Para mais informações sobre Marxismo Autogestionário, ver:
A Concepção Marxista de Autogestão – Lucas Maia
Marxismo Autogestionário e Experiências Revolucionárias – Gabriel Teles
Marxismo Autogestionário Brasileiro
A presente coletânea traz o tema do marxismo autogestionário para discussão e reflexão. Algumas questões aparecem imediatamente: O que é o marxismo autogestionário? Como ele surge? Quais são as suas características? Quais são os seus principais representantes intelectuais? Como ele se manifesta hoje? O conjunto de textos aqui reunidos aponta para a resposta a estas questões.
Sem dúvida, é preciso deixar claro que o marxismo autogestionário não se confunde com outras concepções. A diferenciação entre marxismo autogestionário e outras concepções não foi abordada na presente obra, a não ser em breves passagens, pois não era seu objetivo. No entanto, uma breve referência sobre tal questão ajuda a compreender esse processo. O marxismo autogestionário se diferencia do anarquismo, do “marxismo heterodoxo”, do autonomismo, e, mais fundamentalmente, do chamado “marxismo”-leninismo e suas variantes (leninismo, trotskismo, stalinismo, maoísmo, etc.) e do revisionismo reformista (social-democracia).
Em relação ao anarquismo, a relação é complexa, pois não existe uma unidade entre as diversas correntes que compõem essa concepção. A diferença entre marxismo autogestionário e anarcossindicalismo e anarco-individualismo é por demais evidente, já que essas concepções estão distantes da perspectiva do proletariado. As diferenças em relação ao anarco-comunismo e anarco-coletivismo são menores, por estas serem concepções semiproletárias. A principal diferença reside no fato do marxismo autogestionário (assim como o marxismo original e o comunismo de conselhos) possuir uma base teórica e metodológica, ser manifestação da episteme marxista, um saber noosférico, complexo, ao contrário do anarquismo, que se constitui como uma doutrina. Além dessa diferença básica, e geralmente relacionada com ela, se soma as diferentes formas de conceber o processo político e revolucionário, a posição diante da produção intelectual, entre outras.
Assim, os embates entre Marx e Bakunin mostram como são duas propostas de luta política distintas, embora com o mesmo objetivo, mas num caso tendo ampla fundamentação teórica e percepção da totalidade e historicidade, em outro, possuindo mais como fundamento o voluntarismo do que a reflexão aprofundada. A polêmica equivocada de Kropotkin contra Marx, inclusive a perceptível incompreensão do anarquista (a sua interpretação é equivocada ao ponto dele propor a mesma coisa que o autor de O Capital pensando que o refutava) expressa também essa diferença entre ambas as concepções. Essas tendências do anarquismo expressam o proletariado, quando o fazem (é preciso observar as idiossincrasias e as mutações com o processo histórico nestas correntes), sob forma ambígua, tendo certa aproximação sentimental, mas com obstáculos intelectuais, devido ausência de base teórica-metodológica. Isso é mais grave no caso dos anarquistas contaminados por concepções burguesas, pela hegemonia burguesa (a começar pelos paradigmas hegemônicos, como o positivismo, subjetivismo, etc., até ideologias específicas, como as de Auguste Comte, Foucault, etc.).
Nesse sentido, a proximidade entre marxismo autogestionário e anarquismo é relativa, pois são duas concepções diferentes e as ambiguidades dos anarquistas significa sua proximidade igualmente relativa em relação ao proletariado. Porém, como o marxismo autogestionário não é uma doutrina, que se apega a princípios que podem ser relacionados com distintas práticas, complementos, etc., ele é mais sólido e, ao mesmo tempo, não dogmático, enquanto que o anarquismo cai com facilidade no dogmatismo e no ecletismo, sendo que isso varia de acordo com o indivíduo ou a corrente dessa concepção[1]. O caráter doutrinário do anarquismo lhe permite ter representantes dogmáticos e volúveis, simultaneamente.
