Socialisme ou Barbarie, n. 10 (julho de 1952).
Para a constituição da vanguarda revolucionária e ao mesmo tempo para a renovação do movimento operário em seu conjunto, é indispensável que o programa socialista seja formulado de novo e que o seja de uma maneira muito mais precisa e detalhada do que no passado. Por programa socialista entendemos as medidas de transformação da sociedade que o proletariado vitorioso deverá tomar para chegar a seu objetivo comunista. Os problemas que dizem respeito à luta operária no quadro da sociedade de exploração não são considerados aqui.
Dizemos: formular de novo o programa de poder do proletariado, e formulá-lo de uma maneira muito mais precisa do que no passado. Formular de novo, pois sua formulação tradicional foi em grande parte ultrapassada pela evolução histórica; em particular, esta formulação tradicional é hoje inseparável de sua deformação stalinista. Formular com muito mais precisão, pois a mistificação stalinista utilizou exatamente o caráter geral e abstrato das ideias programáticas do marxismo tradicional para camuflar a exploração burocrática sob a máscara “socialista”.
Por várias vezes temos mostrado nesta revista como a contrarrevolução stalinista pôde servir-se do programa tradicional como plataforma. Os seus dois pontos fundamentais: a nacionalização e a planificação da economia, de um lado, e a ditadura do partido como expressão concreta da ditadura do proletariado, de outro, revelaram-se, nas condições dadas do desenvolvimento histórico, as bases programáticas do capitalismo burocrático. Por menos que se recuse esta constatação empírica, ou que se negue a necessidade de um programa socialista para o proletariado, é impossível ater-se às posições programáticas tradicionais. Sem uma nova elaboração programática, a vanguarda jamais será capaz de estabelecer a sua linha de demarcação em relação ao stalinismo a um nível mais verdadeiro e mais profundo; a lamentável experiência do trotskismo mostrou isto em profusão.
Mas também é evidente que esta utilização das ideias programáticas tradicionais do marxismo pelo stalinismo, longe de significar que na obra stalinista se revelava a verdadeira essência do marxismo, como têm dito alguns para se lamentarem ou para se alegrarem com isto, simplesmente expressou o fato de que estas formas abstratas – nacionalização, ditadura – assumiram um conteúdo concreto diferente do conteúdo potencial que possuíam na origem. Para Marx, a nacionalização significava a supressão da exploração burguesa. Aliás, ela não perdeu este sentido nas mãos dos stalinistas; mas, além desse, ela adquiriu um outro – a instauração da exploração burocrática. Pode-se dizer que a razão do sucesso do stalinismo foi o caráter impreciso ou abstrato do programa tradicional? Seria superficial considerar assim a questão. Esse caráter abstrato e impreciso exprimia apenas a falta de maturidade do movimento operário, mesmo para os seus representantes mais conscientes, e é desta não-maturidade, em sentido mais amplo, que procede a burocracia. Em compensação, a experiência burocrática, a “realização” das ideias tradicionais pela burocracia, permitirá ao movimento operário chegar a esta maturidade e dar uma nova formulação de seus fins programáticos.
Formular o programa socialista de maneira mais precisa do que se tem feito até aqui no quadro do marxismo não significa absolutamente uma volta ao socialismo utópico. A luta do marxismo contra o socialismo utópico decorreu de dois fatores: de um lado, a característica essencial do “utopismo” não era a descrição da sociedade futura, mas a tentativa de fundar essa sociedade, em seus mínimos detalhes, segundo um modelo lógico, sem examinar as forças sociais concretas que tendem para uma organização superior da sociedade. Isto era de fato impossível antes da análise da sociedade moderna iniciada por Marx. As conclusões dessa análise lhe permitiram estabelecer os fundamentos do programa socialista; a continuação dessa análise hoje, com o material infinitamente mais rico acumulado com um século de desenvolvimento histórico, permite avançar muito mais no campo do programa.
