradução utilizada por Frank apresenta algumas diferenças, mesmo que não fuja ao sentido original, por isso, reproduzo aqui a tradução para o português de Rubens Enderle e Leonardo de Deus (2010, p. 66 [1981, p. 249-250]): “O espírito universal da burocracia é o segredo, o mistério; guardado em seu interior por meio da hierarquia e, em relação ao exterior, como corporação fechada. […] A autoridade é, portanto, o princípio de seu saber e o culto à autoridade é sua disposição. No seu interior, porém, o espiritualismo se torna um materialismo crasso, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma atividade formal, fixa […]. Quanto ao burocrata tomado individualmente, o fim do Estado se torna seu fim privado, uma corrida por postos mais altos, um carreirismo. Primeiramente, ele considera a vida real como uma vida material, já que o espírito desta vida tem sua existência separada para si na burocracia. […] Em segundo lugar, a vida é, para o burocrata – quer dizer, na medida em que ela se torna objeto da atividade burocrática –, material, pois seu espírito lhe é prescrito, sua finalidade existe fora dele […]. O Estado existe apenas como diferentes espíritos de repartição, imóveis, cuja coesão consiste na subordinação e na obediência passiva. […] Enquanto, por um lado, a burocracia é este materialismo crasso, o seu espiritualismo crasso se mostra, por outro lado, no fato de ela querer fazer tudo, isto é, de ela fazer da vontade a causa prima […]. Para o burocrata, o mundo é um mero objeto de manipulação”.

[5] Burocracia não significa aqui nem o simples trabalhador administrativo nem o simples funcionário público, nem lida com a crítica da “fita vermelha” [red tape]. Em nosso contexto, burocracia denota o regime de homens que possuem a posição chave ou em uma organização ou no Estado, e que adquirem poder por meio de sua função.

[6] A mentira sempre é um meio de governo político. Todos os movimentos revolucionários na história serviram à verdade porque atacaram mentiras que buscavam justificar o privilégio. A diferença é que a mentira política era normalmente usada quando necessário, como uma consideração a posteriori ou justificativa, ao passo que aqui ela é usada sistematicamente, principalmente a fim de preparar o povo para propósitos particulares da liderança.

[7] Trata-se de Narziß Ach. [N. T.]

[8] A Ideologia Alemã, 2007, p. 38 [MEW 3, 1978, p. 33].[N. T.]

[9] Revelations Concerning the Communist Trial in Cologne by Karl Marx. [N. T.]

[10] Não sabemos a fonte nem desta citação de Marx nem da citação anterior de Engels. [N. T.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*