Sociedade e Mente na Filosofia Marxista – Anton Pannekoek

Publicado em: Science and Society, Vol. I (1937), nº 4 (Verão), p. 445-453.

I

A teoria de Marx do desenvolvimento social é conhecida como “concepção materialista da história” ou “materialismo histórico”. Antes de Marx, a palavra “materialismo” tinha sido usada há muito tempo em oposição a idealismo, pois enquanto os sistemas filosóficos idealistas assumiam algum princípio espiritual, algum “espírito absoluto” como a base fundamental do mundo, as filosofias materialistas procediam do mundo material real. Em meados do século XIX, outro tipo de materialismo era corrente. Este materialismo considerava a matéria física como a base fundamental a partir da qual todos os fenômenos espirituais e mentais devem ser derivados. A maioria das objeções que foram levantadas contra o marxismo deve-se ao fato deste não ter sido suficientemente distinguido desse materialismo mecânico.

A filosofia está condensada na famosa citação “não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, pelo contrário, a sua existência social determina a sua consciência”. O marxismo não se preocupa com a antítese matéria-mente; ele trata do mundo real e das ideias derivadas dele. Este mundo real compreende tudo o que é observável – ou seja, tudo aquilo que por observação pode ser declarado um fato objetivo. As relações salariais entre operário e patrão, a constituição dos Estados Unidos, a ciência da matemática, embora não consistindo em matéria física, são tão reais e objetivas como a maquinaria fabril, o Capitólio ou o rio Ohio. Mesmo as próprias ideias, por sua vez, atuam como fatos reais e observáveis. O materialismo mecânico pressupõe que os nossos pensamentos são determinados pelos movimentos dos átomos nas células do nosso cérebro. O marxismo considera que nossos pensamentos são determinados pela nossa experiência social observada através dos sentidos ou sentida como necessidades corporais diretas.

O mundo para o homem é a sociedade. Evidentemente, o mundo mais amplo é a natureza, e a sociedade é a natureza transformada pelo homem. Mas no decorrer da história essa transformação foi tão profunda que agora a sociedade é a parte mais importante do nosso mundo. A sociedade não é simplesmente um agregado de homens; os homens estão ligados por relações definidas, não escolhidas por eles à vontade, mas impostas pelo sistema econômico sob o qual vivem e no qual cada um possui o seu lugar.

As relações que o sistema produtivo estabelece entre os homens têm o mesmo rigor que os fatos biológicos; mas isto não significa que os homens pensem apenas na sua alimentação. Significa que a forma como o homem ganha a sua vida – isto é, a organização econômica da produção – coloca cada indivíduo em relações determinadas com os seus semelhantes, determinando assim o seu pensamento e sentimento. É verdade, claro, que até hoje quase todos os pensamentos dos homens têm sido orientados em torno da obtenção de alimentos, porque nunca foi assegurado um meio de subsistência para todos. O medo da necessidade e da fome pesou como um pesadelo na mente dos homens. Mas, em um sistema socialista, quando esse medo tiver sido removido, quando a humanidade for mestre dos meios de subsistência e o pensamento for livre e criativo, o sistema de produção também continuará a determinar as ideias e instituições.

O modo de produção (Produktionsweise) – que forma a mente do homem – é, ao mesmo tempo, um produto do homem. Ele foi construído pela humanidade ao longo dos séculos, todos participando no seu desenvolvimento. Em qualquer momento, a sua estrutura está determinada por determinadas condições, nas quais as mais importantes são a técnica e o direito. O capitalismo moderno não é simplesmente produção por maquinaria de grande escala; é produção por tais máquinas sob o domínio da propriedade privada. O crescimento do capitalismo não foi apenas uma mudança de uma economia que utiliza pequenas ferramentas para uma indústria de grande escala, mas, simultaneamente, um desenvolvimento dos artesãos ligados à guilda em trabalhadores assalariados e homens de negócios. Um sistema de produção é um sistema de técnica determinado, regulado para o benefício de proprietários por um sistema de regras jurídicas.

