O Significado Político do Maio de 1968 – Nildo Viana

Maio de 1968 na França foi um acontecimento histórico que significou um divisor de águas na história do capitalismo. E é por isso que recebeu atenção dos meios oligopolistas de comunicação, intelectuais, etc. Diversas obras foram escritas para descrever, explicar, analisar, as lutas sociais expressas nesse fenômeno. Porém, ainda paira muitas dúvidas e questões sobre tal evento, mesmo que tenha recebido diversas análises e recebido inúmeras interpretações. Uma das questões ao seu respeito é se o Maio de 1968 foi uma “revolta” ou se foi uma “revolução” (MATOS, 1981; CONCEIÇÃO, 2019). Os termos geralmente utilizados para caracterizar esse fenômeno, sem maiores reflexões, é “rebelião”, “revolução”, entre outros. Alguns colocam a questão e não apresentam uma resposta clara (MATOS, 1981), alguns questionam se foi uma “revolução” (WOODS, 2016), alguns questionam se foi uma “revolução fracassada” (GORZ, 1968), ou um “ensaio”, enquanto que outros pensam que se tratou de uma “situação revolucionária” (CONCEIÇÃO, 2019). Há também aqueles que trataram “revolta” e “revolução” como tendo o mesmo significado (LENDESMA, 1978; GARAUDY, 1985). Por outro lado, outro termo muito utilizado para qualificar o Maio de 1968 é o de rebelião.

Nesse contexto, precisamos entender o real significado político do Maio de 1968. Para entendermos o seu real significado, é fundamental o esclarecimento conceitual, pois sem este não é possível uma compreensão mais profunda desse fenômeno. Por isso vamos realizar uma discussão conceitual e posteriormente uma análise do evento para definir o que efetivamente significou politicamente o Maio de 1968.

Revolta, rebelião e revolução

Vamos analisar alguns conceitos que foram utilizados para qualificar a experiência de Maio de 1968 na França. Os termos utilizados são revolta, rebelião, situação revolucionária, revolução. Na maioria dos casos, os termos são usados, mas seu significado não é explicitado. Como os signos e seus significados fazem parte da luta de classes (BAKHTIN, 1990), então é preciso entender o que cada um desses termos significa.

Comecemos pela ideia de revolta[1]. Compreendemos por revolta o processo pela qual há uma recusa de algo sob uma forma explosiva e sem projeto alternativo. Por conseguinte, a revolta é sempre recusa de algo, uma negação de alguma situação, ação, etc. Por outro lado, isso ocorre através de atos explosivos, violentos. Por fim, falta um projeto alternativo e daí seu negacionismo (nega, recusa, mas não apresenta um projeto alternativo, apenas o protesto violento ou a solução imediata de um caso específico que não propõe soluções mais gerais e permanentes). A revolta individual é aquela na qual o indivíduo recusa alguma coisa de forma violenta, tal como no exemplo da pessoa que explode numa situação específica, o que pode ser ilustrado pela ação do personagem do filme Um Dia de Fúria. A revolta social é quando uma multidão, ou qualquer outra coletividade, recusa algo sob forma explosiva, e sem projeto alternativo. A “Revolta da Vacina”, ocorrida em 1904, ou linchamentos, são exemplos de revoltas sociais, o primeiro em grande e o segundo em pequena escala. As revoltas sociais podem ser difusas, como foi a da Vacina, ou concentradas, como é o caso de um linchamento. As revoltas sociais difusas são aquelas nas quais se espalha por setores da sociedade sem articulação ou organização e as concentradas são num mesmo lugar e momento.

Desta forma, nossa concepção difere da de Pasquino. Pasquino afirma que a revolta “se limita geralmente a uma área geográfica circunscrita”, elemento do qual discordamos, pois ela pode ser difusa. Concordamos quando ele afirma que a revolta geralmente é “isenta de motivações ideológicas, não propugna a subversão total da ordem constituída”, mas desde que ao invés de “motivações ideológicas”, um uso problemático do termo ideologia, se entenda sem “projeto político ou alternativo” diante do que motivou a revolta (PASQUINO, 1998, p. 1121). Porém, discordamos também da ideia de que a revolta propugna um “retorno aos princípios originários que regulavam as relações entre as autoridades políticas e os cidadãos, e visa à satisfação imediata das reivindicações políticas e econômicas”, pois aqui se trata de revolta política, uma variação da revolta social. A revolta nem sempre é contra governos ou “autoridades políticas” e por isso é preciso entender que essa é uma variação das revoltas sociais.

A concepção de revolta em Camus também é interessante e próxima. Ela seria uma “recusa a uma situação considerada absurda, e por sua vez intolerável, porque o indivíduo julga que um direito seu, possa não estar sendo respeitado” (CONCEIÇÃO, 2019). No entanto, não é possível confundir revolta com “sentimento de justiça” ou relacioná-la com “direitos”. A revolta pode ser desencadeada pela percepção de uma justiça, mas isso é distinto de “sentimento”, bem como nem sempre há consciência de direito, pode ser mera raiva coletiva desencadeada por algum ato ou ação.

O conceito de rebelião remete ao ato de rebelar, ou seja, uma recusa. Uma rebelião é uma recusa de uma situação, acontecimento, autoridade, etc., e que pode se realizar de forma pacífica ou violenta e é geralmente duradoura, embora possa desencadear subitamente ações e manifestações diversas, com determinados objetivos. A rebelião individual, geralmente atribuída aos jovens[2], se caracteriza pela recusa das autoridades (pais e professores, por exemplo), e varia em sua forma de efetivação (podendo ser algo pacífico ou agressivo), e como quem realiza a rebelião não tem força para derrotar ou substituir a autoridade, então é apenas uma medição de forças, que pode resultar em uma ou outra concessão por parte das autoridades, ou não, gerando retrocesso e mais motivo para a continuidade da rebeldia.

A rebelião social é semelhante, pois é realizada por jovens e estudantes, mas não apenas, pois qualquer grupo ou setor da sociedade, inclusive setores das classes sociais, pode assumir uma posição rebelde e gerar rebelião. A rebelião social é caracterizada por ser uma ação coletiva de questionamento e suas ações podem ser mais pacíficas ou mais violentas, mas é duradoura (apenas uma manifestação não constitui rebelião, por exemplo) e com determinados objetivos. Assim, o caso da rebelião individual ocorre como no caso de filhos que contestam os seus pais e o caso da rebelião social é quando setores da sociedade contestam as autoridades, políticas governamentais, determinadas situações sociais. As manifestações de junho de 2013 no Brasil não foi uma rebelião, pois faltava unidade entre os seus agentes, clareza de objetivos, etc.

