O Conflito em torno dos sovietes entre o Partido Bolchevique e os trabalhadores da Revolta de Kronstadt (1921) – Aline Ferreira

Este trabalho foi apresentado no evento “IV Conferência Internacional Greves e Conflitos Sociais”, na Universidade de São Paulo, em julho de 2018. Trata-se de um texto sucinto e introdutório. Em breve, publicaremos uma versão estendida, em formato de artigo, com o desenvolvimento dos tópicos aqui apresentados.

O presente texto tem como objetivo analisar como o Partido Bolchevique e os trabalhadores da Revolta de Kronstadt (1921) concebiam o funcionamento dos sovietes e a divergência de perspectiva de ambos em relação a isso. Nosso itinerário será o seguinte: primeiramente explicaremos o que é um soviete (conselho operário) e como ele se constituiu originalmente na Rússia; após isso, explicaremos como os bolcheviques lidaram com esse fenômeno após a Revolução Russa de 1917 (que em outubro se torna uma contrarrevolução burocrática) e as relações disso com a eclosão da Revolta de Kronstadt; e, por fim, apresentaremos as divergências em torno do significado dos sovietes.

O que foram os conselhos operários (sovietes)?

A classe operária se expressou de diferentes maneiras a fim de melhorar suas condições de trabalho e constituir uma nova sociedade. Desta forma, o desenvolvimento do movimento operário está relacionado não apenas às necessidades concretas imediatas dos trabalhadores, mas também às necessidades históricas, no sentido da busca pela emancipação. De acordo com Marx, a possibilidade da emancipação humana só se dá com a formação de uma classe que carregue os interesses humanos universais, “[…] de uma esfera, enfim, que não pode emancipar-se sem emancipar-se de todas as outras esferas da sociedade e, ao mesmo tempo, emancipar todas elas” (MARX, 1977, p. 13). Esta classe é o proletariado, inserido em uma relação de exploração com a classe burguesa a partir da extração do mais-valor. Assim, a classe operária, para a teoria marxista, é a classe revolucionária e, portanto, capaz de desencadear uma revolução social com o objetivo de destruição da sociedade capitalista e construção de uma sociedade verdadeiramente emancipada, livre do Estado, das classes sociais e da propriedade privada.

Os sovietes (conselhos operários) são um exemplo de expressão do movimento operário do início do século XX. Eles surgiram, pela primeira vez, na Revolução Russa de 1905 e reapareceram em 1917, bem como em outras revoluções europeias (como a alemã, húngara, italiana etc.) (TRAGTENBERG, 2007). A partir dessas experiências, uma teoria dos conselhos operários começou a ser desenvolvida, principalmente pelos comunistas alemães que posteriormente ficaram conhecidos como comunistas de conselho. Nesse sentido, utilizaremos o comunista de conselho Anton Pannekoek como base para explicar o que foram os sovietes, que os descreve da seguinte maneira, a partir da experiências das revoluções russas de 1905 e 1917:

[…] em cada fábrica, os operários escolheram seus delegados, cuja assembleia geral constituiu o “soviete” central, o conselho onde era discutida a situação e as  medidas a tomar. Lá, as diversas fábricas emitiam suas opiniões e aplainavam as divergências e se formulavam decisões. Porém, os conselhos, ainda tendo uma influência diretiva sobre a educação revolucionária pela ação, não constituíam órgãos de comando. Às vezes, todos os membros de um conselho eram afastados e novos delegados os substituíam; às vezes, também, quando a greve geral paralisava as autoridades, os conselhos exerciam todos os poderes em escala local e os delegados de profissões liberais se uniam a eles com o fim de representar seus respectivos setores  de atividade (PANNEKOEK, 2011, p. 75).

Dessa maneira, a partir desta descrição, vemos que há, primeiramente, a constituição de comissões de fábricas. Se houver uma generalização das greves e um avanço do movimento operário, essas comissões aumentam de número e constituem um conselho operário. Este, por sua vez, não deve existir isoladamente. A ideia é a de que os conselhos se generalizem para a totalidade da produção e da sociedade. Assim, essa maneira de auto-organização, caso se generalize, não deve se limitar apenas ao âmbito da produção (locais de trabalho), mas também aos outros âmbitos sociais – o que começou a ocorrer com as revoluções europeias que tiveram como base os conselhos operários. Outra característica importante, explícita na citação anterior, é a existência da elegibilidade e revogabilidade dos cargos de delegados. Estes cargos eram eleitos dentro das comissões de fábrica e conselhos operários, ou seja, a partir das decisões dos próprios trabalhadores. Por isso, nesta passagem, Pannekoek menciona que os conselhos não constituíam órgãos de comando.

