Original in German: Kronstadt – Proletarischer Ausläufer Der Russischen Revolution [Other link]
[Nota do Crítica Desapiedada – Gabriel Teles]: Cajo Brendel foi, talvez, o último representante holandês do comunismo de conselhos a falecer (2007). Sua obra ainda é pouco conhecida em língua portuguesa. Há poucos textos traduzidos [Todos disponíveis no CD: Cajo Brendel (1915-2007)], apesar de ter escrito diversos textos e alguns livros importantes sobre o movimento operário, crítica ao bolchevismo, luta de classes, etc. Trata-se de um revolucionário importante, que possui uma contribuição ainda pouco explorada por nós, brasileiros. Assim, a presente tradução soma-se a outras já aqui feitas no intuito de contribuir para o resgate do pensamento revolucionário, especialmente do comunismo de conselhos. O mérito do texto é não só descrever o evento que ficou conhecido como A Revolta de Kronstadt, mas de analisá-lo, à luz da perspectiva proletária. Empreendimento pouco efetivado na literatura sobre o tema, que geralmente apenas o descreve sem explicar suas determinações e a relação com a contrarrevolução bolchevique. Boa leitura.
[Nota Complementar]: Disponibilizamos também a tradução parcial de uma resenha de Chris Wright, a qual apresenta um comentário crítico ao artigo de Cajo Brendel. A crítica é necessária por deixar evidente as fraquezas da concepção de Brendel, colocando uma chave interpretativa para esse evento que consideramos a mais adequada.
A Crítica História de Lenin e a Posição da Esquerda Anti-Leninista – Chris Wright (Fonte: http://libcom.org/library/what-is-to-be-done-review-wright)
“[O ensaio do] comunista de conselhos Cajo Brendel, “Kronstadt: Reviravolta Proletária da Revolução Russa”, focaliza na Rebelião de Kronstadt e seu significado para nós hoje, tentando também abordar a forma como o leninismo respondeu a Kronstadt enquanto uma consequência de suas próprias limitações.
Brendel argumenta que Kronstadt foi o último suspiro do momento revolucionário na Rússia iniciado em 1917, e esse levante representou o início do fim da revolta revolucionária de 1917 a 1921. Tudo isso é verdade. Brendel está completamente correto em sua avaliação de que o esmagamento de Kronstadt mostrou finalmente e plenamente a natureza anti-classe operária do regime bolchevique, como tinha se desenvolvido a partir de seus primeiros decretos em 1917. Brendel quer nos mostrar que há algo poderoso a ser aprendido com a revolta de Kronstadt e isto, ao invés do regime bolchevique, aponta para uma prática emancipadora. Estes são os pontos fortes do artigo.
O artigo é marcado por duas fraquezas fundamentais (…): um determinismo histórico que exclui uma crítica realmente radical, e um tipo de crítica moral que se baseia nesse determinismo histórico e que procura criar um “bom marxismo” que pode ser contraposto a um “mau leninismo”.
Em primeiro lugar, Brendel discute a natureza da Revolução Russa e suas possibilidades. Na verdade, Brendel argumenta que as condições materiais para uma revolução proletária não existiam na Rússia em 1917. O resultado deste argumento, no entanto, é excluir uma crítica real de Lênin e dos bolcheviques. Afinal, se a única possibilidade para a Rússia era uma “revolução burguesa” (uma ideia que merece ser criticada na linha do livro Rethinking the French Revolution de Comninel, onde a maioria dos marxistas confunde a derrubada do Estado Absolutista com a revolução social), então os bolcheviques seguiram uma política razoável em relação às tarefas em mãos e esmagar Kronstadt não teria, de fato, importado, uma vez que os kronstadinos estavam de fato “assaltando o céu” em um surto isolado de qualquer maneira. Ficamos do lado da revolta de Kronstadt porque ficamos do lado dos trabalhadores em todas as lutas, mas sem esperança de que Kronstadt pudesse ter sido outra coisa além de um exercício de derrota.
Neste ponto de vista, os bolcheviques realizaram uma linha severa de ataque às relações sociais feudais e semi-feudais e abriram a possibilidade da acumulação de capital, ou seja, a expansão da relação capital-trabalho nas relações sociais dominantes. O esmagamento de Kronstadt pode ser condenado como anti-classe operária, mas acaba sendo de fato a conclusão lógica de um regime burguês estabelecendo seu poder sobre e contra a massa de trabalhadores e camponeses.
