Socialismo de Estado – Anton Pannekoek

Socialismo de Estado[1]

A luta do proletariado emergente contra o capitalismo consiste em sua parte teórica, espiritual [geistig][2], em  uma crítica do capitalismo que adota a forma de demandas determinadas como crítica positiva. Deste modo, o peso da crítica deve recair necessariamente naqueles aspectos do capitalismo que aparecem como suas características mais essenciais e mais importantes. Estes aspectos também determinam as demandas dos socialistas, cujas concepções de qual a melhor organização que desejam colocar no lugar do capitalismo expressam acima de tudo sua oposição ao caráter mais essencial do capitalismo. O fato de a social-democracia não querer executar o projeto pronto, elaborado e pré-determinado de ordem econômica é bem sabido hoje por qualquer um que busque se informar devidamente; mostra-se aqui, além disso, que a figura com a qual nós pintamos a futura sociedade e as reformas que exigimos para ela devem se transformar com a transformação do mundo capitalista.

O aspecto mais importante e mais evidente do capitalismo durante o período em que o movimento operário estava crescendo era a livre concorrência e a anarquia da produção. Era contra eles a quem as críticas tinham de ser dirigidas acima de tudo. A produção de todos os meios de subsistência e o trabalho para produzir os produtos imprescindíveis para a vida humana foram deixados aos caprichos das pessoas privadas, que se voltaram aleatoriamente a um ou a outro ramo e tentaram concorrer amargamente um contra o outro. Contra este desperdício francamente sem sentido de poder e trabalho que atingiu o objetivo de fornecer meios de subsistência à humanidade somente como resultado acidental e como a média de muitos esforços mal orientados, a vantagem de uma organização compreensiva do trabalho tinha de se destacar claramente. Diante da luta selvagem pela existência, na qual os mais fracos caíram em grande quantidade, mergulhados na miséria e vítimas da fome, do desespero, do crime, o dever da sociedade para com todos os seus membros teve que ser salientado. O Estado, segundo a teoria do Manchesterismo, que pertencia a esse capitalismo da livre concorrência, a quem só deveria caber o papel de vigias noturnos, era o órgão que tinha de intervir com mãos fortes em nome da sociedade. O Estado deveria, se perguntou, incorrer em gastos descomunais para nos proteger do inimigo estrangeiro, porém não considerar como sua tarefa manter afastados os inimigos muito piores da fome, do frio e da miséria?

Não é preciso liderar a luta de classes do proletariado para enxergar as vantagens de uma organização do trabalho e a necessidade de proteção dos economicamente frágeis – a análise de Bellamy, por exemplo, se dirige ao público burguês e contra os homens de bandeira vermelha. Porém, acima de tudo, está claro ainda assim que foram os trabalhadores, como os mais economicamente frágeis que tiveram que sofrer com a liberdade ilimitada da exploração, que tiveram de compreender esta crítica. Neles, a crítica ao capitalismo que os oprimia tinha de assumir a forma do ideal e da exigência de uma nova ordem mundial: contra a anarquia da produção, apresentavam a organização, contra o individualismo ilimitado, o princípio da comunidade, contra o manchesterismo, as intervenções estatais, contra o liberalismo, o socialismo. Como princípio socialista e liberal, suas reivindicações atuais e o ponto de vista dos capitalistas também foram comparados. O fato de que a reforma social, a intervenção do Estado nas relações de trabalho por meio das leis de proteção e a organização estatal contra a carência social, as quais pertencem precisamente ao capitalismo como moderação necessária das piores devastações, são designadas com o nome de socialismo surge da percepção de que o socialismo equivale essencialmente à regulação estatal e à intervenção estatal na vida econômica.

Entre muitos reformistas, este endosso à reforma social se tornou uma doutrina unilateral que os coloca ao lado dos reformistas sociais burgueses que gostariam de remover do capitalismo suas piores imperfeições para torná-lo mais durável. Dentre estes defeitos, o desemprego é provavelmente o pior de todos; por outro lado, sua eliminação poderá servir como a alavanca mais importante para a transformação do capitalismo; portanto, é possível pensar em um objeto melhor para a realização gradual do socialismo? O fato de que se torna necessária certa coerção em sua luta também contra os trabalhadores é algo que eles têm em comum com os outros reformistas sociais. Assim, encontra-se na famosa moção do Partido Trabalhista[3] inglês que determina o direito ao trabalho medidas coercitivas sugeridas contra pessoas “que evitam o trabalho”; eles podem ser presos e detidos em uma colônia de trabalho se fugirem; e o famoso autor socialista Sidney Webb sublinhou que o fato de que o emprego dos desempregados sempre deve ser de natureza tal que o desemprego lhes é mais desagradável do que o trabalho normal. O fato de uma grande parte dos membros do parlamento burguês não ter argumentado contra tal reconhecimento do direito ao trabalho não é surpreendente. Mas também está claro que temos diante de nós uma consequência assustadora da doutrina socialista de Estado reformista que não tem nada em comum com o socialismo, a libertação do proletariado e a superação da dominação e da servidão. No sentido inverso, ela encontra justamente as aspirações do capitalismo moderno.

