De Marx ao Marxismo Autogestionário – Nildo Viana

De Marx ao Marxismo Autogestionário

A relação entre marxismo e autogestão é complexa e permeada por equívocos. O principal equívoco é a estranheza em relação ao vínculo de Marx e marxismo com a autogestão. Sem dúvida, parte dessa estranheza é oriunda da emergência do pseudomarxismo e sua ampla hegemonia nos meios políticos. Os partidos políticos, sindicatos, parlamentos, entre outras instâncias políticas, sempre reproduziram a simplificação de ligação imediata entre marxismo e social-democracia e/ou bolchevismo. Isso promoveu um amplo processo de socialização, ressocialização, influência, que cristalizou a falsa ideia de que o marxismo seria um estatismo, o que é reforçado por pseudocríticas, sejam oriundas do anarquismo, sejam provenientes do liberalismo[1].

Marxismo versus Pseudomarxismo

Um conjunto de equívocos se reproduz nesse sentido e um dos piores é a interpretação leninista de Marx e a consideração de que o leninismo é marxismo[2]. Porém, marxismo e leninismo são antagônicos, assim como a burocracia e o proletariado. O marxismo é expressão teórica e política do proletariado revolucionário e o leninismo é expressão ideológica da burocracia em seu setor mais radicalizado, embora também seja expresso por setores mais moderados da classe burocrática que se aproximam da social-democracia. Assim, são duas perspectivas de classe antagônicas, que carregam consigo distintos valores, concepções, sentimentos, que no caso do marxismo são os vinculados ao proletariado revolucionário e sua tendência para a revolução e autogestão, o que significa a instauração de uma nova sociedade, radicalmente diferente, enquanto que no caso do leninismo, são vinculados à burocracia e sua vontade de substituir a burguesia e burocratizar o mundo[3].

É preciso esclarecer que Marx é o teórico do proletariado e Lênin é um ideólogo da burocracia. O humanismo revolucionário de Marx se vincula aos interesses fundamentais do proletariado, especialmente a abolição do capitalismo e instituição de uma sociedade que ele denominou “livre associação dos produtores”, “comunismo”, “autogoverno dos produtores”. Os interesses da burocracia, em seu setor mais radicalizado, aponta para a luta pela conquista do poder estatal e substituição da burguesia. A social-democracia, a base ideológica de Lênin, aponta para o reformismo e a ideia de que através de meras reformas se pode passar do capitalismo para o “socialismo”. O termo socialismo se tornará uma das principais formas de deformação da concepção de comunismo de Marx.

Na tradição política do século 19 e início do século 20, os termos “socialismo” e “comunismo” eram praticamente sinônimos. Marx usou o termo comunismo para se distinguir das demais concepções socialistas, tais como o socialismo reacionário, o utópico, etc., tal como se pode ver através da leitura do Manifesto Comunista, na seção sobre “literatura socialista” (MARX; ENGELS, 1988). É através de Lênin que se cria a tese falsa de que entre capitalismo e comunismo existiria um “período de transição” e este se chamaria “socialismo” e isso foi atribuído ao pensamento de Marx, o que é apenas mais uma deformação entre inúmeras outras. Aliás, sua própria definição de socialismo já aponta para nada mais do que um capitalismo reformado:

… o socialismo nada mais é do que o passo seguinte ao monopólio capitalista de estado. Ou, em outros termos, o socialismo nada mais é do que o monopólio capitalista de Estado posto a serviço de todo o povo e que, por isso, deixou de ser monopólio capitalista (LÊNIN, 1988, p. 44).

Lênin se dizia marxista e, ao se confrontar com os seus adversários que também se autointitulavam assim, afirmava suas ideias eram a expressão do verdadeiro marxismo. E assim ele criou a versão mais popular de pseudomarxismo e que substituiu o marxismo por uma concepção burocrática contrarrevolucionária. Quanto aos que se sentem ofendidos por serem chamados de pseudomarxistas e apelam para a afirmação de que não existe um critério para se saber quem é marxista, apenas demonstram não conhecer nem o marxismo, nem o pensamento de Lênin. Este acusava os social-democratas e vários outros de não serem marxistas, inclusive usando este termo, tal como se pode ver nessa passagem:

Os pseudomarxistas a serviço da burguesia, a que se somaram os esseristas[4], e que argumentam desse modo, não compreendem (como demonstra uma análise das bases teóricas de sua opinião) o que é imperialismo, o que são os monopólios capitalistas, o que é o Estado, o que é a democracia revolucionária. Pois se se compreende isso, não se pode deixar de reconhecer que é impossível avançar sem marchar para o socialismo (LÊNIN, 1988, p. 43).