O problema é que esse ponto reside nas comparações historicistas com 1796, 1848 e 1871. Nem as condições internas na Rússia, nem as condições internacionais eram algo como 1871, muito menos 1848 ou 1796. Em 1796, a classe operária como tal quase não existia e a relação capital-trabalho não se desenvolveu de forma substancial fora da Inglaterra. Em 1848 e mesmo em 1871, a classe operária na França produzia em locais de trabalho com geralmente menos de 10 trabalhadores, em mão de obra altamente qualificada, e fora de Paris e Lyon, quase não existia. Na Rússia, enquanto a classe operária era pequena, com menos de 10% da população total em 1913, ela estava organizada em grandes instalações de produção, como as fábricas de Putilov, onde dezenas de milhares de trabalhadores trabalhavam juntos em condições mais semelhantes às de seus homólogos da Europa Central e Ocidental. A classe operária também, apesar de seu pequeno tamanho, representava mais de 40% da riqueza produzida na Rússia em 1913, o que lhe conferia um peso social desproporcional.
Internacionalmente, mesmo em 1871, o próprio capital se estabeleceu como a relação social dominante apenas na Inglaterra e em algumas cidades e regiões da França, da Alemanha, da Holanda e dos Estados Unidos. Em 1921, a relação capital-trabalho era a relação social dominante na Europa Central e Ocidental e nos Estados Unidos e estava se espalhando também pela Europa Oriental (tanto a Polônia quanto a Tchecoslováquia estavam mais desenvolvidas industrialmente do que a Rússia em 1917). A massa de trabalhadores e seu grau de organização havia se expandido enormemente.
A comparação não se sustenta e, no lugar de uma abordagem fechada, determinista, objetivista e estritamente nacional, sugiro que nos aproximemos de Kronstadt a partir do ponto de vista de que nada foi decidido, que a Rússia ainda poderia ter chegado a um movimento internacional da classe trabalhadora realmente existente. Não sabemos o que poderia ter acontecido se as lutas dos operários e dos camponeses tivessem sido permitidas sem sua repressão pelos bolcheviques. É este encerramento de uma imensa possibilidade que marca a natureza contrarrevolucionária do regime bolchevique, não apenas sua conformidade com o “estágio burguês” de desenvolvimento. Mas esta é uma crítica inexistente para Brendel e compromete seriamente as tentativas contemporâneas de estabelecer uma base radical para a crítica a Lenin e ao bolchevismo no poder. (…)”.
Kronstadt: Reviravolta Proletária da Revolução Russa – Cajo Brendel
I
A interpretação dos eventos históricos que há mais de cinquenta anos entraram nas cronologias da história (e foram de lá também rapidamente removidas), como ‘a Revolta de Kronstadt de 1921’, está inseparavelmente ligada à posição social de cada intérprete; ou, em outras palavras, cada interpretação é marcada e condicionada pela posição do autor vis-à-vis às lutas de classes que ocorrem na sociedade[1].
Aqueles que interpretam a Revolução Russa de 1917 como um levante socialista, que consideram o regime bolchevique estabelecido durante os anos da Guerra Civil um poder proletário, devem necessariamente tratar aquilo que se desenrolou na fortaleza da ilha do golfo da Finlândia como uma tentativa contrarrevolucionária de derrubada do novo ‘estado operário’. Aqueles que, por outro lado, consideram precisamente as ações daqueles em Kronstadt como um ato revolucionário irão, mais cedo ou mais tarde, chegar a interpretações diametralmente opostas dos desenvolvimentos russos e da situação real na Rússia.
Tudo isso parece óbvio. Entretanto, há mais a ser dito. O bolchevismo não foi simplesmente uma forma de economia ou estado, cuja existência naquela época – não apenas em Kronstadt, mas também em Petrogrado, na Ucrânia, e em grande parte do sul da Rússia – estava em jogo; o bolchevismo foi também uma forma de organização que amadureceu nas lutas revolucionárias russas e que havia sido feita como que sob medida para a situação russa. Após a vitória dos bolcheviques na Revolução de Outubro, esta forma de organização foi, e continua sendo, imposta aos trabalhadores de todos os países através de representantes das mais variadas posições políticas.
O levante da população de Kronstadt contra os bolcheviques representava não apenas a rejeição do suposto direito dos bolcheviques ao poder, mas também um questionamento da tradicional concepção bolchevique de partido e do partido como tal. É por isso que as diferenças de opinião sobre os problemas organizacionais da classe operária incluem, com muita frequência, uma discussão sobre Kronstadt, e porque toda discussão sobre Kronstadt revela quase sempre os problemas táticos e organizacionais da luta de classes proletária. Isto significa, todavia, que Kronstadt continua a ser, mais de meio século depois, uma questão candente. Qualquer que seja o seu grau histórico de importância, isso fica ofuscado pela sua relevância prática para as gerações de trabalhadores atuais.