Essas características apontadas se assemelham bastante às características presentes no episódio da Comuna de Paris, tal como analisado e descrito por Marx (2011) em A guerra civil na França. Nesse texto Marx explica que a Comuna elegia conselheiros municipais, a partir do sufrágio universal, com a possibilidade de revogação a qualquer momento. Estes conselheiros eram formados por membros da classe operária ou defensores dela. A divisão entre poder executivo e legislativo fora suprimida e o poder estatal passou para as mãos da Comuna, isto é, para as mãos dos operários. Por isso Marx (2011) caracteriza esse acontecimento histórico como o autogoverno dos produtores. É o momento da ditadura do proletariado[1]. Dessa maneira, os sovietes não constituíram uma novidade, mas desenvolveram elementos já presentes na Comuna de Paris, demonstrando mais uma vez a capacidade de auto-organização da classe trabalhadora.

Enfim, de maneira resumida, “Os sovietes surgem como órgãos revolucionários que representam as classes proletárias urbanas ou rurais e sua estrutura organizatória toma a direção de uma democracia direta, tendo em vista atingir seu objetivo: uma transformação estrutural da sociedade” (TRAGTENBERG, 2007, p. 109). Tal concepção de soviete, originada das experiências revolucionárias russa de 1905 e 1917, foi defendida pelos trabalhadores de Kronstadt em oposição às ações dos bolcheviques. Isso porque estes incorporaram os conselhos operários ao aparelho estatal, retirando seu significado original. Assim, antes de nos adentrarmos ao fato histórico específico de Kronstadt é necessário descrever a transformação dos conselhos operários após a tomada de poder pelo Partido Bolchevique.

Os conselhos operários após a Revolução Russa de 1917

Com a tomada do poder estatal pelo Partido Bolchevique em outubro, os conselhos operários ganham um novo lugar na sociedade russa. No início da Revolução, os bolcheviques eram minoria dentro dos sovietes. Esse cenário começa a se transformar a partir do mês de agosto de 1917, dando início ao processo de “bolchevização” dos sovietes (ARVON, 1984). Nesse contexto, Trotsky torna-se presidente do Soviete de Petrogrado e, logo depois, “[…] os bolcheviques tomam a direção do soviete de Moscou, de Kiev e de outras cidades” (ARVON, 1984, p. 9). Assim, com a volta de Lênin do exílio, o Partido Bolchevique começa a organizar sua insurreição, culminando na chamada Revolução de Outubro, mas que denominamos como contrarrevolução burocrática.

Inicia-se um processo de tomada do poder estatal e centralização nas mãos do Partido. A partir de então, os princípios originais dos conselhos operários começam a se modificar e eles passam a existir somente enquanto simples órgãos de execução do Partido. Maurice Brinton (1975) detalha esse processo de integração dos sovietes ao estado a partir da integração paulatina dos comitês de fábrica aos sindicatos (liderados pelo poder estatal). Em 1918, por exemplo, houve o Primeiro Congresso Pan-russo dos Sindicatos, onde foi votada a transformação dos comitês de fábrica em órgãos sindicais. Dessa maneira, no ano seguinte, os comitês de fábrica se tornaram quase inexistentes.

Como pontuamos no primeiro tópico, um dos elementos que constituíam os conselhos operários eram as comissões de fábrica eleitas pelos próprios trabalhadores. Se estas comissões são destruídas e substituídas por sindicatos controlados pelo Partido, consequentemente os conselhos operários são destruídos. A justificativa do Estado para transformar as comissões de fábrica em sindicatos era a de que estes trariam “maior estabilidade” ao país, o que significa dizer “mais controle” (BRINTON, 1975). Isso porque os sindicatos atrelados ao Partido eram um dos principais “instrumentos” utilizados para aumentar a produtividade dentro dos postos de trabalho, a partir da disciplinarização dos operários.