As afirmações acima deixam bem claro que Lênin cobra de um marxista que saiba de várias questões específicas e que a compreensão seja baseada no que ele pensa (por exemplo, para ser marxista precisa concordar com a concepção de imperialismo de Lênin, bem como com a concepção que ele tem de Estado, monopólios capitalistas e até “democracia revolucionária”). Isso, obviamente, não é marxismo, é leninismo, logo, um pseudomarxismo. O contexto em que ele critica seus adversários é a discussão a respeito de medidas “socialistas” (que não são, ainda, “comunistas”, segundo ele) enquanto deveriam ser “democráticas”. Todas as duas posições são pseudomarxistas, pois num processo revolucionário não se toma medidas “democráticas” (de acordo com a democracia burguesa), nem “socialistas”. Num processo revolucionário, o que ocorre é que a associação dos produtores efetiva uma autogestão generalizada que rompe tanto com as organizações e práticas burocráticas – que são a base tanto da democracia burguesa quanto do “socialismo” leninista. Esta afirmação não é verdadeira por causa que o autor destas linhas está dizendo e sim por ser isso que corresponde aos interesses fundamentais do proletariado revolucionário, pois tanto na democracia burguesa quanto no capitalismo de Estado (“socialismo”), ele se encontra submetido ao processo de exploração e dominação e sua libertação só pode ocorrer abolindo a burocracia, seja a democrática ou a autocrática. As experiências históricas confirmam isso.

Não poderíamos mentir com o intuito de não ofender os pseudomarxistas. O significado dessa expressão aponta para pessoas que se dizem marxistas e não o são, nada mais, nada menos. Não seria possível colocar tais indivíduos como sendo marxistas, tais como foram Marx, Rosa Luxemburgo, Korsch, Pannekoek, e muitos outros, sendo que alguns morreram na luta pelo comunismo, ou seja, pela revolução proletária e libertação humana, e cuja morte foi decretada, em muitos casos, pelos pseudomarxistas. Não é possível, como pensa um trotskista ingênuo, que sejamos da mesma “família”. O marxismo trabalha com a unificação do proletariado e aborda a questão da luta de classes e não interpreta a si mesmo pela metáfora da família. Além disso, a sua diferença com o leninismo não é apenas tática, mas geral (teórica, metodológica, estratégica, valorativa, etc.).

A compreensão do pseudomarxismo se fundamenta numa análise marxista de classes sociais. Esta explica como a luta proletária engendrou o marxismo e seu desenvolvimento e como a burguesia e a burocracia o deformaram, visando combatê-lo, num caso, ou buscando absorvê-lo, noutro caso. Assim, ser marxista não significa adotar uma obra sagrada, que seria a de Marx, por mais excepcional e verdadeira que seja. Não significa ser fiel a uma doutrina. O marxismo não significa fidelidade ao pensamento de Marx e nem é uma doutrina. Ele é uma teoria e por isso não é estático, avança, desenvolve, realiza reformulações quando necessário, realiza novas descobertas quando consegue. A obra de Marx continua sendo essencial e ponto de partida do marxismo, pois ele lançou as bases para a compreensão do modo de produção capitalista, desenvolveu uma teoria da história, apresentou os elementos fundamentais do método dialético, entre outras contribuições que mostram a essência do marxismo. Sem dúvida, os ideólogos burgueses e até alguns pseudomarxistas não concordariam com isso.

Marx conseguiu efetivar isso por ter unido a perspectiva do proletariado e uma erudição formativa que unia uma grande bagagem cultural com o domínio sobre a cultura apreendida, ou seja, ele uniu o fogo revolucionário que permitia a crítica desapiedada do existente com um saber amplo e profundo sobre a realidade social (VIANA, 2017). E isso foi possível pela emergência do proletariado na luta política, permitindo e incentivando que o indivíduo Karl Marx se aproximasse e expressasse a perspectiva dessa classe social.

Nem Ortodoxia, Nem Heterodoxia

Logo, não tem o menor sentido a oposição entre “marxismo ortodoxo” e “marxismo heterodoxo” (VIANA, 2021b). Essas expressões são problemáticas e revelam apenas uma armadilha que alguns marxistas caíram. Além da origem religiosa desses termos, o que em si já mostra os seus limites, as ideias de ortodoxia e heterodoxia remetem para a divisão entre os que são fiéis à doutrina e os que não são. Como o marxismo não é uma doutrina, e sim teoria, e esta não cobra fidelidade, então não há sentido nisso. Os marxistas não são ortodoxos, pois não se vinculam a uma doutrina (e nem a ideologias petrificadas), bem como não são heterodoxos, pois não se definem por seu distanciamento em relação a doutrinas ou ideologias cristalizadas.

Em relação ao pensamento de Marx, os marxistas aceitam, usam, desenvolvem, aquilo que é verdadeiro e que expressa a perspectiva do proletariado e descarta o que não é. E isso vale em relação a todos os demais marxistas, tais como Pannekoek, Korsch, Rühle, Mattick, etc. A idolatria e o dogmatismo são alheios ao marxismo e somente indivíduos concretos, por suas idiossincrasias, formação intelectual e política deficiente, entre outros elementos, podem assumir uma dessas posições. Claro que não se deve confundir dogmatismo e idolatria com a respeitabilidade que a vida e obra de alguns marxistas ganharam por merecimento, pela força e veracidade de teorias que desenvolveram. Da mesma forma, não pode confundir esses elementos com o combate, muitas vezes acirrado, contra os caluniadores, difamadores, deformadores, do pensamento autêntico que eles desenvolveram, pois trata-se de luta de classes e não de competição esportiva[5].