Essa concepção de rebelião é diferente da apresentada por outros autores:

Mas em certos tipos de sociedade, quando os subordinados se voltam contra um líder, eles apenas querem voltar-se contra a sua personalidade, sem necessariamente ter que se rebelar contra a autoridade da função que ele executa. Eles visam tirá-lo dessa função e colocar outra pessoa nela. Isso é rebelião, não revolução. Uma revolução visa mudar a natureza das funções e da estrutura social dentro do qual eles se desenvolvem, não apenas mudam pessoas que estão realizando essas funções. Aristóteles viu essa diferença entre rebeliões e revoluções e observou que as rebeliões não atacam a autoridade política em si. Mas os antropólogos desenvolveram consideravelmente o que este processo implica. Nesta exposição vou levantar que essas rebeliões, longe de destruir a ordem social estabelecida, funcionam de tal maneira que até apoiam essa ordem. As revoltas dão solução aos conflitos criados pela fragilidade da autoridade. Eles também dão solução para certos outros conflitos que surgem em outras partes do sistema político. Isso é porque as tendências de rebelião contra a autoridade são retidas pela própria estrutura do sistema político. Elas são controladas pelo costume que gera a lealdade de homens para seus líderes, então quando esses homens atacam um líder, eles fazem isso para apoiar outro líder da mesma classe, em nome dos ideais de direção. Isto quer dizer que, como as ações judiciais, as divisões dos líderes que perseguem o poder, e entre os seguidores que buscam líderes, em termos de interesses e lealdades baseadas em costumes que existem em um âmbito das relações sociais, conduzem ao conflito e inclusive à disputa aberta. Porém, num espaço e tempo de maior amplitude essas divisões podem resultar na coesão social (GLUCKMAN, 2009, p. 58-59).

Uma concepção distinta de rebelião é a apresentada abaixo:

De maneira mais superficial, a rebelião é a insurreição armada de um grupo de pessoas que decide se organizar para enfrentar militarmente o poder do Estado; isso implica tanto o processo de organização quanto o desenvolvimento do confronto armado. No entanto, por trás dessa aparência há um desafio às relações de poder que sustentam a ordem social e, dessa forma, o Estado e seu sistema jurídico são questionados como mecanismos válidos e eficazes para a resolução de conflitos sociais e para o cumprimento das exigências dos rebeldes. Em uma sociedade conflituosa, a rebelião é uma maneira de promover conflitos sociais. Tem a característica de ser uma violação do Estado como princípio de unidade política; é um desafio à dominação de classe que se encontra condensada na organização estatal. Essa impugnação do poder do Estado se traduz em um colapso da unidade política. De fato, o levante armado que confronta o Estado implica que os rebeldes parem de reconhecer a autoridade do Estado e, pelo contrário, procurem estabelecer sua própria autoridade sobre os territórios em que eles estão e sobre a população que os habita. “A divisão é expressa como um colapso da ordem jurídico-política e é gerada pelo surgimento de poderes dentro da comunidade, diferentes daqueles de um soberano que se recusa a aceitar outros limites que não os da lei natural”. Em outras palavras, a rebelião é uma negação deliberada da ordem política e, portanto, a existência de uma autoridade comum para as partes opostas (VOLKMAR, 2015, p. 53-54).

Por fim, uma outra definição, retirada de um dicionário de ciências sociais, afirma que uma rebelião

se refere a confronto e oposição, mais ou menos violentos, ao estabelecido. É frequente relacionar-se com a juventude. Concebida num plano mais geral, a rebelião é um “modo de adaptação… que leva a pensar e a tentar implantar uma estrutura social nova, isto é, muito modificada. Supõe o abandono das metas e normas existentes, que são consideradas puramente arbitrárias”. Ela é uma resposta à sociedade, a qual tenta transformar para a satisfação das reivindicações que lhe são negadas. É um movimento sócio-político que nasce como consequência da negação de reivindicações de parte da sociedade e da consciência de que elas jamais serão atendidas enquanto essa sociedade prevalecer. As rebeliões quase sempre se identificam com mobilizações de massa contra um governo, tendo um caráter violento, mas esse termo também pode ser aplicado com referência a sublevações que não chegam a conseguir a participação das massas e permanecem em um nível de minorias. Assim acontece com as sublevações encabeçadas pelas Forças Armadas (SILVA, 1987, p. 1030-1031).

Gluckman, retomando Aristóteles e Evans-Pritchard, compara rebelião e revolução e define a primeira como uma luta contra a autoridade que focaliza não a função e sim o seu detentor. Volkmar, por sua vez, coloca a rebelião como sendo algo semelhante a uma “revolução” (entendendo por esta uma “insurreição armada”). A definição de Silva, por sua vez, a coloca como se fosse revolução ou sublevação. Todas essas definições são complicadas por estar ausente a totalidade. E a totalidade, expressa teoricamente, remete para um universo conceitual. É por isso que temos que recordar a definição anterior de rebelião e complementá-la, bem como a de revolta. Mas, antes disso, faremos uma breve crítica a estas três definições de rebelião.

A concepção de Gluckman apresenta a rebelião como uma “revolta” contra determinada autoridade e não contra a função da autoridade. Essa é a definição mais comum quando se trata de rebelião juvenil ou quando Fromm define e distingue o “caráter rebelde” e o “caráter revolucionário” (FROMM, 2014). O problema dessa abordagem se encontra na sua abstratificação[3], bem como em sua possível com uma revolta. Por outro lado, a ideia de rebelião, nesse caso, se torna tão somente uma oposição governamental. Pensar a rebelião como apenas mudanças de pessoas ao invés de mudança de funções é limitar o seu alcance e não compreender as suas formas de manifestação. Ela limita a rebelião a uma luta por substituição de lideranças ou governo.

A concepção de Volkmar, por sua vez, padece dos mesmos problemas. A abstratificação é realizada junto com o processo de limitação ao colocar que toda rebelião significa uma insurreição armada. A definição de Silva, por sua vez, acaba tendo os mesmos problemas e ainda tem uma dubiedade, pois em certos aspectos se aproxima de revolução (ao colocar a existência de uma consciência de que existem reivindicações que jamais serão atendidas nessa sociedade, o que significa defender a constituição de uma nova sociedade), revolta ou sublevação.

Em primeiro lugar, é preciso conceituar os termos próximos. Já definimos revolta e adiante definiremos revolução. Há um termo que é muitas vezes confundido com revolução, que é o de insurreição. Essa é a concepção leninista, que, apesar de usar o nome “revolução”, não ultrapassa o nível de uma insurreição. Uma insurreição é quando um partido político ou grupo na sociedade quer tomar o poder estatal através do uso da força. Se ela se concretiza, há uma tomada do poder estatal, tal como aconteceu no caso da chamada “Revolução de Outubro” de 1917 na Rússia. A insurreição, por sua vez, é próxima da sublevação. Esta ocorre quando um setor da sociedade se levanta contra o aparato estatal, mas sem o objetivo de tomar o poder estatal, deixando isso para outros (eleições, partidos, etc.) ou tendo objetivos mais restritos (uma sublevação num quartel militar, por exemplo). Gluckman, em alguns momentos, aproxima rebelião de revolta, enquanto que Volkmar confunde rebelião com insurreição ou outros fenômenos e o mesmo vale para o caso de Silva.

Vamos agora tratar de dois outros termos usados para explicar o Maio de 1968: situação revolucionária e revolução. Antes temos que explicar o conceito de revolução. Segundo Florestan Fernandes (1984), revolução significa “transformação estrutural da sociedade capitalista”. Essa definição é equivocada, por abstrair as revoluções do passado e se focar apenas na revolução que é uma possibilidade no presente. Para nós, “a revolução é um processo no qual ocorre uma transformação no conjunto das relações sociais, instituindo uma nova sociedade” (VIANA, 2016a). O termo, no entanto, é utilizado em vários sentidos (“revolução comercial”, “revolução industrial”, “revolução científica”, etc.). Por isso podemos colocar revolução social para distinguir destes significados mais restritos, que são mudanças em aspectos da sociedade.

A revolução social pode se efetivar através de revoluções parciais ou revolução total. As revoluções burguesas foram revoluções parciais e a revolução proletária é uma revolução total. As revoluções parciais são aquelas que ocorrem por etapas, atingindo setores da sociedade para depois chegar à sua totalidade. Esse foi o caso das revoluções burguesas. As revoluções burguesas iniciaram com uma revolução econômica, acompanhada por revolução cultural e se encerrou com as revoluções políticas (estas denominadas pela historiografia como “revoluções burguesas”). As revoluções sociais pressupõem ruptura, radicalidade e totalidade. A ruptura é o momento chave do processo de transformação social, na qual a classe revolucionária derrota a classe que era dominante. A radicalidade significa que não se trata de qualquer transformação, mas uma mudança radical na essência da sociedade, que muda de forma, gerando uma nova sociedade. A totalidade significa, nesse caso, que é uma mudança total, ou seja, no conjunto das relações sociais, atingindo a vida social em seu conjunto.

Porém, mesmo a revolução proletária não ocorre da noite para o dia. Seria um tanto quanto fantástico pensar que, num exemplo hipotético, no dia 01 de maio o proletariado resolve efetivar uma revolução social a partir do nada e sem lutas e confrontos anteriores. Antes de uma revolução proletária ocorrer há um conjunto de lutas preparatórias, lutas espontâneas e autônomas que antecedem as lutas revolucionárias (JENSEN, 2016). As lutas espontâneas são aquelas nas quais os trabalhadores lutam por questões imediatas sem a mediação de organizações burocráticas, tais como partidos e sindicatos. As lutas autônomas já são um passo além, pois não só são espontâneas, como já recusam partidos e sindicatos. Essas são lutas radicalizadas que apontam para a possibilidade da emergência de lutas autogeridas, revolucionárias. Uma época de lutas concretas pode significar a passagem de uma para a outra e o recuo ao estágio anterior, entre outras possibilidades. O que nos interessa aqui é compreender que

“… uma revolução proletária se inicia com a autodeterminação de classe, ou seja, quando o proletariado passa de classe determinada para autodeterminada. Nesse momento, o proletariado coloca o objetivo da transformação social radical, ou seja, a abolição do capital (e, por conseguinte, dos seus aparatos burocráticos), materialização da autogestão ou, esboçando essa autogestão concretamente” (VIANA, 2016b, p. 92).

Esse é o momento inicial de uma revolução proletária. O momento seguinte é o da ruptura, no qual ocorre a destruição do aparato estatal e do capital (relações de produção capitalistas). O terceiro e último momento é quando essa destruição se completa, sendo total, abolindo os resquícios das relações de produção capitalistas. Até hoje nenhuma tentativa de revolução proletária chegou até esse momento final. A maioria ficou no primeiro momento e algumas poucas iniciaram a ruptura, mas nenhuma chegou até o momento final. É por isso que as revoluções proletárias foram todas, até hoje, revoluções inacabadas.

Nesse sentido, o que significaria uma “situação revolucionária”? Esse termo é de origem leninista e depois será reproduzido por Tarrow (2009) em sua análise dos movimentos sociais.

Para um marxista, não há dúvida que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária conduz à revolução. Quais são, de uma maneira geral, os indícios de uma situação revolucionária? Estamos certos de não nos enganarmos se indicarmos os três principais pontos que seguem: 1) impossibilidade para as classes dominantes manterem sua dominação de forma inalterada; crise da “cúpula”, crise da política da classe dominante, o que cria uma fissura através da qual o descontentamento e a indignação das classes oprimidas abrem um caminho. Para que a revolução estoure não basta, normalmente, que “a base não queira mais” viver como outrora, mas é necessário ainda que “a cúpula não o possa mais”; 2) agravamento, além do comum, da miséria e da angústia das classes oprimidas; 3) desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas acima, da atividade das massas, que se deixam, nos períodos “pacíficos”, saquear tranquilamente, mas que, em períodos agitados, são empurradas, tanto pela crise no seu conjunto como pela própria “cúpula”, para uma ação histórica independente (LÊNIN, 1979, p. 27-28).

Lênin acrescenta que sem tais “transformações objetivas”, independentemente da vontade de grupos e partidos, ou mesma das classes sociais, a revolução é impossível. E ele explicita que “é o conjunto dessas alterações objetivas que constituem uma situação revolucionária”. Ele cita o exemplo da Revolução Russa de 1905 e outras “situações revolucionárias” para apresentar sua conclusão: não basta as condições objetivas, pois é necessário as condições subjetivas.

A Revolução não surge em toda situação revolucionária, mas somente nos casos em que, a todas as alterações objetivas acima, enumeradas vem juntar-se uma alteração subjetiva, a saber: a capacidade, no que respeita à classe revolucionária, de conduzir ações revolucionárias de massa suficientemente vigorosas para quebrar completamente (ou parcialmente) o antigo governo, que não cairá jamais, mesmo em épocas de crises, se não for compelido a cair (LÊNIN, 1979, p. 28).

Lênin conclui, em consequência, que as condições subjetivas remetem para o partido de vanguarda. O partido é o responsável por criar tais condições, pois “nenhum socialista responsável e influente jamais ousou colocar em dúvida esse dever dos partidos socialistas” (LÊNIN, 1979, p. 30). Essa concepção é retomada pela abordagem neoinstitucionalista (TARROW, 2009; McADAM, TARROW, TILLY, 2009).

Uma revolução é uma alteração rápida, violenta e durável do controle social sobre um Estado, o que inclui uma fase de soberania abertamente contestada. Podemos facilmente distinguir entre situações revolucionárias (momentos de profunda fragmentação do poder do Estado) e resultados revolucionários (transferência do poder do Estado para novos atores), considerando como uma revolução completamente desenvolvida qualquer combinação extensiva dos dois (McADAM, TARROW, TILLY, 2009, p. 27).

A abordagem neoinstitucionalista (também conhecida como “teoria do processo político”) retém a ideia de “crise de cúpula” e a ideia de revolução como “transferência do poder estatal para novos atores”, semelhante à concepção insurrecionalista de Lênin, segundo a qual a tomada do poder estatal seria a revolução. Tarrow (2009) já reproduz a ideia de Lênin ao colocar que as revoluções ocorrem quando os “ciclos de protesto” são combinados com as crises econômicas e divisão entre as “elites”. O desenvolvimento acentuado das atividades das “massas” é similar à “ciclo de protestos”, a crise econômica é o mesmo que “agravamento da miséria e angústia” das “classes oprimidas” e a divisão das elites é semelhante “impossibilidade para as classes dominantes manterem sua dominação de forma alterada”.