A tese frequentemente citada pelo jurista alemão Stammler, segundo a qual o direito determina o sistema econômico (“das Recht bestimmt die Wirtschaft”), baseia-se nessa circunstância. Stammler pensou que por esta frase ele tinha refutado o marxismo, que proclamava o domínio da economia sobre as ideias jurídicas. Ao proclamar que o elemento material, o aspecto técnico do processo laboral, é governado e dominado por elementos ideológicos, as regras jurídicas pelas quais os homens regulam as suas relações à sua própria vontade, Stammler se sentiu convencido que tinha estabelecido o predomínio da mente sobre a matéria. Mas a antítese entre a técnica e o direito não coincide de modo algum com a antítese matéria-mente. O direito não é apenas uma norma espiritual, mas também uma dura restrição, não só um artigo nos códigos legais, mas também o bastão da polícia e os muros da prisão. E a técnica não é apenas as máquinas materiais, mas também o poder de construí-las, incluindo a ciência da física.

As duas condições, a técnica e o direito, desempenham papéis diferentes na determinação do sistema de produção. A vontade daqueles que controlam as técnicas não pode por si só criar estas técnicas, mas pode – e faz – fazer as leis. Elas são voluntárias, mas não caprichosas. Não determinam as relações produtivas, mas aproveitam destas relações em benefício dos proprietários e são alteradas para satisfazer os avanços nos modos de produção. A manufatura, utilizando a técnica de pequenas ferramentas, levou a um sistema de produção artesanal, tornando assim necessária a instituição jurídica da propriedade privada. O desenvolvimento da grande indústria tornou possível e necessário o crescimento de maquinaria de grande escala, e induziu as pessoas a remover os obstáculos jurídicos ao seu desenvolvimento e a estabelecer a legislação de comércio laissez-faire. Desta forma, a técnica determina o direito; é a força subjacente, enquanto que o direito pertence à superestrutura que repousa sobre ela. Assim, Stammler, embora correto na sua tese num sentido restrito, está errado no sentido geral. Precisamente porque o direito governa a economia, as pessoas procuram fazer as leis que são exigidas por um determinado equipamento produtivo; desta forma, a técnica determina a lei. Não existe uma dependência rígida, mecânica e individual. O direito não se ajusta automaticamente a cada nova mudança da técnica. A necessidade econômica deve ser sentida e depois o homem deve mudar e ajustar as suas leis em conformidade. Alcançar este ajustamento é o objetivo difícil e doloroso das lutas sociais. É a quintessência e o objetivo de todas as lutas políticas e de todas as grandes revoluções na história. A luta por novos princípios jurídicos é necessária para formar um novo sistema de produção adaptado ao enorme desenvolvimento moderno das técnicas.

A técnica como força produtiva é a base da sociedade. Na sociedade primitiva, as condições naturais desempenham o papel principal na determinação do sistema de produção. Ao longo da história, os instrumentos técnicos são gradualmente melhorados por etapas quase imperceptíveis. A ciência natural, ao investigar as forças da natureza, desenvolve-se sobre a importante força produtiva. Todos os aspectos técnicos no desenvolvimento e aplicação da ciência – incluindo a matemática mais abstrata que é segundo todas as aparências um exercício da pura razão – podem, portanto, ser considerados como pertencendo à base técnica do sistema de produção, ao que Marx chamou as “forças produtivas”. Deste modo, os elementos materiais (no sentido físico) e mentais são combinados no que os marxistas denominam a base material da sociedade.

A concepção marxista da história coloca o homem vivo no centro do seu esquema de desenvolvimento, com todas as suas necessidades e todos as suas capacidades, tanto físicas como mentais. As suas necessidades não são apenas as necessidades do seu estômago (embora estas sejam as mais imperativas), mas também as necessidades da cabeça e do coração. No trabalho humano, o lado material, físico e mental é inseparável; mesmo o trabalho mais primitivo do selvagem é tanto o trabalho do cérebro como o trabalho muscular. Só porque sob o capitalismo a divisão do trabalho separou essas duas partes em funções de classes diferentes, mutilando assim as capacidades de ambas, é que os intelectuais passaram a ignorar a sua unidade orgânica e social. Desta forma, podemos compreender a sua visão errônea do marxismo como uma teoria que lida exclusivamente com o aspecto material da vida.

II

O materialismo histórico de Marx é um método de interpretação da história. A história consiste dos atos e ações dos homens. O que induz estas ações? O que determina a atividade do homem?

O homem, enquanto organismo com certas necessidades que devem ser satisfeitas como condicionais à sua existência, encontra-se dentro de uma natureza circundante que oferece os meios para satisfazê-las. As suas necessidades e as impressões do mundo circundante são os impulsos, os estímulos nos quais suas ações são as respostas, tal como acontece com todos os seres vivos. No caso do homem, a consciência interpõe-se entre o estímulo e a ação. A necessidade tal como é sentida diretamente e o mundo circundante, tal como é observado através dos sentidos, trabalham sobre a mente, produzem pensamentos, ideias e objetivos, estimulam a vontade e põem o corpo em ação.

