Uma estranha derrota: a revolução chilena – Pointblank!

Original in English: Strange defeat: The Chilean revolution, 1973

Escrito pelo grupo de inspiração situacionista e conselhista Pointblank! em outubro de 1973, um mês após o golpe de 11 de setembro no Chile que depôs Salvador Allende

I

No palco espetacular dos eventos atuais denominados “notícias”, o funeral da socialdemocracia no Chile foi orquestrado com alta dramaticidade por quem entende mais intuitivamente a ascensão e queda de governos: outros especialistas do poder. As últimas cenas do script chileno foram escritas em vários campos políticos de acordo com os requisitos das ideologias particulares. Alguns vieram para enterrar Allende, outros, para o enaltecer. Ainda outros reivindicam um conhecimento ex post facto de seus erros. Quaisquer que sejam os sentimentos expressos, estes obituários foram escritos com bastante antecedência. Os organizadores da “opinião pública” só podem reagir reflexivamente e com uma distorção característica dos próprios eventos. A medida que os respectivos blocos da opinião mundial “escolhem lados”, a tragédia chilena é reproduzida como uma farsa de escola internacional; a luta de classes no Chile é dissimulada como pseudo-conflito entre ideologias rivais. Nas discussões da ideologia, não ouviremos nada sobre aqueles a quem o “socialismo” do regime de Allende era supostamente destinado: os trabalhadores e camponeses chilenos. Seu silêncio foi assegurado não apenas por aqueles os metralharam em suas fábricas, no campo e em suas casas, mas por aqueles que diziam (e continuam a dizer) representar seus “interesses”. Mesmo com mil deturpações, no entanto, as forças que estiveram envolvidas na “experiência chilena” ainda não se expuseram. O seu conteúdo real será estabelecido apenas quando as formas de sua interpretação forem desmistificadas.

Mais do que tudo, o Chile fascinou a dita esquerda em todos os países. E, ao documentar as atrocidades da junta militar atual, cada partido e seita tenta ocultar a estupidez das análises anteriores. Dos burocratas no poder em Moscou, Pequim e Havana aos burocratas exilados dos movimentos trotskistas, um coro litúrgico de embusteiros esquerdistas oferece sua avaliação post mortem do Chile, com conclusões tão previsíveis quanto sua retórica. As diferenças entre eles são apenas de nuances hierárquicas; compartilham uma terminologia leninista que exprime 50 anos de contrarrevolução em todo o mundo.

Os partidos estalinistas do Oeste e os Estados “socialistas” do Leste, muito acertadamente, vêem na derrota de Allende a sua própria – a de um homem de Estado. Com a falsa lógica que é um mecanismo essencial de seu poder, aqueles que sabem tanto de Estado e de (derrota da) Revolução denunciam a queda de um regime constitucional, burguês. Por outro lado, os importadores de “esquerda” do trotskismo e maoísmo apenas podem lamentar a ausência de um “partido de vanguarda” – o deus ex machina do senil bolchevismo – no Chile. Os que herdaram a derrota de Kronstadt e Xangai revolucionárias sabem do que falam: o projeto leninista requer a imposição absoluta de uma “consciência de classe” deformada (a consciência de uma classe dominante burocrática) àqueles que, em seus projetos, são apenas “as massas”.

As dimensões da “Revolução Chilena” transbordam os limites de qualquer doutrina particular. Enquanto os “anti-imperialistas” do mundo denunciam – de uma distância segura – o muito conveniente bicho-papão da CIA, a real razão da derrota do proletariado chileno deve ser buscada em outro lugar. Allende o mártir foi o mesmo Allende que desarmou as milícias de trabalhadores de Santiago e Valparaíso nas semanas que antecedem o golpe, deixando-os indefesos diante dos militares cujos oficiais já estavam em seu gabinete. Essas ações não podem ser explicadas simplesmente como “colaboração de classe” ou como uma “traição”. As condições da estranha derrota da Unidad Popular (UP) foram preparadas muito antes. As contradições sociais que emergiram nas cidades e no campo do Chile em agosto e setembro não foram simplesmente divisões entre “esquerda” e “direita”, mas envolveram uma contradição entre o proletariado chileno e os políticos de todos os partidos, incluindo aqueles que se apresentavam como os mais “revolucionários”. Num país “subdesenvolvido”, uma luta de classes altamente desenvolvida surgira, ameaçando as posições de todos aqueles que queriam o subdesenvolvimento, seja economicamente, através da continuação da dominação imperialista, ou politicamente, através do retardo de um autêntico poder proletário no Chile.