Os sindicatos deviam “enviar todos os esforços para aumentar a produtividade do trabalho e criar de  fato, nas fábricas e oficinas, as raízes indispensáveis à disciplina no trabalho”. Cada sindicato devia estabelecer uma comissão para “fixar as normas de produtividade para cada ofício e categoria de operários”. Estabeleceu-se o trabalho à peça “para aumentar a produtividade do trabalho”. Dizia-se que “os prêmios para aumentar a produtividade acima das normas estabelecidas podiam, dentro de certos limites, ser uma medida útil para o conseguir sem fatigar o operário”. Finalmente se “grupos independentes de operários” recusassem submeter-se à disciplina sindical, podiam, em último caso, ser expulsos dos sindicatos “com todas as consequências que isso acarreta” (BRINTON, 1975, p. 109).

É nesse contexto, também, que Trotsky passou a defender a militarização do trabalho e dos sindicatos, colocando isso em prática no setor ferroviário.

[Em agosto de 1920] Concederam-se a Trotsky, Comissário dos Transportes, vastos poderes de emergência para experimentar as suas teorias sobre “militarização do trabalho”. Começou por colocar os maquinistas e pessoal das reparações sob a lei marcial. Quando o sindicato dos ferroviários protestou, ele demitiu pura e simplesmente os seus dirigentes e, com o apoio completo e total e a aprovação da chefia do Partido, “nomeou outros, dispostos a sujeitarem-se. Repetiu o processo noutros sindicatos e trabalhadores dos transportes” (BRINTON, 1975, p. 162, grifos do autor).

Havia a esperança de que essas atitudes controladoras deixariam de existir com o fim da guerra civil – o que não ocorreu. Diante disso, começaram a surgir dissidências dentro do Partido Bolchevique, com a criação de grupos como a Verdade Operária, liderado por Bogdanov; a Oposição Operária, cuja maior expoente era Alexandra Kollontai; dentre outros. Estes apontavam como as práticas bolcheviques estavam transformando a Rússia em um capitalismo de estado. No entanto, essas divergências expressas pelos dissidentes não se manifestaram apenas no plano teórico, como também nas reivindicações dos trabalhadores. É nesse contexto que surgem greves em alguns pontos do território russo, principalmente devido à escassez de alimentos e à disciplinarização do trabalho (resultados da guerra civil).

Por uma torrente de decretos, o governo soviético tentou tornar plausível aos operários que era necessário, no interesse da nação, introduzir nas fábricas a mesma disciplina absoluta aplicada no exército, mas os trabalhadores não puderam aceitar tal visão das coisas. Foi assim que começou em 1920 um enorme movimento de greves que se apoderou de quase todos os centros industriais do país, dirigido em primeiro lugar e, por assim dizer, quase exclusivamente, contra essa militarização do trabalho (ROCKER, 2007, p. 108).

Influenciados principalmente pelas greves ocorridas em Petrogrado no ano de 1921, os trabalhadores de Kronstadt começam a entrar em ação, organizando uma insurreição que reivindicava o poder aos sovietes e rejeitava a centralização do poder empreendida pelo Partido Bolchevique.

A Revolta de Kronstadt (1921)

Kronstadt era, ao mesmo tempo, um porto militar, uma cidade e uma fortaleza, com uma localização bastante estratégica e muito próxima de Petrogrado. Os marinheiros desta cidade eram bastante prestigiados não apenas pela população como também, até então, pelos próprios bolcheviques, já que tiveram um papel extremamente relevante em 1917. Inclusive eles foram caracterizados como a “espinha dorsal” da revolução. Mas outra característica importante dos kronstandtinos era que, desde 1917, eles defendiam veementemente o princípio de autonomia dos sovietes, ainda que não rejeitassem a existência de um governo central, devido à sua importância militar e de transporte de alimentos para cidades importantes, como Petrogrado. Por esse motivo os marinheiros de Kronstadt se tornaram tão conscientes da modificação dos sovietes após a tomada do poder dos bolcheviques, desencadeando uma revolta em 1921.

Mantendo contato permanente com Petrogrado ao longo de todo o ano crucial de 1917, os marinheiros de Kronstadt participam ativamente dos motins que se desenrolam em 3, 4 e 5 de julho. Assim, em 4 de julho, cerca de 12 mil operários, operárias, marinheiros e soldados deixam Kronstadt de madrugada, desembarcam nas margens do Neva e colocam-se em marcha em direção ao Palácio Táurida, onde está a sede do governo provisório, ostentando as bandeiras pretas e vermelhas, brandindo os slogans “Todo o poder aos sovietes locais dos delegados dos operários, camponeses e soldados” e “A fábrica para os operários – a terra para os camponeses” (ARVON, 1984, p. 21).

