O que a memória dos 50 anos do golpe militar tem de importante – Diego Marques

No dia 01 de Abril de 2014 ocorreram diversas manifestações pelo Brasil em memória dos 50 anos do golpe militar de 1964. A ocorrência dessas manifestações em variadas cidades que cobrem o Brasil de norte a sul, centro-oeste e sudeste demonstra o grau de mobilização e conscientização dos movimentos sociais que criticam a ordem estabelecida indo além da denúncia das causas diretas que motivam sua luta específica. Por exemplo, em São Paulo uma manifestação do MTST reuniu mais de 3 mil pessoas no centro da cidade em denúncia contra as práticas repressivas da ditadura e questionando a estrutura da polícia militar brasileira como herdeira direta da estrutura repressiva criada nos anos de chumbo aberto da dominação burguesa e que se mantém atual na prática de encarceramento e massacre da população das periferias do Brasil. No Rio de Janeiro, organizações estudantis e políticas protestaram em frente ao Clube Militar e foram reprimidas pela polícia. Em Recife um jornalista da mídia independente foi preso por um grupo de militares do Exército.

A recente história brasileira é marcada por uma constante de intervenções militares. É a sina dos estados capitalistas subordinados aos países imperialistas. Nestes últimos, a melhora nas condições de vida da população trabalhadora e a cooptação de suas organizações via estado atuam como contratendência à luta organizada dos trabalhadores, o que aqui é feito principalmente com a intensificação da repressão militar. A Proclamação da República no dia 15 de Novembro de 1889 é data simbólica da participação dos militares na política brasileira, participação que desde então se consolidou dentro da estrutura do estado nacional, ao lado dos partidos políticos, da burocracia, etc.  É como principal instrumento de controle social que os militares interferem na política brasileira: com a Guerra de Canudos o discurso de luta contra a ação dos grupos monarquistas, contra os trabalhadores das cidades à luta contra a perversão anarquista/comunista.

O uso político das instituições militares busca resolver mesmo os problemas internos, como no caso das Revoltas da Armada e do Movimento Tenentista, daí sua utilização universal e recorrente na solução das crises de controle político da burguesia nacional tal como a ação de 03 de Outubro de 1930, que resulta na chamada Revolução de 1930, ou no dia 10 de Novembro de 1937, quando Vargas decreta a ditadura do Estado Novo, até o dia 01 de Abril de 1964, que abre o período em nossa história de maior intervenção militar na vida política e social do Brasil. Chamando atenção que até mesmo factoides criados com o objetivo de interferir no rumo dos acontecimentos têm participação dos militares, como o Plano Cohen que marca o auge do poder de Vargas e o atentado ao jornalista Carlos Lacerda, marca da renúncia de Getúlio Vargas.

Desta forma, a importância que a memória dos 50 anos do golpe militar de 1964 tem para os grupos oprimidos no Brasil é a de que há um uso político recorrente das forças militares intervindo nas crises políticas e sociais ao longo da história nacional. As instituições militares que formam uma parte do estado nacional, juntamente com a burocracia partidária, a burocracia permanente do estado, têm seus interesses específicos porque formam uma classe específica na divisão do trabalho (para manter a eficiência da estrutura militar é necessário elevados gastos com especialização, armamento, munição, equipamentos, etc.) e vive da produção do mais-valor realizada pelo proletariado e que em parte é aproveitada para cobrir os custos com o militarismo. Por não ser uma atividade produtiva, e também pela falta de um histórico conquistador do Brasil, os grupos ligados à carreira militar desde cedo estiveram ligados aos grandes latifundiários e profissionais da cidade (como médicos, advogados), o que em parte explica a tendência à formação de pequenos grupos de intelectuais dentro dos militares brasileiros. Um dos mais importantes desses grupos foram os que criaram a identidade do exército nacional nos períodos áureos do positivismo, sendo no Brasil seus principais divulgadores.     

Nas primeiras décadas do século XX projetos de reforma social foram elaborados pelo movimento tenentista, e depois com a fundação e as orientações políticas seguidas desde Moscou pelo Partido Comunista Brasileiro resultaram numa relativamente grande aceitação deste partido no interior dos postos médios das fileiras militares, sendo hoje conhecida como a esquerda militar. Depois do positivismo, o desenvolvimentismo foi a grande ideologia animadora da intelectualidade militar durante o século XX, iniciando com o golpe militar de Vargas em 1930 e reafirmado em 1937, e reconfigurado pela ditadura militar, embora durante todo esse período contou com apoio de departamentos estatais para seus projetos, como ocorreu durante certo tempo com o ISEB que seria posteriormente fechado pela ditadura. Tal como durante o governo de Vargas, na época da ditadura militar foram os grupos da esquerda ligados aos militares que se sublevaram em armas, no primeiro momento em torno da figura de Prestes e do PCB/Aliança Nacional Libertadora, e no segundo momento em torno da figura de Marighela, Lamarca e outros quadros dissidentes com a política do PCB de não reação armada ao golpe militar.