Pois o capitalismo mudou, nesse meio tempo, completamente seu caráter. Com a concentração enorme do capital, a numerosa classe de empreendedores privados foi substituída por uma pequena classe de magnatas e a livre concorrência deu lugar a uma regulação compulsória abrangente da produção. Os senhores dos cartéis e bancos não sabem nada sobre o Manchesterismo; eles precisam e se utilizam do poder estatal e colocam cada vez mais meios de poder à sua disposição, especialmente contra o movimento operário. Os avanços do socialismo internamente e a política externa mundial despertam na burguesia um espírito de violência, de repressão, de coerção, de interferência estatal em todo impulso livre, o que é completamente oposto ao princípio liberal do antigo capitalismo. Na Alemanha, este fenômeno é frequentemente considerado um vestígio do antigo prussianismo, o qual ainda não foi eliminado. Porém, está crescendo em todos os lugares e sua incidência em países tidos como as amostras mais asquerosas da liberdade irrestrita explica o porquê de estes métodos de governo terem se conservado tão fortemente. Apenas a ideologia é diferente, ao passo que aqui a sagrada autoridade tradicional do Estado serve como fundamento, nesses países ela entra em cena com o rótulo progressista de assistência estatal ou de socialismo de Estado. Nos Estados Unidos, foi aprovada uma lei contra o protesto dos trabalhadores na qual os desempregados são enfiados compulsoriamente em colônias de trabalho a fim de removê-los das ruas. No Sul, se dissemina acima de tudo a ideia de que os negros e brancos desempregados e os que evitam o trabalho devem ser condenados ao trabalho forçado para a melhoria das vias públicas – por interesse próprio e da comunidade! O mesmo princípio, aliás, também já está sendo aplicado nas colônias contra raças estrangeiras. Ao mesmo tempo, a intenção com a ameaça do trabalho forçado é fornecer trabalhadores de baixo custo aos empregadores.

Nossa luta não é contra o capitalismo antigo, morto, mas sim contra o capitalismo vivo. A velha ideologia da livre concorrência foi descartada; contra ela, nós praticamente não precisamos mais dirigir as nossas forças espirituais. Os aspectos do capitalismo que deviam ser criticados naquela altura como os mais essenciais se tornaram insignificantes e, por causa disso, nossa crítica deve mudar. Em nossa propaganda do socialismo, a organização prudente e a regulação de cima não podem mais assumir o primeiro lugar uma vez que o capitalismo moderno dá passos rumo à organização prudente e à regulação de cima no interesse do grande capital e as utiliza como meio de suprimir e explorar com mais violência os trabalhadores. Coerção e pressão de cima por parte da classe dominante, a qual sempre busca se afirmar mais por meio da autoridade do Estado, se tornaram o aspecto mais importante do capitalismo atual, ao passo que para os primeiros, os trabalhadores sem poder, estão, ao apelarem ao Estado, constituindo organizações poderosas capazes de autoajuda. Agora, um esquema doutrinário do socialismo de Estado, que serve melhor ao inimigo do que a nós, não pode mais ser válido – agora, o outro elemento, a liberdade e a autodeterminação das organizações emergirão mais naturalmente na imagem do socialismo.

Para a Alemanha isto não faz muita diferença na prática; aqui, o poder do Estado sempre foi o pior inimigo e opressor dos trabalhadores e deixou, por isso, apenas um pequeno espaço para devoção ao Estado nas ideias dos trabalhadores socialistas. Porém, na propaganda, em particular no revisionismo, a ilusão de que um melhor Estado democrático ainda assim desempenhasse um papel, Estado este que em países mais livres introduziria reformas socialistas em benefício dos trabalhadores e em nosso Estado tinham de ser realizadas com a ajuda da burguesia progressista. Esta ilusão perdeu sua razão de ser graças ao desenvolvimento moderno.


[1] Tradução do artigo Staatssozialismus, a partir da transcrição disponível no website Antonie Pannekoek Archives, originalmente publicado na Zeitungskorrespondenz, nº 276, em 24 de maio de 1913, e na Leipziger Volkszeitung, também de 24 de maio de 1913. [N. T.]

[2] Sigo aqui a observação de John Paul Gerber em seu livro Anton Pannekoek and the Socialism of Workers’ Self Emancipation 1873-1960 (1989, p. 16) de que, a despeito de mental ser uma tradução melhor para geistig, o próprio Pannekoek traduzia, em seus escritos em inglês, geistig especificamente como spiritual [espiritual] para significar uma “combinação de qualidades subjetivas, mentais, intelectuais, psicológicas e morais”. [N. T.]

[3] Suponho que Pannekoek traduz incorretamente aqui Labour Party como Arbeiterspartei; o correto e corrente no alemão é Arbeitspartei. [N. T.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou.