A Rússia Soviética de Hoje – Rätekorrespondenz

Original in German: Sowjet-Russland von Heute

[Nota do Crítica Desapiedada]: O Rätekorrespondez foi uma “Correspondência Conselhista” que pertenceu ao G.I.C. (Grupo de Comunistas Internacionalistas), do qual fez parte Anton Pannekoek. Sobre o G.I.C., cf.: O Grupo de Comunistas Internacionalistas na Holanda (Parte I) – Philippe Bourrinet.

I.C.C. Vol. 3, n. 2 – Fevereiro de 1937 (Traduzido de Rätekorrespondenz).

A execução, em Moscou, de 16 velhos bolcheviques teve repercussão mundial. Tentou-se elucidar as razões do “perturbador” massacre. A opinião que prevalece, além da dos comunistas enfeudados ao Kremlin, é a de que o processo de Moscou foi um vasto golpe montado, comparável ao que se seguiu ao incêndio do Reichstag. Fazem-se, nesse sentido, toda a espécie de hipóteses, mas nenhuma análise séria das verdadeiras causas das execuções. “Culpáveis ou não culpáveis”, não é essa a questão; o debate provocado sobre esse ponto no seio do movimento operário continuará sem resposta porque ele não ataca o fundo do problema. Para o atual movimento operário oficial, uma análise objetiva da situação na Rússia é impossível porque toda a crítica à Rússia conduziria a pôr em causa o velho movimento operário no seu conjunto. Como poderiam esses socialistas e comunistas, que veem na Rússia a realização integral ou parcial do seu ideal, o caráter abertamente violento das relações sociais na Rússia, sem confessar ao mesmo tempo a miséria do seu próprio ideal! Encarar a continuidade da evolução que conduziu a Rússia de Outubro de 17 até à execução dos heróis de Outubro pressupõe uma apreciação objetiva da estrutura social do país. Nem Otto Bauer, nem Trotsky, cujos protestos indignados enchem hoje a imprensa das organizações operárias neo-moscovitas são disso capazes. Os Bauer e os Adler, para quem a Rússia é o país do socialismo em marcha, espantam-se do que chamam uma regressão à barbárie. Segundo eles, essas execuções são um “ato infeliz” para a causa do socialismo em geral. Nunca essas pessoas admitirão que a “barbárie” manifesta não passa de um aspecto do seu “ideal”.

Quanto a Trotsky, tornado o alvo de todos os russófilos vendidos ou não a Moscou, que pode ele responder? Provar-nos-á que a calúnia é feita também à época em que ele próprio era dirigente, quando, muito antes do stalinismo, era corrente executar os comunistas e operários, e que tais ações se inscrevem na própria lógica do sistema russo? Não, Trotsky prova-nos o contrário como seria de esperar. Foi por ordem de Lênin e Trotsky que se massacraram os operários de Kronstadt porque as suas exigências iam contra os interesses do Estado bolchevique de 1920. Para nós, sejam as execuções ordenadas por Stálin ou Trotsky pouco importa. Explicitar as razões dessas medidas brutais, tal é a nossa preocupação.

Por que colocar fora da Lei, e depois executar, os insurretos de Kronstadt e os 16 velhos bolcheviques, que constituíam, contudo, uns e outros, grupos comunistas na acepção russa do termo? Porque estavam em desacordo com os dirigentes do Kremlin. Quando um Estado que se reclama do comunismo, deporta e executa os comunistas, tem-se o direito de perguntar quais dos dois agiu como comunista: o Estado ou os comunistas. Responder a esta pergunta é dar os meios para melhor compreender a situação na Rússia.

As Principais Etapas da Revolução Russa Durante os últimos anos

Ultimamente uma série de leis, extremamente reacionárias, foi promulgada na Rússia. Por exemplo, a interdição do aborto, a criação de novos graus no exército, a adoção de uma nova legislação escolar autoritária, etc. A maior parte dessas leis pertencem ao domínio sociocultural e não se explicam senão em relação aos fenômenos econômicos subjacentes. Não basta, pois, aqui, recordar o discurso pronunciado por Stálin, em Junho de 1931, aquando de uma reunião de eminentes economistas russos. A imprensa da Internacional Comunista atribuiu a esse discurso uma “importância histórica”, da qual ele se revestia, sem dúvida alguma. Stálin reclamava nele a abolição total da relativa igualdade de salários que sobrevivia ainda, e preconizava uma hierarquização dos mesmos. Ele exigia ainda que, nas fábricas, se substituísse definitivamente a direção mais ou menos coletiva pela iniciativa pessoal de um diretor, apenas responsável perante o Estado. E sobretudo, ponto essencial do seu discurso, Stálin reclamava a introdução do lucro em todas as empresas.

No seguimento desse discurso, toda uma série de leis foi proclamada. Instituiu-se mais de trinta graduações salariais, com uma escala variando entre cem e mil rublos por mês. Os operários das fábricas foram totalmente reduzidos ao silêncio. Os “diretores vermelhos” tornaram-se os autocratas das empresas. O lucro tornou-se o fator determinante. A racionalização do processo de trabalho manifestou-se pela extensão do sistema de rendimento à peça. A exploração foi reforçada por todos os meios.

Pouco depois, os sindicatos foram colocados sob a dependência do Comissariado para o Trabalho, e deixaram de funcionar como instrumentos de melhoria das condições de trabalho. Reduzidos à função de organismos de previdência social, tornaram-se, nas mãos do Estado, instrumentos de propaganda para aumentar a produtividade do trabalho.

As cooperativas de consumidores foram “reorganizadas”; os diretores das empresas produtivas podiam, desde agora, utilizá-las “para recompensar os bons trabalhadores através de melhores meios de consumo”. Até então, tinha reinado no seio da classe operária, como já o dissemos, uma relativa igualdade nas condições de vida, mesmo se essa igualdade se reduzia mais a uma igualdade na miséria. A partir de agora, as diferenciações criadas nas condições de vida vão conduzir também a divergências de interesses, e, fazendo-o, diferenças na posição dos trabalhadores face ao Estado e seus privilégios sociais. É o fim de uma época que tinha favorecido a criação de uma ideologia social relativamente unificada.

Stálin declarava no seu discurso: “Mantermo-nos agarrados às velhas fontes de acumulação é impossível. Prosseguir o desenvolvimento da agricultura e da indústria obriga à adoção do princípio do lucro e da acumulação acelerada”. Nos países capitalistas, quando a diminuição dos lucros conduz a uma diminuição da acumulação, os capitalistas aumentam a exploração dos trabalhadores para remediar essa situação. O “primeiro e único Estado operário” não utiliza outros métodos. O Estado todo-poderoso, que substituiu os antigos capitalistas, perpetua o velho método capitalista: reforçar a exploração para garantir os lucros. Tal como a organização da produção, a acumulação do capital prova que as relações entre os operários russos e o seu Estado não se distinguem de modo nenhum das relações entre trabalhadores e capitalistas em geral.

Aqueles que acreditam na natureza socialista da sociedade russa devem fazer esta pergunta: “Como acontece que os operários, “proprietários coletivos” dos meios de produção, mostrem tão pouco interesse em aumentar a sua “propriedade social”, que Stálin se viu reduzido a utilizar a força para os chamar aos “seus deveres?”. Sim, o Estado teve de fazer leis “para a proteção da propriedade social”, porque duvidava que os trabalhadores quisessem a sua própria propriedade. Os trabalhadores russos serão realmente estúpidos e míopes ao ponto de não reconhecerem os seus verdadeiros interesses?

O operário russo não pode deixar de perceber que ele não tem qualquer controle sobre os meios de produção, nem sobre os produtos do seu trabalho. Ele não se pode sentir responsabilizado pelos problemas da socialização tal como eles se põem na Rússia, uma vez que é um escravo do salariato tal como os seus irmãos de além fronteiras da URSS. Importa pouco saber se os operários russos têm claramente consciência da sua posição na sociedade. O fato é que eles agem da única maneira possível para uma classe explorada. E, paralelamente, que Stálin esteja ou não consciente da sua função enquanto dirigente de uma sociedade de exploração, os seus atos passados e futuros refletem forçosamente as necessidades de uma tal sociedade.