Leon Trotsky foi um dos que não compreenderam sua importância. Em seu ensaio de 1938, “Clamor Público por Kronstadt”, ele resmunga: ‘Se poderia pensar que a Revolta de Kronstadt ocorreu não há dezessete anos, mas ontem.’[2]. Trotsky escreveu estas palavras na mesma altura em que ele estava trabalhando, dia após dia, para expor a falsificação stalinista da história e das lendas stalinistas. Que ele nunca tenha ido, em sua crítica do stalinismo, para além das fronteiras das lendas revolucionárias do leninismo – este é um fato que nós podemos aqui apontar.
II
A Revolta de Kronstadt destruiu um mito social: o mito de que no estado bolchevique, o poder está nas mãos dos trabalhadores. É porque este mito estava intimamente conectado com a ideologia bolchevique como um todo (como ainda é hoje em dia), é porque em Kronstadt se começa a delinear de forma modesta uma verdadeira democracia operária, que a Revolta de Kronstadt representava um perigo mortal para os bolcheviques em sua posição de poder. Não apenas a força militar de Kronstadt – que naquela época da Rebelião foi bastante debilitada pelo golfo congelado -, mas também o seu efeito desmistificador ameaçava o regime bolchevique – uma ameaça que era ainda mais forte do que qualquer uma que tivesse sido colocada pela intervenção dos exércitos de intervenção de Denikin, Koltchak, Yudenitch ou Wrangel.
É por essa razão que os líderes bolcheviques eram, a partir da sua própria perspectiva – ou melhor, como uma consequência da sua posição social (que naturalmente influenciava sua perspectiva) -, forçados a destruir a Revolta de Kronstadt sem qualquer hesitação[3]. Enquanto os rebeldes estavam – como Trotsky havia ameaçado – sendo ‘caçados como perdizes’, a cúpula bolchevique caracterizava a Revolta em sua própria imprensa como uma contrarrevolução. Desde aquela época, este embuste tem sido promovido de forma zelosa e mantido obstinadamente por trotskistas e stalinistas.
O aspecto circunstancial de que Kronstadt tenha conseguido angariar aberta simpatia, tanto dos mencheviques, quanto de círculos do exército branco, fez reforçar ainda mais as versões trotskistas e stalinistas[4]. Uma justificativa mais arrependida da lenda oficial é praticamente impossível. Não havia o próprio Trotsky expressado, de forma correta e desdenhosa, sua visão em História da Revolução Russa sobre as posições políticas e análises sociais do Professor Miliukov, o simpatizante reacionário da Revolta de Kronstadt? Só porque Miliukov e toda a imprensa do exército branco simpatizavam com Kronstadt – seria, por essa razão, Kronstadt contrarrevolucionária? Como então, de acordo com essa noção, deveria ser avaliada a Nova Política Econômica, implementada pouco depois de Kronstadt? O burguês Ustrialov deu sua bênção abertamente à nova política! Mas isso não fez com que os bolcheviques denunciassem a NEP como ‘contrarrevolucionária’ nem um pouco. Este fato é também sintomático de toda a demagogia envolvida na criação de lendas. Desviemos nossa atenção desse problema por agora. É naturalmente do nosso interesse, nomeadamente por conta da função social das lendas que, contudo, só pode ser compreendida tomando por base o verdadeiro curso dos eventos, do processo de desenvolvimento social e do caráter social do levante russo.
III
A Revolta de Kronstadt de 1921 foi o ápice dramático de uma revolução, cujo conteúdo social deve ser definido abreviadamente como burguês.
A Revolta representou a reviravolta proletária dessa revolução burguesa, assim como, em circunstância quase idênticas, os eventos de maio na Catalunha em 1937 foram a reviravolta proletária da Revolução Espanhola, ou a conspiração de Babeuf de 1796 foi a tendência proletária na grande Revolução Francesa[5]. As mesmas causas são responsáveis pelo fato de que todas as três terminaram em derrota. Em cada caso, as condições e pré-requisitos para uma vitória proletária estavam ausentes. A Rússia czarista participou na Primeira Guerra Mundial como um país subdesenvolvido. Por necessidades militares e políticas, ela havia começado a se industrializar e tomou com isso o seu primeiro passo na estrada capitalista; mas o proletariado que emergiu nesse contexto era pequeno numericamente em relação à grande massa de camponeses russos.
Seguramente, o clima político do absolutismo czarista havia resultado num fortalecimento extraordinário do espírito militante dos trabalhadores russos. Isso tornou-os capazes de imprimir um certo ritmo à revolução em curso, mas não de forma decisiva o bastante para influenciar os seus rumos. Apesar da existência das obras de Putilov, das instalações de petróleo no Cáucaso, das minas de carvão na região do Donets e das fábricas têxteis em Moscou, a agricultura formava a base essencial da sociedade russa. Embora um tipo de emancipação do campesinato tenha ocorrido em 1861, os restos remanescentes das relações de servidão não haviam desaparecido. As relações de produção eram feudais e a superestrutura política era correspondente: clero e nobreza formavam as classes dominantes que – com a ajuda do exército, da polícia e da burocracia – exerciam o seu poder num império gigantesco de grandes latifúndios. Consequentemente, a Revolução Russa do século XX enfrentou a tarefa econômica de abolir o feudalismo e todos os seus componentes – as relações de servidão, por exemplo. Foi preciso industrializar a agricultura e sujeitá-la às condições da moderna produção de mercadorias; e teve de quebrar todas as cadeias feudais nos ramos de produção existentes.