Brevemente constatamos a forte presença militar na política brasileira: primeiramente, cumprindo seu papel fundamental de reprimir os grupos oprimidos e contestadores, em segundo lugar, servindo de classe auxiliar no projeto de modernização e desenvolvimento nacional dirigido pelas frações industriais da burguesia nacional, e em medida muito menor o envolvimento com grupos reformistas (tenentistas e desenvolvimentistas) e mesmo com os insurrecionalistas (todas as organizações de “vanguarda proletária-estudantil”) na resistência à ditadura militar.

Tendo uma participação de tão “grandes serviços” prestados ao estado nacional não poderiam os militares ficar sem sua parcela da renda nacional. Em 2013, a previdência militar e a logística administrativa cobrindo cerca de 300 mil pessoas custa 24,500 bilhões de reais ao ano, 500 milhões de reais a mais que o programa Bolsa Família do Governo Federal que atende cerca de 13 milhões de pessoas[1].

Os quase 30 anos sem o comando oficial do poder executivo federal não significaram a diminuição de força dos militares. Ignorados e deixados às duras penas durante o período de neoliberalismo radicalizado do governo FHC (que cortou praticamente todos os investimentos produtivos e inovadores na logística militar, salvaguardando os gastos com manutenção de pessoal, que basicamente são os grupos da alta hierarquia), com o governo Lula/Dilma houve um substancial crescimento do orçamento militar pulando de 4,6 Bilhões em 2003 para 19,6 Bilhões em 2013, dinheiro para ser gasto em custeio e investimento[2]. Segundo matéria publicada pelo jornal Em Discussão[3], a soma dos gastos totais com a área militar no ano de 2010 foi de 59,3 Bilhões de reais, sendo que 45,2 Bilhões de reais foi gasto com despesas de administração e com o pessoal inativo.

É parte da funcionalidade do estado neoliberal a elevação dos gastos militares, embora num primeiro momento tenha ocorrido corte geral das verbas do estado, num segundo momento depois da intensificação dos conflitos sociais provocados pelas políticas neoliberais ocorre um contínuo aumento dos gastos militares, o que se verifica claramente na maioria dos países a partir do começo dos anos 2000. O avanço do militarismo pode ser verificado tanto nos países imperialistas, bastando lembrar que os EUA estão envolvidos em duas guerras no Oriente (Afeganistão e Iraque) e dão suporte para outros inúmeros levantes, golpes de estado, guerra às drogas, administração de bases militares e toda ordem de conflito ao redor do mundo (sem esquecer das atividades militares de Rússia, China, França, Inglaterra), quanto nos países de capitalismo subordinado, que modernizam suas forças militares e suas forças policiais com a compra de equipamentos e armamentos dos poucos oligopólios mundiais que controlam o capital bélico. Isto é mostrado quando acessamos notícias de manifestações em vários lugares do mundo e daí chama a atenção a homogeneidade (bélica e de treinamento) da ação policial, bastando que uma polícia seja eficiente em seus métodos repressivos para logo os estados nacionais criarem programas de intercâmbio de treinamento das forças policiais. Exemplo claro disso são os carabineros do Chile que possuem acordos com várias polícias da América Latina.

