Nota de Introdução do Crítica Desapieda [Felipe Andrade]:
O presente artigo escrito por Lucas Maia, e agora disponibilizado no Crítica Desapiedada, se delimita a uma discussão sobre a primeira obra publicada pelo jovem Gilles Dauvé, no período em que ele escrevia sob o pseudônimo de Jean Barrot. Dessa maneira, o foco da discussão que aqui apresentamos aos nossos leitores é o livro Movimento Comunista, publicado na França em 1972 e traduzido para Portugal em 1977. Trata-se da primeira obra publicada pelo autor, onde a sua proximidade com as concepções bordiguistas tinha maior peso em sua formação, valendo-lhe a denominação de “bordiguista”, como feito por Lucas Maia e Nildo Viana em seus respectivos artigos.
No entanto, muitos podem se perguntar sobre as posições mais recentes de Gilles Dauvé, já que se trata de um autor ainda vivo, com uma prolífica produção que se mantém ativa e influente em determinadas organizações políticas. Atualmente, Dauvé possui ampla contribuição indireta em determinados grupos políticos (Endnotes, Theorie Communiste, etc.), ou mesmo contribui diretamente em certos espaços com a publicação de novos ensaios (DDT21, Troploin, etc.). Tal produção mais recente de Dauvé é qualificada politicamente de “comunização”, o que mereceria uma avaliação mais aprofundada e crítica, tarefa que será feita em momento mais oportuno, não apenas em relação à análise das obras, mas também em relação às traduções para o português destas.
Assim, em que pese as mudanças teóricas e políticas do autor Gilles Dauvé, o artigo aqui apresentado deve ser avaliado pela discussão que propõe e da qual ainda possui validade nos dias de hoje. Por mais que Dauvé possa ter mudado suas posições, ainda permanece válida a crítica aqui realizada, desde que entendida em seu devido contexto histórico e no processo de desenvolvimento intelectual do autor. Em outra oportunidade, estaremos nos dedicando a publicar outros textos visando a avaliação crítica-revolucionária da atual posição do Dauvé, bem como do que é chamado de “comunização”. Além disso, publicaremos traduções de ensaios da recente produção de Dauvé sobre outros temas, como a questão da mulher.Boa leitura. Crítica Desapiedada, Outubro. 2020.
“O Comunista, quanto a si, não se interroga sobre se a sua ação
é “indispensável” ou “inútil”. Já não pode viver na sociedade atual,
compreende que uma solução individual seria simplesmente
ilusória e identifica-se com o movimento comunista” (Barrot, 1977, p. 154).
O livro de Jean Barrot [Gilles Dauvé], publicado em francês em 1972 e em português pela editora portuguesa &Etc em 1977, é uma preciosa contribuição à teoria revolucionária. Trata-se de um texto com certa originalidade, não só no estilo, mas também na articulação de temas e debates que apresenta. Nosso objetivo aqui, nos limites deste pequeno ensaio, é mais do que resenhar o livro de Barrot. Trata-se objetivamente de realizar um debate expondo, onde, de nosso ponto de vista, seu livro contribui com a teoria e com a prática da revolução proletária e onde, de certa forma, ele contribui para nublar este processo. Na primeira parte, apresentamos o que constitui a grande contribuição da obra, ou seja, a compreensão da dinâmica do capital e como esta engendra o movimento comunista. Na segunda parte, demonstramos como ele negligencia ou desconsidera dois elementos fundamentais no processo revolucionário, ou seja, a questão da organização, tanto a do proletariado propriamente dito como a dos comunistas (que não necessariamente são proletários) e o papel que o desenvolvimento da consciência revolucionária desempenha neste processo.
O movimento do capital e o movimento comunista
O livro está dividido em três partes: 1) “Definição do capital”; 2) “O movimento comunista; e 3) “Revolução e contra-revolução”. Na primeira parte, como indica a própria expressão, os capítulos se organizam de modo a dar uma apresentação de conjunto do que se constitui o capital. Neste aspecto, tal como ele mesmo afirma no prefácio da obra, não se encontra nenhuma “novidade” de análise, ou seja, algo “novo” em relação às análises de Marx e de alguns de seus continuadores. Nem é, contudo, o seu objetivo. Tal como ele afirma no posfácio:
“Mas não há nunca no comunismo teórico esforço sistemático de novidade, à maneira dos intelectuais antes de mais preocupados em lançar (i.e., em vender) idéias novas. Seria, de resto, tão ridículo reprovar-se-lhes isso como rirmo-nos do operário que vende a sua força de trabalho e fabrica objetos inúteis. (Barrot, 1977, p. 319)”
Ele não está interessado, portanto, em inventar novas palavras, novos constructos[1]. Interessa-lhe objetivamente apresentar uma leitura de conjunto dos processos que engendram o movimento comunista. Para tal, não há outro caminho a não ser começar pelo começo (o pleonasmo é intencional), ou seja, pela análise do capital. Nesta matéria, não há muitas diferenças das afirmações clássicas de Marx.
O primeiro elemento a constatar a partir da leitura e análise da obra é a afirmação segundo a qual o capital é relação social. Isto encontra-se em vários escritos de Marx (1983; 2011), notadamente O Capital e os Grundrisse. Esta idéia vem da crítica que Marx realiza à Economia Política. Em O Capital Marx distingue os economistas em basicamente três categorias: os economistas clássicos, os economistas vulgares e os economistas sincréticos ou ecléticos[2]. Na crítica que dirige principalmente aos economistas vulgares, acusa-os de compreender o capital como sendo coisa (instrumentos de trabalho, objetos de trabalho, dinheiro etc.). Esta leitura da economia vulgar não compreende a historicidade da produção capitalista. O capitalismo, enquanto modo de produção, pressupõe o capital como relação social. Isto implica que dinheiro, meios de produção etc. só são capital quando envolvidos em relações capitalistas de produção. Estas, nem sempre existiram e tendem, devido às próprias contradições que engendram, a perecer.
O capital como relação social pressupõe a existência e o relacionamento recíproco entre duas classes fundamentais do capitalismo: burguesia e proletariado. A dinâmica social que envolve estas duas classes dentro do processo produtivo constitui o elemento fundamental da produção capitalista, a razão de existência deste modo de produção, ou seja, a produção de mais-valor. Assim, a produção de valores de uso no capitalismo visa única e exclusivamente a valorização do capital previamente investido. Esta valorização é necessariamente a produção de um mais-valor (Marx, 1983).