II

Em todo lugar, a expansão do capital cria a sua aparente oposição na forma de movimentos nacionalistas que procuram se apropriar dos meios de produção “em nome” dos explorados e, com isso, se apropriar o poder social e político para si mesmos. A extração de mais-valia do imperialismo tem suas consequências políticas e sociais, não somente na pobreza forçada daqueles que devem se tornar seus trabalhadores, mas no papel secundário designado à burguesia local, que é incapaz de estabelecer completa hegemonia sobre sociedade. É precisamente esse vácuo que os movimentos de “libertação nacional” buscam ocupar, assumindo assim o papel gerencial não preenchido pela burguesia dependente. Esse processo assumiu muitas formas – da xenofobia religiosa de Khadafi à religião burocrática de Mao – mas em todas elas, as palavras de ordem de “anti-imperialismo” são as mesmas, e aqueles que as dão estão em idênticas posições de comando. A distorção imperialista da economia chilena deu abertura para um movimento popular que almejava estabelecer uma base de capital nacional. Porém, o status econômico relativamente avançado do Chile impediu o tipo de desenvolvimento burocrático que tinha chegado ao poder pela força das armas em outras áreas do “terceiro mundo” (um termo usado para ocultar as divisões reais de classe nesses países). O fato de que a “progressista” Unidad Popular fosse capaz de uma vitória eleitoral como coalizão reformista foi um reflexo da peculiar estrutura social no Chile, que era, em muitos aspectos, similar àquela nos países capitalistas avançados. Ao mesmo tempo, a industrialização capitalista criou as condições para a possível superação dessa alternativa burocrática na forma de um proletariado rural e urbano que emergiu como a classe mais importante, e com aspirações revolucionárias. No Chile, tanto democratas cristãos quanto social-democratas deveriam provar ser os oponentes de qualquer solução radical dos problemas existentes.

Até o advento da coalizão UP (Unidad Popular), as contradições na esquerda chilena entre uma base radical de trabalhadores e camponeses e seus assim chamados “representantes” políticos permanecia em grande medida um antagonismo latente. Os partidos de esquerda foram capazes de organizar um movimento popular apenas com base na ameaça estrangeira posta pelo capital norte-americano. Os comunistas e socialistas foram capazes de sustentar a imagem de autênticos nacionalistas sob o governo democrata cristão porque o programa de Eduardo Frei de “chilenização” (que incluía uma política de reforma agrária que Allende iria conscientemente emular mais tarde) era explicitamente conectada à “Aliança pelo Progresso” patrocinada pelos EUA. A esquerda oficial foi capaz de construir sua própria aliança dentro do Chile em oposição, não ao reformismo em si, mas a um reformismo com ligações estrangeiras. Mesmo com seu caráter moderado, o programa de oposição da esquerda chilena só foi adotado depois que a atividade de greve militante dos anos 1960 – organizada independentemente dos partidos – ameaçou a existência do regime de Frei.
A vitoriosa UP se moveu em um espaço aberto pelas ações radicais dos trabalhadores e camponeses chilenos; ela se impôs como uma representação institucionalizada das causas proletárias na medida em que ela foi capaz de as recuperar. Apesar do caráter extremamente radical de muitas das ações de greve anteriores (que incluía ocupações de fábrica e a administração pelos trabalhadores de várias plantas industriais, notavelmente a COOTRALACO), a prática do proletariado chileno carecia de uma correspondente expressão teórica e organizativa, e essa falha em afirmar sua autonomia o deixou aberto às manipulações dos políticos. Apesar disso, a batalha entre reforma e revolução estava longe de ter sido decidida.

