A Interpretação do Marxismo por Lênin – Cajo Brendel

Original in Dutch: Lenin’s interpretatie van Karl Marx

Nota do Crítica Desapiedada: para uma análise marxista do leninismo que corresponde à posição do Portal, conferir:
Elementos para uma crítica Marxista ao Leninismo, de Gabriel Teles e Rubens Vinicius

I

Em 1848, quando Marx e Engels publicaram o Manifesto, lá expuseram que o proletariado tinha de usar o seu poder político para “arrancar, aos poucos, todo o capital da burguesia, para centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, ou seja, do proletariado organizado como classe dominante”.

Esta fórmula serve aos reformistas de todos os países para defender políticas e programas de medidas sociais mais ou menos progressivas dentro do corrente quadro democrático. Esta é a passagem que pode em certo sentido esclarecer (isto é, quando se negligencia as causas sociais do ponto de vista social-democrata) porque os social-democratas de todos os países, ou os socialistas que se originaram na social-democracia, querem estabelecer uma sociedade na qual os meios de produção tenham passado das mãos da burguesia para as mãos do Estado.

Os social-democratas estão errados: eles não podem usar o Manifesto para defender a sua política. Pois nenhum deles nunca teve em conta a contradição que Marx deixou aparente no “Manifesto”, entre a reivindicada transferência dos meios de produção das mãos da burguesia para as mãos do Estado[1], e esta passagem do Manifesto:

“O comando do Estado moderno é somente um comitê para gerenciar os interesses comuns de toda a burguesia”.

E esta contradição é ainda mais evidente quando se considera o fato de que Marx, no que publicara antes do Manifesto, já analisara o caráter do Estado, combatendo-o impiedosamente, e, além disso, denunciara o espírito pequeno-burguês que se escondia atrás dos ideais democráticos.

Esta contradição só se encontra nas cabeças dos reformistas e de forma alguma em Marx, que nunca afirmou que a classe trabalhadora pode tomar o poder no quadro da democracia existente mantendo a ordem capitalista. Ao contrário, Marx e Engels compreenderam muito bem que isto era impossível; a prova está na frase que citamos, a preferida dos reformistas para defender suas posições.

As palavras ou seja, que destacamos, mostram muito bem que para Marx o “Estado” é equivalente ao “proletariado organizado como classe dominante”. Esta equivalência decorre das opiniões expressas no “Manifesto” sobre o curso da revolução proletária.

Em 1848 Marx e Engels pensavam que o proletariado, quando se constituísse como classe dominante, poderia mudar o caráter do Estado, poderia transformar um instrumento da burguesia em um instrumento da classe trabalhadora. O Estado, idêntico ao “comitê para gerenciar os interesses comuns da burguesia como um todo” e o Estado que é identificado como “o proletariado organizado como classe dominante” são no “Manifesto” duas coisas bem diferentes, duas fases bem diferentes do desenvolvimento social. Entre as duas fases está a derrubada da ordem social de nossa época. Tudo isso é bastante claro, pois, no Manifesto, após a frase citada, vem esta passagem:

“No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe, deveremos ter uma associação, na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.

É certamente verdade que no mesmo capítulo do “Manifesto” pode-se ler que “o primeiro passo na revolução da classe trabalhadora é levar o proletariado à posição de classe dominante, para vencer a batalha da democracia”, mas a única conclusão possível é que Marx queria expressar em 1848 com o termo “democracia” algo bem diferente, por exemplo, da situação social que podemos referir com essa palavra no século XX. Por “democracia” ele entendia o que entendiam Robespierre ou Babeuf. As opiniões de Marx e Engels sobre a democracia vêm das tradições jacobinas, mas isto não significa que não existissem divergências entre os jacobinos, por um lado, e Marx e Engels, por outro.

Os autores do “Manifesto” declararam energicamente que a conquista da democracia, a conquista do poder político pelo proletariado é o primeiro passo na revolução proletária. Eles não querem de forma alguma parar na democracia; eles querem dizer que o proletariado usa o seu poder político para suprimir a propriedade burguesa:

“Enquanto a pequena burguesia democrática quer interromper a revolução tão rápido quanto possível… é nosso interesse e nossa tarefa”, diz Marx em um pronunciamento do Comitê Central da Liga Comunista (março de 1850), “fazer a revolução permanente até que toda a classe mais ou menos proprietária tenha sido retirada de suas posições de comando, até que o proletariado tenha conquistado o poder estatal… e pelo menos as forças de produção decisivas estejam concentradas nas mãos dos trabalhadores… Mas eles mesmos devem contribuir o máximo para a sua vitória final… tomando sua posição política independente tão cedo quanto possível, não se deixando levar pelas frases hipócritas da pequena burguesia democrática a duvidar por um minuto sequer da necessidade de um partido do proletariado organizado independentemente. O seu grito de guerra deve ser: A Revolução Permanente”[2].