Outro precedente importante que possibilitou a culminação da revolta de Kronstadt foi a escassez de alimentos pós guerra civil, constituindo uma das determinações para o surgimento das diversas greves em Petrogrado (além da questão da disciplinarização do trabalho, como já apontamos). Ida Mett (1967) relata que a população realizava intercâmbio de alimentos a fim de suprir suas necessidades, já que os locais de comércio não existiam mais. No entanto, no verão de 1920, Zinoviev (um dos líderes bolcheviques) proibira quaisquer tipos de intercâmbio. Ao mesmo tempo, o estado não supriu as cidades com alimentos o suficiente. Assim, a situação de fome se tornou ainda mais extrema. Diante disso, a primeira greve na cidade de Petrogrado estourou em 23 de fevereiro de 1921. Os trabalhadores pediam assistência de comida, o reestabelecimento dos mercados locais e a liberdade para realizar viagens. Aos poucos, surgiram pautas mais políticas, como a reivindicação por liberdade de expressão. Em resposta a estas manifestações, Zinoviev e o comitê do partido utilizaram-se da força bruta. Em 24 de fevereiro o partido criou um Comitê de Defesa e declarou estado de sítio, submetendo a população à lei marcial.

Tendo em vista a proximidade geográfica em relação a Petrogrado, os marinheiros de Kronstadt tomaram conhecimento desses acontecimentos e, rapidamente, começaram também a se organizar. Assim, são elaboradas quinze exigências dos trabalhadores, aprovadas em assembleia no dia 1º de março de 1917. De acordo com Rocker (2007) estas exigências foram aprovadas por decisão unânime, com 16 mil pessoas presentes. No dia seguinte foi criado o comitê revolucionário provisório com o objetivo de encaminhar as eleições do Soviete de Kronstandt.

Kronstadt e os sovietes

As resoluções aprovadas pelos trabalhadores de Kronstadt no dia 1º de março apontavam para a urgência da realização de novas eleições para os sovietes, tendo em vista que os operários e camponeses perderam sua representatividade. A questão da elegibilidade é bastante enfatizada, rejeitando a ideia de “imposição” de cargos fixos. Outro aspecto importante é a reivindicação da liberdade de expressão e de imprensa, além da liberdade aos presos políticos (trabalhadores, socialistas e anarquistas). Vejamos abaixo algumas das resoluções que explicitam essas questões colocadas[2].

Depois de ter ouvido o relatório dos representantes enviados a Petrogrado pela Assembleia Geral das Equipagens para examinar a situação, os marinheiros decidem: considerando que os sovietes atuais não exprimem a vontade dos operários e camponeses,
1) Proceder imediatamente à reeleição dos sovietes pelo voto secreto. A campanha eleitoral entre os operários e camponeses deverá desenrolar-se com plena liberdade de palavra e ação;
2) Estabelecer a liberdade de palavra e de imprensa para todos os operários e camponeses, para os anarquistas e partidos socialistas de esquerda;
3) Conceder liberdade de reunião aos sindicatos e às organizações camponesas; […]
5) Libertar todos os prisioneiros políticos socialistas e também todos os operários, camponeses, soldados vermelhos e marinheiros presos em consequência dos movimentos operários e camponeses;
[…]
7) Abolir os “oficiais políticos”, pois nenhum partido político deve ter privilégios para a propaganda de suas ideias, nem receber do Estado meios  pecuniários  para esse fim. Deve-se instituir em seu lugar comissões de educação e de cultura, eleitas em cada localidade e financiadas pelo governo;
[…]
10) Abolir os destacamentos comunistas de choque em todas as unidades do exército, assim como a guarda comunista nas fábricas e usinas. Em caso de necessidade, esses corpos de guarda poderão ser designados no exército pelas companhias e nas usinas e fábricas pelos próprios operários (KRONSTADT IZVESTIIA, n. 1, 1921 apud ARVON, 1984, p. 40-41).

Nesse sentido, a principal reivindicação dos trabalhadores de Kronstadt é a de que os conselhos operários retornem às suas características originais. Essa forma organizacional, na perspectiva dos revoltosos, deve exprimir as vontades da “base” a partir de um sistema de elegibilidade revogável em que haja a participação real da população. Enfatiza-se a necessidade dos próprios operários serem responsáveis pela designação de cargos.