Logo, não há nenhuma pretensão de ortodoxia, embora os marxistas sejam, por partirem da perspectiva do proletariado, próximos na interpretação e defesa das ideias fundamentais do marxismo. A episteme marxista, é um modo de pensar antagônico à episteme burguesa[6] e, nesse processo, realiza uma luta de classes no plano cultural, gerando um conjunto de teorias que expressam o proletariado revolucionário e é esse o elemento fundamental e base de unidade entre os marxistas autênticos, mesmo com diferenças em pormenores e em questões específicas. Também não há pretensão de heterodoxia, pois isto é tão problemático quanto a ortodoxia. A preocupação do ortodoxo é ser fiel à doutrina, é reproduzir as obras sagradas, tal como faz em seu discurso explícito o kautskismo e o leninismo e nega em seu discurso implícito. A preocupação do “heterodoxo” é se dizer diferente dos ortodoxos e recusar a ortodoxia, o que significa um limite, pois ele continua girando em torno do sol que ele quer negar. Ao se reconhecerem como “heterodoxos” eles prestam o serviço de reconhecer a social-democracia kautskista ou o bolchevismo em suas várias variantes como “ortodoxos”. Isso é o mesmo que reconhecer que o kautskismo e o leninismo são marxistas e não só isso: são, por serem ortodoxos, fiéis ao marxismo. Essa legitimação que os heterodoxos prestam aos ortodoxos só mostra os seus limites e sua ruptura parcial com o que combatem[7].

Isso explica o estranhamento na relação entre marxismo e autogestão. A confusão entre marxismo e pseudomarxismo, e mais de um século de deformação do primeiro e sua substituição pelo segundo, explica que a ideia de comunismo foi tão deformada e relacionada com capitalismo estatal, estatismo, determinismo, racionalismo, autocratismo, etc., entre outras ideologias, doutrinas, representações, regimes ditatoriais, propostas e práticas políticas, que parece difícil conceber vínculo entre ambos. O pseudomarxismo é antagônico ao marxismo, assim como são antagônicos o proletariado e burguesia/burocracia. A leitura das obras de Kautsky, Bernstein, Lênin, Trotsky, Stálin, etc., não deixam margem para dúvidas. Em algumas obras isso é mais visível, tal como o artigo de Engels (1981) na qual sai em defesa da direção do Partido Social-Democrata Alemão ao criticar os dissidentes internos; nas obras de Lênin em geral e em algumas nas quais ele mostra o seu burocratismo e autocratismo de forma mais evidente, tal como no artigo em que ele (LÊNIN, 1988) afirma que é preciso usar “meios bárbaros” para combater a barbárie e que só a vanguarda pode libertar o proletariado (LÊNIN, 1978); bem como quando Stálin coloca que os movimentos sociais são “correias de transmissão” do partido (STÁLIN, 1982) e em todas as suas obras nas quais defende teses antimarxistas como a existência da “lei do valor no socialismo” (STÁLIN, 1990), “socialismo num só país” (STÁLIN, 1990), etc.  

Porém, alguns conciliadores e relativistas afirma que isto não passa de diferentes concepções de socialismo e marxismo[8]. Não se trata de diferença e sim de antagonismo. E isso não se revela apenas nas obras e divergências sobre quase tudo[9], mas algo muito mais profundo. A luta de classes mostra isso nas mais variadas experiências históricas, nas quais o bolchevismo e a social-democracia efetivaram ações contrarrevolucionárias. Os casos clássicos, e pioneiros, foram durante a Revolução Russa (e a contrarrevolução burocrática levada a cabo pelo Partido Bolchevique) e a Revolução Alemã (na qual os dois partidos social-democratas, o Partido Social-Democrata Alemão e seu herdeiro e dissidente Partido Social-Democrata Independente, se aliaram com a burguesia para frear o movimento revolucionário dos conselhos operários). Outros elementos poderiam ser citados, tais como a ação burocratizante do bolchevismo, o massacre dos camponeses na Ucrânia e dos marinheiros em Kronstadt, entre inúmeros outros casos. Muitos poderiam dizer que aí é um confronto com o movimento operário e não com o marxismo. Ora, o marxismo é expressão teórica e política de tal movimento, e assim, não poderia entrar em confronto com ele e nem poderia ter algum vínculo com organizações políticas que efetivam isso. As ações bolcheviques contra o movimento operário mostram que o bolchevismo não é marxismo. Por outro lado, nessas experiências, geralmente havia marxistas do outro lado da barricada ou pelo menos elementos de inspiração marxista. Basta recordar Makhaïsky e sua denúncia do golpe de estado bolchevique ou Miasnikov e sua ação a favor do movimento grevista na Rússia até 1921, bem como a luta dos comunistas de conselhos durante a Revolução Alemã a favor dos conselhos operários e contra a social-democracia.