Politicamente, essa revolução teve a tarefa de destruir o absolutismo, abolindo os privilégios atribuídos à nobreza feudal e desenvolvendo uma forma de governo e uma máquina estatal que pudesse garantir politicamente a solução dos objetivos econômicos da revolução. Está claro que essas tarefas econômicas e políticas correspondiam àquelas das quais, no ocidente, tiveram de ser realizadas pelas revoluções dos séculos XVII, XVIII e XIX[6]. Entretanto, a Revolução Russa – tal qual a Revolução Chinesa mais tarde – teve uma característica peculiar. Na Europa ocidental, principalmente na França, a burguesia era a promotora do progresso social, o proponente preliminar da rebelião. No leste, a burguesia, pelos motivos mencionados acima, era fraca. E por esta razão, seus interesses estavam intimamente ligados àqueles do czarismo. Isto é, a revolução burguesa na Rússia teve de ser realizada sem, e sobretudo contra, a própria burguesia.
IV
Lênin reconheceu precisamente esta peculiaridade na Revolução Russa. ‘Os marxistas’, ele escreveu, ‘estão absolutamente convencidos do caráter burguês da revolução russa. O que isto quer dizer? Significa que as transformações democráticas do regime político, assim como as transformações econômicas das quais a Rússia sente a necessidade, longe de implicar por elas mesmas em que o capitalismo e a dominação da burguesia sejam colocados em questão, desimpedirão, pela primeira vez, a via de um desenvolvimento amplo e rápido, europeu e não asiático do capitalismo na Rússia…’[7]. Em outra passagem, ele escreveu: ‘A vitória da revolução burguesa na Rússia é impossível [como] uma vitória burguesa. Isso parece paradoxal. Mas é verdadeiro. A maioria camponesa da população, a força e nível de consciência do proletariado que já está organizado no Partido Socialista – todas estas circunstâncias emprestam um caráter único à revolução burguesa. Sua particularidade, entretanto, não elimina o caráter burguês da revolução.’[8]
Todavia, um pequeno comentário deve ser feito aqui: o partido de que Lênin fala não era nem socialista, nem se poderia dizer que o proletariado estava organizado nele. É obviamente verdade que ele deve ser diferenciado dos partidos social-democratas do ocidente em vários sentidos, os quais desempenharam o papel da oposição leal no campo do parlamentarismo burguês, e os quais tentaram, através de todos os meios possíveis, impedir a transformação da sociedade capitalista em uma sociedade socialista. Mas o partido de Lênin não se distinguia de suas contrapartes ocidentais num sentido socialista.
O partido de Lênin na Rússia lutou pela transformação revolucionária das relações sociais; mas como o próprio Lênin admitiu, a questão era de uma revolução que, de forma distinta, havia sido estabelecida no ocidente há muito tempo. Este fato não permaneceu sem consequências para a social-democracia russa em geral e para o partido bolchevique em particular.
Lênin e os bolcheviques eram da opinião de que, por conta das relações de classes na Rússia, o seu próprio partido iria herdar o papel dos Jacobinos. Não foi sem razão que Lênin definiu os social-democratas como ‘uma aliança jacobina com as massas’; não foi sem razão que ele criou o seu partido como um comitê de “revolucionários” profissionais; não foi sem razão que ele afirmou em ‘O Que Fazer?’ que a sua principal tarefa era lutar contra o espontaneísmo. Quando Rosa Luxemburgo criticou essa concepção no início do século XX, ela estava correta, mas igualmente incorreta. Ela estava correta de que a conspiração organizacional de Lênin não tinha nada a ver com as formas naturais das organizações militantes dos trabalhadores, isto é, aquelas que são baseadas nas relações capitalistas e que emergem do antagonismo de classe. O que ela esqueceu, entretanto, é que na Rússia, uma tal luta proletária estava presente num grau muito reduzido, se estivesse. Na Rússia, onde a abolição das relações de produção capitalistas e do trabalho assalariado não estava sequer no horizonte, era uma questão de um tipo distinto de luta.
Para esta luta, o partido bolchevique era perfeitamente adequado. Ele preenche por completo as necessidades de uma revolução iminente. Que a forma organizativa deste partido – o assim chamado ‘centralismo democrático’ – iria terminar com a ditadura de um comitê central sobre a massas de seus membros (como Rosa Luxemburgo havia previsto), provou ser inteiramente correto; e era precisamente isso que era preciso para que se realizasse ‘a revolução burguesa com seu caráter único’.