III

A eleição do maçom Allende, embora não tenha significado de modo algum que os trabalhadores e camponeses tivessem estabelecido o seu próprio poder, porém, intensificou a luta de classes que estava ocorrendo em todo Chile. Ao contrário das declarações da UP de que a classe trabalhadores alcançara uma grande “vitória”, tanto o proletariado quanto seus inimigo continuaram sua batalha fora dos canais parlamentares convencionais. Apesar de Allende constantemente dizer aos trabalhadores estar engajado em uma “luta comum”, ele revelou o verdadeiro caráter de seu socialismo-por-decreto no início de seu mandato quando ele assinou o Estatuto, que formalmente garantiu que ele respeitaria rigorosamente a constituição burguesa. Tendo chegado ao poder com um programa “radical”, a UP entrou em conflito com uma crescente corrente revolucionária em sua base. Quando o proletariado chileno mostrou que estava preparado para tomar os slogans da UP literalmente – slogans que não passavam de retórica vazia e promessas não cumpridas por parte da coalizão burocrática – colocando-os em prática, as contradições entre o conteúdo e a forma da revolução chilena se tornou evidente. Os trabalhadores e camponeses do Chile estavam começando a falar e agir por si mesmos.Apesar de todo seu “marxismo”, Allende nunca passou de um administrador da intervenção do Estado em uma economia capitalista. O estatismo de Allende – uma forma de capitalismo de Estado que acompanha a ascensão de todos os administradores do subdesenvolvimento – nada mais foi senão uma extensão quantitativa das políticas da democracia cristã. Ao nacionalizar as minas de cobre e outros setores industriais, Allende continuou a centralização iniciada sob o controle do aparato de Estado chileno – uma centralização iniciada pelo “arqui-inimigo” da esquerda Eduardo Frei. Allende, de fato, foi forçado a nacionalizar certos setores porque eles tinham sido espontaneamente ocupados pelos trabalhadores. Ao impedir a autogestão da indústria pelos trabalhadores, neutralizando essas ocupações, Allende se opôs ativamente ao estabelecimento de novas relações sociais de produção. Como resultado de suas ações, os trabalhadores chilenos apenas substituíram um conjunto de patrões por outro: agora a burocracia do governo, no lugar da Kennecott ou Anaconda, dirigia o seu trabalho alienado. Essa mudança de aparências não podia esconder o fato de que o capitalismo chileno estava se perpetuando. Dos lucros extraídos pelas corporações multinacionais aos “planos quinquenais” do estalinismo internacional, a acumulação do capital sempre é feita às custas do proletariado.

Que governos e revoluções sociais nada tem em comum foi também demonstrado nas áreas rurais. Em contraste com a administração burocrática da “reforma agrária”, herdada e continuada pelo governo Allende, a tomada armada espontânea de grandes propriedades oferecia uma resposta revolucionária à “questão da terra”. Por maiores que fossem os esforços da CORA (Corporación de la Reforma Agraria) para impedir essas expropriações pela mediação de “cooperativas camponesas” (asentamientos), a ação direta dos camponeses ultrapassou essas formas ilusórias de “participação”. Muitas tomadas de terra foram legitimizadas pelo governo somente depois que a pressão dos camponeses tornou impossível ao governo não fazer isso. Reconhecendo que essas ações colocavam em questão sua própria autoridade tanto como a dos proprietários de terras, a UP nunca perdeu a oportunidade de denunciar as expropriações “indiscriminadas” e de apelar à “moderação”.
As ações autônomas do proletariado urbano e rural formaram a base do desenvolvimento de um movimento significativamente à esquerda do governo Allende. Ao mesmo tempo, esse movimento forneceu ainda outra ocasião para que uma representação política se impusesse sobre as realidades da luta de classes chilena. Esse papel foi assumindo pelos militantes guevaristas do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) e sua contraparte rural, o MCR (Movimento Camponês Revolucionário), os quais tiveram êxito em recuperar muitas das conquistas radiciais dos trabalhadores e camponeses. O slogan dos miristas de “luta armada” e sua obrigatória recusa da política eleitoral eram apenas gestos pro forma: logo após a eleição de 1970, um corpo de elite das guerrilhas urbanas do MIR se tornou a guarda palaciana pessoalmente escolhida por Allende. Os laços que ligam o MIR-MCR à UP foram além de considerações puramente táticas – ambos tinham interesses comuns a defender. Apesar da pose revolucionária do MIR, ele agiu de acordo com as exigências burocráticas da UP: sempre que o governo estivesse em apuros, os ajudantes do MIR reuniriam seus militantes sob a bandeira da UP. Se o MIR fracassou em ser a “vanguarda” do proletariado chileno, não foi porque ele não era vanguarda o bastante, mas porque sua estratégia sofreu a resistência daqueles que tentou manipular.