Os regimes ditatoriais, como o da União Soviética, mas também os posteriores, como na China, Cuba, Leste Europeu e muitos outros, mostram o antagonismo do pseudomarxismo em relação ao marxismo[10]. Uma das descobertas do marxismo foi justamente saber distinguir entre o discurso e realidade, entre a consciência individual e social e o que os indivíduos e coletividades são realmente (MARX, 1983). Não é através da autodeclaração de ser “marxista” que se comprova isso e sim na correspondência com a teoria e a prática que lhe acompanha. Portanto, não é uma questão de “concepções diferentes” e sim luta de classes e do lado de qual classe social cada um escolhe ficar.

Marxismo Autêntico e Autogestão

Resta saber, então, qual é a relação entre marxismo autêntico e autogestão. A concepção de comunismo de Marx é a de uma sociedade que se autogoverna, o que é condição para a libertação humana, a generalização da práxis e a instituição de uma socialidade humanizada (VIANA, 2017). A preocupação fundamental do pensamento de Marx era a superação das sociedades de classes que impediam a livre manifestação da natureza humana e seria na sociedade autogerida, com seres humanos livres, iguais, que ela poderia se manifestar plenamente, permitindo o livre desenvolvimento da individualidade, criatividade, socialidade. Assim, desde suas primeiras obras, especialmente nos Manuscritos de Paris (MARX, 1989), na qual tematizou a alienação – tema esquecido, deformado ou negado pelo pseudomarxismo – até O Capital (MARX, 1988), na qual abordou a ideia de “produtores livremente associados”, pela sua análise da Comuna de Paris (MARX, 2020), bem como na concepção associação operária como embrião da futura sociedade comunista (VIANA, 2017; BERGER, 1977), até suas obras em que retoma a questão do comunismo para criticar a deformação social-democrata (MARX, 2021), o que se observa é uma concepção autogestionária.

O marxismo autêntico, depois de Marx, apesar de todas as dificuldades (a hegemonia burguesa, a ascensão da social-democracia e do bolchevismo, os recuos do movimento operário), retomou a verdadeira concepção de comunismo em Marx enquanto sociedade autogerida. Sem dúvida, a luta operária foi fundamental para este resgate memorial da obra de Marx e das experiências autogestionárias anteriores. Esse foi o caso do comunismo de conselhos, que, como marxismo autêntico, se colocou ao lado da luta dos conselhos operários buscando a autogestão nas lutas revolucionárias do final da década de 1910 e início dos anos 1920. E disso resultaram obras excepcionais, como as de Anton Pannekoek (1977) e Otto Rühle (1975), bem como as de outros comunistas de conselhos. A ideia de um “sistema de conselhos” era a expressão teórica e viva do movimento revolucionário do proletariado naquela época. A recusa do bolchevismo e da social-democracia, bem como dos partidos, sindicatos e quaisquer burocracias, mostra o vínculo com a perspectiva do proletariado, mesmo que tendo limites em alguns casos e questões, e que era expressão dos interesses fundamentais da classe revolucionária de nossa época. Além dos comunistas de conselhos, outros, geralmente com menor coerência e determinação, também resgataram o marxismo e combateram o pseudomarxismo.

O marxismo autêntico é o único marxismo existente. Porém, para se diferenciar das concepções pseudomarxistas, às vezes é chamado de “revolucionário”, “autêntico”, “autogestionário”. Ele expressa as lutas proletárias e as incentiva. Sua ação não ocorre através das lutas de partidos (sejam lá quais forem, desde social-democratas até as várias versões do leninismo). Da mesma forma, ele não apoia regimes ditatoriais (capitalistas estatais ou privados, ou mistos, como o atual caso chinês) e a democracia burguesa, não evita a crítica desapiedada ao pseudomarxismo, bem como não teme realizar o desenvolvimento teórico do marxismo[11].

É por isso que o marxismo autêntico sempre apoia a luta revolucionária do proletariado, desde a Comuna de Paris (1871); passando pela luta dos sovietes na Rússia (1917); na emergência revolucionária dos conselhos operários na Alemanha (1918-1921), Itália (1919-1920), Hungria (1920); até chegar às experiências autogestionárias na Espanha (1936-1939), mas também a favor da luta estudantil e operária em maio de 1968 na França; da Revolução Portuguesa (1974); da Revolução Polonesa de 1980 (VIANA, 2016) contra o capitalismo estatal; nas lutas de classes na Argentina em 1999-2002 (FERRERO, 2007), e todas as demais lutas operárias, estudantis, camponesas, espontâneas, autônomas ou autogeridas. Quando o marxismo tinha uma sedimentação anterior, como no caso da Revolução Alemã, pôde apoiar de forma bem mais efetiva o movimento revolucionário do proletariado, enquanto que em outras situações, não pôde oferecer a mesma contribuição. Porém, os marxistas autênticos sempre estão do lado certo, que é o da perspectiva do proletariado, no sentido de lutar contra o capital, o aparato estatal, as burocracias (inclusive a social-democrata, bolchevista, progressista em geral), contribuindo com a hegemonia proletária e lutando lado a lado com o proletariado pela sociedade autogerida.