De outro lado, o socialismo utópico preocupava-se unicamente com planos ideais para a reorganização da sociedade numa época em que tais planos, bons ou maus, de qualquer forma tinham pouca importância para o desenvolvimento real do movimento operário concreto e não apresentava o menor interesse por este último. Contra essa atitude e seus resquícios, Marx tinha razão de dizer que uma iniciativa prática valia mais do que uma centena de programas. Mas, atualmente, a maior parte da luta revolucionária concreta é, na realidade, a luta contra a mistificação stalinista ou reformista, que apresenta variantes mais ou menos novas tanto da exploração quanto do “socialismo”. Esta luta só é possível ao preço de uma nova elaboração do programa.
As limitações voluntárias que o marxismo havia imposto a si mesmo na elaboração do programa socialista prendiam-se também à idéia, implicitamente em vigor na época, segundo a qual a destruição revolucionária da classe capitalista e de seu Estado deixaria o caminho livre para a construção do socialismo. Ao mesmo tempo, a análise teórica e a experiência da história provam que essa idéia era no mínimo ambígua. Se for verdade, como disse Trotsky, que “o socialismo, ao contrário do capitalismo, se constrói conscientemente” e portanto que a atividade consciente das massas é a condição essencial para o desenvolvimento socialista, é preciso tirar todas as conclusões dessa idéia e, acima de tudo, da idéia de que essa construção consciente pressupõe uma orientação programática precisa.
De resto, o espírito que impregnava o “empirismo” relativo de Marx nesse domínio permanece sempre válido, no sentido de que constitui uma severa advertência ao mesmo tempo contra toda rigidez dogmática que tenderia a subordinar a análise viva do processo histórico a esquemas a priori e contra toda tentativa de substituir a elaboração de uma seita à ação criadora das próprias massas. Não existe elaboração programática válida que não leve em conta o desenvolvimento real e sobretudo o desenvolvimento da consciência do proletariado. O programa da revolução formulado pela organização da vanguarda é apenas uma expressão antecipada das tarefas que decorrem da situação objetiva e da consciência da classe durante o período revolucionário, e, em contrapartida, a publicação, a propagação desse programa é uma condição do desenvolvimento futuro dessa consciência de classe.
Comunismo e sociedade de transição
Se denominamos o programa da revolução de “programa socialista”, é unicamente para indicar que ele não se refere à sociedade comunista em si mesma, mas à fase de transição histórica que conduz a essa sociedade. De outro modo, não existe “sociedade socialista” enquanto tipo definido e estável de sociedade e a confusão que reina em torno desta noção há cinquenta anos deve ser vigorosamente combatida.
Marx fez uma única distinção entre duas fases da sociedade pós-revolucionária, o que chamou de fase inferior e fase superior do comunismo. Esta distinção possui um fundamento econômico e sociológico indiscutível: a “fase inferior do comunismo” (aquela que chamamos de sociedade de transição) corresponde sempre a uma economia de penúria, durante a qual a sociedade nunca realizou a abundância material e o pleno desenvolvimento das capacidades humanas; esta limitação ao mesmo tempo econômica e humana da sociedade de transição traduz-se no plano econômico pela manutenção – com uma forma e um conteúdo inteiramente novos em relação à história precedente – do poder “de Estado”, isto é, pela ditadura do proletariado. Se sob essas duas relações a sociedade de transição carrega ainda “os estigmas da sociedade capitalista da qual procede”, em compensação ela se distingue radicalmente desta última porque abole imediatamente a exploração. Os sofismas de Trotsky em torno da questão do “socialismo” e do “Estado operário” fizeram esquecer este fato essencial: se a penúria econômica justifica a coação, a repartição segundo o trabalho e não segundo as necessidades, em compensação, ela não justifica de forma alguma a persistência da exploração. De outra maneira, a passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista seria para sempre impossível. A construção do comunismo partirá sempre de uma situação de penúria: se esta penúria tornasse necessária e justificasse a exploração, o que resultaria seria um novo regime de classe e não o comunismo.