Vejamos como Barrot coloca a questão:
“Finalmente, a questão apresenta-se assim: vejamos uma fábrica, ou antes, a vida industrial e econômica de um país. O que é que constitui as suas máquinas e todas as suas instalações em capital? O que é que faz dos operários que aí trabalham assalariados? Resolver este problema é esclarecer o devir da relação específica que faz desta fábrica, das máquinas e dos operários, fatores do capital. A superioridade da crítica da economia política em relação à economia política reside, finalmente, não tanto na análise do capital em si mesma, mas sim na inteligência do seu devir, na compreensão do momento profundo que o anima e o substituirá por um outro modo de produção (Barrot, 1977, p. 52).”
Ou seja, máquinas, trabalhadores, objetos de trabalho etc. só são capital dentro do quadro de determinadas relações sociais. Mudando-se estas relações, muda-se na mesma medida a qualificação destes “fatores”, tornando-se socialmente algo diferente do que são, embora fisicamente continuem a ser máquinas, trabalhadores e objetos de trabalho. Mas o mais importante desta forma de conceber a questão é a própria colocação do devir histórico como algo imanente ao presente, como algo que existe objetivamente. Isto significa, no final das contas, historicizar as relações de produção dominantes com a instauração da sociedade capitalista.
Esta é uma das grandes contribuições de Marx, ou seja, a colocação do comunismo como algo que se desenvolve dentro do capitalismo, mas contra este. Jean Barrot leva esta ideia às suas implicações teóricas mais profundas. Esta é a tese fundamental de seu livro. Marx e Engels (1976) postularam isto de modo bastante claro em A Ideologia Alemã, afirmando que o comunismo não é um tal estado de coisas a ser alcançado, mas sim um movimento real que abole o modo de produção existente. Isto quer dizer que o comunismo é algo que surge e se desenvolve dentro do próprio capitalismo, mas como sua antípoda. O sujeito social que tem as condições materiais de engendrar este movimento é o proletariado, pois este é o principal agente vivo da produção. O comunismo é, sobretudo, um revolucionamento das relações de produção.
Barrot parte desta tese fundamental de Marx e Engels na construção de sua argumentação e na mesma medida a aprofunda e a atualiza. Qual é, deste modo, o conjunto de contradições com as quais lida o capital, ou melhor, que o constitui, que permitem perceber o seu movimento de dissolução e, portanto, de constituição do movimento comunista? Toma de empréstimo a Marx (1983) a ideia de “composição orgânica do capital”. Todo capital necessariamente divide-se em duas partes: capital constante e capital variável. O capital constante é aquela fração de determinado capital que é investida em meios de produção (maquinaria, instalações, matérias-primas etc.). O capital variável é aquela fração do capital que é investida em força de trabalho (salários). A tendência do capital, tal como demonstrou Marx (1983) em O Capital, é sempre aumentar sua parte constante em relação á sua parte variável. Este processo ele conceituou como sendo o aumento da composição orgânica do capital. Assim, quanto maior for esta composição, maior será o quantum de capital constante (fixo e circulante) em relação à parte variável. Esta é uma tendência “natural”, inelutável do capital. Todos os capitalistas a ela estão submetidos. O problema, do ponto de vista do capital, é que isto gera uma contradição fundamental no cerne mesmo da produção capitalista.
O capital constante só repassa o valor que já contém em si aos produtos fabricados. Máquinas e matérias-primas são incapazes de produzir valor novo. Somente quem pode valorizar o capital inicialmente investido é a força de trabalho (capital variável) e esta, relativamente ao capital constante tende sempre a diminuir, dado o aumento necessário da composição orgânica do capital. A este processo, Marx deu o nome de “tendência declinante da taxa de lucro”. Barrot (1977) expressa este movimento como sendo a tendência do capital a se desvalorizar. O capital é, segundo Marx, uma “contradição ambulante”, ou seja, a determinação fundamental de sua existência, a sua valorização, implica necessariamente num processo de desvalorização.
Segundo Barrot:
“A oposição valorização/desvalorização é aquilo que necessita de uma transformação pela qual o mecanismo e o aparelho produtivo rejeitarão a lei do valor, tornada, segundo expressão de Marx, “caduca”. Esta contradição não fará saltar apenas o esqueleto do valor: ela construirá, por isso mesmo, um mundo novo, cujos princípios gerais são compreensíveis com base na teoria do valor e do capital (Barrot, 1977, p. 67). (grifos meus)”
O que ele descreve aí é nada mais nada menos do que o movimento do capital. Melhor dizendo, para utilizarmos uma expressão menos fetichista, é o movimento que os agentes do capital são constrangidos a realizar devido ao conjunto mesmo das relações sociais que impelem os grupos, classes e indivíduos a agirem de determinada maneira. Mas este movimento próprio, imanente, ontológico do capital produz na mesma medida e contrariamente a ele o seu oposto, ou seja, o comunismo.
O desenvolvimento capitalista, segundo expressão do próprio Barrot (1977) conduz a uma “autonomização do valor”, ou seja, este passa a colonizar todo o conjunto da vida social e porque se constitui como a relação social fundamental, constrange todos os indivíduos, grupos, classes etc. a se submeterem à sua lógica. Todo o processo de produção, circulação, distribuição e consumo é, no capitalismo, necessariamente subordinado à lógica do valor: o tempo de trabalho médio socialmente necessário à produção das mercadorias. É isto que permite a existência da troca “universal” no capitalismo. Entretanto, este movimento próprio, e é nisto que consiste todo o argumento do livro de Barrot, conduz à sua própria negação: o movimento comunista.
Para Barrot,
“O capital é uma estrutura contraditória. O que não o impede de existir; mas tem de pagar por isso um preço (crises periódicas). O capital só desaparecerá quando a sua contradição se tornar impossível. Esta deve então desaparecer, mas eliminando a sua causa: o capital – surgindo então a “crise final” (revolução comunista). A contradição fundamental opõe, em última análise, as relações de produção (capital e valor) às forças produtivas (meios de produção [= capital fixo] e força de trabalho [como, por definição, o capital fixo só é trabalho morto, o papel ativo na revolução incumbe à força de trabalho, aos que representam o trabalho vivo = o proletariado]). Esta oposição mergulha as suas raízes no desenvolvimento das próprias forças produtivas (Barrot, 1977, p. 75).”
Ou seja, o comunismo é um processo de negação constante do capitalismo. Apresenta-se com uma lógica contra a qual o capital necessariamente tem de lutar. A tendência à centralização e concentração de capitais, a acumulação etc. são forças sociais profundas às quais nenhum capitalista individual, empresa ou mesmo estado controla individualmente, embora todos estejam a estas tendências submetidos. Para que haja sempre acumulação de capital, ou seja, reprodução ampliada, o capital encontra cada vez mais obstáculos, embora os supere sempre. Ao fazê-lo produz novas dificuldades com as quais necessariamente tem que lidar.