V
O partido bolchevique derivou suas armas intelectuais do marxismo que, naquela altura, era a única teoria radical que ele poderia agarrar-se. O marxismo, contudo, foi a expressão teórica de uma luta de classes altamente desenvolvida, de um tipo que era estranho à Rússia; e foi uma teoria cuja compreensão adequada inexistia na Rússia. Desse modo, aconteceu que o desenvolvimento do ‘marxismo’ na Rússia teve apenas o nome em comum com o marxismo, e estava na verdade muito mais próximo do radicalismo jacobino de um Auguste Blanqui, por exemplo, do que às ideias de Marx e Engels. Lênin, e também Plekhanov, partilhavam com Blanqui uma concepção de materialismo [natur-wissenschaftlicher Materialismus] que na véspera da revolução na França foi a arma principal na luta contra a nobreza e a religião, e da qual estava muito distante do materialismo dialético.
Na Rússia, a situação era parecida àquela da França pré-revolucionária. O marxismo, como Lênin o entendeu – e como ele necessariamente tinha que entendê-lo –, fez com que ele tivesse uma profunda compreensão dos problemas essenciais da Revolução Russa. Aquele mesmo marxismo proveu o partido bolchevique com um aparato conceitual que se encontrava em flagrante contradição com suas próprias tarefas e também com a sua prática. Isto significou, como Preobrazhensky reconhecera publicamente durante uma conferência regional em 1925, que o marxismo na Rússia havia se tornado uma mera ideologia.
Naturalmente, a práxis revolucionária da classe operária russa – na medida em que havia uma – não estava em harmonia com a práxis do partido bolchevique que representava os interesses da revolução burguesa na Rússia como um todo. Quando o operariado russo se sublevou em 1917, eles foram, de acordo com a sua natureza de classe, muito além dos limites da rebelião burguesa. Eles tentaram determinar o seu próprio terreno e, com a ajuda dos conselhos operários, tentaram realizar suas próprias formas autodeterminadas de organização enquanto produtores.
O partido que estava ‘sempre certo’ e que era chamado a mostrar à classe trabalhadora o caminho apropriado – uma vez que os seus líderes insistiam que o proletariado não poderia encontrá-lo por si mesmo – foi arrastado atrás. O partido foi forçado a reconhecer o fato dos conselhos operários como ele se apresentava, assim como foi forçado a admitir a existência da grande massa do campesinato. Nem os conselhos operários, nem a grande massa camponesa, encaixavam-se na sua doutrina que refletia todas as experiências passadas de revoluções onde as condições haviam sido incipientes. Na Rússia, a práxis revolucionária, tanto por parte dos trabalhadores, quanto do campesinato, não poderia se manter por muito tempo. As condições materiais para uma práxis revolucionária permanente não existiam.
VI
O que aconteceu foi o seguinte: o capitalismo (que mal havia começado a desenvolver-se) não foi deposto. O trabalho assalariado foi mantido, o mesmo que Marx, como bem se sabe, insistia ser baseado no capital, assim como inversamente o capital baseia-se no trabalho assalariado.
Os trabalhadores russos não asseguraram o controle sobre os meios de produção; este controle pertencia, antes, ao partido (ou ao Estado). Os trabalhadores russos, dessa maneira, continuaram sendo produtores de mais-valor. Não é nem o fato de que o mais-valor não era expropriado por uma classe de capitalistas privados, mas pelo Estado, ou por aqueles elementos do partido que estavam no controle do Estado. Nem o fato do desenvolvimento econômico na Rússia – por conta da ausência de uma classe burguesa – ter tomado um caminho diferente daquele do ocidente, mudou qualquer coisa na posição do trabalhador russo como um objeto de exploração ou escravo assalariado. Não se pode falar do exercício do poder pela classe trabalhadora. O estado czarista estava de fato falido, mas o poder dos conselhos operários não tomou o seu lugar. Os conselhos que foram formados espontaneamente pelos operários russos foram destituídos de seu poder o mais rápido possível pelo governo bolchevique, isto é, já no início do verão de 1918, e eles foram condenados à completa insignificância. No lugar da antiga servidão ou servidão semi-feudal, a base econômica do país agora assumia a forma de um tipo de servidão econômica, o qual Trotsky escreveu em 1917 que era ‘incompatível com a soberania política do proletariado’. Esta tese era correta; os bolcheviques, no entanto, – depois de terem proclamado equivocadamente que o seu domínio correspondia ao domínio da classe trabalhadora – serviram-se do poder político ostensivamente a fim de superar a opressão do proletariado russo.