Em suma, os marinheiros rejeitam as imposições de um partido único em detrimento da participação direta dos trabalhadores, considerando o partido como um empecilho para o desenvolvimento dos sovietes. No lugar, há a defesa de uma sociedade autogerida, onde não haja um poder central único e irrevogável que submeta a população aos seus mandos. Esse seria o modo como os conselhos operários deveriam funcionar de acordo com os kronstandtinos. Essa concepção não está presente apenas nas resoluções apresentadas, mas também em relatos pessoais de participantes deste evento (PETRITCHENKO, 2011) e em outros números do Kronstadt Izvestiia, como na seguinte citação:

Nós derrubamos o Soviete comunista, proclamam os marinheiros de Kronstadt. Dentro de alguns dias nosso Comitê Revolucionário Provisório procederá às eleições do novo Soviete, o qual, eleito livremente, refletirá a vontade de toda a população trabalhadora e da guarnição, e não a de um punhado de loucos “comunistas”.
Nossa causa é justa. Somos pelo poder dos Sovietes e não dos partidos. Somos pela eleição livre dos representantes das massas trabalhadoras. Os sovietes falsificados, monopolizados e manipulados pelo partido comunista sempre foram surdos às nossas necessidades e exigências; a única resposta que recebemos foi a bala assassina (KRONSTADT IZVESTIIA, n. 4, 1921 apud ARVON, 1984, p. 43).

É interessante perceber como a palavra “comunista” ganhou um sentido pejorativo, como algo oposto aos interesses dos trabalhadores. Isso porque, de acordo com os revoltosos, os bolcheviques (comunistas) passaram a defender interesses próprios (de manutenção do poder) e não dos trabalhadores e sua emancipação. Assim, na concepção dos kronstadtinos, os sovietes nas mãos dos bolcheviques se tornaram “falsificados”, algo existente apenas no discurso. Por isso Brinton (1975) defende que os bolcheviques esvaziaram os sovietes.

No decorrer da insurreição, que teve curta duração (por volta de quinze dias), a rejeição aos bolcheviques se tornou cada vez maior. Isso porque o Partido começou a disseminar informações falsas sobre os revoltosos, acusando-os de contrarrevolucionários liderados por estrangeiros e generais do Exército Branco. Tais informações foram contestadas e refutadas não apenas pelos próprios marinheiros, como também pelos estudiosos do fato histórico (ARVON, 1984; BERKMAN, 2011; GOLDMAN, 2011; ISIDINE, 2017; METT, 1967; ROCKER, 2007; PETRITCHENKO, 2011). Por isso os kronstandtinos denunciaram os bolcheviques como aqueles que fingiram defender os trabalhadores. Isso, novamente, está explicitado em seu jornal:

Tornou-se cada vez mais claro, e hoje torna-se evidente, que o partido  comunista não é, como fingiu ser, o defensor dos trabalhadores. Os interesses da classe operária lhe são estranhos. Depois de haver conquistado o poder, há apenas  uma preocupação: não perdê-lo. Também considera que todos os meios são válidos: difamação, mentira, violência, assassinato, vingança sobre as famílias dos rebeldes. Mas a paciência dos trabalhadores martirizados está no fim. O país ilumina-se aqui e ali com o incêndio das rebeliões na luta contra a opressão e a violência. As greves operárias se multiplicam (KRONSTADT IZVESTIIA, n. 6, 1921 apud ARVON, 1984, p. 50).

Enfim, em resposta a esse conflito, os trabalhadores de Kronstadt foram massacrados pelo Exército Vermelho, cujo líder era Trotsky. Na época, alguns anarquistas, como Emma Goldman e Alexander Berkman, tentaram negociar com os bolcheviques para que não ocorressem quaisquer formas de brutalidade. Houve, inclusive, a criação de uma carta que expressava esses desejos (BERKMAN, 2011). No entanto, essa tentativa de arrefecer a repressão não deu certo, ocorrendo uma repressão brutal.

A partir dessas ações, é possível depreender qual era concepção defendida pelos bolcheviques acerca dos sovietes. No entanto, isso também se torna explícito a partir dos textos de Lênin e Trotsky sobre o acontecimento. Esse será o ponto de análise do próximo tópico.