Na terceira parte do livro, Barrot apresenta de modo bastante eloquente o conjunto de dificuldades históricas encontradas pelo capital e como este sempre as supera. A tese fundamental desta parte do livro é a de que o capital, ou melhor, os agentes sociais (indivíduos, grupos etc.) – meras personificações de carne e osso das relações sociais capitalistas – são constrangidos a esmagar periodicamente o elemento negativo do capital: o comunismo. O autor cria uma expressão interessante para isto: “A dominação real do capital”.
Retoma a ideia de Marx de subsunção real e formal do trabalho ao capital. A subsunção formal é todo um processo histórico no qual o capital vai a pouco e pouco construindo os elementos essenciais para subordinar o processo de trabalho (meios de produção, forças produtivas, trabalhadores etc.) à sua lógica. O estabelecimento da maquinofatura moderna com a grande indústria e os processos de automação e subordinação do trabalhador à máquina são a culminação de todo o movimento[3]. Em uma palavra: a subsunção formal é aquela na qual o capital ainda não conseguiu espoliar completamente o trabalhador do domínio sobre o processo de trabalho[4]. Ao passo que a subordinação real é aquela na qual o capital conseguiu colonizar todo o processo de trabalho: controle sobre a produção, circulação, distribuição, consumo; sobre a subjetividade do trabalhador, agora, por exemplo, ele está completamente submetido aos desígnios do capital, não tem mais nenhuma iniciativa sobre o processo de trabalho, até mesmo o conhecimento sobre as técnicas de trabalho foram dele retiradas, agora pertence aos técnicos e às máquinas etc.
Barrot, com a idéia de “dominação real do capital” leva esta assertiva para o conjunto da sociedade: a política, a ideologia, o cotidiano etc. O capital agora não controla somente o processo de trabalho, mas sim todo o conjunto da vida na sociedade. Este processo se efetiva na Europa e Estados Unidos entre as duas guerras e parte para quase todo o mundo com o fim da segunda guerra mundial com o estabelecimento daquilo que Viana (2003; 2009) denomina de “regime de acumulação intensivo-extensivo”, no qual os países imperialistas exportam parte de seus capitais produtivos para quase todas as partes do mundo (veja o caso das multinacionais nos anos 1960 e 1970 que se instalam em vários países de capitalismo subordinado, tanto na América Latina, quanto África e Ásia). A dominação real do capital é, portanto, a colonização, por parte do capital, do conjunto da vida social bem como seu espraiamento para quase todas as partes do mundo.
Barrot assim expõe sua tese:
“Esta transformação do processo de produção imediato é acompanhada por uma transformação das condições gerais de produção. O capital fixo, e com ele a ciência e a técnica, tendem a desempenhar o papel essencial. Na medida em que a valorização supõe o controle da ciência, da técnica, da força de trabalho (cujo uso se torna mais intensivo do que extensivo, ela exige o controle de toda a sociedade, do simples ponto de vista das necessidades da produção propriamente dita (acrescidas também das necessidades: 1° de dominação das contradições econômicas; 2° de esmagar o proletariado; 3° de organizar cada sociedade nacional, como um todo, em pé de guerra contra as outras na perspectiva de conflitos). O capital vem, portanto, dominar toda a vida social, incluindo os seus aspectos mais “desinteressados”: integra tudo – a investigação [pesquisa], o ensino (estuda-se e ensina-se o “marxismo”), a própria arte na medida em que tudo possa ajudar a produção. (…) Uma das manifestações deste movimento, de que apenas é um efeito, é a “colonização” da vida social pela mercadoria (Barrot, 1977, p. 178)”
Ou seja, não há mais lugares, espaços, relações etc. que não sejam de uma ou outra maneira determinados pelo capital e o conjunto de práticas, formas de pensar e agir que ele implica. Agora ele está no mundo inteiro, está na arte, na ciência, no cotidiano etc. É o reino absoluto da mercadoria. O capital conseguiu completar seu ciclo de expansão e colonização geral da sociedade. Há agora uma articulação mundial de lugares para que o capital possa se reproduzir.
Tudo isto seria algo completamente harmônico não fosse o capital uma “contradição ambulante”. Com todo este processo, ele conseguiu somente estender suas contradições a todos os lugares do mundo e a todos os espaços da vida. No Manifesto Comunista, Marx e Engels disseram: “um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo” (Marx e Engels, 2002, p. 21). Este espectro ronda agora o mundo inteiro. O capital é uma realidade mundial. Em contra-partida, o comunismo é também uma realidade mundial, visto o movimento do capital gerar o movimento comunista.
Para Barrot,
“Vimos (…) que o movimento comunista era o fator essencial da evolução atual das sociedades humanas. Este parágrafo procurou fornecer algumas apreciações do modo pelo qual o capital não só gera este movimento como a ele se opõe com todas as suas forças. Uma das tarefas da teoria comunista é estudar a totalidade da gama de meios que este movimento produz. Desde há já muito tempo que o capital se ocupa da prevenção e da sua preparação para a revolução comunista e para a guerra revolucionária (Barrot, 1977, p. 187). (grifos meus)”
Ou seja, o capital gera o comunismo e sabe que o faz. Todo o século 20 é recheado de um conjunto de esforços por parte do capital para evitar o comunismo. Barrot elenca alguns: 1° e 2° guerras mundiais, nazismo e fascismo na Europa (estas são algumas das formas mais drásticas de massacrar fisicamente o proletariado). Há outras mais brandas: democracia, estado de bem-estar-social etc. (formas de integrar o proletariado nos mecanismos de consumo e participação da mercadoria) entre outras formas. Ou seja, o capital gera o comunismo e o anticomunismo.
Da maneira como as coisas estão colocadas, seria então o comunismo o produto de um mecanismo econômico e social no qual a ação dos sujeitos (o proletariado) é algo secundário? Como age o proletariado na direção de construção do modo de produção comunista? Se o capital gera o comunismo, deve o proletariado cruzar os braços e esperar que o reino dos céus caia sobre a terra? Como Barrot considera o proletariado neste processo todo? Que papel desempenha o desenvolvimento da consciência na progressão das lutas proletárias?
Vejamos estas questões um pouco mais de perto.
A questão da organização e o problema da consciência
O livro de Jean Barrot é, portanto, uma preciosa contribuição à teoria da revolução comunista[5]. Seu grande mérito é, todavia, um dos seus principais limites. O movimento do capital, ou seja, a “autonomização do valor” que gera na mesma medida sua desvalorização é o elemento fundamental sem o qual a revolução comunista não se realizaria. O comunismo ou a autogestão social é o produto de uma dinâmica profunda, determinada socialmente e a qual não está sob o controle de nenhum indivíduo ou grupo social considerado isoladamente. Trata-se de uma lógica social que a todos subordina, tanto burgueses, quanto proletários.