Uma ilusão

A perspectiva de uma revolução permanente era uma ilusão, a revolução de 1848 o mostrou indubitavelmente. Os esquerdistas se apossaram das posições importantes na França, mas foi impossível realizar a democracia jacobina, o primeiro passo rumo à revolução dos trabalhadores.

De acordo com Marx e Engels a conquista da democracia no sentido de 1848 e 1793 (o ano durante o qual os jacobinos chegaram ao poder) era a primeira condição de qualquer realização comunista; mas esta democracia, isto é, o jacobinismo, isto é, o proletariado organizado como classe dominante à frente de todas as camadas mais pobres do povo, não pode ser conquistada em 1848. De fato, todos os ataques jacobinos atingiram apenas a façada do edifício do Estado, e naquelas circunstâncias todas as resoluções dos ministros jacobinos permaneceram apenas como planos. Portanto, não somente a perspectiva da revolução permanente, mas também o que a democracia revolucionária queria em 1848 eram apenas fantasias.

Aqui está o porquê das previsões do “Manifesto” para a revolução vindoura não terem sido realizadas. Já em 1850 Marx observou:

“Ao ditar a república ao Governo Provisório, e através do Governo Provisório a toda a França, o proletariado imediatamente veio à cena como um partido independente; mas ao mesmo tempo ele desafiou toda a França burguesa a cerrar fileiras contra si. O que ele conquistou foi o terreno no qual lutar por sua emancipação revolucionária, de forma alguma a emancipação em si”.

Um pouco mais adiante[3] Marx escreve:

“Como vimos, a república de fevereiro foi na realidade – e não poderia ser outra coisa – uma república burguesa, mas o Governo Provisório foi forçado por pressão direta do proletariado a proclamá-la como uma república com instituições sociais. O proletariado de Paris ainda era incapaz, exceto em sua imaginação, em sua fantasia, de ir além da república burguesa; quando entrou em ação, invariavelmente atuou a serviço da república”[4].

Em 1848 Marx e Engels escreveram no começo do “Manifesto”: “Um espectro assombra a Europa – o espectro do comunismo”.

Em 1850 se via distintamente que o comunismo era de fato somente um espectro e que a luta real entre a burguesia e o proletariado ainda estava por começar. Esta foi uma nova perspectiva que os autores do “Manifesto” adquiriram das experiências de luta e de diferentes testemunhos.

Novas opiniões

Em 1871, Marx escreveu que a Comuna de Paris foi “a forma finalmente descoberta sob a qual a liberação econômica da classe trabalhadora deveria realizar-se”, e ao mesmo tempo indicou, como antes, que a opinião do “Manifesto” não era exata. Ele mostrou que “a transformação do Estado, de instrumento nas mãos da burguesia em instrumento nas mãos do proletariado” não era a forma política da revolução proletária. Marx o explicou da forma mais clara em “A guerra civil na França”:

“A classe trabalhadora não pode simplesmente apoderar-se da máquina estatal como tal e empunhá-la segundo seus próprios propósitos”.

E em uma carta a seu amigo Kugelman:

“…a próxima tentativa de uma revolução francesa não mais consistirá, como antes, em transferir a máquina burocrático-militar das mãos de uns para as mãos de outros, mas em esmagá-la, e isto é essencial para toda revolução popular real no continente”[5].

Mais tarde, insistindo neste pensamento, Engels também falou na “destruição do velho poder estatal”. Uma diferença importante em relação ao “Manifesto”. Aqui abordamos o verdadeiro assunto deste artigo, onde queremos mostrar muito brevemente como Lênin entendeu as críticas do “Manifesto” elaboradas por seus próprios autores de 1851 a 1872. O faremos primeiramente examinando o conhecido “O Estado e a Revolução”.

II

Ao primeiro olhar Lênin vai muito além dos reformistas. Ele cita a passagem de Marx dizendo que “a classe trabalhadora não pode simplesmente apoderar-se da máquina estatal como tal e empunhá-la segundo seus próprios propósitos”. Ele descreve, corretamente, que segundo Marx a máquina estatal deve ser destruída, e como Engels fala sobre o “definhamento do Estado”, que no começo de uma sociedade sem classes “deve ser relegada ao museu de antiguidades”.