IV

A atividade direitista no Chile aumentou, não em resposta a algum decreto governamental, mas por causa da ameaça direta posta pela independência do proletariado. Diante das crescentes dificuldades econômicas, a UP só podia falar em “sabotagem direitista” e da obstinação da “aristocracia operária”. Quaisquer que fossem as impotentes denúncias do governo, essas “dificuldades” eram problemas sociais que só poderiam ser resolvidos de maneira radical através do estabelecimento de um poder revolucionário no Chile. Apesar de afirmar “defender os direitos dos trabalhadores”, o governo Allende se mostrou como um espectador impotente da luta de classes se desdobrando fora das estruturas políticas formais. Foram os próprios trabalhadores e camponeses que tomaram a iniciativa contra a reação, e assim, criaram formas novas e radicais de organização social, formas que exprimiam uma consciência de classe altamente desenvolvida. Depois do lockout dos patrões em outubro de 1972, os trabalhadores não esperaram que a UP interviesse, mas ocuparam ativamente as fábricas e iniciaram a produção por si mesmos, sem “assistência” do Estado ou dos sindicatos. Os cordones industriales, que controlaram e coordenaram a distribuição dos produtos e organizaram a defesa armada contra os empregadores, foram formados nos complexos fabris. Diferentemente das “assembleias populares” prometidas pela UP, que existia apenas no papel, os cordones foram criados pelos trabalhadores por si mesmos. Em sua estrutura e funcionamento, esses comitês – junto com os consejos rurais – foram a contribuição mais importante ao desenvolvimento de uma situação revolucionária no Chile. Uma situação similar existia nos locais de moradia, onde as ineficientes “juntas de abastecimento popular” (JAPs) foram suplantadas pelas proclamações de “autogoverno dos bairros” e organização de comandos comunais pelos moradores. Apesar da infiltração pelos castristas do MIR, essas expropriações armadas do espaço social formaram o ponto de partida para um autêntico poder proletário. Pela primeira vez, gente até então excluída de participação na vida social foi capaz de fazer decisões sobre as realidades mais básicas de suas vidas cotidianas. Os homens, mulheres e a juventude das poblaciones descobriram que as revoluções não são assunto de urna eleitoral; independentemente de como os bairros eram nomeados – Nova Havana, Heróico Vietnã – o que acontecia dentro deles não tinha nada a ver com as paisagens alienadas de seus homônimos.