Os pensamentos e objetivos de um homem ativo são considerados por ele como a causa dos seus atos; ele não pergunta de onde vêm esses pensamentos. Isto é especialmente verdade porque os pensamentos, ideias e objetivos não são, em regra, derivados das impressões do raciocínio consciente, mas são o produto de processos espontâneos subconscientes na nossa mente. Para os membros de uma classe social, as experiências diárias da vida condicionam – e as necessidades de classe moldam – a mente segundo uma determinada linha de sentimento e pensamento, para produzir determinadas ideias sobre o que é útil e o que é bom ou mau. As condições de uma classe são necessidades vitais para os seus membros, e eles consideram o que é bom ou mau para eles como sendo bom ou mau em geral. Quando as condições estão maduras, os homens entram em ação e moldam a sociedade de acordo com as suas ideias. A burguesia francesa ascendente no século XVIII, sentindo a necessidade de leis do laissez-faire e de liberdade pessoal para os cidadãos, proclamou a liberdade como um slogan, e na Revolução Francesa conquistou o poder e transformou a sociedade.

A concepção idealista da história explica os acontecimentos da história como causados pelas ideias dos homens. Isto é errado, na medida em que confunde a fórmula abstrata com um significado concreto especial, ignorando o fato de que, por exemplo, a burguesia francesa queria apenas aquela liberdade que era boa para si própria. Além disso, ela omite o verdadeiro problema: a origem dessas ideias. A concepção materialista da história explica essas ideias como sendo causadas pelas necessidades sociais decorrentes das condições do sistema de produção existente. De acordo com esta visão, os acontecimentos da história são determinados por forças decorrentes do sistema econômico existente. A interpretação materialista histórica da Revolução Francesa, em termos de um capitalismo em ascensão que exigia um Estado moderno com legislação adaptada às suas necessidades, não contradiz a concepção de que a Revolução foi provocada pelo desejo do cidadão de se libertar das restrições; ela vai apenas mais longe na raiz do problema. Pois o materialismo histórico sustenta que o capitalismo ascendente produziu na burguesia a convicção de que a liberdade econômica e política era necessária, e assim despertou a paixão e o entusiasmo que permitiram à burguesia conquistar o poder político e transformar o Estado.

Dessa forma, Marx estabeleceu a causalidade no desenvolvimento da sociedade humana. Não é uma causalidade fora do homem, pois a história é, ao mesmo tempo, o produto da ação humana. O homem é um elo na cadeia de causa e efeito; a necessidade no desenvolvimento social é uma necessidade alcançada por meio da ação humana. O mundo material atua sobre o homem, determina a sua consciência, as suas ideias, a sua vontade, as suas ações, e então ele reage sobre o mundo e transforma-o. Para o modo tradicional de pensar da classe média isto é uma contradição – a fonte de intermináveis deturpações do marxismo. Ou as ações do homem determinam a história, eles dizem, e então não há causalidade necessária porque o homem é livre; ou se, como o marxismo sustenta, existe necessidade causal que só pode funcionar como uma fatalidade à qual o homem tem que submeter-se sem ser capaz de mudar. Pelo contrário, para o modo materialista de pensar a mente humana está ligada por uma estrita dependência causal ao conjunto do mundo circundante.