Mas qualquer um que leia “O Estado e a Revolução” atentamente e compare as conclusões deste trabalho com o pensamento de Marx e Engels nota que Lênin não entendeu a autocrítica e fornece uma má interpretação do marxismo.

Quando Lênin fala sobre o “Manifesto” em “O Estado e a Revolução”, ele mostra que Marx e Engels neste texto identificaram o Estado e o “proletariado organizado como classe dominante”. Mas ele não vê que tudo isso decorre do fato de que em 1848 Marx e Engels pensavam que os trabalhadores tinham somente de apoderar-se da máquina estatal e usá-la para seus próprios propósitos. Em outras palavras, eles ainda consideravam a conquista da democracia jacobina como o primeiro passo na revolução dos trabalhadores.

Lênin: um jacobino

Em 1917 Lênin ainda considera a primeira tarefa do proletariado tal como ela foi proposta no “Manifesto”; ele complementa que aquela era incontestavelmente a opinião de Marx, apesar da declaração de Engels afirmando inequivocamente que a história revelou que a velha opinião de Marx era uma ilusão. Há de fato uma passagem no panfleto de Lênin onde é dito[6] que Marx e Engels corrigiram o “Manifesto” após a experiência da Comuna de Paris[7]. Mas ele afirma, entretanto:

“O proletariado precisa do poder estatal, a organização centralizada da força, a organização da violência, tanto para esmagar a resistência dos exploradores quanto para liderar a enorme massa da população – os camponeses, a pequena burguesia, os semi-proletários – no trabalho de organizar a economia socialista. O Estado”, continua Lênin, “isto é, o proletariado organizado como classe dominante – esta teoria de Marx está inseparavelmente ligada com tudo o que ele ensinou sobre o papel revolucionário do proletariado na história. A culminação deste papel é a ditadura do proletariado, a dominação política do proletariado[8].

Tudo isso mostra que Lênin entendeu por ditadura do proletariado o Estado transformado em proletariado organizado como classe dominante. De fato, Marx e Engels realmente falaram neste sentido sobre a ditadura do proletariado, mas em 1848. Após 1848 a palavra “ditadura” assume outro sentido em Marx e Engels, porque a ditadura do proletariado no sentido de 1848 revelou-se ilusória. Lênin não percebeu a mudança de significado e de forma correlata tem uma concepção errônea da revolução de 1848.

“Os democratas pequeno-burgueses, aqueles socialistas de fachada que substituíram a luta de classes por sonhos de harmonia de classe, chegaram mesmo a visualizar a transformação socialista de forma sonhadora – não como o derrubada[9] do mando da classe exploradora, mas como a submissão pacífica da minoria à maioria que se tornou consciente de seus objetivos. Esta utopia pequeno-burguesa, que está inseparavelmente ligada à idéia do Estado acima das classes, levou na prática à traição dos interesses da classe laboriosa, como foi mostrado, por exemplo, pela história das revoluções francesas de 1848 e 1871, e pela experiência da participação “socialista” nos gabinetes burgueses na Inglaterra, França, Itália e outros países no final do século dezenove e início do século vinte”[10].

O fato de que Lênin não faz nenhuma diferenciação entre os democratas de 1848 e os governos “democráticos” do tipo de Waldeck-Rousseau[11] prova que ele não levou em conta as diferenças entre a democracia de Robespierre (democracia jacobina, a ditadura do proletariado no sentido de 1848) e a democracia “da segunda metade do século dezenove”, e portanto ele não entendeu nem um pouco melhor o fato de que os democratas pequeno-burgueses de 1848, os Ledru-Rollin, os Louis Blanc, queriam exatamente o que Marx e Engels chamaram de “o primeiro passo na revolução dos trabalhadores e a organização do proletariado como classe dominante”.

E Lênin está equivocado quando escreve que “aqueles que reconhecem apenas a luta de classes ainda não são marxistas: eles podem ser encontrados ainda nas fronteiras do pensamento burguês e da política burguesa… só é marxista quem estende o reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da ditadura do proletariado”[12].

Lênin está equivocado porque não somente aqueles que reconhecem a existência da luta de classes podem mover-se nas fronteiras do pensamento e política burgueses, mas também aqueles que querem a ditadura do proletariado. Isto os jacobinos o provaram na prática em 1793 e em 1848.