O Marxismo Autogestionário

O marxismo é a teoria revolucionária do movimento operário revolucionário em sua luta pela autogestão. A teoria revolucionária é indissociável do movimento revolucionário. Assim, marxismo e autogestão possuem uma relação indissolúvel e de reforço recíproco. Isso coloca necessidade de resgatar o marxismo autêntico e sua essência autogestionária, bem como atualizá-lo e desenvolvê-lo. E para isso é necessário analisar a realidade contemporânea, as mutações do capitalismo, as lutas de classes e seu desenvolvimento, as ideologias contemporâneas, etc. A luta cultural para contribuir com a abolição do capitalismo e instauração da autogestão social é parte da luta operária e revolucionária, sendo elemento fundamental para sedimentar as bases teóricas e políticas da luta pela libertação humana.

Assim, se a autogestão é inseparável do marxismo, então o marxismo é, essencialmente, autogestionário. Então a expressão “marxismo autogestionário” seria um truísmo, assim como “marxismo revolucionário”. O motivo do nome marxismo autogestionário surge, no entanto, para resgatar essa unidade indissolúvel entre marxismo e autogestão que foi “apagada” pelo pseudomarxismo, bem como para se diferenciar dele. Porém, Marx e os comunistas de conselhos não usaram o termo “autogestão”, apenas revelaram o significado, a ideia de uma nova sociedade pós-capitalista que expressaria a libertação humana através da igualdade e liberdade autênticas e denominaram isso como “comunismo” ou “sistema de conselhos”, entre outros termos.

O surgimento do marxismo autogestionário remete a um processo de mudanças sociais e desenvolvimento interno da concepção marxista. A história do capitalismo é marcada por uma sucessão de regimes de acumulação que promove mutação na luta de classes e na luta cultural. O marxismo surge no regime de acumulação extensivo (da revolução industrial, passando pela vitória das revoluções burguesas, que entra em crise a partir da segunda metade do século 19) e se desenvolve no interior do regime de acumulação intensivo (que vai do final do século 19 até 1945), embora tenha sido ofuscado até as tentativas de revoluções proletárias, momento no qual as ambiguidades são superadas com a emergência do comunismo de conselhos, e sobrevive marginalmente durante o regime de acumulação conjugado. É depois desse momento que emerge o marxismo autogestionário.

A Segunda Guerra Mundial marcou o fim do regime de acumulação intensivo e a emergência do regime de acumulação conjugado e este promoveu uma estratégia de manutenção do capitalismo que se fundamentou no intervencionismo estatal, nos grandes oligopólios transnacionais que gerou uma divisão no processo de exploração do proletariado (a classe operária do capitalismo subordinado foi submetida à superexploração, o que permitia uma enorme transferência de mais-valor do capitalismo subordinado para o capitalismo imperialista), a estabilidade política e econômica do capitalismo imperialista conquistada via transformação dos sindicatos em aparatos do capital, ampliação da burocratização e controle da democracia burguesa, elevação dos níveis salariais e de consumo (graças, além da exploração internacional, do fordismo, produção em massa, sistema de crédito, etc.)[12]. No capitalismo subordinado, a instabilidade e superexploração promove o revezamento entre ditadura e democracia, mas a subordinação cultural dificultava um maior avanço do marxismo, entre outras determinações.

Ao lado disso, ocorre uma renovação hegemônica que substituía o positivismo pelo reprodutivismo como paradigma hegemônico (VIANA, 2019). O paradigma reprodutivista se fundamentava no holismo, objetivismo, racionalismo e formalismo. As ideologias hegemônicas dessa época usavam e abusavam dos termos “estrutura”, “modelo”, “sistema”, “função”, etc., e reinava o funcionalismo, estruturalismo, “teoria” dos sistemas, etc. Além da relativa estabilização política e econômica, as novas ideologias correspondentes ao novo paradigma hegemônico pregavam a eternização desse regime de acumulação e do capitalismo, bem como apresentavam teses como as da “sociedade de consumo”, “integração da classe operária no capitalismo”, etc., o que apontava para o fim do projeto revolucionário, apesar de existir a Guerra Fria, que se transformou em “luta de sistemas” e que sua ressonância era mais forte no capitalismo subordinado, no qual o nível de pobreza, exploração, etc. tornava o capitalismo estatal um atrativo ou via de modernização. Assim, o pseudomarxismo ocupou o lugar do marxismo com seu projeto estatista e nacionalista no capitalismo subordinado.