A sociedade comunista (“fase superior do comunismo”) define-se pela abundância econômica (“a cada um segundo as suas necessidades”), pelo desaparecimento completo do Estado (“a administração das coisas substituindo-se ao governo dos homens”) e o desenvolvimento completo das capacidades do homem (“homem humano, homem total”). A sociedade de transição, pelo contrário, é uma forma histórica passageira definida por seu objetivo, que é a construção do comunismo. Ã medida que a penúria recua e que as capacidades humanas se desenvolvem, desaparecem ao mesmo tempo a necessidade da coação organizada (o Estado) e a dominação do econômico sobre o humano. Se, segundo a expressão de Marx, a sociedade comunista (a verdadeira sociedade humana) é o reino da liberdade, este reino da liberdade não significa a supressão do reino da necessidade que é a economia, mas sua redução progressiva e sua subordinação total às necessidades do desenvolvimento humano, cujas condições essenciais são a abundância de bens e a redução da jornada de trabalho.
A orientação da sociedade de transição é determinada pela sua finalidade – a construção do comunismo – e pelas condições nas quais ela deve realizar-se – a situação atual da sociedade mundial.
A construção do comunismo pressupõe a supressão da exploração, o desenvolvimento rápido das forças produtivas, em última análise, o desenvolvimento das aptidões totais do homem. Este desenvolvimento do homem é ao mesmo tempo a expressão mais geral da finalidade desta sociedade e o meio fundamental para a sua realização. Ele se exprime sob a forma mais concreta pela liberação da atividade consciente do proletariado. Esta determina tanto a supressão da exploração (“a emancipação dos trabalhadores será a tarefa dos próprios trabalhadores”) quanto o desenvolvimento das forças produtivas (“de todas as forças produtivas da sociedade, a mais importante é a própria classe revolucionária”) e o caráter radicalmente novo da ditadura do proletariado enquanto poder de Estado (“o poder das massas armadas”).
A tendência profunda do capitalismo mundial o leva, através da concentração total das forças produtivas, a suprimir a propriedade privada enquanto função econômica essencial para a exploração, e a fazer da gestão da produção a função que divide os membros da sociedade em exploradores e explorados. Em função do mesmo desenvolvimento, o aparelho de gestão da economia, a burocracia de Estado e a intelligentsia tendem a se fundir organicamente, tornando-se impossível a exploração sem a ligação direta com a coerção material e a mistificação ideológica.
Por conseguinte, a supressão da exploração só pode ser realizada se – e somente se – a supressão da classe exploradora vier acompanhada da supressão das condições modernas de existência de uma tal classe; estas condições são cada vez menos a “propriedade privada”, o “mercado” etc. (suprimidos pela evolução do próprio capitalismo) e cada vez mais a monopolização da gestão da economia e da vida social, gestão que permanece uma função independente e oposta à produção propriamente dita. A base real da exploração moderna só pode ser abolida à medida que os próprios produtores organizarem a gestão da produção; e, como a gestão econômica tornou-se inseparável do poder político, a gestão operária significa concretamente a ditadura das organizações proletárias de massa e a apropriação da cultura pelo proletariado.
A abolição da oposição entre dirigentes e executantes na economia e sua manutenção na política (por intermédio da ditadura do partido) é uma mistificação reacionária que chegaria rapidamente a um novo conflito entre os produtores e os políticos burocratas. De uma forma simétrica, a gestão da economia pelos produtores atualmente é a condição necessária e suficiente para a rápida realização da sociedade comunista.
É somente nesta acepção completa que o termo “ditadura do proletariado” exprime efetivamente a essência da sociedade de transição.
A economia do período de transição
O problema da economia do período de transição apresenta-se sob dois aspectos principais: supressão da exploração, de um lado, e desenvolvimento rápido das forças produtivas, de outro.
A exploração apresenta-se, antes de tudo, como exploração na própria produção, como alienação do produtor no processo produtivo. É a transformação do homem em simples peça da máquina, em fragmento impessoal do aparelho produtivo, a redução do produtor a executante de urna atividade da qual ele não pode captar nem a significação nem a integração no conjunto do processo econômico. Suprimir esta raiz, a mais importante e a mais profunda, da exploração, significa elevar os produtores à gestão da produção, confiar-lhes totalmente a determinação do ritmo e da duração do trabalho, de suas relações com as máquinas e com os outros operários, dos objetivos da produção e dos meios de sua realização. É evidente que esta gestão trará problemas extremamente complexos de coordenação dos diversos setores da produção e das empresas, mas estes problemas não possuem nada de insolúvel.