O marxismo autogestionário também não se confunde com o que genericamente foi chamado de “marxismo heterodoxo”. Não cabe aqui realizar a crítica de tal terminologia, já realizada em outro lugar[2]. No entanto, é preciso esclarecer que a ideia de marxismo heterodoxo é problemática não apenas formalmente (devido as origens religiosas dos termos “ortodoxo” e “heterodoxo”), mas também por sua imprecisão (um indivíduo, desde que tenha alguma divergência com Lênin ou outro ideólogo supostamente marxista, ou então uma ou outra tese isolada das concepções “ortodoxas”, pode ser considerado “heterodoxo”) e a aceitação implícita da existência de um marxismo “ortodoxo”, que seria justamente aquele que deforma as ideias de Marx (social-democracia, leninismo) e se afasta dos interesses fundamentais do proletariado. O conceito de marxismo autêntico, ao contrário, não tem os problemas formais e imprecisões presentes nessa terminologia, nem o paradoxo de considerar a deformação com ortodoxia, pois, nessa concepção, Marx seria um marxista heterodoxo, o que é destituído de sentido.
Da mesma forma, o marxismo autogestionário não se confunde com o autonomismo. Existe uma grande ignorância a respeito do significado do autonomismo e não poderemos aqui apontar para a resolução dessa limitação, mas apenas afirmar que existe uma diferença profunda entre as duas concepções[3]. O autonomismo tem seu embrião no sindicalismo revolucionário e pode se inspirar em Rosa Luxemburgo e outros pensadores, mas se constituiu na França, através do grupo Socialismo ou Barbárie, e se desenvolve na Itália através de vários grupos, bem como na Inglaterra, Estados Unidos e outros países. No caso italiano, cabe destaque para Il Manifesto, Potere Operario, Lotta Continua, entre outros; na Inglaterra, foi o caso do grupo Solidarity; nos Estados Unidos a chamada Tendência Johnson-Forest; em Portugal, aqueles que se aglutinavam em torno do jornal O Combate.
Sem dúvida, não existe homogeneidade entre esses grupos. Inclusive existe um autonomismo vinculado a partidos políticos, tanto os que existiram no interior de partidos (como os autonomistas que atuaram dentro do PT – Partido dos Trabalhadores, no Brasil, que publicaram a Revista Desvio, tendo nomes como Eder Sader, Marilena Chauí, Amnéris Maroni, entre outros) ou os dissidentes que saíram do Partido Comunista Italiano (o caso de Il Manifesto, de Rossana Rossanda, que depois formou outro partido político), entre outros exemplos. Da mesma forma, existe um autonomismo apartidário ou mesmo antipartidário, como é o caso do grupo inglês Solidarity. Assim, podemos dividir entre um autonomismo moderado e um radical, um atrelado ou condescendente com os partidos políticos e outro que recusa essas organizações burocráticas.
O marxismo autogestionário é crítico do autonomismo moderado, embora possa extrair dele os seus momentos de verdade, as suas contribuições reais, embora limitadas. Em relação ao autonomismo radical, há maior proximidade. Porém, o pouco desenvolvimento teórico desse autonomismo, suas ambiguidades (tal como influência de concepções burguesas, como ocorre em alguns casos), acabam gerando divergências. Nesse sentido, o autonomismo radical se encontra numa situação semelhante ao do anarquismo revolucionário: um caráter semiproletário, embora com a vantagem de uma maior proximidade analítica devido seu vínculo com o marxismo. O grupo Solidarity foi um dos que mais avançou e, por conseguinte, um dos que mais se aproxima do marxismo autogestionário, especialmente após as lutas operárias e estudantis do Maio de 1968 na França. Porém, mesmo nesse momento de maior radicalização persistiram problemas, derivados da influência de Castoriadis sobre esse grupo, o que, inclusive, gerou afastamento de militantes.