Esta lógica inelutável de expansão, concentração, valorização etc. implica necessariamente em conflitos sociais determinados por divergentes interesses de classes, que ora ou outra vem à luz do dia e se manifestam de forma cristalina. Em que pese, na reprodução cotidiana estes interesses não desaparecerem, sendo algo permanente e inerente à reprodução do capital, só se apresentam de modo claro e objetivo em determinados momentos históricos, sendo as ondas revolucionárias seu ponto de inflexão mais radicalizado.
Para Barrot,
“À medida que o capitalismo cresce, que a sua extensão geográfica abarca a totalidade do mundo e que o seu desenvolvimento se afirma nos países altamente industrializados, o comunismo vai-se desenvolvendo nas entranhas do capitalismo; isto é, afirma-se ao mesmo tempo como movimento “econômico” desvalorizando o capital e provocando as crises periódicas; e como movimento “político”, nas lutas em que tenta derrubar o Estado do capital e instaurar o seu poder. Estes dois movimentos podem parecer independentes um do outro. O primeiro parecerá fazer sobressair a sua natureza “econômica”, enquanto que o segundo afirmaria a sua vocação “política”. Na realidade, porém, ambos participam do movimento comunista, movimento antes de mais nada social, por que se esforça por instaurar novas relações sociais adaptadas à evolução econômica e social. O capitalismo, tornado caduco e nefasto sob o estrito ponto de vista econômico, apresenta-se então como uma gigantesca organização anticomunista (Barrot, 1977, p. 161/162) (grifos meus)”
Ou seja, claro está, tal como já expusemos na seção anterior, que o comunismo gera-se dentro do capitalismo, mas como sua negação. O comunismo não pode existir, como modo de produção, dentro dos quadros do capitalismo. No seio da sociedade burguesa só pode existir como movimento que a nega. Mas é justamente aí que cessa a contribuição de Barrot e se inicia sua derrocada teórica. O capital, como relação social que desenvolve as forças produtivas, há muito que já não é mais revolucionário. Como ele afirma, do ponto de vista econômico, o capital já se tornou “caduco”. Todo o movimento do capital consiste agora em conter suas contradições e mantê-las num nível tolerável que garanta sempre e sempre retomar a acumulação. Por isto ele afirma que do ponto de vista político, o capital é um movimento anticomunista, pois este representa um estágio superior de desenvolvimento das capacidades produtivas da humanidade, onde a produção seria liberta das amarras que o capital lhe impõe.
Mas como se operaria isto? A rejeição de Barrot em considerar as experiências passadas como formas de se pensar as revoluções futuras o leva a uma certa incompreensão do papel da organização e da consciência dentro do processo revolucionário. Toda sua energia está concentrada em compreender como o movimento do capital gera o movimento comunista, mas ele não consegue ou só consegue parcialmente, analisando as experiências operárias, bem como as contribuições teóricas derivadas delas, desvendar a maneira como se processam as revoluções. E isto se dá por ele negligenciar ou mesmo atribuir pouco ou nenhuma importância à questão da consciência e da organização, tanto do proletariado em si, quanto dos comunistas ou dos militantes autogestionários.
De fato, ele só apreende parte do processo revolucionário, ou seja, a dinâmica segundo a qual as classes possidentes jogam na luta o proletariado que não a quer. Só compreende, analisando o processo de constituição do capital, como este cria as condições econômicas, políticas e sociais para o engendramento do movimento comunista. Sua afirmação segundo a qual o movimento comunista é uma criação genuína do capital é de fato verdadeira e irrefutável. Mas a maneira como faz isto é problemática na medida em que os sujeitos sociais que levarão a cabo a revolução são entendidos somente como resultados do processo.
Por só considerar ou dar primazia ao movimento do capital, sua leitura do movimento comunista não consegue sair da constatação de que este é produto daquele, ou melhor, que aquele cria as condições para que este se desenvolva. Ou seja, sua leitura do movimento comunista é deveras muito parcial, pois só consegue trazer à luz do dia parte do processo. A outra parte, ou seja, os sujeitos sociais que levarão a cabo a revolução comunista só são analisados de modo secundário. Em uma palavra, ao fim e ao cabo, Barrot compreende a dinâmica do capital, seu processo de engendramento, contradições e sua tendência à autodestruição. Contudo, não compreende a dinâmica das lutas proletárias, sua natureza, características, possibilidades, limites e contradições.
E ele de certa forma reconhece isto quando afirma:
“No caso deste livro, queria mostrar algo como uma lógica histórica – contra as interpretações que dão a primazia ao “partido”, à “ação das massas”, à “organização”, à “intervenção”, à “tomada de consciência”. Por reação (e também, sem dúvida, por isolamento), o livro tende a apresentar uma lógica mais mecânica do que social – a palavra “mecanismo” surge, de resto, com relativa frequência. Tem-se, por isso, por vezes, a impressão duma evolução automática, prevista, “programada”, segundo “leis” comparáveis às da física ou das matemáticas. A análise é exata; faz, porém, abstração de outros aspectos do problema e da realidade. Tende a tudo explicar em função de uma dinâmica econômica cujo impulso inelutável engendraria a revolução comunista tal como engendrou o capitalismo. É verdade que a causa profunda do movimento proletário é a sua situação material; mas, quando Marx fala de “constrangimento histórico” n´ A Sagrada Família, este constrangimento não é independente da ação humana e da capacidade (ou incapacidade) dos proletários para agir (Barrot, 1977, p. 9). (grifos meus)”
Resta em sua leitura do movimento comunista a forma e o conteúdo de tal movimento. Ele compreende a dinâmica que o gera, mas não as formas e os conteúdos de suas ações. Toda a experiência dos séculos 19 e 20 por ele analisadas só são utilizadas para confirmar sua hipótese inicial, ou seja, de que as condições do comunismo têm que estar economicamente colocadas pelo capitalismo. Não que isto seja um problema em si. O problema consiste em eleger isto como lei e isolá-la do conjunto das determinações sociais envolvidas no processo. Ao fazer isto, o autor cria um modelo de análise da revolução proletária. Assim, a revolução de 1848 não poderia mesmo triunfar, pois o capitalismo ainda era débil demais para tanto. A Comuna de Paris tinha que fracassar, pois as condições econômicas e sociais ainda não estavam dadas, o capital ainda não tinha socializado o mundo de forma a permitir a emergência do comunismo. As revoluções russa, alemã, húngara, italiana etc. das duas primeiras décadas do século 20 não podiam ir além do que foram, pois a “dominação real do capital” (Barrot, 1977) ainda não se tinha completado etc. Ou seja, o procedimento por ele adotado é problemático, pois acaba por erigir em lei, processos que na verdade apresentam múltiplas determinações. Assim, por exemplo, negligenciar todo o papel que os bolcheviques desempenharam durante a contra-revolução russa, tentando explicar a derrota do proletariado como resultado do pouco desenvolvimento do capital, é simplificar por demais a análise, nublando, na verdade, a determinação fundamental que explica o processo. Sim, o capital era pouco desenvolvido na Rússia em 1917. Mas tal como demonstra Brinton (1975), a determinação fundamental para o “fracasso” da revolução russa não se deveu a qualquer atraso do capitalismo russo, mas sim, à ação sistemática da burocracia do Partido Comunista, erigida em burocracia estatal, em eliminar sistematicamente os soviets. Naturalmente que a este processo soma-se o atraso do capitalismo russo, a 1° guerra mundial, a derrota do proletariado em escala mundial etc. Ou seja, é um conjunto de processos, que se determinam de maneira recíproca uns aos outros. Ou seja, sua tese é verdadeira em partes, pois coloca um aspecto da questão (o fato de o capital ainda não ter se instalado de modo generalizado no território russo), mas não coloca a totalidade do processo, ou seja, as outras determinações que compõem o fenômeno. Isto que ele faz para a revolução russa, o faz também para as demais experiências que ele analisa.