No capitalismo imperialista, a social-democracia se aproximava das concepções burguesas e do Estado integracionista, apesar de em poucos casos conseguir vitórias eleitorais; o bolchevismo na Europa se metamorfoseia em “eurocomunismo”, assumindo moderação próxima do reformismo social-democrata e o pseudomarxismo se mescla, em muitos casos, com as ideologias hegemônicas e reprodutivistas, como o chamado estruturalismo-“marxista”, de Althusser, Poulantzas, Macherey, Badiou, Balibar, etc.

O marxismo autêntico sobrevivia marginalmente com as contribuições dos comunistas de conselhos e algumas outras tentativas mais ambíguas. As obras de Pannekoek, Mattick, Korsch e mais alguns mantinham vivo o marxismo sob forma revolucionária, mas que não tinha grande ressonância nas lutas de classes, além das concepções marxistas ambíguas (situacionismo, autonomismo, etc.) que existiam e também sem grandes repercussões.

A emergência do marxismo autogestionário ocorre a partir da crise do regime de acumulação conjugado. A instabilidade que atinge o regime de acumulação conjugado incentiva lutas radicalizadas do movimento operário, do movimento estudantil e outros setores da sociedade e estas, por sua vez, abrem espaço para o desenvolvimento do marxismo autogestionário. A rebelião estudantil de Maio de 1968 na França, bem como as lutas operárias e estudantis na Alemanha e Itália, foram fundamentais para o surgimento do marxismo autogestionário. É nesse contexto que surge o marxismo autogestionário francês, tal como se vê nas obras de Yvon Bourdet (BOURDET, 1978; GUILLERM; BOURDET, 1976) e outros (VIANA, 2020)[13].

Os anos 1970 são marcados pela continuidade da crise do regime de acumulação conjugado, bem como por desenvolvimento de planos, ideologias, etc., que apontavam para a necessidade de um novo regime de acumulação. As novas tarefas econômicas e políticas da burguesia para superar a crise do regime de acumulação conjugado aponta para a solução do aumento da exploração capitalista, que se amplia no próprio capitalismo imperialista[14]. O regime de acumulação integral executa esse processo através do neoliberalismo, toyotismo e hiperimperialismo (VIANA, 2009). A renovação hegemônica gera um novo paradigma hegemônico, o subjetivismo, expresso por ideologias como o pós-estruturalismo, multiculturalismo, generismo, políticas de identidade, etc. Um dos elementos que explicam o novo regime de acumulação é a nova forma de ação estatal, que deixa de ser integracionista e passa a ser neoliberal. A ideia de “Estado mínimo” do neoliberalismo, somado com a crise do capitalismo estatal da URSS e Leste Europeu, promove um enfraquecimento da social-democracia e bolchevismo.

Nesse contexto, ideias e concepções esquecidas ou marginalizadas começam a ser retomadas, tais como o situacionismo, o anarquismo, o autonomismo, as obras de Ernst Bloch, comunismo de conselhos, entre outras. Porém, isso é realizado sob o signo do paradigma subjetivista, o que gera a deformação de parte dessas concepções, ou busca de mesclas (tal como nas tentativas de unir anarquismo e pós-estruturalismo, ou outras concepções com ideologias subjetivistas – como foi o caso das obras de Foucault, Deleuze e outros ideólogos pós-estruturalistas). O novo paradigma traz termos-chave que se popularizam graças à política cultural implantada pelos organismos internacionais, fundações internacionais, aparatos estatais, tais como Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Fundação Ford, Fundação Rockfeller, Unesco e inúmeras outras. As novas políticas educacionais, ditadas pela Unesco a nível mundial, apontam para a reprodução desse processo. Assim, uma renovação linguística no âmbito das ideologias correspondentes ao paradigma subjetivista se reproduz de forma simplificada e popularizada e termos como “exclusão”, “inclusão”, “desconstrução”, “sujeito”, “subjetividade”, “rizoma”, “gênero”, “biopoder”, “identidade” e milhares de outras, são amplamente divulgadas e utilizadas até no âmbito dos meios oligopolistas de comunicação e representações cotidianas (VIANA, 2019).

É preciso entender a história do marxismo no contexto da história da sociedade capitalista. É por isso que, após a rebelião estudantil de Maio de 1968 e a pré-revolução operária que lhe acompanha, há um novo desenvolvimento do marxismo. Trata-se, fundamentalmente, do marxismo autogestionário. Este aponta para uma análise do capitalismo atual, bem como de novos fenômenos sociais e, especialmente, para a teoria da autogestão numa perspectiva revolucionária[15]. Esse foi o caso de Guillerm e Bourdet (1976), bem como outros autores. Depois desse momento, há um desenvolvimento do marxismo autogestionário francês e em outros lugares, bem como no Brasil com Maurício Tragtenberg (1989) e outros (VIANA, 2008; MAIA, 2010; VIANA, 2020)[16].