A Rússia não é capitalista desde ontem; ela é desde a abolição dos últimos operários livremente eleitos. A partir de 1931, a economia russa estava desembaraçada de todos os elementos estranhos à sua estrutura capitalista. Aqueles velhos bolcheviques que não podiam ajudar Stálin na sua ascensão, tornaram-se seus opositores sistemáticos: era preciso, pois, eliminá-los. A dissolução, em 1935, da organização dos velhos bolcheviques, a depuração da maior parte dos seus membros, mostram claramente que o regime atual deverá, necessariamente, eliminar essas tradições ultrapassadas encarnadas pelos velhos bolcheviques. Estes últimos, assim como os operários que têm uma consciência de classe e os comunistas, podem cada vez menos defender e apoiar a política do governo. Eles perdem toda a utilidade para o aparelho de Estado, à medida que adquirem uma consciência mais justa da sua função de condutores de escravos na hierarquia exploradora. Outros, que têm menos escrúpulos, invejam os seus postos, e derrubam-nos. A vitória destes últimos explica-se pela sua indiferença face às tradições de Outubro, e pela sua falta de solidariedade para com a classe operária.

Um aumento de exploração pressupõe um reforço do aparelho explorador. A classe operária não se pode explorar a si própria. É necessário um aparelho cujos membros não pertençam à classe operária. Burocratas, profissionais, “dirigentes de indústria” como lhes chama Stálin, apoiando-se numa larga camada da aristocracia operária, são indispensáveis. Estes burocratas ajudam a clique dirigente, recebendo em troca privilégios que os situam acima do nível do operário médio. A despeito da fraseologia oficial sobre “a transição para uma sociedade sem classes” desenvolveu-se efetivamente uma nova classe dirigente na Rússia. Os trabalhadores vendem a sua força de trabalho a esta nova classe de funcionários, chefes de cooperativas e empresas, e à burocracia que dirige a produção e a distribuição. Este aparelho colossal é o comprador da força de trabalho. Dirige coletiva e autocraticamente ao mesmo tempo. Não produz nenhum valor, vive do mais-valor, do trabalho de milhões de escravos assalariados. A ideologia desta camada privilegiada não tem nada a ver com a consciência de classe dos operários. Sendo a exploração o seu interesse, ela constitui a sua ideologia. Como inimigo implacável, a burocracia combate todas as tendências da sociedade que se orientam no sentido da abolição da exploração. Com o fim de manter os seus próprios privilégios, a burocracia utilizará todos os meios possíveis para destruir as forças que ameaçam os tirar. Para assegurar as suas posições, ela liquidará todas as conquistas da revolução de Outubro que se opõem às necessidades da nova classe exploradora. É-lhe necessário, portanto, eliminar os resíduos da revolução de que fazem parte os velhos bolcheviques.

No objetivo de alcançar a massa gigantesca de mais-valor indispensável à construção e à transformação do sistema econômico russo, na sua totalidade, era necessário desenvolver uma vasta classe de dirigentes de escravos, parasitas e exploradores. Esta nova classe desenvolveu-se em contradição com o comunismo. O vazio na estrutura da sociedade de exploração, que refletia a ausência de uma classe exploradora específica, foi compensado. É isto que constitui a etapa essencial na evolução da Rússia ao longo dos últimos anos; transformando-a num estado integralmente capitalista. Os trabalhadores, demasiado fracos pra organizar a produção em nome da sua classe, abdicaram perante o Partido. Este último não obedecendo senão a interesses específicos, teve na Rússia exatamente a mesma função que os capitalistas privados nos outros países. O partido bolchevique, assumindo a função histórica da burguesia, tornou-se ele próprio a burguesia e desenvolveu as forças produtivas a um nível atingido muito tempo antes pela burguesia dos outros países. O Partido tornou-se então um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas e ao progresso humano em geral, tal como a burguesia em todos os outros países. É, em vão, que se podem incriminar aqueles que ocupavam os postos dirigentes durante este período da revolução russa; é preciso, antes, tomar consciência que fosse quem fosse – indivíduo ou Partido – teria sido constrangido, nessa situação, a assumir exatamente a mesma função.