O Partido Bolchevique e os sovietes

Lênin não escreveu textos aprofundados sobre esse acontecimento, mas podemos encontrar sua opinião sobre o assunto no pequeno texto On the Kronstadt revolt, publicado em 26 de março de 1921, como também em fragmentos do texto Sobre o imposto em espécie, escrito em 21 de abril de 1921. No primeiro, Lênin (1921a) fala, resumidamente, que só há duas opções para a Rússia no âmbito político: ou um governo dos sovietes ou um governo liderado pelo tsar. Assim, ele toma a expressão “governo dos sovietes” como sinônimo de “governo do Partido Bolchevique”, atribuindo à palavra “soviete” uma ligação com o aparelho estatal e com a estrutura partidária. Como, obviamente, os rebeldes de Kronstadt possuíam uma visão completamente distinta a esta, Lênin atribui a eles o adjetivo de “mesquinhos” argumentando que suas reivindicações eram sem sentido.

Já em Sobre o imposto em espécie, Lênin (1921b) aponta que já é da natureza do “pequeno produtor” cometer rebeliões como a de Kronstadt, que possuiu características “pequeno-burguesas”. Em sua concepção, as palavras de ordem dos marinheiros eram nebulosas, o que pode ser questionado pelas declarações apresentadas no jornal Kronstadt Izvestiia tal como apresentamos aqui. Lênin também defende que os realizadores eram mencheviques e socialistas revolucionários que se “disfarçaram” sob o slogan de “sem partido”. E que, além disso, os generais brancos também teriam chamado aquela revolta de “sua” e inclusive teriam dado dinheiro aos marinheiros. Mas, como mencionado anteriormente, isso fazia parte de um processo de difamação sob os revoltosos, desvelado por vários estudiosos deste fato histórico.

O conteúdo dessas “denúncias” realizadas por Lênin corrobora com a ideia do Partido Bolchevique enquanto única possibilidade de governo no país. Mais a frente, ele ainda defende que para que a União Soviética conseguisse se desenvolver ela deveria ser guiada por uma vanguarda que escolheria os melhores operários, militares e capitalistas. Estes possibilitariam o crescimento soviético. Por isso os sovietes são vistos apenas como instrumentos controlados pelo poder partidário.

Em relação a Trotsky, o assunto de Kronstadt volta-se principalmente para a discussão sobre a repressão, já que ele era o principal dirigente do Exército Vermelho. Seus textos sobre o assunto datam de 1938 e, resumidamente, reproduzem as justificativas e argumentos de Lênin. Ou seja, atribui-se aos kronstandtinos o caráter de contrarrevolucionários e pequeno- burgueses e isso justificaria a repressão realizada sob eles. Trotsky também justifica essa questão enfatizando que grande parte de seus integrantes eram camponeses que não tiveram apoio dos operários de Petrogrado e, portanto, era uma revolta oposta ao proletariado[3]. Tais argumentos estão resumidos no seguinte fragmento.

Somente uma pessoa completamente superficial pode ver no bando de Makhno ou na revolta de Kronstadt uma luta entre os princípios abstratos do anarquismo e do “socialismo de estado”. Na realidade, estes movimentos eram convulsões da pequena burguesia campesina que desejava, obviamente, liberar-se do capital, mas que, ao mesmo tempo, não aceitava subordinar-se à ditadura do proletariado. A pequena burguesia não sabe concretamente o que quer e em virtude de sua posição não pode sabê-lo. Esta é a razão pela qual cobriu tão facilmente suas petições e esperanças, já com a bandeira anarquista, já com a populista, já simplesmente com a “verde”. Opondo-se ao proletariado, tratou, sob todas estas bandeiras, de retroceder a roda da revolução (TROTSKY, 1938, tradução nossa).

Dessa maneira, assim como Lênin, Trotsky não concebe a existência dos sovietes como algo autônomo, mas somente a partir do controle partidário. E tudo que se desvirtua do partido, torna-se, automaticamente, pequeno-burguês, contrarrevolucionário etc. Essas ideias em comum provêm da concepção de vanguarda desenvolvida por Lênin (1986) em Que fazer?. Neste livro, há o desenvolvimento da ideia (já presente em Kautsky) de que os intelectuais e líderes do Partido possuíam a função de “implementar” a consciência revolucionária nos operários. Estes, no máximo, conseguiam chegar a uma consciência trade-unionista.