A primazia do “mecanismo” sobre o conjunto de processos sociais que na verdade compõe a emergência do movimento comunista é o erro que leva Barrot a só explicitar parte de todo o movimento social que o proletariado é “constrangido a executar”.
Discutindo esta questão, Viana (2001) afirma:
“A partir de tal ponto de partida, o bordiguismo irá centralizar sua atenção no movimento do capital e desconhecer a ação revolucionária do proletariado. Se limitar à leitura de O Capital também significa observar o movimento do capital, do valor, a tendência de dissolução e destruição do capitalismo, mas, dependendo da leitura, pode-se ver isto como a palavra final, o que significa a auto-dissolução do capital enquanto conclusão da história. Ora, a auto-dissolução do capital não diz nada sobre a sociedade pós-capitalista, apenas coloca que haverá transformação social mas não o seu sentido. A percepção deste sentido só pode ocorrer fora do movimento do capital. É por isso que a história não está pré-determinada, pois a auto-dissolução do capital pode tanto constituir o modo de produção comunista quanto um modo de produção burocrático (Viana, 2001, p. 36). (grifos meus)”
Esta percepção que Viana teve da concepção bordiguista, da qual Jean Barrot é uma expressão eminente, sintetiza de modo cristalino o grande equívoco de Barrot. Como já notamos, sua hipótese acaba por conduzi-lo a um procedimento metodológico problemático, ou seja, de isolar um aspecto da realidade sem conectá-lo ou compreendê-lo como parte de uma totalidade mais ampla. Mas esta mesma hipótese o conduz a outros dois problemas, tais como os apontados por Viana: a) pré-determina a história, ou seja, auto-dissolução do capital gera necessariamente o comunismo. Não há, portanto, outra alternativa histórica; b) ao derivar o comunismo do movimento do capital, não sai da esfera do capital, assim, não percebe o movimento que engendra o comunismo, o qual só pode ser encontrado nas formas de luta e no conteúdo do movimento do proletariado[6].
Por causa deste conjunto de elementos que elenquei, é que ele dá pouca ou nenhuma consideração de maior importância à questão da organização, tanto do proletariado em si, quanto dos comunistas ou para utilizar uma terminologia menos problemática, os “militantes autogestionários” (Viana, 2008). No que se refere à organização do proletariado, o máximo que Barrot consegue avançar é criticar os partidos e os sindicatos, identificando estas instituições como agentes, elementos da dinâmica, do movimento do capital. Vê, portanto, o lado negativo da ação proletária. Estas são instituições que os trabalhadores terão que rejeitar em seus processos de luta. Em que pese as linhas que dedique a esta questão sejam mínimas no conjunto do livro, fica, de qualquer forma, patente sua análise destas organizações. São instituições incluídas na lógica do valor e devem, portanto, ser negadas como instrumentos de luta do proletariado.
Nas palavras do próprio Barrot:
“A revolução comunista é um processo social que o proletariado será constrangido a realizar. (…) Cada classe social utiliza os meios de luta que a sua função social põe, por assim dizer “naturalmente”, à sua disposição, e que ela se encontra na obrigação de empregar, sob pena de ser vencida. Agindo desta maneira, o proletariado empenha-se “sem o saber” numa dinâmica de destruição social, e, por isso mesmo, de criação social. Não faz senão manifestar o seu ser profundo, isto é, finalmente, a transformação que as forças de produção exigem. Fazendo eles próprios funcionar as fábricas, os proletários desembaraçam-se dos capitalistas. Perante a reação geral de tudo o que a sociedade conta como dirigentes políticos (Estado), econômicos (patrões), e “sociais” (sindicatos), sem esquecer os partidos ditos operários, eles são constrangidos, para sobreviver, a comunicar diretamente os produtos entre as fábricas. Iniciam assim a destruição do capital (Barrot, 1977, p. 142). (grifos meus)”
As partes que grifei em itálico são para destacar como o pensamento de Barrot se manifesta. Mas fica claro aí que para ele estas instituições são todas instrumentos do capital e de controle, portanto, de dominação sobre o proletariado, logo, de reprodução do capitalismo. Ele afirma que os proletários devem tomar as fábricas, que devem “comunicar diretamente os produtos” etc. Em nenhum parágrafo de todo o livro aparece qualquer insinuação de como este processo deve-se dar. Não se trata de fazer qualquer esforço de futurologia. Não é isto que estou pretendendo que ele faça. Pelo contrário, trata-se de a partir das experiências passadas do proletariado encontrar o conteúdo social das lutas, do movimento comunista, que conduzirá ao estabelecimento do modo de produção comunista, ou seja, da autogestão social.