Apesar de as conquistas realizadas pela iniciativa popular serem consideráveis, uma terceira força capaz de colocar uma alternativa revolucionária ao governo e aos reacionários nunca emergiu completamente. Os trabalhadores e camponeses fracassaram na tarefa de estender suas conquistas até o ponto de substituir o regime Allende por seu próprio poder. O MIR, o suposto “aliado”, usou a retórica de opor ao burocratismo as “massas armadas” como uma máscara para suas intrigas. No seu esquema leninista, os cordones eram vistos como “formas de luta” que preparariam o caminho para futuros modelos organizativos menos “restritos”, cuja liderança seria fornecida pelo MIR, é claro.
Apesar de toda preocupação com as conspirações direitistas que ameaçavam sua existência, o governo impedia os trabalhadores de tomarem medidas positivas para resolver a luta de classes no Chile. Com isso, a iniciativa passou das mãos dos trabalhadores para as do governo, e, ao se deixar enganar, o proletariado chileno pavimentou o caminho para sua futura derrota. Em resposta aos apelos de Allende após o golpe abortado de 29 de junho, os trabalhadores ocuparam ainda mais fábricas, apenas para fechar fileiras sob as forças que os desarmariam um mês depois. Essas ocupações continuaram definidas pela UP e seus intermediários do sindicato nacional, a CUT, que manteve os trabalhadores isolados entre si ao insulá-os dentro das fábricas. Nessa situação, o proletariado estava impotente para encetar qualquer luta independente, e quando a Ley de Control de Armas foi assinada, o seu destino foi selado. Como os republicanos espanhóis que negaram armas à milícias anarquistas na frente de Aragão, Allende não estava preparado para tolerar a existência de uma força proletária armada fora de seu próprio governo. Nenhuma conspiração da direita teria durado um dia sequer se os trabalhadores e camponeses chilenos estivessem armados e organizassem suas próprias milícias. Por mais que o MIR protestasse contra a entrada dos militares no governo, eles, como seus predecessores no Uruguai, os Tupamaros, apenas falavam de armar os trabalhadores e tinham pouco a ver com a resistência que acontecia. O lema dos trabalhadores “Um povo desarmado é um povo derrotado” encontraria sua amarga verdade no massacre dos trabalhadores e camponeses que se seguiu ao golpe militar.

Allende foi derrubado, não por causa de suas reformas, mas porque ele foi incapaz de controlar o movimento revolucionário que se desenvolveu espontaneamente na base da UP. A junta militar que se instalou no poder claramente percebia a ameaça de revolução e se empenhou em eliminá-la com todos os meios a sua disposição. Não foi por acaso que a resistência mais forte à ditadura ocorreu naquelas áreas onde o poder dos trabalhadores tinha avançado mais longe. Na fábrica têxtil Sumar e em Concepción, por exemplo, a junta foi forçada a liquidar esse poder por meio de bombardeios aéreos. Como resultado das políticas de Allende, os militares foram capazes de ter a mão livre para finalizar o que tinha começado pelo governo da UP: Allende foi tão responsável quanto Pinochet pelos assassinatos em massa de trabalhadores e camponeses em Santiago, Valparaíso, Antofogasta e nas províncias. Talvez, a mais reveladora de todas as ironias inerente à queda da UP é que, enquanto muitos apoiadores de Allende não sobreviveram ao golpe, muitas de suas reformas sim. As categorias políticas perderam tanto significado que o novo ministro do exterior pôde se descrever como “socialista”.

V

Os movimentos radicais são subdesenvolvidos na medida em que eles respeitam a alienação e entregam seu poder a forças externas, ao invés de criar-lo por si mesmos. No Chile, os revolucionários apressaram o dia de seu próprio Termidor ao deixarem que “representantes” falassem e agissem em seu nome: apesar da autoridade parlamentar ter sido efetivamente substituída pelos cordones, os trabalhadores não foram além dessas condições de duplo poder , e não aboliram o Estado burguês e os partidos que o mantinham. Se as lutas futuras no Chile devem avançar, os inimigos dentro do movimento dos trabalhadores devem ser superados na prática; as tendências conselhistas nas fábricas, locais de moradia e nos campos deverão ser tudo ou nada. Todos os partidos de vanguarda que continuarem a se passar por “lideranças dos trabalhadores” – sejam eles o MIR, um PC clandestino ou qualquer outro grupo dissidente subterrâneo – só podem repetir as traições do passado. O imperialismo ideológico deve ser confrontado tão radicalmente quanto o imperialismo econômico é expropriado; os trabalhadores e camponeses só podem depender de si mesmos para avançar além do que os cordones indrustriales já tinha realizado. Já estão sendo feitas comparações entre a experiência chilena e a revolução espanhola de 1936, e não só aqui – se encontra estranhas palavras vindo de trotskistas em louvor às milícias operárias que lutaram contra todas as formas de hierarquia. Enquanto é verdade que uma terceira força radical não emergiu no Chile, eles tatearam nesse sentido. Diferentemente do proletariado espanhol, os revolucionários chilenos nunca criaram um tipo inteiramente novo de sociedade com base numa organização de conselhos, e a revolução chilena teria sucesso apenas se essas formas (cordonescomandos) fossem capazes de estabelecer uma hegemonia social. Os obstáculos a seu desenvolvimento são similares aos que foram confrontados na Espanha: os conselhos e milícias espanhóis encararam dois inimigos, sob a forma de fascismo e de governo republicano, enquanto os trabalhadores chilenos confrontaram o capitalismo internacional e os manipuladores da social-democracia e leninismo.