Após esse breve apanhado dos termos mais importantes mais usados para qualificar o Maio de 1968, precisamos torná-los mais concretos. Aqui deixaremos de lado a revolta e a rebelião individual, e trataremos apenas de suas manifestações sociais. No caso da revolução, abordaremos apenas a revolução social. As revoltas sociais são geralmente realizadas pelas multidões e possuem motivações e objetivos imprecisos. As revoltas sociais possuem como estopim atos ou acontecimentos que geram uma explosão de raiva, a canalização do ódio ou ressentimento. Logo, são ações nas quais os sentimentos e emoções são mais determinantes que a racionalidade (os linchamentos são exemplos desse caso) e os agentes são indivíduos movidos por eles e que, portanto, a revolta nasce geralmente de setores da sociedade marginalizados, subalternizados, explorados, etc., que observam atos de injustiça ou ainda mais prejudiciais que geram a explosão de uma ação violenta. Os saques, quebra-quebra, depredação de prédios, etc., são expressões desse processo. A revolta remete ao problema dos revoltados. Estes são difusos, mas possuem em comum sentimentos que levam à revolta. É por isso que em certas ações coletivas é possível ver ações violentas sem maior motivo ou objetivo, pois indivíduos revoltados e dominados por emoções e sentimentos agem de forma dissonante da maioria[4], mas que, em certos contextos, podem contagiá-las e assim transformar uma manifestação pacífica em revolta social. Inclusive é possível que um ato de repressão via truculência possa gerar uma revolta social.

As rebeliões sociais não possuem como base indivíduos revoltados e sim rebeldes. Podemos distinguir entre os rebeldes egoístas e os rebeldes altruístas. Os rebeldes egoístas foram bem caracterizados por Erich Fromm em sua luta contra as autoridades para se tornarem autoridades:

Defino o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade. Por não ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao seu ressentimento e, em consequência, constituir-se na autoridade, em substituição à derrubada. Muito frequentemente, no momento mesmo em que atinge tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão acerbamente, antes. O tipo caracterológico do rebelde é bem conhecido na história política do século XX. Tome-se, por exemplo, uma figura como Ramsay MacDonald, que começou como pacifista e um homem que tinha objeções de consciência. Quando conquistou poder suficiente, deixou o Partido Trabalhista para unir-se às próprias autoridades que combatera durante tantos anos, dizendo a seu amigo e ex-camarada, Snowdon, no dia em que ingressou no Governo Nacional: “Hoje, toda duquesa em Londres desejará beijar-me nas duas faces.” Temos aqui o tipo clássico de rebelde que usa a rebelião para tornar-se autoridade. São necessários anos, por vezes, para atingir isso; outras vezes, as coisas correm mais rápidas. Se tomarmos, por exemplo, uma personalidade como o infeliz Laval, na França, que começou como rebelde, podemos lembrar que um curto espaço transcorreu até que ele adquirisse bastante capital político para poder vender-se. Há muitos outros a mencionar, mas o mecanismo psicológico é sempre o mesmo. Poderíamos dizer que a vida política do século XX é um cemitério encerrando os túmulos morais de pessoas que começaram como revolucionários e revelaram-se apenas rebeldes oportunistas (FROMM, 2014, p. 133-134)[5].

Os rebeldes egoístas, nesse caso, são oportunistas políticos. Sendo assim, em certos momentos e com certos objetivos, podem se tornar ativos em rebeliões sociais visando ganhar algo com isso, como, por exemplo, a conquista do poder, cargos ou fama suficiente para se tornar um político profissional ou alguém mais poderoso. Aliás, os ativistas irrefletidos e intelectuais populistas são bons exemplos de rebeldes egoístas. Porém, o ativismo e a busca de popularidade através das ideias acima do compromisso com a verdade (um revolucionário não adere a qualquer causa ou movimento, pois seu compromisso com a luta revolucionária e com a verdade o coloca numa situação de recusar o que é mais fácil e mais popular, já que o objetivo não é fama e sim transformação social) nem sempre significam rebeldia egoísta, mas é geralmente o que ocorre. O que Fromm descreve é perceptível em toda a história da humanidade e mesmo nas rebeliões sociais e revoluções. No Maio de 1968, a figura mais carismática, a de Daniel Cohn-Bendit, que foi o mais popular dos rebeldes dessa época, provou exatamente isso, pois passou de “incendiário” a “bombeiro” (SANCHÉZ, 2001), tornando-se um político profissional e que renegou o verdadeiro significado dessa rebelião estudantil e se adequou às ideias e instituições dominantes na sociedade capitalista.

A análise de Fromm é interessante e verdadeira, mas, por ser caracterológica, enfatiza excessivamente a questão da autoridade. Os rebeldes egoístas nem sempre pensam em substituir a autoridade, pois muitas vezes podem querer apenas o acesso aos bens de consumo, “vencer na vida”, ou seja, expressam a mentalidade burguesa e a inserção na política profissional (autoridade política) é um meio entre outros. Ou seja, o rebelde egoísta pode também ser alguém que almeja outros objetivos além de substituir as autoridades, embora predomine esse objetivo nos meios políticos.

Porém, também existem os rebeldes altruístas, que são excluídos da análise de Fromm, por causa de sua concepção caracterológica e, por conseguinte, mais restrita. Os rebeldes altruístas são aqueles que se rebelam por causa de coletividades (grupos, classes, setores, etc.)[6], ou seja, o seu objetivo não é individualista ou egoísta e sim coletivista e altruísta. Porém, falta-lhes a capacidade de efetivar a solução do problema, ou seja, a realização da revolução. Isso remete ao caso que os rebeldes altruístas são indivíduos pertencentes às classes superiores ou então a setores da sociedade não envolvidos no processo de produção, o que os impede de constituir novas relações de produção.

Porém, existe também uma proximidade de rebeldes altruístas com revolucionários. Os rebeldes altruístas possuem objetivos mais nobres e coletivos, mas não apresentam a ideia de uma revolução, ou seja, não apontam para uma nova sociedade e sim para reformas ou alterações dentro dos quadros da sociedade atual ou então apostam numa transformação social, mas sem apontar a forma pela qual isso ocorreria ou apostando em meios pacíficos e pouco realistas, derivados de seu humanismo generalista[7] ou, ainda, apostando em setores da sociedade incapazes de, por si só, efetivá-la. Portanto, entre os rebeldes altruístas temos os reformistas e os utopistas e ambos possuem elementos semelhantes aos revolucionários, que é justamente o altruísmo e o coletivismo. Assim, embora muitos revolucionários surjam da mesma base social que diversos rebeldes altruístas (e muitos passam da rebeldia para uma posição revolucionária), eles apontam para a revolução e o vínculo com a classe revolucionária de nossa época, o proletariado.