O bordiguismo, como destaquei em Maia (2010) fica no nível da negação do que existe, mas não consegue apreender o conteúdo dos elementos novos que são gestados com o processo de luta do proletariado. Para uma leitura mais aprofundada sobre isto, pode-se consultar toda uma plêiade de autores ligados ao que ficou conhecido como comunismo de conselhos. Estes autores apontam justamente o que Barrot e toda a esquerda bordiguista negligenciou, ou seja, as formas de luta e organização do proletariado que conduzem à autogestão social. Os Conselhos Operários de Anton Pannekoek (1977) são o exemplo mais característico deste fenômeno. Nesta obra, o autor aponta, analisando as experiências revolucionárias das duas primeiras décadas do século 20, o conteúdo e a forma dos processos que engendram o comunismo. Pannekoek, bem como todos os conselhistas, fazem uma profunda crítica dos partidos, dos sindicatos, do estado, do parlamentarismo, da democracia etc. todas instituições também criticadas por Barrot. Entretanto, os conselhistas apresentam uma certa superioridade em relação a este justamente por demonstrar a forma como o proletariado historicamente foi constrangido a lutar. Assim, as análises da Comuna de Paris, das revoluções russa e alemã, da guerra civil espanhola etc. são riquíssimas fontes de consulta, importantes laboratórios de como o proletariado pode realizar sua luta. Os conselhos operários como forma de organização do proletariado são a forma mais radicalizada de luta dos trabalhadores. Expressam o momento no qual os trabalhadores criam suas próprias instituições e colocam primeiramente suas próprias lutas sob seu controle. Esta é a condição para que coloquem também a sociedade para funcionar sobre outras bases, radicalmente distintas das atuais. Em uma palavra, a autogestão das próprias lutas é condição para a autogestão da sociedade futura.
Entretanto, como aponta Pannekoek, os conselhos operários:
“(…) não são uma forma de organização fixa, elaborada de uma vez por todas, a qual só faltaria aperfeiçoar os detalhes: trata-se de um princípio, o principio da autogestão operária das empresas e da produção. A realização deste princípio não passa, absolutamente, por uma discussão teórica referente aos seus melhores modos de execução. É uma questão de luta prática contra o aparato de dominação capitalista. Em nossos dias, por conselhos operários não se entende a associação fraternal que tem um fim em si mesma: conselhos operários quer dizer luta de classes (na qual a fraternidade tem seu lugar), ação revolucionária contra o poder de Estado (Pannekoek apud Bricianer, 1975, p. 310). (grifos meus)”
Ou seja, os conselhos operários, como forma de luta e organização prática dos trabalhadores não são uma forma que será reproduzida tal qual foi criada pela primeira vez. Trata-se na verdade de um princípio segundo o qual os trabalhadores tem em suas próprias mãos os rumos e os objetivos de sua luta. Este processo é a pré-figuração da sociedade comunista ou autogerida. Como se vê, não se trata de qualquer trabalho de adivinhação nem de futurologia. Trata-se, pelo contrário, de verificar nos processos existentes concretamente os movimentos de tendência que se desenrolam no seio da sociedade moderna. Identificar e analisar estas tendências (Bloch, 2005) permite ter maior clareza da forma e do conteúdo, portanto, dos princípios que nortearão a prática do proletariado “constrangido” a agir revolucionariamente.
Este mesmo equívoco se reproduz em suas considerações sobre a questão da organização dos revolucionários, dos comunistas ou, como prefiro, dos militantes autogestionários. Somente no prefácio à edição portuguesa do livro, meio que fazendo uma auto-crítica, ele aponta a existência de alguns “grupos informais”. Por criticar a existência dos partidos e sindicatos como organizações diretamente vinculadas ao capital e por identificar a existência dos comunistas, o que é uma grande verdade, como algo diferente, mas não isolado ou independente do proletariado, ele postula esta tese dos grupos informais. Mas tal como denuncia Viana (2001), estes grupos aparecem do nada e não se sabe para onde vão, o que fazem, como fazem etc. Não são partidos no sentido vulgar da palavra, mas da análise do livro, não podemos dizer mais nada sobre eles, pois há um vazio teórico neste aspecto.
Há todo um capítulo do livro dedicado à questão do partido, mas o nível de abstração ideológica em que a análise é conduzida só nos permite concluir algumas generalidades sem qualquer importância para a luta e organização prática dos militantes autogestionários (ou dos comunistas). Como sempre faz, deduz a questão do partido do movimento do capital:
“A organização da revolução é coisa necessária. Mas a revolução não é um problema de organização. Para se compreender a questão da organização, é preciso sair-se do domínio próprio da organização e encarar-se o conteúdo social da revolução comunista. O problema do partido não é um problema teórico fundamental, como a análise do capital; decorre, pelo contrário, desta (Barrot, 1977, p. 155). (grifos meus)”
Em que pese sua crítica da organização como coisa formal seja exata e correta, a discussão que ele apresenta sobre a tese de Marx a respeito do “partido histórico” é uma grande abstração:
“A única possibilidade hoje é o partido histórico (isto é, composto pelos que cumprem uma jornada histórica dada: a revolução comunista), e não o partido formal (composto pelos que aceitam entrar – a palavra é significativa – numa organização) (Barrot, 1977, p. 155/156) [7].”
Ou seja, a negação do partido formal é um grande avanço em relação ao conjunto de concepções que idolatram o partido como legítima forma de luta proletária. Entretanto, da mesma forma que fez com a questão da organização do proletariado como classe, ele o fez com a questão do partido. No prefácio à edição portuguesa, como vimos, ele não fala em partido, mas sim em “grupos informais”. Tanto os “grupos informais” quanto o “partido histórico” são formas organizativas que pairam em suas concepções sem encontrarem um elo por onde possam se encaixar no todo articulado de conceitos que ele desenvolve. Isto é emblemático e demonstra o quanto a importância dada por ele ao “mecanismo” emperra a compreensão de processos que tem uma implicação prática séria para a luta proletária, ou seja, a questão da organização dos revolucionários ou dos militantes autogestionários[8]. Ou seja, sua leitura acaba por se transformar de uma importante teoria de compreensão da sociedade capitalista, notadamente de seus mecanismos econômicos em perigosa ideologia que nubla a compreensão tanto do engendramento das formas de lutas do proletariado, quanto dos militantes autogestionários. Neste aspecto, O Movimento Comunista de Jean Barrot deve ser dissecado a tal ponto que se esclareça que se trata de ideologia que ao invés de clarear o processo revolucionário, pelo contrário, como toda ideologia, o ofusca e o inverte.
Derivado de tudo isto surge o último ponto que quero destacar como algo problemático em sua análise derivado diretamente de sua leitura do movimento do capital: o papel da consciência revolucionária, da consciência de classe no processo de transformação social. Novamente sua insistência no processo mecânico de geração do movimento comunista o leva a negligenciar ou mesmo desprezar um elemento fundamental da revolução proletária: a consciência revolucionária.
Vejamos o que ele afirma, discutindo o papel da consciência no processo de eclosão da revolução comunista: “Não se trata, ainda aí, de uma questão de consciência: a ruptura não é o resultado de uma qualquer tomada de consciência. Trata-se provavelmente de uma contradição menor, que por si mesma não ameaça nada de essencial (Barrot, 1977, p. 137)” (grifos meus). Ou seja, de acordo com o que está dito, a revolução comunista é um processo mecânico no qual o proletariado é constrangido a se tornar comunista e a sua ação comunista não tem nenhuma relação com sua decisão de assim o agir. Trata-se de um mecanismo que o conduz. O deperecimento do valor o conduz a agir (conscientemente ou não), a instaurar as relações sociais comunistas.