Entretanto, por causa da ausência de um poder real dos trabalhadores, o domínio político dos bolcheviques se desenvolveu não em um instrumento de emancipação, mas em um instrumento de repressão. Na Rússia Bolchevique, entre a explosão da Revolução de Fevereiro, a contundente eliminação de Kronstadt e a introdução de uma nova política econômica, a situação era similar àquela da Revolução de Fevereiro de 1848 na França. Marx comentou esta revolução nos seguintes termos: ‘Em França, o pequeno burguês faz aquilo que normalmente o burguês industrial devia fazer; o operário faz o que, normalmente, seria tarefa do pequeno burguês; e a tarefa do operário, quem a executa? Ninguém. Em França, ela não é executada, em França ela é proclamada’. Na Rússia, essa tarefa continuou a ser proclamada. Contudo, com a Revolta de Kronstadt, o processo revolucionário – do qual Outubro não representou senão um campo preparatório – tinha que chegar ao fim. Kronstadt foi o momento revolucionário em que os pêndulos da revolução giraram mais à esquerda.
Nos anteriores quatro anos fatídicos, uma cisma profunda havia sido revelada entre, de um lado, o partido bolchevique e o governo bolchevique, e, do outro, a classe trabalhadora russa. Isso se tornou ainda mais evidente quanto mais a oposição entre esse governo e os camponeses era desvelada. Em acréscimo, havia a contradição entre operários e camponeses, que foi abafada sob a capa da assim chamada Smytschka, isto é, a aliança de classe entre ambos. Da nossa perspectiva, a contradição entre os camponeses e o governo bolchevique pode ser deixada de lado. Nós só a mencionamos porque as múltiplas contradições entre operários, o governo bolchevique e os camponeses, explica a necessidade da ditadura do partido.
VII
Nesse meio tempo, entre a erupção da revolução e os eventos de 1921, a classe trabalhadora russa estava engajada em uma luta constante. No decurso de 1917, essa luta progrediu muito além do que pretendiam os bolcheviques. Em 1917, entre março e o fim de setembro, houve 365 greves, 38 ocupações de fábricas e 111 demissões de gerentes das empresas[9].O lema bolchevique ‘controle da produção pelos trabalhadores’ estava, em tais condições, condenado ao fracasso. Os trabalhadores expropriaram os meios de produção por sua própria iniciativa, até que, isto é, o decreto do controle operário que saiu no dia 14 de novembro de 1917, só uma semana depois da tomada do poder pelos bolcheviques (!), coloque um freio nessas atividades. Depois de maio de 1918, as ‘nacionalizações’ só poderiam ser realizadas pelo conselho econômico central. Pouco tempo depois, em abril de 1918, a responsabilidade individual dos gerentes das empresas havia sido reintroduzida; eles não tinham mais que justificar suas decisões aos ‘seus’ trabalhadores.
Os conselhos de fábrica haviam sido liquidados em janeiro de 1918. Pouco tempos depois, tendo sido superado o assim chamado comunismo de guerra, as leis econômicas de uma sociedade produtora de mercadorias se fizeram sentir.
Lênin lamentou: “O volante escapa das mãos…o vagão não é dirigido apropriadamente, e, com frequência, sequer se dirige na estrada que aquele que se senta ao volante imagina’. O jornal de um sindicato russo relata que houve 477 greves em 1921 com um total de 184,000 participantes. Alguns outros números: 505 greves com 154,000 participantes em 1922; 267 greves em 1924, 151 delas aconteceram em fábricas geridas pelo estado; 199 greves em 1925, 99 das quais em fábricas do estado[10].
Os números mostram um lento declínio nos protestos dos trabalhadores. O movimento atingiu o seu ápice em 1921 com a Rebelião de Kronstadt. Em 24 de fevereiro de 1921, os trabalhadores de Petrogrado entraram em greve. Eles pediam: liberdade para todos os trabalhadores; abolição dos decretos especiais; eleições livres para os conselhos. Estas eram as mesmas demandas que seriam levantadas alguns dias mais tarde em Kronstadt.
Um descontentamento geral se espalhou pelo país. Na virada do ano de 1920-21, a Rússia bolchevique vivia uma fase de um profundo antagonismo. Isso imediatamente fez emergir uma ‘oposição operária’ que era liderada por dois ex-metalúrgicos. Esta oposição reivindicava a exclusão do partido bolchevique, abolição da ditadura do partido e sua substituição pelo auto-governo das massas produtoras. Em uma palavra, a oposição pedia pela democracia de conselhos e pelo comunismo!