Os rebeldes, por poderem se vincular a grupos sociais, então podem ser participantes de movimentos sociais. Um dos componentes mais frequentes dos movimentos sociais são justamente indivíduos rebeldes, embora também tenha revoltados, revolucionários, oportunistas[8], entre outras possibilidades. Alguns movimentos sociais aglutinam uma quantidade maior de rebeldes, devido ao seu grupo social de base. A juventude e, mais especificamente, os estudantes, estão entre esses grupos sociais com maior potencial de rebeldia (VIANA, 2015; VIANA, 2014).

Diante desse contexto, já temos os conceitos básicos para analisar o significado político do Maio de 1968. Agora podemos retornar ao nosso problema inicial: o Maio de 1968 foi uma revolta, uma rebelião, uma revolução, uma situação revolucionária? Eis o que pretendemos responder a partir de agora.

O que foi o Maio de 1968?

As interpretações do maio de 1968 são, na maioria das vezes, imprecisas no que se refere ao processo de conceituação. Muitos usam expressões como “revolta”, “rebelião”, “revolução”, sem definir o que entende por tais termos, e, muitas vezes, como se fossem sinônimos. Assim, refutar algumas interpretações seria algo improfícuo, pois as palavras utilizadas não possuem nenhum significado mais profundo. Porém, além dos usos confusos ou pouco precisos de termos, há alguns que apontam para um determinado uso, que, mesmo sem ter maior definição, apontam para uma determinada concepção, mesmo que mais geral.

É nesse contexto que se pode questionar ser o Maio de 1968 uma revolta ou uma revolução (MATOS, 1981; CONCEIÇÃO, 2019). Não podemos, após a discussão anterior, trabalhar com as definições (ou não definição) usados por vários autores que partem dessa discussão ou de uma ou outra concepção. Trabalharemos, obviamente, com a conceituação anteriormente apresentada.

Desta forma, o Maio de 1968 não pode, em hipótese alguma, ser considerado uma revolta. E isso pelo motivo de que ele não foi produzido por uma multidão ou por turbas ou outras coletividades provisórias. Também não foi difusa ou concentradas, pois foi concentrada e possuiu uma difusão social em grande escala. Por um lado, a base social do Maio de 1968 foi, inicialmente, estudantes, e depois acabou atingindo os trabalhadores e vários outros setores da sociedade. Por outro lado, embora o movimento tenha um estopim, que foi a reforma da universidade através do Plano Fouchet, isso não gerou uma revolta e sim lutas e manifestações diversas. Os indivíduos que iniciaram ou desenvolveram as lutas estudantis e operárias não eram revoltados, embora, obviamente, no bojo das manifestações, ocupações e outras ações, certamente indivíduos revoltados estivessem presentes, mas não eram os seus agentes principais ou maioria.

Outro elemento é a questão de que o Maio de 1968 foi marcado por uma forte recusa. Houve desde a recusa mais moderada de alguns em relação à reforma da universidade até uma recusa mais generalizada do consumismo, do aparato policial, etc., até chegar à recusa da sociedade capitalista como um todo. Porém, ao contrário das revoltas, que mostram recusas sem projetos alternativos, havia, em grande dessas recusas, tais projetos, com destaque ao projeto de autogestão, ou seja, transformação social radical e total.

Desta forma, caracterizar o Maio de 1968 como uma revolta é um equívoco. Sem dúvida, alguns apontam para o termo revolta, mas pensam mais em rebelião, embora esse termo também seja confundido com outros termos (como insurreição, sublevação, etc.). Porém, vamos discutir a questão da rebelião mais adiante.

Teria sido o Maio de 1968 uma revolução? Essa é a concepção defendida por alguns, como o leninista-trotskista Alan Woods (2016, p. 118-119):

O que é uma revolução? Trotsky explica que uma revolução é uma situação tal onde a massa de homens e mulheres normalmente apática começa a participar de maneira ativa na vida da sociedade, quando adquire consciência de sua força e se move para tomar seu destino em suas mãos. Isso é uma revolução. E foi o que aconteceu em uma escala colossal na França em maio de 1968. Os trabalhadores franceses estenderam os músculos, tiveram consciência do enorme poder que tinham em suas mãos. Vimos aqui o imenso poder da classe trabalhadora na sociedade moderna: não se acende nem uma lâmpada, nenhuma roda se move e nenhum telefone toca sem a permissão dos trabalhadores. O maio de 1968 foi a resposta final a todos os covardes e céticos que duvidam da capacidade do proletariado para mudar a sociedade. A correlação de forças da classe se expressou, não como um mero potencial ou uma estatística abstrata, e sim como um poder real nas ruas e nas fábricas. Na realidade, o poder estava nas mãos dos trabalhadores, mas eles não sabiam. Como qualquer outro exército, a classe trabalhadora necessita de uma direção. E isso era o que estava ausente em maio de 1968. Aqueles que deveriam ter proporcionado a direção, os dirigentes das organizações de massas da classe, os sindicatos e o Partido Comunista, não tinham a perspectiva da tomada do poder. Sua única preocupação era terminar a greve o mais rápido possível, devolver o poder à burguesia e retornar à “normalidade”.

Sem dúvida, tal concepção nada tem a ver com a teoria da revolução desenvolvida pelo marxismo. No entanto, para o dogmatismo trotskista, se Trotsky disse, está dito e isso é suficiente. Se uma revolução significasse apenas a saída da apatia para a mobilização, então o final dos anos 1960, para citar apenas um momento histórico, foi marcado por diversas revoluções em diversos países. É uma definição tão imprecisa quanto arbitrária. Essa apresentação entusiástica do Maio de 1968, que foi realmente radical e, ao mesmo tempo, anti-leninista é apenas conveniente para defender uma posição política. Inclusive, ao mesmo tempo que se entusiasma com a “revolução” de Maio de 1968, coloca o seu defeito (o que é comum aos trotskistas e que se repete diante de inúmeras experiências históricas: Comuna de Paris, Maio de 1968, Oaxaca, etc.): a falta de direção revolucionária[9]. Além disso, há a curiosa afirmação de que o poder estava nas mãos dos trabalhadores, mas “eles não sabiam”. A possibilidade de alguém deter o poder e não saber disso é algo que só o imaginário trotskista pode imaginar.

Mas, deixando de lado a versão trotskista, ainda é possível perguntar se o Maio de 1968 foi uma revolução ou não. Obviamente que esse acontecimento histórico não poderia ser uma revolução vitoriosa ou concluída, pois não houve a abolição do capitalismo. Porém, é possível questionar se não foi uma revolução proletária inacabada. A luta estudantil durante o Maio de 1968, por mais radical que tenha sido, não constituiu uma revolução, pois os estudantes são incapazes de constituir uma nova sociedade. Então, a hipótese de uma revolução remeteria ao momento em que o proletariado se torna classe autodeterminada. A favor dessa hipótese teríamos as greves, ocupações de fábricas, comitês de greve, conselhos de fábrica, manifestações de rua. Porém, não basta a auto-organização dos trabalhadores para se mostrar essa passagem. É preciso, além da formação de organizações autárquicas, que elas sejam autônomas, ou seja, que elas definam seus próprios objetivos e, além disso, que se proponha a uma revolução social, constituição de uma nova sociedade.