As Relações de Classe na Agricultura Soviética

Durante o primeiro plano quinquenal, a diferenciação das condições de vida entre trabalhadores e burocracia não pôde ser desenvolvida completamente. A burocracia tinha ainda necessidade dos trabalhadores para assegurar a sua hegemonia sobre o setor agrícola. Inversamente era-lhe necessário assegurar uma posição de força na agricultura para poder consolidar a sua situação na indústria. A anarquia das relações no domínio agrícola ameaçava o desenvolvimento geral da economia e, portanto, a própria clique dirigente. A introdução de métodos de produção modernos tornara-se uma necessidade histórica para a economia camponesa russa. Nenhum governo teria podido esquecê-lo. Isso permitia, de fato, primeiramente reduzir o preço da força de trabalho dos trabalhadores assalariados e em seguida desenvolver o mercado interno. A burocracia coletivizou as herdades em nome do socialismo; este “slogan” era necessário para conquistar os operários para esta política. A oposição manifestada pelos camponeses necessitava de uma estreita colaboração entre os operários e a burocracia. As dificuldades com que deparou, primeiramente, a coletivização forçada são ilustradas claramente pela emigração de dezenas de milhares de camponeses e a deportação de milhares de outros para as regiões polares e a Sibéria. Antes do sucesso da campanha de coletivização, existiam pequenas herdades individuais que funcionavam, por assim dizer, independentemente da indústria e, portanto, dos seus dirigentes. As necessidades dos camponeses não os impulsionavam, de todo em todo, no sentido de se aproximarem da indústria. Para criar esta dependência era necessário romper o seu isolamento.

Para desenvolver a produtividade agrícola era necessário pôr em circulação os produtos industriais tais como tratores, ceifeiras-debulhadoras… etc. Hoje 87 por cento do solo cultivado está coletivizado; utilizam-se 300 mil tratores. Toda a agricultura mudou radicalmente, assim como as suas relações com os outros setores da economia russa. Os camponeses contraíram pesadas dívidas em relação ao Estado; o seu isolamento foi quebrado e pouco a pouco foram tomando consciência da sua dependência em relação ao Estado. Eram vítimas do peso da política governamental dos preços, de impostos indiretos, e dos organismos de crédito governamentais! No último ano, uma medida muito significativa foi introduzida: o Estado cessou de vender às herdades coletivizadas os meios de produção mais importantes. Daí para a frente, aluga-os. Neste sentido, instalou alguns milhares de estações de máquinas agrícolas, o que reforçou o poder da burocracia sobre os camponeses.

A coletivização fez nascer um novo método de produção chamado “artel” que corresponde a uma associação relativamente instável de possuidores de meios de produção agrícolas. As máquinas e os edifícios são utilizados coletivamente. O “artel” é uma nova forma de relação de propriedade. Ele engendra desigualdades econômicas e diferenças ideológicas. Acentuando isto, o trabalho assalariado é mantido. Os salários são proporcionais à quantidade e à qualidade do trabalho fornecido. O “artel” pode assim contratar simples operários agrícolas, funcionando como explorador. Um camponês não pode tornar-se membro do “artel” a não ser que tenha bens suficientes para satisfazer a maioria dos membros do “artel”. Graças à utilização de utensílios modernos e à racionalização do processo de trabalho, o “artel” permite um acrescimento razoável da produção. Esta constatação tornou esta forma de produção popular entre os camponeses e abafou a resistência anterior. O desenvolvimento geral da agricultura tende a transformar, pouco a pouco, os camponeses em escravos assalariados. De momento eles não tomaram ainda consciência do que lhes reserva o futuro. Veem apenas a fachada destas novas relações sociais que contém como vantagem principal o aumento do seu lucro. De futuro o governo pode, graças a esta evolução, apoiar-se ainda mais sobre os camponeses. Pode fazer funcionar uma classe contra a outra e efetivamente toda a política da burocracia desde o sucesso da coletivização, se refere a uma política de equilíbrio de poderes: fazendo opor tanto os operários contra os camponeses como os camponeses contra os operários.