Ainda, nesta mesma direção, afirma que na revolução comunista:
“Há oposição de duas classes [burguesia e proletariado] tornadas, tanto uma como outra, objetivamente inúteis: uma tenta suprimir a sua inutilidade, e a outra perpetuá-la. A revolução comunista não faz mais do que apresentar à luz do dia e de modo finalmente nítido, embora não necessariamente consciente para o maior número de pessoas, a luta entre o parelho produtivo e o valor, luta animada desde há muito pelos proletários e pelos capitalistas (Barrot, 1977, p. 146)”
Novamente o mecanismo valorização/desvalorização tal como expusemos na primeira parte conduz à revolução comunista. A consciência que as massas tem da ação é irrelevante ou pelo menos secundário. Ou seja, querendo-se isto ou não, a revolução comunista irá ocorrer; querendo-se isto ou não, o proletariado irá, a partir dos processos de deperecimento do valor, instaurar o comunismo.
Ainda, sobre a relação revolução/consciência revolucionária, ele afirma:
“E se o proletariado não fez ainda a revolução, é exatamente porque a revolução não é precisamente um problema de consciência, mas de maturação de condições objetivas determinadas (notar-se-á nos “esquerdistas” a prática que consiste em distinguir duas espécies de elementos nas massas: o tipo “instintivo” e “espontâneo”, e o tipo “consciente”. A partir do momento em que um proletário possui um laivo de teoria, de “consciência”, já não é um proletário como os outros. É então a sua vez de ir educar as massas, ou de as ajudar a auto-educarem-se. Na impossibilidade de se poder compreender onde se situa o motor da dinâmica social, procura-se substituir-lhe a educação; é sempre a concepção de uma parte da sociedade que se eleva acima da outra (Barrot, 1977, p. 153). (grifos meus)”
Já me referi várias vezes sobre o procedimento mecanicista que está subjacente às interpretações de Barrot. Se é fato que o capital tende, devido sua própria dinâmica de reprodução, a criar uma lógica que engendra contradições insolúveis, não é verdade, contudo, que isto necessariamente irá gerar o comunismo ou autogestão social. O fato de Barrot proceder com esta lógica de raciocínio o leva a desconsiderar, como, na verdade se dão os processos revolucionários. Ao isolar a dinâmica do capital, ele deixa de compreender a dinâmica do movimento revolucionário. Isto se reflete na sua maneira de analisar como o proletariado, como classe, se organiza, como os revolucionários militantes se organizam e como também se dá o processo de desenvolvimento da consciência.
Tal como disseram Marx e Engels (1976) na Ideologia Alemã, a consciência não pode ser mais do que o ser consciente e o ser consciente é o ser no seu processo de vida real, concreto, historicamente determinado. Barrot acerta em dizer que não existe qualquer movimento sem consciência de si mesmo. O problema é que ele negligencia o papel da consciência no desenvolvimento, radicalização, recrudescimento etc. deste mesmo movimento. Ou seja, é impossível não levar em conta o papel que a ação consciente do proletariado em luta desempenha na luta. Tal como demonstra Jensen (2001), a ação política dos grupos explorados e subordinados e notadamente o proletariado passa geralmente por três estágios: a) as lutas espontâneas; b) as lutas autônomas; c) as lutas autogestionárias. De modo bem esquemático, pode-se dizer que as lutas espontâneas são aquelas que ocorrem no cotidiano do capitalismo, visto este não poder existir sem conflitos. São geralmente caracterizadas por uma negativa, mas que ainda não desenvolveu uma consciência sobre si mesma ou, pelo menos, a consciência está no mesmo patamar da ação. Por exemplo, um trabalhador que falte ao serviço sem nenhum motivo aparente que justifique a ausência (doença etc.). O fato de faltar é uma recusa do trabalho alienado, mas esta recusa não se manifesta de forma discursiva, mas sim como uma ação prática que o trabalhador realiza. Mas estas lutas podem também se apresentar de formas mais explicitas, como desentendimentos com patrões, gerentes e superiores em geral, podem aparecer nas práticas da sabotagem, absenteísmo, trabalhar mais devagar, desatenção no trabalho, “matar” o tempo etc. Ou seja, geralmente é uma recusa individual, sem discursividade, mas que se expressa concretamente como uma negação das condições às quais estão submetidos os trabalhadores.
As lutas autônomas, pelo contrário, representam um avanço em relação às lutas espontâneas. Já constituem neste momento grupos de ação política (piquetes, comandos de greve, grupos de discussão etc.). Neste estágio, os trabalhadores já superaram suas burocracias sindicais e partidárias, já agem, portanto, por sua própria conta sem a mediação de grupos burocráticos institucionalizados. Neste estágio, entretanto, ainda não se apontam formas de superar inclusive as motivações que criaram o movimento. Por exemplo, no caso dos movimentos que lutam por moradia, principalmente nas grandes cidades. Há casos em que os sem-teto já se organizam e agem autonomamente, mas suas reivindicações ficam no nível das reivindicações que o capital permite. Assim, luta-se por moradia, mas não nega-se a propriedade privada do solo urbano. Isto pode ser visto, também, em movimentos de luta pela terra (rural), em trabalhadores que superam seus sindicatos, mas não negam as relações de trabalho capitalistas etc. Assim, se o que importa é terra, lutemos por terra; se o que importa é salários, lutemos por salários; se o que importa é moradia, lutemos por moradia; se o que importa é emprego, lutemos por emprego etc. Agindo desta forma, mesmo que as reivindicações sejam atendidas e ganhe-se casa, terra, salário, emprego etc. nada muda em sua totalidade, pois a propriedade privada continua a existir, o salário continua a ser a remuneração que garante a exploração, as relações de produção e tudo o mais continua a ser função direta da relação-capital. No que diz respeito à questão da consciência, vê-se também um avanço em relação às lutas espontâneas. Tanto em uma quanto em outra, a consciência é uma totalidade com o estágio da luta. A diferença é que quando a luta avança, também a consciência avança. Assim, nos movimentos autônomos não há, por exemplo, a possibilidade de agir de forma espontânea, nem de acreditar (consciência) que agindo desta forma, se conseguirá algo. Ser e consciência são uma totalidade. Mas, tal como ressalta Pannekoek (1977), a revolução proletária, comunista ou autogestionária é sobretudo uma “revolução do espírito”. É um momento no qual os panfletos, textos, discussões, debates em todos os níveis e lugares aparecem como algo inevitável. O desenvolvimento da consciência não é algo extraordinário, quase de caráter exotérico. É, pelo contrário, uma condição e um produto do processo de luta. Quando os trabalhadores estão organizados e discutindo, estão, neste mesmo momento, desenvolvendo sua consciência. A consciência revolucionária não é a mesma coisa do que ter lido Marx, Hegel ou mesmo Jean Barrot. O estudo destes textos pode-se dar, na verdade, como produto do desenvolvimento da consciência revolucionária, pois os indivíduos, grupos etc. passam a sentir necessidade de compreender de forma mais profunda as bases reais de sua luta. A teoria é a consciência articulada num nível de complexidade conceitual elevado. A consciência teórica da revolução é uma coisa, a ação consciente dentro do processo revolucionário é outra. Ambas não são, todavia, separadas.