A grande questão é se ocorreu algo parecido com isso no Maio de 1968. Isso remete para a discussão se houve autogestão nas fábricas, qual foi a posição do movimento operário diante da realidade francesa e quais os objetivos do movimento grevista e das organizações autárquicas. Para alguns, a luta operária foi uma verdadeira revolução, para outros, houve autogestão nas fábricas. No entanto, existem aqueles que negam que o movimento operário tenha se colocado um objetivo revolucionário e outros questionam se realmente houve autogestão nas fábricas (PORHEL, 2000). Vamos colocar a posição de alguns autores sobre isso para concluir até onde foram as organizações autárquicas do movimento operário.

André Gorz afirma que os objetivos da greve ficaram indeterminados. Ela se apresentaria como uma “recusa total e indiferenciada do regime e da sociedade capitalista” e por isso se “revestia objetivamente de um caráter maximalista” (GORZ, 1968, p. 21).

O maximalismo objetivo do movimento dava à greve um significado objetivo imediatamente insurrecional, porém conduzia consigo o germe do seu fracasso. A greve geral insurrecional, quando não é substituída por uma ofensiva política tendente a dar o gole de graça a um adversário debilitado e a produzir organismos de coordenação e de poder operário, com um programa e com soluções políticas preparadas a priori, é mais rebelião primitiva que ação revolucionária. Quando falta uma preparação desse tipo, o radicalismo da recusa global imediata é o reverso da indeterminação dos objetivos, da ausência de estratégia. Na medida em que permanece como “instintivo”, ou seja, espontâneo e não reflexivo, o movimento passa facilmente da reivindicação revolucionária maximalista à reivindicação salarial de tipo puramente sindicalista; confia a objetivos exclusivamente salariais a tarefa de expressar uma aspiração revolucionária, e inversamente. Tal confusão não deve surpreendermos: seja maximalista ou puramente sindicalista, ou, ainda, as duas coisas simultaneamente, o movimento permanece no plano das reivindicações imediatas por falta de mediações que lhes permitam organizar a ação no tempo e no espaço através de um objetivo consciente, em suma, dar-se uma estratégia.

A análise de Gorz parte da ideia de que o movimento operário não ultrapassou o nível de um maximalismo indiferenciado e impreciso e acabou ficando no nível sindicalista, realizando reivindicações salariais. Woods, por sua vez, já coloca que a “classe trabalhadora não pode permanecer em uma situação de agitação constante. Não pode ser ligada ou desligada como uma lâmpada. Quando a classe se mobiliza para mudar a sociedade deve ir até o final ou fracassa. Ocorre o mesmo em uma greve. No início os trabalhadores estão entusiasmados e dispostos a participar nas assembleias de massas. Estão dispostos a lutar e fazer sacrifícios. Mas se a greve não tem um final à revista, o ambiente muda. Começando pelos elementos mais débeis, o cansaço finalmente chega. O comparecimento às assembleias de massas cai e os trabalhadores voltam ao trabalho. Os dirigentes sindicais fizeram bom uso das concessões cedidas apressadamente pelos capitalistas, como um homem desesperado que lança um salva-vidas de um barco que afunda. O salário mínimo subiu para três francos à hora, os salários aumentaram e foram concedidas outras melhorias. Na ausência de outra perspectiva, muitos trabalhadores aceitaram o acordo que os dirigentes sindicais apresentaram como uma vitória. Na terça-feira, depois de um fim de semana com feriado no início de junho, a maioria dos grevistas pouco a pouco abandonou a luta, e os trabalhadores regressaram a seus trabalhos.

Essa posição de Woods é semelhante à de Gorz. Ambos partem de uma perspectiva leninista, apesar de Gorz ser mais sofisticado. Ambos trazem a necessidade de um “partido de vanguarda”. A diferença é que para Gorz não houve revolução e sim “rebelião primitiva” e para Woods houve revolução. Mas se lermos Cohn-Bendit[10], antes de se tornar bombeiro e quando era considerado anarquista, há também o reconhecimento do limite da luta operária: “não chegaram a dar o passo definitivo para sair-se da legalidade burguesa: por em marcha a maioria das unidades de produção (cujo grau de ocupação foi variável)” (COHN-BENDIT, 1969, p. 119). Outros autores apontaram para a mesma interpretação.

O que efetivamente ocorreu no movimento operário francês durante o Maio de 1968? A formação de várias organizações autárquicas, o avanço organizativo e reivindicativo, um amplo movimento grevista (cerca de 10 milhões de trabalhadores em greve). Porém, o que aconteceu foi uma luta radicalizada do movimento operário, no qual se viu lutas espontâneas mescladas com lutas autônomas e, em casos muito restritos, lutas autogestionárias. Uma revolução, no entanto, só se inicia quando o proletariado, pelo menos um setor considerável do mesmo, passa de classe determinada pelo capital para classe autodeterminada. Isso ocorreu em escala muito ínfima e atingindo poucos casos concretos. A maioria do movimento operário ficou ao nível das lutas autônomas no momento de maior radicalidade de sua luta. Assim, enquanto alguns setores desenvolviam lutas espontâneas, outros partiam para lutas autônomas (e em confronto com partidos e sindicatos), sendo que pouquíssimos apontaram para lutas autogestionárias, ou seja, que colocava a necessidade de superação do capitalismo e instauração da autogestão.

Então teria sido uma “situação revolucionária”? Essa explicação remete ao leninismo e combina bem com o discurso de Gorz e Woods, e a diferença seria apenas formal. O que ambos dizem é que existiam as “condições objetivas” para uma revolução, mas não existia as “condições subjetivas” e estas últimas seriam a existência de um partido ou direção burocrática para dirigir o movimento operário visando a conquista do poder estatal. Porém, a linguagem e concepção leninista é problemática. A ideia de uma “situação revolucionária” e seu pressuposto de divisão entre “condições objetivas” e “condições subjetivas” é ideológica. A categoria da totalidade é abandonada e em seu lugar emerge um antinomismo, típico da episteme burguesa (VIANA, 2018), que opõe condições objetivas e condições subjetivas. As condições objetivas seriam a pobreza, as dificuldades da burocracia estatal em governar e a crise econômica e as condições subjetivas seriam o partido e sua ideologia comandando um proletariado descontente e atuante. Para haver revolução é preciso de seres humanos concretos e reais que a queiram. Isso significa que a situação não pode ser revolucionária sem haver ações e ideias revolucionárias. Se tais ações e ideias não são revolucionárias, então não existe situação revolucionária, o que pode existir é crise, o que é outra coisa.