Por fim, poderíamos citar as diferenças entre marxismo autogestionário e o pseudomarxismo expresso no bolchevismo (leninismo e seus derivados) e social-democracia (kautskismo e seus derivados). Aqui reside um antagonismo, pois essas concepções são produtos da burocracia partidária em luta pelo poder, o que nada tem a ver com o marxismo autêntico (e, por conseguinte, com sua expressão contemporânea, o marxismo autogestionário), pois elas estão distantes do proletariado e expressam os interesses de classe da burocracia radicalizada (bolchevismo) ou mesmo da burocracia moderada (social-democracia). O pseudomarxismo (tanto bolchevista quanto social-democrata) é um falso marxismo e por isso é antagônico ao marxismo autogestionário. Não se trata de ambiguidades em relação ao proletariado, mas sim de falsidade. Kautsky e Lênin partem da mesma justificativa, criada pelo primeiro e reproduzida pelo segundo, para a direção burocrática do proletariado: a ideia do partido de vanguarda. Assim, a concepção kautskista-leninista é fundada na episteme burguesa, mais especificamente no paradigma positivista, e o conteúdo dessa ideologia remete para os interesses da burocracia, classe auxiliar da burguesia que busca, em algumas de suas frações, se autonomizar. O dirigismo dessa concepção não é algo gratuito. E ele gera desconfiança de toda ação espontânea dos trabalhadores, bem como das concepções e organização que não estão sob sua direção. Rosa Luxemburgo explicitou bem o caráter dessa concepção ao criticar Lênin por estar acometido do “espírito estéril do vigia noturno”[4].
Assim, o marxismo autogestionário, tal como o marxismo em geral, é expressão teórica (e política, por conseguinte) do movimento revolucionário do proletariado e o pseudomarxismo é uma apropriação burocrática do marxismo e expressão ideológica da burocracia. O antagonismo se revela pela radicalidade da diferença entre episteme marxista e episteme burguesa, entre organização revolucionária e organizações burocráticas, etc.
Depois dessa breve diferenciação entre marxismo autogestionário e outras concepções, passemos para a presente coletânea, que traz a colaboração de Lucas Maia, Gabriel Teles, Alexandra Peixoto Viana, Rubens Vinicius da Silva e Edmilson Marques, além de dois artigos meus. O conjunto dos textos aqui reunidos permite uma introdução geral ao marxismo autogestionário. Os três primeiros artigos apontam para a análise histórica e conceitual do marxismo autogestionário. Em Maio de 1968 e a Formação do Marxismo Autogestionário, temos uma reflexão sobre a origem dessa forma de manifestação do marxismo e sua relação com a rebelião estudantil e pré-revolução proletária de 1968 e com a cultura contestadora e concepção revolucionária que se formou após sua efetivação. No artigo A Concepção Marxista de Autogestão, de Lucas Maia, temos uma análise do conceito de autogestão e sua origem, bem como a respeito das formulações marxistas sobre o signo e o significado desse termo e, ao lado disso, há uma demonstração da ligação indissolúvel entre marxismo e autogestão. O artigo de Gabriel Teles, Marxismo Autogestionário e Experiências Revolucionárias, aborda a questão da relação entre os processos históricos revolucionários e a teoria e luta efetivadas pelos fundadores e continuadores da concepção marxista, mostrando os vínculos históricos e sociais entre tais experiências e a teoria que a expressa.
O segundo bloco de textos apresenta algumas contribuições individuais e coletivas ao marxismo autogestionário. No texto O Marxismo Autogestionário de Yvon Bourdet é apresentada a contribuição fundamental e pioneira desse autor, o mais destacado representante da concepção marxista autogestionária na França, mostrando como ele sintetizou as contribuições do passado e do presente, a partir de uma orientação autogestionária. O artigo O Marxismo Autogestionário de Maurício Tragtenberg, de Alexandra Peixoto Viana, resgata a contribuição desse pensador brasileiro que foi pioneiro em terras brasileiras na divulgação da ideia de autogestão e do marxismo marginalizado pelo pensamento burguês e bolchevismo, além da recuperação de experiências históricas fundamentais da luta proletária. Rubens Vinicius da Silva, em O Marxismo Autogestionário de Nildo Viana, explora, por sua vez, a contribuição desse autor para a reflexão sobre a autogestão e o marxismo, em sua unidade, destacando a questão do conceito de autogestão e a sua vinculação com uma estratégia revolucionária, especialmente através da ideia de unidade necessária entre meios e fins. Por fim, encerrando a presente coletânea, Edmilson Marques realiza uma análise da atualidade dessa concepção em O Marxismo Autogestionário Hoje, na qual aborda, depois de uma breve contextualização e conceituação, a sua versão, manutenção e atualização na sociedade brasileira.