Neste momento, com estes princípios de “sociedade sem classes” existem na Rússia três classes principais: os operários que nada possuem; os camponeses que sob o controle do Estado possuem coletivamente a sua propriedade; a burocracia que possui e dirige a indústria e se esforça por colocar, igualmente, toda a agricultura sob o seu controle absoluto. Estas relações de classe provocam diferenças cada vez mais acentuadas nas condições de vida. Os operários explorados e sem meios, devem lutar pela abolição da exploração; os camponeses reclamam um abaixamento do preço dos produtos industriais, o que significa um aumento da exploração para os operários; e, quanto à burocracia, ela tem lucros à custa destas duas classes.

A Situação dos Operários

O desenvolvimento da economia capitalista mostra cada vez mais claramente que a força de trabalho é uma mercadoria. A extrema hierarquização dos salários fez-se sentir muito brutalmente quando o poder de compra diferenciado do rublo desapareceu. Até 1935, o mínimo vital dos operários mais mal pagos estava garantido. Desde então, o salário em dinheiro tornou-se a única via para o consumo individual dos operários. O efeito da lei da oferta e da procura aumentou os preços. A burocracia fez passar a subida dos preços por uma descida. Efetivamente, para as camadas mais bem pagas e para a burocracia que antes eram constrangidas a comprar no mercado “livre” tratava-se de fato de uma baixa de preços, mas para os operários tratava-se de uma fenomenal subida de preços que reduziu consideravelmente o seu consumo.

A soma total de todos os salários e remunerações pagas em 1936 eleva-se a 63,4 bilhões de rublos. O número total de empregados assalariados e remunerados, segundo o Centro Estatístico de Moscou, eleva-se a 24 milhões. O que dá um rendimento médio mensal de 220 rublos por indivíduo. Em relação ao nível de preços existente, isto significa um salário médio mais baixo que em qualquer país da Europa Ocidental. Os bens de consumo são três a quatro vezes mais caros que nos outros países. Compara-se por exemplo o preço de um par de sapatos, digamos 50 a 70 rublos, com estes salários. O preço médio do pão escuro é de 70 centavos de rublo o quilo; para o pão de melhor qualidade é de 1,20 a 1,50 rublos. O quarto de litro de leite custa 1,50 rublos, a carne de vaca nove rublos o quilo. A manteiga, segundo a qualidade, de 18 a 26 rublos o quilo. Uma camisa vulgar custa cerca de 20 rublos. A grande massa da população russa vive hoje, 19 anos depois da revolução, pouco melhor que no tempo dos czares. Os bens de consumo mais requintados serão ainda por muito tempo inacessíveis às grandes massas do país. As estatísticas do segundo plano quinquenal explicam isto muito claramente: a produção de sapatos, em 1937, não chegará a ultrapassar 180 milhões de pares, o que significa que no fim do ano haverá apenas um par de sapatos à disposição de cada habitante. Segundo o plano, o consumo total de manteiga será elevado, em 1937, a 180 mil toneladas. Tendo em conta que metade da população compra manteiga, são apenas distribuídos cerca de 2,5 quilos, por ano e por cabeça. Mas neste momento, mesmo este objetivo não era atingido senão no papel. O problema da habitação é ainda mais agudo. Segundo as estatísticas oficiais russas, o espaço médio atribuído por pessoa é cerca de 3,5 metros quadrados. E não há nenhuma esperança de ver a situação melhorar proximamente: a indústria da construção está constantemente em atraso em relação ao aumento da população urbana.