O terceiro estágio das lutas proletárias entra justamente neste conjunto de processos que aludi. As lutas espontâneas e autônomas são limitadas pelo capital. Seu nível de ação e intervenção não conseguem identificar nada além do que o próprio capital. Ambas negam o capital, mas nunca em sua totalidade. As lutas autogestionárias são justamente aquelas que, além de negar o capital em sua totalidade, afirmam também outras relações sociais. A consciência revolucionária, como consciência da classe, brota justamente neste momento.
Segundo Jensen,
“O último estágio é o das lutas operárias autogestionárias. Aqui se revela uma luta que garante a recusa do capital e da burocracia e a afirmação da autogestão. O proletariado não só recusa o domínio do capital e da burocracia, mas também assume a direção revolucionária da fábrica e da sociedade. Aqui não só se realiza uma ação revolucionária como também se manifesta uma consciência revolucionária. Esta consciência significa não somente a compreensão do processo de exploração capitalista, da burocracia enquanto forma de dominação, mas também da necessidade de constituição de uma nova sociedade autogerida. A recusa do capital e da burocracia vem acompanhada pela associação coletiva que passa a autogerir as relações de trabalho e o conjunto das relações sociais. O combate ao capital e ao estado é acompanhado da consciência de que eles devem ser destruídos e que em seu lugar somente a autogestão pode garantir novas relações sociais, igualitárias. Nasce a consciência de um objetivo: a revolução social, o que pressupõe uma visão da totalidade das relações sociais e da articulação do movimento operário no sentido de generalizar o processo autogestionário. É imprescindível a percepção disto, pois o comunismo, tal como colocou Marx, não surge da mesma forma que o capitalismo, através do desenvolvimento da propriedade, e sim do domínio consciente dos seres humanos sobre sua vida social, ou seja, sem consciência revolucionária não é possível uma sociedade autogerida (Jensen, 2001, p. 26). (grifos meus)”
Esta longa citação foi necessária por que sintetiza de modo cristalino a crítica que venho fazendo ao pensamento de Barrot. A consciência não é, portanto, uma entidade metafísica que paira ou se aconchega na cabeça das pessoas. Pelo contrário, é a consciência que se tem da luta. Desconsiderar isto é um problema de implicações sérias para as lutas sociais. Tal como vimos, nem a organização revolucionária, nem a consciência revolucionária são algo desprezável no processo de luta. Barrot só consegue ver como as contradições do capital criam sua própria negação, mas não consegue perceber a natureza, característica e dinâmicas desta negação. Se ele distingue movimento comunista e modo de produção comunista, não consegue apresentar, de acordo com as experiências que se tem à disposição, o conteúdo e a forma do movimento comunista. Em outras palavras, há uma relação inextrincável entre movimento do capital, ou seja, dinâmica do processo de acumulação, e movimento comunista. O movimento comunista, como movimento social que se desenvolve dentro capitalismo, mas contra este, é necessariamente o desenvolvimento de novas relações sociais, as quais pressupõem novas formas organizativas e estas são condição e produto do desenvolvimento da consciência daqueles que estão em luta. Barrot isola uma questão da outra. Dá ênfase ao movimento do capital, mas desconsidera como o movimento proletário desenvolve suas lutas e neste processo sua consciência. Este é, no final das contas, o limite principal de seu livro.
Últimas palavras
Pretendeu-se com este texto polemizar com Jean Barrot e sua obra O Movimento Comunista. Demonstramos como Barrot constrói seu argumento fundamental, segundo o qual, o capital e seu processo de valorização/desvalorização gera o movimento comunista. A riqueza com a qual ele demonstra este processo é algo a ser reconhecido. Entretanto, o argumento que fundamenta toda a sua tese, portanto, o ponto alto de seu livro, é justamente a causa de sua desgraça teórica, pois acaba por se constituir num empecilho teórico sério à compreensão das formas e conteúdos do movimento comunista. E sua interpretação acaba por ter implicações práticas, pois a lógica mecanicista com que compreende o engendramento do movimento comunista, como uma inevitabilidade, retira da história a possibilidade, pois, para ele, do capital vem, necessariamente, o comunismo. Esperamos ter sido claros, o tanto quanto possível, quanto às contribuições e limites desta obra de Jean Barrot. Isto dito para que não fique nenhuma dúvida de que nossa crítica objetiva única e exclusivamente fazer avançar a teoria da revolução proletária.
Referências bibliográficas
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[1] Para uma análise da diferença entre constructos e conceitos, sendo os primeiros entendidos como falsos conceitos e os segundos como expressão da realidade, cf. Viana (2007).
[2] Não é lugar para analisar as diferenças entre elas, para tanto, cf. Marx (1983), Lowy (1985), Maia (2011) etc.
[3] Para uma análise mais detalhada de como Marx construiu esta tese cf. Romero (2005).
[4] Cf. o estudo de Marglin (1980) sobre o trabalho em domicílio, a manufatura e a maquinofatura.
[5] Ou como prefiro, autogestionária, dado o nível de deformação ao qual a palavra comunismo remete. Para uma análise mais detalhada do uso destas expressões cf: (Maia, 2010); (Viana, 2008).
[6] Isto foi debatido de forma mais exaustiva em nosso texto: “A perspectiva conselhista” (Maia, 2010), no qual comparamos o bordiguismo com o conselhismo, demonstrando onde o bordiguismo avança e onde ele reflui em relação ao conselhismo.
[7] “É agora inútil fazer uma distinção formal deste tipo entre os ´membros` do partido e o exterior. É membro do partido quem contribui para a organização da revolução comunista” (Barrot, 1977, p. 155).
[8] Para uma discussão mais aprofundada sobre isto cf. Viana (2008); Maia (2009).
Publicado originalmente na coletânea: Intelectualidade e Luta de Classes. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
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