É preciso perceber, no entanto, que a partir de 1980, com a ofensiva capitalista através do neoliberalismo e a consolidação e relativa estabilidade do regime de acumulação integral a partir dos anos 1990, o marxismo autogestionário se enfraquece, especialmente na França. No Brasil ele se desenvolve mais no plano teórico do que no político, pois o movimento operário continua numa situação de recuo, apesar de alguns momentos de ascensão em alguns lugares e países. Em síntese, o marxismo autogestionário é a forma atual e contemporânea de manifestação do marxismo autêntico e acompanha a dinâmica da luta de classes, sendo parte dela e que tenta reforçar a hegemonia proletária.

Considerações Finais

Assim, o marxismo autêntico pode ter sua história expressa em três grandes momentos. O momento de surgimento, com a autonomização do proletariado, gerando o marxismo original, durante o regime de acumulação extensivo; o marxismo do comunismo de conselhos, que surge com a tentativas de revoluções proletárias do final dos anos 1910, durante o regime de acumulação intensivo; o marxismo autogestionário, que emerge a partir do Maio de 1968 em Paris e demais lutas da época, que trazem a novidade linguística do termo “autogestão” como fundamental e forma de distinguir o projeto autogestionário do capitalismo estatal e do reformismo em geral.

Nesse último caso, o nome marxismo autogestionário não expressa nenhum truísmo. Isso ocorre pelo simples motivo de que tal termo surge para enfatizar o marxismo que coloca em evidência que a nova sociedade que substituirá o capitalismo é a sociedade autogerida e que há um desenvolvimento linguístico em relação ao marxismo anterior, além do desenvolvimento teórico já citado. O marxismo contemporâneo é o marxismo autogestionário. Ele é expressão e negação de uma época, de uma fase do capitalismo, e assim busca compreender tal momento para contribuir com sua superação.

O nosso trajeto apontou para uma análise histórica do marxismo. A relação entre marxismo e autogestão foi abordada desde o pensamento de Marx até chegar ao marxismo autogestionário. Para apresentar a história da episteme marxista de Marx até o marxismo autogestionário foi necessário um momento preliminar para desfazer o equívoco do pseudomarxismo e mostrar as diferenças radicais entre ambos, o que é condição de possibilidade para entender a questão da relação entre marxismo e autogestão. Da mesma forma, a crítica da ideia de “heterodoxia”, bem como de “ortodoxia”, foi necessária para evitar outros equívocos e limites na tentativa de superação do pseudomarxismo. O final do trajeto foi marcado por uma breve síntese da relação entre marxismo e proletariado e seu desenvolvimento histórico.

Referências

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BERGER, Claude. Marx frente a Lênin. Associación Obrera o Socialismo de Estado. Madrid: Zero, 1977.

BOURDET, Yvon. Teoria y Practica de la Autogestión. Barcelona: El Cid Editor, 1978.

CILIGA, Anton. Revolução e Contrarrevolução na Rússia. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2021.

ENGELS, Friedrich. Da Autoridade. In: ENGELS, Friedrich. Engels – Política. Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1981.

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[1] Aliás, não deixa de ser curioso essa proximidade de duas tendências supostamente antiestatistas. Certo setor do anarquismo focaliza seu combate no Estado, tal como o liberalismo prega a menor intervenção estatal (e não sua abolição), e deixam de lado a questão das relações de produção. Alguns desses setores do anarquismo se aproximam do liberalismo, o que é extremamente problemático. Combater o estatismo sem combater o capitalismo é o mesmo que querer destruir uma casa arrancando o telhado e deixando o resto intacto. Isto apenas pioraria a situação, caso fosse possível.

[2] Marx foi o primeiro crítico do pseudomarxismo, mas em sua versão nascente, a social-democracia (VIANA, 2021a), mas ele não poderia criticar a versão leninista, pois só surgiria bem depois de sua morte.

[3] Isso, inclusive, traz uma proximidade entre burocracia e burguesia. Na sociedade capitalista, a burocracia é uma classe auxiliar da burguesia (VIANA, 2018a) e sua concepção de “socialismo” não passa de um capitalismo reformado, sendo, pois, uma concepção semiburguesa.

[4] Socialistas revolucionárias, tendência política existente na Rússia antes do bolchevismo destruir todas as demais concepções, que eram chamados pela sigla SR e daí o “esserismo”.

[5] É preciso esclarecer, também, que isso não deve gerar a busca de críticas e refutações apenas para provar o não dogmatismo e idolatria. Toda e qualquer crítica só tem sentido se for honesta e fundamentada no plano intelectual e necessária no plano político. A crítica motivada por questões pessoais, competição, covardia intelectual, nada tem a ver com o marxismo, mesmo que seja efetivada por marxistas ambíguos, sendo expressão de ambiguidade.

[6] Não é possível discutir a questão das epistemes e o antagonismo entre episteme burguesa e episteme marxista, o que pode ser consultado na obra O Modo de Pensar Burguês (VIANA, 2018b).

[7] Uma crítica mais desenvolvida à ideia de “marxismo heterodoxo” pode ser vista em Viana (2020).