Porém, quando emerge uma crise “meramente” econômica, emerge também uma ampliação da insatisfação dos trabalhadores e dos outros setores da sociedade. Em poucas situações históricas a crise econômica é meramente econômica, pois ela gera aumento da insatisfação, ampliação da consciência, etc. A burocracia estatal só tem dificuldade em governar se houver insatisfação e ação dos governados[11]. Logo, as supostas “condições objetivas” não estão separadas das supostas “condições subjetivas”. O que ocorre é a tendência de que problemas no âmbito econômico e político institucional provoquem a ampliação das lutas de classes. A concepção leninista, no entanto, concebe as “condições subjetivas” como a existência de um partido de vanguarda que seja a direção revolucionária apta para usar a insatisfação e ação dos trabalhadores para realizar a tomada do poder estatal, a insurreição (que é sua concepção de revolução). A inexistência de tal partido (o Partido Comunista Francês foi contra o movimento estudantil e o Partido Socialista Francês titubeou e não assumiu a proposta de tomada do poder estatal) seria a ausência das “condições subjetivas”. A situação revolucionária significa exatamente isso: condições objetivas para a revolução sem condições subjetivas.

Essa concepção é abstratificante e antinomista, bem como reducionista. A questão é que em todos os casos em que não houve tomada do poder estatal dirigida por um partido de vanguarda, os leninistas afirmarão que foram situações revolucionárias sem haver revolução. É um esquema analítico pobre e ideológico, visando colocar que as revoluções só podem ocorrer a partir do partido de vanguarda. Independente desse pressuposto, a ideia de uma “situação revolucionária” é em si ilusória. O que significa dizer que existe uma “situação” (algo independente dos seres humanos) revolucionária sem haver uma luta revolucionária? É algo sem sentido, pois a situação seria uma abstratificação, um aspecto da realidade sem seres humanos e não se sabe como se poderia afirmar que é “revolucionária”. Uma “situação revolucionária” só poderia existir havendo os indivíduos que a tornam assim. Em uma cidade com um milhão de habitantes e 500 mil passando fome, mas que ninguém luta, não constitui uma “situação revolucionária”, pois sem luta, sem indivíduos de carne e osso que apontem para a transformação radical e total das relações sociais, não há nem revolução, nem uma suposta “situação” em que ela poderia existir. A crise de 1929 nos Estados Unidos não gerou uma revolução, pois, simplesmente, não existiam seres humanos reais, especialmente o movimento operário, agindo e lutando. E, mais ainda (se se quer uma revolução), não existiu um movimento operário com consciência revolucionária (projeto autogestionário), o que significa que não houve nenhuma situação revolucionária, por pior que seja a situação da economia, do governo e a insatisfação seja generalizada. Por conseguinte, o Maio de 1968 não pode ser caracterizado como “situação revolucionária”, pois isso não explica nada e não tem sentido, sendo um contrassenso.

Nos encontramos, portanto, diante de um dilema: o movimento operário no Maio de 1968 efetivou lutas radicalizadas autônomas, em grande escala, mas não iniciou uma revolução. Assim, a questão é o que foi a luta operária no maio e junho de 1968? Diríamos que foi uma “quase revolução”, pois esboçou a passagem do proletariado para classe autodeterminada, mas ela não se concretizou[12]. Esse limite não se deveu, como querem os leninistas (GORZ, 1968; WOODS, 2016) à falta de um “partido de vanguarda” ou “direção revolucionária” e sim graças a debilidade do bloco revolucionário existente na França, bem como do movimento estudantil e a insuficiência da cultura contestadora da época, que foi amplamente utilizada pelos estudantes e em menor escala pelos trabalhadores. Esses três elementos (debilidade do bloco revolucionário, insuficiência da cultura contestadora, limites do movimento estudantil) ajudam a entender a falta de um projeto autogestionário e a passagem para classe autodeterminada. Cohn-Bendit aqui é exemplar: “a força do nosso movimento está, justamente, no fato de que ele provoca o ardor, sem procurar canalizar, sem utilizar em seu proveito a ação que ele desencadeou” (COHN-BENDIT, 1968, p. 36). Cohn-Bendit, um integrante ambíguo do bloco revolucionário e do movimento estudantil, aponta para uma concepção meramente espontaneísta. Aqui se observa um dos limites que dificultou a transformação da rebelião estudantil em revolução proletária.

Podemos caracterizar tal luta como uma pré-revolução, na qual a sua possibilidade real esteve presente e se esboçou, mas não se concretizou. Assim, o que ocorreu no Maio de 1968 foi uma rebelião estudantil que, com seu desenvolvimento, gerou uma pré-revolução. Desta forma, podemos caracterizar o Maio de 1968 como uma rebelião estudantil que gerou uma pré-revolução proletária. Assim, podemos entender dois movimentos dentro de uma luta de classes radicalizada e fugir do equívoco analítico de pensar em revolta, revolução, situação revolucionária, insurreição, etc.

Por qual motivo foi uma rebelião estudantil? Pelo motivo de que os agentes do processo foram, inicialmente, os estudantes. Tudo começou com as lutas estudantis. Os estudantes agiram a partir de seus interesses e reivindicações, contra o Plano Fouchet, sendo que a tendência revolucionária, minoritária, se transformou em majoritária (BRINTON, 2018). Assim, num determinado momento, rebeldes (egoístas e altruístas), revolucionários e outros desenvolveram um processo de radicalização que forjou uma verdadeira rebelião social. As tendências mais moderadas perderam espaço e muitos estudantes passaram para a posição revolucionária ou rebelde e nesse contexto, emergiu uma rebelião. O discurso revolucionário se tornou hegemônico, mas os estudantes não podem efetivar uma revolução social. E por saber disso a tendência revolucionária buscou, justamente, o apoio dos trabalhadores.

Quando estes entram em cena, ao lado da rebelião estudantil, temos um amplo movimento grevista e desenvolvimento de organizações autárquicas, o desdobramento de lutas espontâneas e lutas autônomas, com alguns casos de lutas autogestionárias. Nesse contexto, temos uma pré-revolução proletária. Assim, podemos concluir que no Maio de 1968 (o que inclui junho também) há uma rebelião estudantil acompanhada por fortes lutas operárias que, em certo momento, constituiu uma pré-revolução. E foi justamente essa pré-revolução que assustou o aparato estatal e a burguesia, gerando, posteriormente, a contrarrevolução cultural preventiva (VIANA, 2009) e a busca de separar os movimentos sociais do movimento operário através do subjetivismo e especificismo (TARDIEU, 2014).

Considerações Finais

Iniciamos nosso percurso problematizando o significado político do Maio de 1968 e colocamos a questão sobre se o que ocorreu nesse evento histórico foi uma revolução, revolta, rebelião ou outro fenômeno político. O trajeto para responder tal questionamento foi através da apresentação dos conceitos básicos e, após isso, verificar como o Maio de 1968 poderia ser caracterizado. A partir da conceituação apresentada, ficou evidente que não se tratou de revolta ou situação revolucionária, bem como não foi uma revolução proletária inacabada.