Uma diferença enorme

Entre a ditadura do proletariado como Lênin a concebeu e como Marx e Engels a conceberam na segunda parte de suas vidas há uma grande diferença. Lênin escreveu:

“O ‘Manifesto Comunista’ dá um resumo geral da história, que nos impele a considerar o Estado como o órgão da dominação de classe, e nos leva à inevitável conclusão de que o proletariado não pode derrubar a burguesia sem antes capturar o poder político, sem atingir supremacia política, sem transformar o Estado no proletariado organizado como classe dominante”.[13]

Certamente Lênin faz aqui um resumo exato do “Manifesto”. Mas ele é carente de explicações e da lição da República de Fevereiro de 1848 na França, que é precisamente a seguinte: que o proletariado não pode antes conquistar o poder político para então afastar a burguesia, porque o poder político do proletariado não tem significado enquanto a burguesia não for afastada. Enquanto existirem as relações de produção nas quais se baseia o poder político da burguesia, enquanto existirem as relações sociais das quais o Estado burguês é um produto, o Estado que é um instrumento nas mãos da burguesia não poderá ser transformado em um instrumento apto a ser usado contra aquela classe. A conclusão de Marx é de que é necessário destruir o Estado burguês, o que significa e só pode significar que é necessário também destruir as relações sociais correspondentes àquele Estado.

Estado e sociedade

Marx considera o Estado como um fenômeno histórico da sociedade. Para ele Estado e sociedade não são duas coisas distintas, não há uma contradição entre eles. O que se representa como tal contradição é somente o que se chama de uma contradição em terminologia ruim; na realidade ela é o antagonismo entre o desenvolvimento das forças produtivas e sua utilização social protegida pela ordem estatal. Mas esta contradição se produz porque a sociedade e o Estado não são duas coisas essencialmente diferentes. Sob certas condições realizadas no curso da história, a sociedade existe somente sob a forma do Estado.

E quando vemos no Estado somente uma parte da sociedade, quando não separamos no pensamento Estado e sociedade, não precisamos superar aquela separação e não é necessário procurar uma solução, porque esta contradição entre Estado e sociedade é somente uma aparência falaciosa.

Se passa o mesmo na teoria de Marx quando ele revela o caráter fetichista das mercadorias, isto é, a falsa aparência de uma independência inerente à mercadoria, a aparência de que a mercadoria leva uma vida independente do homem. Devemos da mesma forma recusar o fetichismo do Estado, isto é, a independência de uma personalidade estatal em relação à sociedade.

Lênin não entendeu nada disso e é por isso que ele interpreta mal as observações de Engels sobre o “fenecimento do Estado”.

III

Em Lênin o Estado burguês existe antes da revolução proletária, e o Estado proletário após ela. De acordo com Lênin, as observações de Engels sobre o fenecimento do Estado se referiam ao fenecimento do “Estado proletário”, enquanto Marx e Engels falam respectivamente em destruir o Estado ou abolir o Estado referindo-se ao Estado burguês.

Esta diferença entre um Estado burguês que deve ser destruído e um Estado proletário que o substitui e fenece não existe em Marx e Engels; para eles a destruição do Estado e da classe burguesa é também uma mudança nas relações sociais: a transformação dos meios de produção em propriedade comum. E isto porque quando a propriedade burguesa existe, a sociedade tem a forma do Estado, mas no momento em que os meios de produção se tornam propriedade comum, a intervenção, como diz Engels, “de um poder estatal nas relações sociais se torna supérfluo em um domínio após o outro, e então cessa”. Ele acrescenta logo após:

“O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não é abolido, ele morre”.

Engels usa aqui uma terminologia que ao primeiro olhar está em contradição com nossa opinião. Ele escreve:

“O proletariado toma o poder político e transforma os meios de produção no primeiro momento em propriedade estatal. Mas ao fazê-lo ele abole a si mesmo como proletariado, abole todas as diferenças e antagonismos de classe, abole também o Estado como Estado”[14].

Aparentemente, aqui Engels defende a teoria do “Estado proletário”, mas na realidade não o faz. Pois trata-se um Estado bastante singular, que começa, como Engels diz um pouco mais adiante, por um ato que é ao mesmo tempo seu último ato como Estado. Além disso, para ele não é uma questão da classe trabalhadora usar o Estado para seus próprios propósitos; com a mudança dos meios de produção “o Estado é abolido como Estado”.

“O Estado”, continua Engels, “era o representante oficial de toda a sociedade, sua síntese em forma visível, mas o era somente à medida que era o Estado da classe mesma que representava para a sua época a totalidade da sociedade; o Estado dos cidadãos proprietários de escravos; na Idade Média: o Estado da nobreza feudal; em nossos dias: o Estado da burguesia”[15].