Em tais condições, seria verdadeiramente inacreditável que os trabalhadores não tomassem consciência da sua situação de classe explorada. Sobretudo porque “aos chefes da indústria”, a burocracia em geral, gozam de bem melhores condições de vida. Veem-se aí salários desde mil rublos por mês. Houve um tempo em que existia o que se chamava “um mínimo do partido”: os seus membros não podiam ganhar mais que 7.200 rublos por ano. Hoje os privilégios já não têm limites.

O Stakhanovismo

Um aumento do consumo geral é absolutamente indispensável na Rússia. A classe dirigente sabe-o, mas as classes dirigentes não dividem com os pobres. No quadro das relações econômicas da Rússia capitalista, um aumento do nível de vida das massas só é possível se o capital aumentar comparativamente mais depressa que o consumo das massas. Todo o aumento de poder de compra das massas implica um aumento ainda mais rápido do grau de exploração. É a este processo que o marxismo denomina por pauperização relativa dos trabalhadores. É exatamente este fenômeno que se produz na Rússia e a que se chama falsamente “socialismo”.

O “stakhanovismo”, ou aumento da produção graças ao melhoramento dos métodos de produção, é a partir daí largamente adotado na indústria e na agricultura russas. Os salários dos operários stakhanovistas aumentam de cem por cento mas a sua produtividade aumenta, muitas vezes, dez vezes mais. Quaisquer que sejam as estatísticas de referências, todas mostram que os aumentos de salário representam apenas uma pequena fração dos acrescimentos de produtividade. Mais altos salários, representam uma exploração acrescida. A parte que os operários auferem tende a diminuir comparativamente ao valor que eles produzem.

Pouco a pouco os operários tomam consciência desta situação. A diminuição das taxas de salários à peça que segue cada aumento da produtividade, desperta em relação aos operários mais conscientes a oposição ao stakhanovismo. Vêm-se muitas vezes stakhanovistas fazerem-se agredir pelos seus colegas. Muitos foram mortos. Certos operários consideram os stakhanovistas pura e simplesmente como “fura-greves”. Mas o stakhanovismo progredirá a despeito de toda a resistência. Com efeito, ele permite a uma fração da classe operária melhorar as suas condições de vida. Desenvolve-se uma camada de operários que apoia, com fervor, a burocracia, tal como muitos operários entre os mais bem pagos apoiam a burguesia nos outros países capitalistas. É assim que a força da classe operária é enfraquecida. Quando a miséria geral tinha suscitado na classe operária uma revolta unânime, as possibilidades agora oferecidas a alguns de escapar à sua miséria contribuem para separá-los radicalmente dos operários que têm consciência de classe.

A ideologia do operário stakhanovistas definiu-se essencialmente como uma ideologia pequeno-burguesa. A sua propriedade é todo o seu universo. Ele sente-se superior à massa dos operários; para ele os não stakhanovistas são homens inferiores, é preciso expulsá-los das fábricas. Ele é conservador e dá o seu apoio a todas as iniciativas do governo. Ele inclina-se perante os seus superiores e despreza os seus subordinados. Tem uma caderneta de poupança, e investe dinheiro em obrigações do Estado; é sensível ao fato de receber juros, rendimentos obtidos sem trabalhar. Detesta os verdadeiros comunistas e aplaude os ataques de Stálin contra os discordantes de esquerda. É a este tipo de indivíduos que reclamou a execução de dezesseis velhos bolcheviques. Estão prontos a tudo para cair nas boas graças de seus patrões.

A Nova Constituição

A burocracia instalada antigamente no poder, graças aos operários, deve hoje proteger-se contra eles. Para isso, tem necessidade de aliados e encontra-os entre os camponeses e a aristocracia operária. Para estas camadas privilegiadas, o despertar da consciência operária representa o maior perigo. Elas têm, portanto, interesse em destruir todos os embriões de manifestação. Também começaram por “muscular” o marxismo. Tentaram provar “marxistamente” que era necessário e desejável manter os seus privilégios, o trabalho assalariado, as relações capitalistas, a ditadura do Partido… etc., fazendo passar isso por socialismo. Todos os marxistas que se opuseram a esta mentira tornaram-se inimigos mortais da burocracia. Suprimem-se definitivamente os direitos políticos adquiridos pelos trabalhadores aquando da Revolução. A nova constituição da União Soviética é disso uma ilustração flagrante.