Das favelas no Brasil aos campos de trabalho de Cuba, o proletariado do Caribe, o proletariado da América Latina manteve uma ofensiva contínua contra todos aqueles que buscam manter as condições atuais.

Em sua luta, o proletariado confronta várias caricaturas de revolução que se mascaram de aliados. Esses fantasiados encontraram, por sua vez, um falso movimento de oposição dita de “ultra-esquerda”. Assim, o ex-fascista Perón prepara a construção de um Estado corporativo na Argentina, dessa vez com aparência esquerdista, enquanto os comandos esquerdistas da ERP o denunciam por não ser “revolucionário” o bastante, e o ex-guerrilheiro Fidel Castro reprime todos os que não se adaptam aos padrões da disciplina “comunista”. A história não falhará em dissolver o poder desses idiotas.
Uma complô da tradição – com agentes tanto de esquerda quanto de direita – assegura que a realidade existente seja sempre apresentada em termos de falsas alternativas. As únicas escolhas aceitáveis para o poder são aquelas entre hierarquias em competição: os coronéis do Peru ou os generais do Brasil, os exércitos dos Estados árabes ou os de Israel. Esses antagonismos apenas expressam as divisões dentro do capitalismo global, e qualquer alternativa genuinamente revolucionária terá de ser criada, dado que ela não existe em lugar algum da América Latina nem em qualquer outro lugar, e essa impotência impele constantemente a novas ações. Os trabalhadores chilenos não estão sozinhos em sua oposição às forças da contrarrevolução; o movimento revolucionário que começou no México com os bandos de guerrilha de Villa ainda não veio ao fim. Nas milícias de trabalhadores armados que combateram nas ruas de Santo Domingo em 1965, a insurreição urbana em Córdoba, na Argentina em 1969, e as recentes greves e ocupações na Bolívia e no Uruguai, a revolta espontânea de trabalhadores e estudante em Trinidad em 1970, e a contínua crise revolucionária ocorre, enquanto tal, sobre a ruína desses conflitos espetaculares. A combinação de mentiras dos poderes burguês e burocrático deve ser enfrentada pela verdade revolucionária com armas, em todo mundo assim como no Chile. Não pode existir “socialismo em um país” ou em uma fábrica ou bairro. A revolução é uma tarefa internacional que só pode ser resolvida no nível internacional – ela não reconhece fronteiras continentais. Como toda revolução, a revolução chilena requer o êxito de movimentos similares em outras áreas. Em todo lugar, nas greves selvagens nos Estados Unidos e na Alemanha Ocidental, as ocupações de fábrica na França e nas insurreições civis na URSS, as fundações de um novo mundo estão sendo postas. Aqueles que se reconhecem nesse movimento global devem conquistar a oportunidade para estendê-la com todas as armas subversivas à sua disposição.

Traduzimos o texto Strange defeat: The Chilean revolution, escrito pelo grupo Pointblank! em outubro de 1973, um mês após o golpe de 11 de setembro no Chile que depôs Salvador Allende.  Traduzido por Humanaesfera. Uma versão em espanhol pode ser vista em: “Extraña Derrota: La revolución chilena” (1973, Pointblank!).

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