Segue Engels este percurso querendo dizer que, sob a ditadura do proletariado, o proletariado representa a sociedade, e que, portanto, o Estado é um Estado proletário? De forma alguma. Engels diz: “Mas do fato de que ele se torna ao fim o representante efetivo da totalidade da sociedade, ele se torna supérfluo”. Estas são as palavras na passagem de Engels que tem a maior importância para as contradições daquilo que foi dito, estas palavras expressam de outra maneira o pensamento de que é somente em certas condições históricas, notavelmente onde existe a propriedade privada e os antagonismos de classe decorrentes, que pode existir a questão do Estado.

Referindo-se ao fato de que Engels um pouco mais adiante chama o Estado de “um poder repressivo especial”, Lênin conclui que é necessário substituir este poder repressivo especial “da burguesia” por outro poder repressivo especial (do proletariado).

Isto contradiz a opinião de Engels segundo a qual o Estado se torna supérfluo onde não há mais ninguém a reprimir. Lênin o reconhece em outro momento, quando diz: “Entretanto, a partir do momento em que é a maior parte das pessoas que oprimem seus opressores, não há mais necessidade de uma força repressiva especial”, e acrescenta que “é neste sentido que o Estado começa a fenecer”. Mas para ele o “fenecimento” está naturalmente em relação com o “Estado proletário”, porque tal coisa como um fenecimento do já destruído Estado burguês sempre permanece para ele como uma pedra no meio do caminho.

Este último fato também aparece quando Lênin vem a falar sobre um fenômeno como “a manutenção do estrito horizonte do direito burguês na primeira fase do regime comunista”. Na teoria social de Marx isto é algo que vem de si mesmo, contrariamente àqueles que acreditam que a lei é fixada pelo Estado. Marx mostra que “a legislação política e civil é somente o produto das relações econômicas que elas codificam”. A “sociedade”, diz Marx, “não é baseada em leis, mas as leis são baseadas na sociedade”[16].

O que isto significa com relação ao problema que estamos abordando? Mudanças em modos de produção levam a novas relações sociais que são formuladas em novas regras legais. Algumas das velhas regras jurídicas que estavam ligadas à velha estrutura da sociedade desvanecem. Elas não são mais necessárias para formular juridicamente uma relação social, porque esta relação desapareceu com a mudança de estrutura social.

Mas elas não desaparecem de uma só vez. Frequentemente elas subsistem entre outras regras que já estão completamente de acordo com as novas relações sociais. Portanto, encontramos as regras do indivíduo na época capitalista. Portanto, o comunismo, na primeira fase de seu desenvolvimento, não se livrará completamente das tradições e vestígios do capitalismo. Mas o terreno que essas regras jurídicas burguesas dominam na época comunista se torna mais e mais restrito, e sua validade diminuiu continuamente; isto é exatamente o que Engels caracterizou pelas palavras “o Estado fenece”.

Quando Lênin demonstra este fenômeno espera-se que ele também reconheça aqui uma questão do fenecimento do Estado burguês, mas ele não o faz. Ele escreve:

“É claro que o direito burguês… inevitavelmente pressupõe a existência de um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparato capaz de impor a observância dos padrões do direito”[17].

Portanto, em Lênin a lei depende do Estado, a lei e o Estado não são concebidos como consequência das relações sociais. Ele nunca leva em conta o fato de que as relações jurídicas entre os homens se modificam mais lentamente do que as relações sociais das quais elas são o reflexo. A consequência bastante singular é que Lênin, que quer negar o fenecimento do Estado burguês, uma vez que ele já foi destruído, finalmente conclui:

Segue que sob o comunismo permanece por algum tempo não somente o direito, mas mesmo o Estado burguês – sem a burguesia![18]

Pergunta-se como isso pode ser possível.

IV

Quando Engels fala do fenecimento do Estado, ele fala sobre o Estado burguês. Lênin o nega, pois ele não entende como o Estado pode fenecer após a sua destruição e abolição pela revolução. É por isso que ele conclui que Engels fala sobre outro Estado, o “Estado proletário”, e que ele se refere à velha opinião de Marx segundo a qual “a ditadura do proletariado é equivalente ao Estado transformado no proletariado organizado como classe dominante”.

Em Marx e Engels a revolução proletária é uma revolução social: a transformação dos meios de produção em propriedade comum. Esta revolução social destrói o Estado, uma vez que ela abole as relações sociais das quais o Estado é produto. É exatamente por isso que o Estado mortalmente ferido desvanece.