Foi concebida para dar um maior peso político às camadas não proletárias do País. Antigamente, o voto de um camponês equivalia a um terço do de um operário; atualmente tem o mesmo valor. A falsa democracia deve salvaguardar os privilégios da clique dirigente. Isto não quer dizer que a Rússia queira copiar a democracia burguesa desde o seu início. Pelo contrário, a sua democracia não é senão o instrumento da sua ditadura sobre os trabalhadores. Não há senão um partido; somente os candidatos da burocracia podem ser eleitos. A natureza profunda destes dezenove anos de bolchevismo encontra-se perfeitamente expressa na nova constituição: todo o poder real pertence aos mais altos órgãos do Estado. Os “sovietes” das aldeias e das cidades perderam toda a autonomia. Foram reduzidos à função de organismos de Estado, de força de polícia. Cada grupo de 300 mil votantes elege um representante que o Partido envia ao Soviete da União e um segundo que se fixa no Soviete das Repúblicas Nacionais. Os representantes da União e o Soviete das Repúblicas Nacionais elegem em seguida o Soviete Supremo. Este, por seu lado, elege um paresidium que é investido de todos os poderes, incluindo o de dissolver o Soviete Supremo. Esse paresidium, mais os Comissários do Povo, eleitos pelo Soviete da União, governam efetivamente. Os mecanismos desse sistema parlamentar garantem ao governo um poder praticamente ilimitado; de qualquer modo é o próprio Governo que propõe os candidatos às eleições. Otto Bauer, da II Internacional, mostra-se cheio de entusiasmo por esta nova Constituição, esta nova democracia. Há apenas um senão: que o seu próprio partido não esteja sempre nela representado. Mas para os operários, esta falsa democracia apenas acrescenta o insulto à exploração.

Capitalismo de Estado e Comunismo

É preciso considerar a Rússia como um país capitalista e um inimigo mortal do comunismo. Isto tornar-se-á cada vez mais evidente. Os comunistas serão perseguidos e mortos tanto na Rússia como em outros lados. Se alguns alimentam ainda a ilusão de ver o socialismo “edificar-se” mais cedo ou mais tarde na Rússia, cedo descobrirão que as classes privilegiadas não renunciam nunca, deliberadamente, aos seus privilégios. Os que esperam ver a classe possidente abandonar a sua propriedade sem luta, fazem uma religião. O socialismo não se constrói. Ou ele é o produto direto da revolução proletária, ou não o será. A revolução de 1917 manteve uma revolução burguesa. Os seus elementos proletários foram vencidos. Ela não suprimiu o fundamento de toda a dominação, mas apenas derrubou a dominação czarista. Ela não suprimiu todas as relações de propriedade, mas apenas aboliu as relações de propriedade privada do capitalismo. Só quando os trabalhadores tomam o poder nas suas mãos e organizam a sociedade para si próprios é que as bases do comunismo são lançadas. O que existe na Rússia é um capitalismo de Estado. Os que se dizem comunistas devem também atacar o capitalismo de Estado. E na revolução futura, os operários russos deverão derrubar esse capitalismo de Estado. A sociedade de exploração russa, como todas as outras sociedades de exploração, engendra, todos os dias, os seus próprios coveiros. A pauperização relativa será seguida da pauperização absoluta dos trabalhadores. O dia virá em que na Rússia, uma vez mais, como nos dias heroicos de Outubro, mas ainda mais forte, se ouvirá o grito de guerra: “Todo o poder aos sovietes!”.

O ensaio é uma transcrição da versão que se encontra disponível no seguinte livro: A Contra-Revolução Burocrática. Coimbra: Centelha, 1978. Original em: http://aaap.be/Pages/International-Council-Correspondence.html.

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