Os pensamentos, as teorias e as ideias que os anteriores sistemas da sociedade assim forjaram na mente humana foram preservados para a posteridade, primeiro sob forma material na atividade histórica subsequente. Mas também foram preservados sob uma forma espiritual. As ideias, sentimentos, paixões e ideais que incitaram as gerações anteriores à ação, foram estabelecidas na literatura, na ciência, na arte, na religião e na filosofia. Entramos em contato direto com elas no estudo das humanidades. Estas ciências pertencem aos campos de investigação mais importantes para os estudiosos marxistas; as diferenças entre as filosofias, as literaturas, as religiões de povos diferentes ao longo dos séculos só podem ser compreendidas em termos da conformação da mente dos homens através das suas sociedades, ou seja, através dos seus sistemas de produção. Foi dito acima, que os efeitos da sociedade sobre a mente humana foram depositados sob forma material em eventos históricos subsequentes. A cadeia de causa e efeito de acontecimentos passados que procede de necessidades econômicas para novas ideias, de novas ideias para ação social, de ação social para novas instituições e de novas instituições para novos sistemas econômicos, está completa e sempre em recriação. Tanto a causa original como o efeito final são econômicos e podemos reduzir o processo a uma breve fórmula, omitindo os termos intermediários que envolvem a atividade da mente humana. Podemos então ilustrar a verdade dos princípios marxistas mostrando como, na história real, o efeito sucede a causa. Ao analisarmos o presente, contudo, vemos numerosas cadeias causais que não estão inacabadas. Quando a sociedade atua sobre as mentes dos homens, ela produz frequentemente ideias, ideais e teorias que não conseguem despertar os homens para a ação social ou de classe, ou não conseguem provocar as mudanças políticas, jurídicas e econômicas necessárias. Frequentemente, também constatamos que as novas condições não se imprimem de imediato na mente. Por detrás de aparentes simplicidades escondem-se complexidades tão inesperadas que só um instrumento especial de interpretação pode desvendá-las no momento. A análise marxista permite-nos ver as coisas mais claramente. Começamos a ver que estamos dentro de um processo repleto de influências convergentes, no meio de um lento amadurecimento de novas ideias e tendências que constituem a preparação gradual da revolução. É por isso que é importante para a geração atual, que hoje tem que conceber a sociedade de amanhã, saber como a teoria marxista lhes pode ser útil na compreensão dos acontecimentos e na determinação da sua própria conduta. Assim, será necessária aqui uma consideração mais profunda sobre como a sociedade atua sobre a mente.

III

A mente humana é inteiramente determinada pelo mundo real circundante. Já dissemos que este mundo não se restringe apenas à matéria física, mas compreende tudo o que é objetivamente observável. Os pensamentos e ideias dos nossos semelhantes, que observamos através da sua conversação ou da nossa leitura, estão incluídos nesse mundo real. Embora os objetos fantasiosos destes pensamentos, tais como anjos, espíritos ou um espírito absoluto não lhe pertençam, a crença em tais ideias é um fenômeno real e pode ter uma influência notável nos acontecimentos históricos.

As impressões do mundo penetram na mente humana como uma corrente contínua. Todas as nossas observações do mundo circundante, todas as experiências das nossas vidas estão continuamente enriquecendo o conteúdo das nossas memórias e do subconsciente das nossas mentes.

A recorrência de uma situação quase igual e da mesma experiência conduz a hábitos definidos de ação; estes são acompanhados por hábitos definidos de pensamento. A repetição frequente da mesma sequência de fenômenos observados é retida na mente e produz uma expectativa da sequência. A regra segundo a qual estes fenômenos estão sempre ligados desta forma é então aplicada. Mas esta regra – por vezes elevada a uma lei da natureza – é uma abstração mental de uma multiplicidade de fenômenos análogos, nos quais as diferenças são negligenciadas e a concordância enfatizada. Os nomes pelos quais designamos partes definitivamente similares do mundo dos fenômenos indicam concepções que também são formadas tomando os seus traços comuns, o caráter geral da totalidade destes fenômenos, e abstraindo-os das suas diferenças. A diversidade sem fim, a pluralidade infinita de todos os traços sem importância e acidentais, são negligenciados e as características importantes e essenciais são preservadas. Através da sua origem como hábitos de pensamento, esses conceitos tornam-se fixos, cristalizados, invariáveis; cada avanço na clareza de pensamento consiste em definir mais exatamente os conceitos em termos das suas propriedades, e em formular mais exatamente as regras. O mundo da experiência, contudo, está em contínua expansão e mudança; os nossos hábitos são perturbados e devem ser modificados, e os novos conceitos substituem os antigos. Os significados, as definições, os escopos dos conceitos, todos mudam e variam.

Quando o mundo não muda muito, quando os mesmos fenômenos e as mesmas experiências retornam sempre, os hábitos de agir e pensar tornam-se fixos com grande rigidez; as novas impressões da mente encaixam na imagem formada pela experiência anterior e a intensificam. Esses hábitos e esses conceitos não são propriedade pessoal mas coletiva; eles não se perdem com a morte do indivíduo. São intensificados pelo relacionamento mútuo dos membros da comunidade, que vivem todos no mesmo mundo. Eles são transferidos para a geração seguinte como um sistema de ideias e crenças, uma ideologia – a reserva mental da comunidade. Onde durante muitos séculos o sistema de produção não muda sensivelmente, como, por exemplo, nas velhas sociedades agrícolas, as relações entre os homens, seus hábitos de vida e as suas experiências do mundo, permanecem praticamente os mesmos. Em cada nova geração que vive sob um sistema produtivo tão estático, as ideias, conceitos e hábitos de pensamento existentes irão petrificar-se cada vez mais numa ideologia dogmática e inatacável da verdade eterna.