É verdade que Marx escreveu que a Comuna serviria à transformação das bases econômicas sobre as quais repousava a existência do poder de classe. Mas quem quer que conclua disso que Marx pensava que a revolução dos trabalhadores deveria forjar-se como instrumento político graças ao qual a sociedade seria transformada na primeira fase do comunismo, quem quer que dê às formas políticas da ditadura do proletariado uma independência a respeito ao seu conteúdo social, tal pessoa é levada a enganar-se pelo caráter fetichista do Estado burguês.

A Comuna foi a forma política finalmente descoberta sob a qual a liberação econômica do trabalho poderia ocorrer. Mas o nascimento desta forma política e a liberação econômica dos trabalhadores são duas fases do mesmo processo, uma vez que os homens que formam as relações sociais em correspondência à sua produção material também produzem princípios, ideias e categorias correspondendo às suas relações sociais.

A revolução proletária é segundo Lênin “a transformação do Estado burguês em um Estado proletário”. Ele descreve a tarefa deste Estado proletário da seguinte maneira:

Até que chegue a fase avançada do comunismo, os socialistas exigem o controle mais estrito pela sociedade e pelo Estado da medida do trabalho e da medida do consumo; mas este controle deve começar com a expropriação dos capitalistas, com o estabelecimento do controle dos trabalhadores sobre os capitalistas, e deve ser exercido não por um Estado de burocratas, mas por um Estado de trabalhadores armados”[19].

Vê-se que aqui Lênin fala sobre Estado e sociedade como duas coisas diferentes. Não é surpreendente que ele também diga que:

“A revolução só pode ‘abolir’ o Estado burguês. O Estado em geral só pode ‘definhar’, o que resulta na mais completa democracia”[20].

Isto prova adicionalmente que Lênin não entendeu o que Marx escreveu sobre a relação entre Estado e sociedade, pois “Estado em geral” para ele não é nada mais que a personalidade do Estado que se manifesta como uma forma independente. Na realidade, o Estado existe somente na forma histórica da sociedade fundada na propriedade privada: o Estado dos senhores de escravos, da nobreza feudal, da burguesia.

De acordo com Lênin, e em contradição com as opiniões de Marx e Engels tal como foram desenvolvidas após 1848, a expropriação dos capitalistas deveria ser levada a cabo depois da revolução pelo “Estado proletário”. Esta é a velha condição do “Manifesto”, de acordo com a qual o [Estado] proletário deveria usar o seu poder político para arrebatar, passo a passo, todo o capital da burguesia.

Não só em “O Estado e a Revolução”, mas também em outros artigos e publicações que são característicos das opiniões de Lênin, é claramente mostrado que as opiniões dos bolcheviques correspondem ao programa marxista de 1848. Lênin escreve por exemplo em um artigo escrito em setembro de 1917 que: “A questão principal de qualquer revolução é sem dúvida a questão do poder estatal”, e ele não coloca a questão da mudança da estrutura econômica em destaque. É realmente compreensível, quando se é da opinião de que o proletariado tem de transformar o Estado burguês em Estado proletário; para quem quer que queira tomar o esforço de ler o panfleto de Lênin intitulado “Podem os bolcheviques deter o poder do Estado?”, este texto fornecerá muitas provas de tudo o que escrevemos aqui sobre as opiniões de Lênin.

V

Como se pode explicar que Lênin, em sua tentativa de “explicar novamente a verdadeira teoria marxista do Estado”, sem esquecer de levar em conta a análise de Marx da Comuna de Paris, e até mesmo dizendo energeticamente que é necessário destruir o Estado burguês, ainda assim se refira a cada momento à opinião do “Manifesto Comunista” que Marx e Engels corrigiram?[21]

A resposta a esta questão já é dada pelo próprio Marx quando ele escreve: “A teoria se realiza em um povo somente na medida em que ela é a realização de suas necessidades”. Não se pode dizer que Lênin e os bolcheviques tiveram de realizar uma opinião equivocada sobre o marxismo na revolução russa; pelo contrário, foi a práxis da revolução russa, os problemas e tarefas históricos desta revolução, que os levaram a uma opinião equivocada (corrigida, se quisermos) do marxismo.