Assim, na própria base teórica bolchevique já há uma predeterminação para a rejeição e embate de estruturas auto-organizativas. Nesta concepção, os operários precisam, necessariamente, de uma direção partidária. Já se parte do pressuposto de que estes trabalhadores não conseguem se auto-organizar para construir uma nova sociedade, verdadeiramente emancipada. Dessa maneira o Partido Bolchevique conseguiu  também    justificar o seu poder controlador e a repressão empreendida. Assim, inevitavelmente, haveria um conflito em torno do significado dos sovietes em relação às concepções dos kronstadtinos.

Considerações finais

No prefácio à edição inglesa do livro The Kronstadt Comune, de Ida Mett, Maurice Brinton (1967) realiza uma reflexão bastante interessante sobre por que esse acontecimento histórico deve ser relembrado e debatido ainda na atualidade. Ele aponta que não devemos constituir uma idealização do passado, com uma visão idílica da experiência de Kronstadt, mas sim refletir criticamente sobre como esse acontecimento foi ofuscado.

Brinton aponta que muitos acontecimentos históricos socialistas foram apagados e isso está relacionado a uma visão burguesa da história. Ou seja, aquela história que valoriza a ação dos grandes líderes e não dos trabalhadores. Segundo este autor, isto se aplica à própria história soviética, já que se dá maior atenção aos grandes líderes dos partidos políticos. Assim, é importante resgatar a história de Kronstadt não para exaltá-la de maneira fantasiosa com uma visão nostálgica, mas sim para valorizar a capacidade de ação das massas trabalhadoras como agentes da história.

O que se chama de história socialista é frequentemente apenas uma imagem do espelho da historiografia burguesa, uma percolação nas fileiras do movimento operário do típico método burguês de pensar. No mundo deste tipo de “historiador” líderes geniais substituem o lugar de reis e rainhas do mundo burguês. Congressos famosos, divisões ou controvérsias, a ascensão e a queda de partidos políticos ou sindicatos, a emergência ou degeneração deste ou daquele líder substitui o lugar das batalhas internas dos governantes do passado. As massas nunca aparecem independentes no cenário histórico fazendo sua própria história (BRINTON, 1967, tradução nossa).

Por esse motivo o assunto abordado no presente trabalho se torna relevante. A partir da análise do significado dos sovietes, explicitamos como desde os princípios da constituição da União Soviética houve conflitos físicos e ideológicos entre o Partido Comunista e parte da população trabalhadora (tanto operários como camponeses), e como ela agiu em relação a isso. Estes conflitos envolviam discussões importantíssimas já que estamos nos referindo a um ideal revolucionário que, necessariamente, deve ser radical, no sentido de tomar as coisas pela raiz, como defendido por Marx (1977). Assim, é fundamental que haja uma reflexão sobre o que é de fato o socialismo, abordando a discussão sobre meios e fins, as relações entre partido e trabalhadores, e assim por diante.

A Revolta de Kronstadt fora permeada de contradições internas e percalços dentro de um contexto histórico bastante específico. O que nos resta não é exaltá-la, mas sim estudá-la a partir de uma perspectiva crítica que desmistifique determinadas ideias e abra caminhos para se pensar sobre a emancipação humana.

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* Aline Ferreira é doutora em Ciências Sociais pela UNESP.


[1] Para Pannekoek (2011), no caso, a ditadura do proletariado é caracterizada pelo surgimento e atuação dos conselhos operários: “Os conselhos operários constituem a forma de organização desse período de transição durante o qual a classe operária luta pelo poder, destrói o capitalismo e organiza a produção social” (PANNEKOEK, 2011, p. 145).

[2] As resoluções aprovadas na assembleia de 1º de março foram publicadas na primeira edição do jornal dos marinheiros, denominada Kronstadt Izvestiia. Citamos algumas passagens  desses jornais a partir da tradução para o português presente no livro A revolta de Kronstadt, de Henri Arvon (1984), onde há a reprodução de alguns trechos. Também consultamos os documentos completos que estão transcritos e traduzidos para a língua inglesa, disponíveis no seguinte site: https://libcom.org/library/kronstadt-izvestia.

[3] Goldman (2011) realiza um contraponto interessante a esse argumento de Trotsky. A autora aponta que dificilmente os operários de Petrogrado se aliariam a Kronstadt devido à repressão realizada sob eles, além da questão da difamação realizada desde o início da revolta de Kronstadt que criou uma imagem pejorativa desses revoltosos.

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