Pouco tempo depois, o documento de Kronstadt mencionado acima viria a caracterizar a situação geral na Rússia de forma tão resumida quanto precisa: “Através de astuta propaganda, os filhos do povo trabalhador foram arrastados para o partido e sujeitados a uma rígida disciplina. Quando os comunistas sentiram que eles tinham força o suficiente, eles excluíram passo a passo os socialistas de outras correntes e finalmente afastaram os operários e camponeses do leme do estado, ainda que tenham continuado a governar o país em seu nome”[11]. Fortes protestos eclodiram em Petrogrado em 1921. Manifestantes proletários marcharam pelas áreas periféricas da cidade. O exército vermelho recebeu a ordem de liquidar com esses protestos. Os soldados se recusaram a atirar nos trabalhadores. A palavra de ordem era: greve geral! Em 27 de fevereiro, a greve geral já era um fato. No dia 28, tropas leais devotas ao governo foram mobilizadas para Petrogrado.
Os líderes da greve foram presos; os operários foram conduzidos de volta às fábricas. Quebrou-se a resistência. Apesar disso, no mesmo dia, os marinheiros do encouraçado Petropavlovsk, ancorado perto de Kronstadt, pediram por eleições livres para os conselhos operários e por liberdade de imprensa e associação – para os trabalhadores. A tripulação do encouraçado Sebastopol juntou-se a eles nessas demandas. No dia seguinte, 16,000 pessoas se juntaram no porto de Kronstadt para declarar sua solidariedade com os grevistas de Petrogrado.
VIII
Nunca é demais realçar a importância da Revolta de Kronstadt. É como um feixe de luz. Os rebelados escreveram em seu jornal: ‘Por que nós estamos lutando? A classe trabalhadora tinha a esperança de ganhar sua liberdade com a Revolução de Outubro. Mas o resultado é uma opressão ainda maior. O governo bolchevique trocou o famoso símbolo do estado operário – a foice e o martelo – pela baioneta e pelas barras das grades a fim de garantir e proteger uma vida confortável para os comissários e burocratas’. Isto tudo significa que a hora da verdade havia chegado para o regime Bolchevique em Kronstadt, assim como em 1848, as Jornadas de Junho do proletariado francês representaram a hora da verdade para a república radical francesa. Aqui, como lá, a sepultura do proletariado se tornou o berço do capitalismo. Na França, o proletariado havia forçado a república burguesa a mostrar as suas verdadeiras cores, assim como o estado, cujo propósito reconhecidamente era a perpetuação do regime capitalista. Da mesma forma em Kronstadt, os marinheiros e operários fizeram com que o partido bolchevique mostrasse sua verdadeira face como uma instituição que era abertamente hostil aos trabalhadores e cujo único propósito era o estabelecimento do capitalismo de estado. Com a derrota da revolta o caminho estava, enfim, livre para a sua realização.
Nas ruas de Paris, o General Cavaignac havia afogado as esperanças proletárias em sangue. A Revolta de Kronstadt foi derrubada por Leon Trotsky. Em março de 1921, Trotsky encarnou o papel de Cavaignac, o Gustav Noske da Revolução Russa. Como se para condizer com a ironia da história, Trotsky, o representante mais famoso e mais respeitado da teoria da revolução permanente, impediu a tentativa mais séria desde outubro de 1917 para se fazer com que a revolução se tornasse permanente.
Este curso dos acontecimentos era, contudo, inevitável. As condições materiais para uma vitória proletária em Kronstadt estavam ausentes. A única coisa que poderia os ter ajudado era precisamente a permanência da revolução que nós mencionamos. Os trabalhadores de Kronstadt sabiam e entendiam isso. Por essa razão, eles mandavam telegramas continuamente para seus camaradas no continente russo pedindo por seu apoio ativo.
Os trabalhadores de Kronstadt depositaram suas esperanças na ‘terceira revolução’, assim como milhares de proletários russos esperavam por aquela terceira revolução em Kronstadt. Mas aquela que foi chamada ‘terceira revolução’ não era, na Rússia agrária da época, com sua economia primitiva e classe operária relativamente pequena, nada senão uma ilusão. ‘Em Kronstadt’, disse Lênin numa altura em que a construção da lenda de Kronstadt mal havia começado, ‘eles não querem os guardas brancos, e tampouco querem nosso poder. Mas não há nenhum outro poder’.
Lênin estava certo até um certo ponto de que, naquele momento, não havia nenhuma outra opção, pelo menos não na Rússia. Mas os trabalhadores de Kronstadt, como os trabalhadores alemães, haviam mostrado a possibilidade de uma outra forma de poder. Com sua comuna e seus conselhos livremente eleitos, os trabalhadores, não os Bolcheviques, ofereceram o protótipo de uma revolução proletária e de um poder operário.