Desta forma, a presente obra pode ser considerada uma introdução ao marxismo autogestionário. Essa introdução esclarece os conceitos, o processo histórico de formação e desenvolvimento, as principais contribuições, relações importantes para compreender essa tendência política, bem como vários outros aspectos que permitem uma percepção geral do marxismo autogestionário. Enquanto obra introdutória, abre caminhos que podem ser desbravados e levar a novas estradas e descobertas. Nesse sentido, é uma importante contribuição para a reflexão sobre o marxismo autêntico que se manifesta na contemporaneidade.
Por fim, restaria responder: qual é a importância do marxismo autogestionário? O marxismo autogestionário é importante por resgatar, simultaneamente, o verdadeiro significado do marxismo original (Marx e Engels, com as devidas ressalvas em relação ao segundo por causa de suas ambiguidades e evolução intelectual), as experiências históricas de autonomização e de tentativas de revolução proletárias e seus ensinamentos, bem como atualizar e desenvolver a concepção marxista em vários aspectos, com destaque para a análise da realidade contemporânea, tanto na crítica do capitalismo (modo de produção capitalista e sociedade) quanto das ideologias contemporâneas (e não só dessas, mas também das precedentes) tal como a crítica do subjetivismo.
Isso justifica a presente obra e a necessidade de seu aprofundamento. Na sociedade brasileira, como em outros países, o silêncio foi a estratégia burguesa e burocrática em relação ao marxismo autogestionário, seja desconsiderando a sua existência, seja querendo desqualificá-lo, seja com rótulos como “anarquismo”, “esquerdismo”, entre outros. Isso recorda o que Marx apontou em relação a O Capital. Primeiro, veio o silêncio em relação a esta obra. Depois, tanto no caso de Marx quanto do marxismo autogestionário, vem as pseudocríticas (ataques pessoais, rotulações e vínculos sem fundamentação, etc.). Sem dúvida, o debate franco e aberto, fundamentado, é algo que ficou no passado. Poucos são aqueles que dão conta de um real debate. A decadência da esquerda e a obtusidade da direita, não esquecendo as devidas exceções, são obstáculos para polêmicas produtivas e assim elas se unificam na mediocridade, tão comum na contemporaneidade. Elas não são afeitas ao debate político e teórico, e por isso se escondem em estratagemas pouco éticos e que apenas revelam a sua falta de interesse em avançar intelectualmente, em se aproximar da verdade, pois isso contraria sua própria essência. E isso vale até mesmo para alguns setores ambíguos do bloco revolucionário, que ficam, seja por influência das posições anteriores, seja pela força dos interesses pessoais, da competição, da hegemonia subjetivista, do dogmatismo, do sectarismo, num nível próximo ao dos conservadores e progressistas. O terceiro passo, depois do silêncio e pseudocrítica, são as tentativas de crítica, que aconteceram em direção a Marx e sua obra, mas que, pelas características da contemporaneidade, não acontece em relação ao marxismo autogestionário. Independentemente de como será efetivada a luta cultural contra o marxismo autogestionário, este seguirá seu caminho e deixará os demais tagarelarem, seguindo o conselho de Marx ao proletariado. E a presente obra é parte do caminho. Então nos resta caminhar.
[1] Uma análise mais desenvolvida a esse respeito pode ser vista em VIANA, Nildo. Marxismo Autogestionário e Anarquismo. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 02, num. 04, jul./dez. 2015. Disponível em: https://redelp.net/index.php/rma/article/view/974/922.
[2] VIANA, Nildo. Existe um Marxismo Heterodoxo? In: Marxismo Autêntico e Pseudomarxismo. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020. Também disponível em: https://redelp.net/index.php/pos/article/view/234/225.
[3] Planejamos uma obra para tratar especificamente desse tema, intitulada Marxismo e Autonomismo, na qual será realizada uma abordagem mais profunda e abordando as principais tendências autonomistas. Também é necessário alertar que não se trata do suposto “autonomismo” de alguns militantes brasileiros, que desconhecem essa tradição e suas concepções, pois essa é mais uma “expressão popular” e pouco fundamentada de uma tendência, o que é comum numa época marcada pela superficialidade.
[4] LUXEMBURGO, Rosa. Marxismo Contra Ditadura. Goiânia: Edições Redelp, 2020.
A presente introdução faz parte da coletânea O Marxismo Autogestionário, publicada pela Edições Redelp em Goiânia, 2020.
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