Na Rússia atrasada, agrária e feudal do Czar Nicolau II, com sua propriedade rural, sua burocracia reacionária e seus camponeses que ainda não estavam completamente fora do estado de servidão, encontram-se, com algumas exceções, todas as condições que existiam na Europa Ocidental no alvorecer da revolução de 1848. Existia na Rússia, por causa das necessidades militares do czarismo, uma indústria sustentada por capital estrangeiro em busca de lucro fácil, e consequentemente uma burguesia que ainda não havia chegado à idade adulta. Encontrava-se na Rússia grandes grupos de pequeno-burgueses e também um proletariado, mas um proletariado que fora formado em um passado recente e que no conjunto da população formava uma pequena minoria e ainda não havia perdido suas ligações com o campo. O proletariado russo diferia do proletariado europeu ocidental no mesmo grau com que o capitalismo russo diferia dos sistemas de produção às margens do Reno e do Mar do Norte. Importantes traços de servidão subsistiam na indústria russa, e dificilmente seria possível dizer que o trabalhador russo era um assalariado livre no sentido marxista. A tarefa econômica da revolução russa foi abolir a servidão dos camponeses na agricultura e criar uma verdadeira classe de trabalhadores assalariados similar àquela do Ocidente, e quebrar todas as correntes que entravavam o desenvolvimento da indústria capitalista. Como consequência, no domínio político foram necessárias a liberação dos domínios feudais e a criação de um aparato estatal que garantisse a solução política do problema econômico. Em resumo, o problema da revolução russa era o problema da revolução burguesa, e os bolcheviques nunca o negaram.

Mas esta revolução burguesa não podia ser realizada sob a forma clássica da revolução francesa de 1789. Foi diferente da França, onde a burguesia (pode-se pensar nas palavras orgulhosas do Abbé Sieyés) mostrou uma consciência desenvolvida; a burguesia russa estava ligada de todas as formas ao antigo regime, e não podia pensar em uma resistência séria na situação existente. Portanto, a revolução que se aproximava encontrou seus principais apoiadores de forma crescente entre os camponeses, trabalhadores e intelectuais, que viam sua liberdade de consciência limitada pelo regime dos Romanoff. Estes intelectuais encontraram as armas necessárias à sua luta, como muitas vezes na história, no exterior; mas a teoria que eles tomaram emprestada, o marxismo, nasceu em outros países, em razão de uma realidade social completamente diferente da realidade social russa[22]. Tudo isso teve consequências bastante singulares.

Já que havia uma aproximação com pensamentos que não eram verdadeiros para a realidade russa, era necessário reconciliar as teorias estrangeiras com esta realidade. Foi parcialmente necessário violentar a realidade, e, por outro lado, era obrigatório adaptar a teoria estrangeira à realidade histórica. Nisto reside a causa da interpretação bolchevique, da interpretação leninista do marxismo.

O intelectual revolucionário russo viu muito claramente que os camponeses russos se constituíam, devido ao seu número, a camada social que desempenharia o papel mais importante na revolução futura. Mas o marxismo os dizia que, como o formulou Lênin, “somente o proletariado, por causa do seu papel econômico na indústria, podia liderar todas as massas trabalhadoras e oprimidas que, é verdade, eram frequentemente mais oprimidas do que os proletários, mas não podiam lutar de forma independente por sua liberação”. Lênin acrescenta:

“No caso de a burguesia fazer com que os camponeses e todas as camadas pequeno-burguesas explodam, o proletariado os une e organiza”. “Para ser verdadeiramente revolucionário”, diz Lênin, “os democratas da Rússia hoje devem marchar em estreita aliança com o proletariado, apoiando-o em sua luta como a única classe totalmente revolucionária”.

Em outra passagem ele diz:

“Consequentemente, a revolução burguesa de 1905-7, sem ter tido sucessos tão espantosos como aqueles advindos de tempos em tempos das revoluções portuguesa e turca, foi inegavelmente uma verdadeira revolução popular. Pois a massa da população, sua maioria, suas camadas mais baixas, os mais solidamente submetidos ao jugo da exploração, se levantou, eles imprimiram em todo o curso da revolução o selo de suas demandas, de suas tentativas de construir à sua maneira uma nova sociedade no lugar da antiga que eles estavam destruindo”.

Basta reparar na analogia com a “mobilização do povo” de 1848 para ver muito nitidamente por que os bolcheviques não começaram pelo marxismo de 1871, mas pelo marxismo do “Manifesto”. Naquele escrito são encontradas opiniões sobre a tarefa do proletariado em um tempo no qual a revolução burguesa ainda não havia ocorrido. Lá se encontra uma concepção de democracia que se encaixava bem com a conjuntura russa, onde a aliança entre os três grupos realmente revolucionários também aspirava o poder revolucionário do povo.