O atual processo de valorização do capital está baseado na intensificação da exploração do trabalho em nível mundial, com a combinação da extração de mais-valor absoluto (que se verifica no aumento da jornada de trabalho, no corte de direitos trabalhistas) e mais-valor relativo (que aumenta a produtividade do trabalho num mesmo período de tempo por meio da inovação organizacional, disciplinar e também tecnológica). A organização toyotista do trabalho é a maior expressão dessa nova forma de exploração do trabalho, que por sua vez é a expressão das dificuldades crescentes de valorização do capital. A necessidade de intensificar a exploração do trabalho conduz a outras necessidades no atual estágio do modo de produção capitalista, e a combinação mais cruel dessas necessidades está no corte dos direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora e no aumento do uso sistemático do aparelho militar para reprimir as lutas organizadas dos trabalhadores e dos movimentos sociais. No âmbito da América Latina, como consequência da criação dos estados neoliberais desde a década de 1980, os principais países da região presenciam o aumento da intervenção militar em questões de ordem política: no México inicia-se com o levante do EZLN, depois com Oaxaca, Atenco, e mais recentemente contra os militantes da campanha voto nulo; no Chile, militares contra os Mapuche, contra os estudantes e centenas de movimentos sociais por educação gratuita; na Argentina, as guerras urbanas comandadas pela polícia contra os piqueteiros e a população que saiu às ruas durante a crise econômica de 2001 deixou dezenas de mortos e milhares de feridos e serviu de treinamento para a atuação da polícia contra os movimentos organizados na atualidade; as forças militares colombianas possuem décadas de experiência de combate a movimentos guerrilheiros e fazem um uso intenso dessa experiência contra os movimentos sociais do campo e da cidade. Estes militares colombianos reprimiram com violência desmedida estudantes e a greve dos camponeses em 2013; a Venezuela vive sob o domínio do militarismo com discurso de esquerda, e sem esquecer dos recentes golpes de estado no Paraguai, Honduras, da intervenção militar brasileira no Haiti, dos atritos entre Venezuela e Colômbia, Colômbia e Equador.

Os militares ocupam um papel muito importante no capitalismo contemporâneo e, desde o período das ondas de golpes de estado nos anos 60/70, a participação dos militares é cada vez mais pontual e direcionada contra os movimentos sociais. Isto porque trata-se de um novo ciclo de lutas aberto com a atual acumulação capitalista: a intensificação da exploração do trabalho e o corte nos direitos sociais foi aceito pelos sindicatos, que desde o ciclo de lutas aberto com a acumulação fordista realiza a mediação na relação capital-trabalho, e na acumulação toyotista essa mediação aprofunda passando também para a defesa aberta por parte dos sindicatos das necessidades de valorização do capital; a expansão da burocratização das relações sociais sufoca os indivíduos e inibe a participação coletiva. Contudo, esses processos impõem novas lutas mais radicalizadas superando as instituições burguesas e germinando novas relações sociais que questionam a relação entre dirigentes e dirigidos, a criação de grupos dirigentes e de lideranças, colocando na ordem do dia a necessidade de associação (forte exemplo nos nossos dias é a criação dos comandos de greve que superam as instituições sindicais) e de auto-organização (assembleias, comitês, coletivos organizados).

Igualmente, a militarização das questões políticas coloca novas tarefas para as organizações revolucionárias e para os movimentos sociais radicais. As concepções militaristas, insurrecionalistas e jacobinas sobre a organização dos movimentos sociais são agora um objeto do passado, etapa da luta de classes anterior ao avanço que significa a auto-organização das massas, consciente de que não se trata de uma simples disputa de força militar que faz avançar o projeto de transformação social radical, que significa antes de tudo, transformar as relações sociais entre os seres humanos. Exemplo simples: quando os militares se veem em missão de reprimir uma organização sem lideranças ficam profundamente confusos sem ter os alvos visíveis e a quem culpabilizar ante a organização coletiva.

Reconhecida a importância da memória dos 50 anos do golpe, símbolo de um passado de intervenções militares e de um presente de crescente militarismo e criminalização dos movimentos sociais, também devemos reconhecer que a luta de classes evoluiu desde aquele momento, sendo injustificada o resgate das concepções vanguardistas e jacobinas que fundamentaram a luta dos jovens combatentes da ditadura que, bem intencionados e sinceros em sua luta, acabaram por cair também ante aos equívocos dos seguidores de partidos e de seus líderes, sem reconhecer na massificação da ação direta o principal instrumento de vitória das demandas populares. Também em torno da disputa pela opinião pública se faz necessário a manutenção da memória do golpe militar, não deixando assim que as forças conservadoras e de direita hegemonizem a história oficial sem resistência e contestação da história por parte dos grupos oprimidos e explorados.


[1] Fonte: http://dinheiropublico.blogfolha.uol.com.br/2013/12/29/intocada-previdencia-dos-militares-gasta-mais-do-que-o-bolsa-familia/

[2] Fontes: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,gastos-militares-no-brasil-aumentaram-em-56-em-dez-anos,1020922,0.htm e http://www.forte.jor.br/2013/11/07/militares-orcamento-nao-atende-sequer-ao-custeio/

[3] Jornal eletrônico veiculado pelo site do Senado Federal http://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/defesa-nacional/forcas-armadas-submarino-nuclear-satelite-comunicacao-cacas/recursos-orcamento-do-pais-para-defesa-investimentos-gastos.aspx

Publicado originalmente em: O que a memória dos 50 anos do golpe militar tem de importante. Revista Posição, Goiânia, p. 15 – 21, 06 out. 2014.

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