[8] Muitos são pessoas honestas e bem-intencionadas, que realmente acreditam que o leninismo (e/ou seus semelhantes) está a favor dos trabalhadores e da libertação humana. Porém, há uma diferença entre o indivíduo e a ideologia/organização a que estão ligados. Estes que são sinceros logo se desligam de suas antigas ideologias e/ou organizações, principalmente no momento em que elas revelam o seu verdadeiro caráter no contexto das lutas de classes. Foi assim no passado com muitos e basta citar Anton Ciliga (2021) para isso ser melhor compreendido. Este militante, que atuou inicialmente na revolução russa como bolchevique, foi perseguido e enviado para a Sibéria, tornando um crítico do leninismo. É apenas um caso entre milhares. Há aqueles que, por criarem vínculos sentimentais com pessoas do partido, por dogmatismo ou elementos de personalidade, não saem das organizações burocráticas ou abandonam tais ideologias, o que são casos raros.

[9] A diferença reside no que se considera dialética, materialismo, comunismo, bem como em relação a como se efetiva a revolução proletária, quais suas características, como se constitui a nova sociedade, entre milhares de outras. E há uma ampla literatura a esse respeito, embora uma grande parte tenha sido “marginalizada” e “esquecida” devido a hegemonia burocrática nos meios políticos da juventude, intelectualidade e sua influência no movimento operário. Nesse contexto, basta citar a crítica de Pannekoek (2021) ao materialismo de Lênin ou de Berger (1977) à sua concepção de socialismo para notar isso.

[10] A ficção de que existiu um “socialismo real” foi útil tanto para o pseudomarxismo, que assim poderia afirmar que suas ideias se materializaram (e com sucesso, apesar do caráter ditatorial dos regimes instaurados), mesmo com alguns fazendo críticas superficiais (como os trotskistas, através da concepção ideológica de que a base econômica era socialista, mas a superestrutura não, o que não passa de um malabarismo ideológico), quanto para os Estados Unidos, o suposto “mundo livre” e ideólogos conservadores e reformistas, pois estes países eram a demonstração do fracasso do comunismo e expressão do totalitarismo. Esses países, na verdade, desenvolveram uma nova forma de capitalismo, no qual o estado se torna o responsável pela produção de mais-valor e pelo controle da acumulação de capital. É por isso que se cunhou o termo “capitalismo de Estado”

[11] O pseudomarxismo toma outro caminho. Alguns pseudomarxistas escolhem ficar na estagnação e dogmatismo. Outros buscam mesclar o pseudomarxismo com ideologias explicitamente burguesas e geralmente se submetem aos paradigmas hegemônicos da episteme burguesa para sobreviver e acrescentar algo ao pseudomarxismo original, o que significa apenas mais deformação. Para um desenvolvimento desta questão, cf. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas (VIANA, 2019).

[12] Para uma análise da sucessão de regimes de acumulação, cf. Viana, 2009; Almeida, 2020.

[13] Não é nosso objetivo apresentar outras concepções que emergiram nesse momento, nem mesmo apontar as concepções opostas e explicar a contrarrevolução cultural preventiva, que acaba, novamente, marginalizando o marxismo, especialmente a partir do momento que o paradigma subjetivista se torna hegemônico após os anos 1980, o que desenvolvemos em outros lugares (VIANA, 2019, VIANA, 2009).

[14] É nesse contexto que emerge a ideologia da “exclusão social”, bem como começam a surgir as políticas segmentares (para segmentos da sociedade ao invés de políticas universais como no caso do Estado Integracionista) e inclusivistas, de matiz neopopulista.

[15] Isso mostra que o termo “autogestionário” só tem sentido revolucionário no interior do marxismo. Tão logo a concepção revolucionária de autogestão emergiu com a rebelião estudantil de Maio de 1968, os partidos, sindicatos, ideólogos, buscaram deformar o significado do termo e dar-lhe uma versão reformista (alguns, como alguns ideólogos leninistas, buscaram refutar a autogestão e apresentá-la como “esquerdismo” ou “reformismo”). Posteriormente, setores da burguesia também começaram a deformar a ideia de autogestão colocando-as como forma de gestão de empresas capitalistas, além de novas investidas reformistas, tal como a ideia de “economia solidária”, confundindo um conceito que expressa uma nova sociedade e numa perspectiva revolucionária com cooperativas que existiram dentro do capitalismo (com a promessa fantástica e ilusória, de caráter evolucionista, de que eles poderiam evoluir para uma nova sociedade).

[16] Para quem quiser uma análise mais profunda da origem e desenvolvimento do marxismo autogestionário, bem como seus elementos essenciais, a obra O Marxismo Autogestionário (VIANA, 2020) oferece uma análise ampla e profunda com a colaboração de diversos marxistas autogestionários brasileiros, como Alexandra Viana, Edmilson Marques, Gabriel Teles, Lucas Maia, Nildo Viana, Rubens Vinicius da Silva.

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