Não se deve deixar perturbar pelo grito de ordem ‘conselhos sem comunistas’. ‘Comunistas’ é como aqueles usurpadores, aqueles campeões bolcheviques do capitalismo de estado, que haviam suprimido a greve dos operários em Petrogrado, chamavam a si mesmos e como que eles ainda – de forma incorreta – denominam a si mesmos. O nome ‘comunista’ foi odiado pelos trabalhadores de Kronstadt em 1921, pelos trabalhadores da Alemanha oriental em 1953 e pelos húngaros em 1956. Os trabalhadores de Kronstadt, entretanto, assim como os outros, trouxeram os seus interesses de classe junto ao coração. Dessa forma, seus métodos de luta proletária são ainda hoje de fulcral importância para todos os camaradas de classe que – onde quer que estejam – levam suas próprias lutas adiante e que aprenderam com a sua experiência que a sua emancipação deve ser feita com suas próprias mãos.
[1] O ensaio de Cajo Brendel foi originalmente uma palestra ministrada na Universidade Técnica de Berlim em 1971, por ocasião do 50º aniversário de Kronstadt. Cf. o original: Cajo Brendel: “Kronstadt: Proletarischer Ausläufer der Russischen Revolution”.
https://www.marxists.org/deutsch/archiv/brendel/1971/kronstadt.htm.
[2] [N.T.] Extraído da versão em português do Brasil encontrada no seguinte link: https://teoriaerevolucao.pstu.org.br/clamor-publico-por-kronstadt/.
[3] Trotsky também fala dessa necessidade em sua biografia de Stálin. Ele diz ‘aquilo que o governo soviético fez contra a sua vontade em Kronstadt era uma necessidade trágica’. Todavia, já na frase seguinte, pela preservação da lenda, ele fala em ‘um punhado de camponeses reacionários e soldados rebelados’. (Traduzido da edição em inglês: Stalin: An Appraisal of the Man and His Influence, editado e anotado do russo por Charles Malamuth, London, 1947, p. 337).
[4] Em determinados círculos Mencheviques e do Exército Branco, isto é, não em todos eles. Foi insinuado que estes seriam principalmente aqueles que se encontravam fora da Rússia na época. Em um documento contemporâneo é mencionado como os restos remanescentes do Exército Branco derrotado que ainda se encontravam na Rússia, reconheceram com um tal instinto infalível a ameaça proletária emergindo de Kronstadt que eles voluntariaram incondicionalmente os seus serviços aos líderes Bolcheviques para ajudar a reprimir a revolta. ‘Die Wahrheit Uber Kronstadt’, 1921. Reedição completa desta obra traduzida para o alemão em Dokumente der Weltrevolution, vol. 2, Arbeiterdemokratie oder Parteidiktatur, Olten, 1967, p. 297ff.
[5] Estes exemplos poderiam ser multiplicados indefinidamente. Pode-se comparar isto com o movimento dos Niveladores na Revolução Inglesa do séc. XVII.
[6] Compare o caráter social da Revolução Russa de 1917 em ‘Thesen Uber den Bolschewismus’, publicado pela primeira vez em Rutekorrespondenz, no. 3, Agosto de 1934; Reeditado em Kollektiv-Verlag, Berlin, n.d.
[7] V. I. Lenin, ‘Zwei Taktike der Sozialdemokratie in der demokratischen Revolution’, em Ausgewahlte Werke, vol. 1, Berlin, Dietz Verlag, 1964, p. 558.
[8] Essa é uma citação indireta de Lênin do ensaio de N. Insarov, publicado em Setembro de 1926 no jornal Proletarii. Insarov utilizou a edição russa das Obras Completas de Lênin que foi publicada pela Editora do Estado Russo. As passagens podem ser encontradas no vol. 11, Parte I, p. 28.
[9] Estes dados foram extraídos de F. Pollock (Die planwirtschaftlichen Versuche in der Sowjetunion 1917-1927, Leipzig, 1929, p. 25) e da obra de Y. G. Kotelnikov e V. L. Melier, Die Bauernbewegung 1917 (que também contém fatos relativos às greves e às ações políticas dos trabalhadores).
[10] As estatísticas sobre as greves e os grevistas foram fornecidas pelo jornal do sindicato russo Voprosy Truda, 1924, no. 7/8. Os editores apontam que os números não estão completos. Nós citamos Pollock uma vez mais, op. cit. Na primeira parte (histórica) de seu livro, Labour Disputes in Soviet Russia, 1957-1965 (Oxford, 1969, p. 15), Mary MacAuley também fornece informação sobre o número de greves na Rússia nos primeiros anos após a revolução. Ela baseia suas informações em Revzin, Vestnik Trude, 1924, no. 5-6, pp. 154-160. Estes números convergem com os de Pollock.
[11] Die Wahrheit Uber Kronstadt 1921’, Dokumente der Weltrevolution, op. cit., vol. 2, p. 288.
O texto foi traduzido por Alexandre Guerra e revisado por Felipe Andrade. A versão utilizada para a tradução foi retirada do seguinte site: https://libcom.org/library/1921-kronstadt-proletarian-spin-russian-revolution-cajo-brendel.
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