No fundo, o que ocorreu foi uma rebelião estudantil acompanhada por uma radicalização do movimento operário. Logo, o Maio de 1968 foi uma rebelião social cujo principal agente foi o movimento estudantil. Porém, o que complexifica a situação é a luta operária que emerge simultaneamente – e muitas vezes articulada – com as lutas estudantis. A radicalização das lutas autônomas do proletariado, convivendo com lutas espontâneas e, em menor grau, autogestionárias, possibilitou um processo de quase revolução, ou seja, uma pré-revolução. Assim, Maio de 1968 foi uma rebelião estudantil acompanhada por uma pré-revolução proletária. Esse segundo momento dificulta a compreensão desse fenômeno histórico, mas a análise mais profunda mostra que não chegou a ser uma revolução, bem como foi algo distinto das lutas estudantis, apesar de sua simultaneidade a partir de certo momento e sua articulação com elas.

Essa análise ajuda a encaminhar outras discussões sobre a rebelião estudantil de Maio de 1968, bem como a pré-revolução proletária. No entanto, essa é apenas uma questão relativa a esse fenômeno histórico, que precisa ser complementada com diversos outros esclarecimentos. Um desses elementos é a análise da pré-revolução proletária, que precisa de aprofundamento. Da mesma forma, analisar a derrota do Maio de 1968 é outra questão fundamental. Porém, a caracterização do Maio de 1968 como uma rebelião estudantil acompanhada de uma pré-revolução proletária já contribui para novas reflexões sobre esse fenômeno histórico, que estaremos analisando posteriormente.

Referências

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[1] Conceição (2019) aponta as concepções de Pasquino e Camus sobre revolta. Os demais autores geralmente não apresentam definição e muitos confundem revolta como rebelião ou mesmo com revolução.

[2] A razão disso é por ser o caso mais comum, mas ocorre com diversos outros setores da sociedade e indivíduos dos mais variados grupos e classes. Esse é o caso, por exemplo, do uso do termo “rebelião feminina” para se caracterizar o período de prenunciação do movimento feminino (VIANA, 2019).

[3] Abstratificação significa retirar um fenômeno da história e da totalidade na qual ele está inserido. Assim, é uma “abstração metafísica”, diferente da abstração dialética, que pode focalizar um fenômeno, mas nunca lhe retira a historicidade e inserção numa totalidade mais ampla (VIANA, 2007).

[4] Aqui seria necessária uma análise psicanalítica. Nem todos os casos significam indivíduos revoltados, mas em grande parte, provavelmente no caso da maioria, é isso que ocorre. Por outro lado, nem todo revoltado efetiva atos violentos, pois alguns se controlam (seja por reflexão, seja por medo da repressão, ou qualquer outro motivo). Alguns indivíduos exercem atos violentos por envolvimento com os demais que iniciam tais práticas, por concepções políticas ou para extravasar sua insatisfação (ou seja, não é algo típico do indivíduo, mas apenas o descontentamento que é comum a pessoas que vivem na sociedade capitalista, especialmente de alguns setores, submetidos a certas condições de vida). Sem dúvida, é difícil distinguir aqueles que fazem por concepção política daqueles que são indivíduos revoltados, pois estes últimos podem utilizar ideias políticas (certo anarquismo, por exemplo) como justificativa para seus atos, ou seja, realizando o processo de razoabilização (RUCK, 2016). E para isso é possível encontrar elementos no anarquismo, como, por exemplo, Bakunin, para quem a natureza humana é constituída pela animalidade humana, pensamento e revolta. Segundo Bakunin (1988, p. 7), “à primeira corresponde propriamente a economia social e privada; à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade”. O vínculo de anarquismo e revolta merece, inclusive, estudos mais profundos e poderia até explicar sua persistência e sua ênfase voluntarista e ativista. De qualquer forma, é possível se pensar, também, que o indivíduo revoltado lance mão de ideias que sejam mais adequadas ao seu estado sentimental e, por conseguinte, as concepções voluntaristas são as preferidas, indo desde o anarquismo, sindicalismo revolucionário, maoísmo, etc., até o nazifascismo, noutro extremo e com outra base social e objetivos.

[5] O texto original de Fromm pode ser encontrado em seu livro O Dogma de Cristo (1986).

[6] Embora aqui se possa distinguir entre pessoas que se vinculam a grupos e podem ser revoltados, rebeldes egoístas (o grupo serve apenas para conseguir atingir interesses pessoais), ou rebeldes altruístas, sendo que tal vínculo pode ser marcado por doutrinas, ideologias, etc., que reforçam aspectos negativos e que separam os que são altruístas de uma real luta pela transformação social.

[7] O humanismo generalista é aquele como o de Erich Fromm ou de Rousseau, que concebe uma natureza humana como boa por essência, de forma indistinta. Ou seja, as classes sociais podem até ter sua existência reconhecida, mas a transformação deixa de ser produto da luta de classes para ser produto da razão, da educação, da humanização, etc., tal como foi expresso pelo socialismo utópico. Esse humanismo diferente essencialmente do humanismo radical de Marx, que concebe uma essência humana, marcada pela práxis e socialidade, e que é negada nas sociedades de classes e por isso a luta é voltada para a autorrealização e a efetivação de uma real solidariedade generalizada em toda a sociedade, o que pressupõe sua abolição via luta de classes, do capitalismo e instauração do comunismo. A natureza humana, para Marx, é negada, recusada, na sociedade de classes, e se manifesta marginalmente, e isso gera efeitos colaterais, geradores de revolta, ódio, destruição dos seres humanos, mortificação, tal como ele demonstra no caso do trabalho alienado.

[8] A diferença entre um rebelde egoísta e um oportunista é derivada do fato de que esse último não demonstra nenhuma rebeldia ou recusa, apenas usa a política, as organizações, etc., para atingir seus objetivos e interesses pessoais. O rebelde egoísta tem um elemento de recusa e sentimentos determinados, que são inexistentes no mero oportunista.

[9] Não deixa de ser curioso que por décadas os trotskistas repetem essa ladainha e nunca explicam o motivo da inexistência de tal “direção revolucionária”, bem como não explicam por qual motivo eles mesmos não a constituem.

[10] Obra escrita pelos irmãos Cohn-Bendit, Gabriel e Daniel, sendo que a referência é ao último, que ficou mais conhecido durante e depois o Maio de 1968.

[11] As cisões internas são disputas pelo poder que expressam interesses das classes superiores e suas frações de classes, que, no entanto, não são elementos fundamentais para o desencadeamento de uma revolução. Na maioria das vezes, ocorre o processo contrário, ou seja, é o descontentamento e lutas de classes que geram cisões no bloco dominante. Mas os conflitos internos do bloco dominante, embora o enfraqueçam e tenham efeito na ação dos demais blocos e na insatisfação social, não é suficiente para gerar uma revolução. Se os conflitos internos do bloco dominante ocorrem por causa ou simultaneamente com uma crise econômica (ou financeira, que é mais restrita), obviamente que tende a gerar uma insatisfação maior, apesar de que esta seja determinante do que a cisão entre os representantes das classes superiores.

[12] Não cabe aqui explicar as razões da derrota do Maio de 1968, o que faremos em outra obra e momento.

O presente ensaio foi originalmente publicado em: Movimento Estudantil: Conflitos, Organizações e Mobilização. Rio de Janeiro: Rizoma, 2019.

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