Quando Lênin comparou os revolucionários sociais e mencheviques russos com os democratas pequeno-burgueses da França, do tipo de Louis Blanc, ele estava mais correto do que poderia saber. O paralelo é tão exato que podemos segui-lo, e comparar os bolcheviques aos comunistas de 1848. Que eles próprios o fizeram é provado pelo fato de que se encontra entre eles não somente concepções como “democracia revolucionária e revolução popular” mas também, por exemplo, em Trotsky, a terminologia da revolução permanente. A concepção juvenil de Marx e Engels segundo a qual “a conquista da democracia” é somente o primeiro passo na revolução dos trabalhadores foi compartilhada pelos bolcheviques, e suas políticas em 1917 tenderam à realização desta concepção.

Em 1848[23] esta concepção do jovem Marx revelou-se uma ilusão: em 1917 a mesma coisa revelou-se pela segunda vez, a história repetiu-se, mas sob outra forma. Nem a revolução de 1848 na França nem a revolução de outubro realizaram a liberação do proletariado. No que se refere aos bolcheviques, Trotsky desempenhou no início, com a insurreição de Kronstadt, o papel de Cavaignac, que em 1848 esmagou os trabalhadores revoltados. Mais tarde a sorte de Trotsky foi a mesma que a de Louis Blanc, que longe de onde exercera o poder escreveu magníficos livros sobre a história que ele próprio ajudou a construir. E o herdeiro de outubro foi Stálin, assim como, na França, Louis Bonaparte, ávido por poder, tomou posse da herança da revolução de 1848. Mas nem um e nem outro desenvolvimento implicam a falsidade do marxismo.


[1] O socialista austríaco Max Adler, morto em 1938, apercebeu-se bem desta contradição, o que não se encontra em nenhum de seus trabalhos subsequentes. Entretanto, também nele as opiniões sobre a revolução social não vão além do “Manifesto Comunista”.

[2] Address of the Central Commitee to the Communist League, in Karl Marx, The Revolutions of 1848, Penguin Books, 1973, p. 323-4, 330.

[3] O original diz: “A little further one Marx writes: …”. Consideramos que tratou-se de equívoco, e traduzimos o trecho como se fosse “a little further on Marx writes”. (N. do T.).

[4] The Class Struggles in France: 1840-1850, in Karl Marx, Surveys From Exile, Penguin Books, 1973, p. 43, 57.

[5] Letter to Kugelmann: 12 April 1871, in Marx and Engels, Selected Correspondance, Lawrence & Wishart, 1934, p. 309.

[6] No original consta “it is sais”; traduzido como se fosse “it is said” (N. do T.)

[7] V. I. Lenin, State and Revolution, Foreign Languages Press, Peking, 1965 (reimpressão da edição de Moscou de 1952), p. 43.

[8] State and Revolution, p. 30-1.

[9] No original constava “everthrow”; traduzido como se fosse “overthrow” (N. do T.)

[10] State and Revolution, p. 29.

[11] Waldeck-Rousseau (1846-1904), político francês (burguês radical).

[12] State and Revolution, p. 40.

[13] State and Revolution, p. 33.

[14] F. Engels, Anti-Duhring, Foreign Languages Publishing House (Moscou 1954), p. 388.

[15] Anti-Duhring, p. 388-9.

[16] Segundo o jurista russo Evgeni Pachukanis, a juridicação e a constituição do “sujeito de direito” são fenômenos específicos da época capitalista. Para uma visão mais aprofundada, ver os textos de Joelton Nascimento na revista Sinal de Menos #1 e #2 (N. do T.).

[17] State and Revolution, p. 118.

[18] Ibid.

[19] State and Revolution, p. 116.

[20] State and Revolution, p. 21.

[21] No original não consta o ponto de interrogação (N. do T.).

[22] Na realidade brasileira, pode-se pensar de forma análoga no positivismo no Rio Grande do Sul e, em menor grau, no país inteiro; nascido na Europa como ideologia conservadora, por aqui tornou-se ideologia de legitimação da modernização retardatária [N. do T.].

[23] No original constava 1948; corrigido na tradução (N. do T.).

Traduzido por Daniel Cunha
Título original: Lenin’s interpretation of marxism. Publicado originalmente em: https://www.dropbox.com/s/y2kdsxn8rh8iw2u/SINAL_DE_MENOS_3.pdf.
Texto disponível no arquivo Cajo Brendel do Instituto Internacional de História Social, Amsterdam (www.iisg.nl). Também está disponível na versão francesa em: L’interprétation du marxisme chez Lénine – Cajo Brendel (Cadernos do Comunismo de Conselhos, número 7, 1970), .

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