Quando, contudo, em consequência do desenvolvimento das forças produtivas o mundo está mudando, novas e diferentes impressões entram na mente que não se enquadram na velha imagem. Inicia-se então um processo de reconstrução, a partir de partes das velhas ideias e novas experiências. Os conceitos antigos são substituídos por novos, os papéis e julgamentos antigos são perturbados e novas ideias emergem. Agora cada membro de uma classe ou grupo é afetado da mesma forma e ao mesmo tempo. O conflito ideológico surge em conexão com as lutas de classe e é avidamente perseguido, porque todas as diferentes vidas individuais estão ligadas de diversas formas ao problema de como organizar a sociedade e o seu sistema de produção. Sob o capitalismo moderno, as mudanças econômicas e políticas ocorrem tão rapidamente que a mente humana dificilmente consegue acompanhar o seu ritmo. Nas ferozes lutas internas, as ideias são revolucionadas, por vezes rapidamente, por acontecimentos espetaculares, por vezes lentamente, por uma guerra contínua contra o peso da velha ideologia. Num tal processo de transformação incessante, a consciência humana adapta-se à sociedade, ao mundo real.

Assim, a tese de Marx de que o mundo real determina a consciência não significa que as ideias contemporâneas são determinadas unicamente pela sociedade contemporânea. As nossas ideias e conceitos são a cristalização, a essência abrangente de toda a nossa experiência, presente e passada. O que já foi fixado no passado em formas mentais abstratas deve ser incluído com as adaptações do presente que se revelem necessárias. Novas ideias parecem, assim, surgir de duas fontes: a realidade atual e o sistema de ideias transmitidas do passado. Desta distinção surge uma das objeções mais comuns contra o marxismo. A objeção, a saber, de que não só o mundo material real, mas em não menor grau, os elementos ideológicos – ideias, crenças e ideais – determinam a mente do homem e, portanto, os seus atos e, por sua vez, o futuro do mundo. Esta seria uma crítica correta se as ideias se originassem por si próprias, sem causa, ou da natureza inata do homem, ou de alguma fonte espiritual sobrenatural. O marxismo, no entanto, diz que essas ideias também devem ter a sua origem no mundo real sob condições sociais.

Como forças no desenvolvimento social moderno, essas ideias tradicionais dificultam a propagação de novas ideias que expressam novas necessidades. Ao levar em conta estas tradições não precisamos de sair do reino do marxismo. Pois cada tradição é parte da realidade, tal como cada ideia faz parte do mundo real, vivendo na mente do homem; ela é frequentemente uma realidade muito poderosa que determina as ações dos homens. É uma realidade de natureza ideológica que perdeu as suas raízes materiais porque as antigas condições de vida que as produziram desapareceram desde então. Que estas tradições possam persistir após o desaparecimento das suas raízes materiais não é simplesmente uma consequência da natureza da mente humana, que é capaz de preservar na memória ou subconscientemente as impressões do passado. Muito mais importante é o que pode ser chamado de a memória social, a perpetuação de ideias coletivas, sistematizada na forma de crenças e ideologias prevalecentes, e transferidas às gerações futuras em comunicações orais, livros, literatura, arte e educação. O mundo circundante que determina a mente não consiste só no mundo econômico contemporâneo, mas também em todas as influências ideológicas derivadas do intercâmbio contínuo com os nossos semelhantes. Daí vem o poder da tradição, que numa sociedade em rápido desenvolvimento, faz com que o desenvolvimento das ideias fique atrás do desenvolvimento da sociedade. No final, a tradição deve ceder ao poder das investidas incessantes das novas realidades. O seu efeito no desenvolvimento social é que, em vez de permitir um ajustamento gradual e regular das ideias e instituições de acordo com as necessidades em mudança, essas necessidades – quando em forte contradição com as antigas instituições – conduzem a explosões, a transformações revolucionárias, pelas quais as mentes atrasadas são arrastadas e são elas próprias revolucionadas.

Traduzido por Ádamo Soares, a partir da versão disponível em: https://www.aaap.be/Pages/Pannekoek-en-1937-Society-And-Mind.html. Revisado por Felipe Andrade, comparando-se esta versão com a disponível em: https://comunism0.wordpress.com/sociedade-e-mente/.