A exploração exprime-se igualmente, de uma forma derivada, na repartição do produto social, isto é, na desigualdade das relações entre o salário e o trabalho produzido. Não é a desigualdade em geral que será suprimida na sociedade de transição; esta desigualdade só poderá ser suprimida na sociedade comunista, e isto não sob a forma de um salário aritmeticamente igual para todo o mundo, mas da satisfação completa das necessidades de cada um. Mas a sociedade de transição suprimirá a obtenção de rendimentos sem trabalho produtivo, ou que não corresponda à quantidade e à qualidade do trabalho produtivo efetivamente fornecido à sociedade; ela suprimirá, portanto, a desigualdade das relações entre o rendimento do trabalho e a quantidade de trabalho.
Sem querer apresentar uma “solução” ou mesmo uma análise do problema da remuneração do trabalho produtivo na economia de transição, podemos, todavia, constatar que essa sociedade tenderá desde o início para uma igualação tão grande quanto possível. Pois, enquanto os inconvenientes que resultam de uma desigualdade das taxas de remuneração do trabalho são importantes e claros (distorção da demanda social, satisfação de necessidades por uns onde os outros ainda não podem satisfazer as necessidades elementares efeitos psicológicos e políticos que daí resultam), as vantagens são todas contestáveis e secundárias.
Desta forma, a justificação de uma remuneração mais elevada do trabalho qualificado pelos “custos de produção” desse trabalho (gastos com a implementação e anos não-produtivos), que são maiores, cai a partir do momento em que é a própria sociedade que suporta esses gastos. Neste caso, pode-se, quando muito, aceitar que o “preço” desse trabalho seja maior (correspondendo ao seu “valor” ou ao seu “custo de produção”), mas não que o rendimento pessoal desse trabalhador reflita esta diferença. A idéia segundo a qual uma remuneração mais elevada é necessária para atrair os indivíduos para as ocupações mais qualificadas é simplesmente ridícula: o atrativo destas atividades encontra-se na natureza da própria atividade, e o problema principal, uma vez suprimida a opressão social, será antes de mais nada, o de ordenar as atividades “inferiores”. Dois outros problemas menos simples: para obter num período de penúria o máximo de esforço produtivo por parte dos indivíduos, seria possível que a sociedade ligasse a remuneração do trabalho à quantidade de trabalho produzido (medida pelo tempo de trabalho), e talvez até a sua intensidade (medida pelo número de objetos e atividades produzidas). Mas a importância deste problema diminui à medida que a industrialização e a produção em massa suprimem toda independência técnica do trabalho individual, integrando-o na atividade produtiva de um conjunto que possui o seu próprio ritmo e que o ritmo do indivíduo não pode ultrapassar (produção em cadeia etc. em oposição ao trabalho por peças). Neste quadro, o essencial é que o conjunto concreto de produtores determine o seu ritmo ótimo total, e não que cada um aumente seu esforço produtivo de uma forma incoerente. Ê pois em relação ao grupo de operários que formam a unidade técnico-produtiva que o problema pode ser colocado. Um outro problema consiste no fato de que pode ser essencial obter a curto termo deslocamentos geográficos ou profissionais da mão-de-obra; se a persuasão não for suficiente para provocá-los, pode-se tornar indispensável proceder através de diferenciações salariais. Mas a importância de tais diferenciações será mínima, como o exemplo da sociedade capitalista prova em profusão.
O problema do desenvolvimento rápido das riquezas sociais apresenta-se, de um lado, como um problema da organização racional das forças produtivas existentes e, de outro, como o crescimento dessas forças produtivas. A própria organização racional das forças produtivas apresenta uma infinidade de aspectos, dos quais o mais importante é a gestão operária. Ê porque somente os produtores, em seu conjunto orgânico, possuem uma visão e uma consciência completa do problema da produção, inclusive de seu aspecto mais importante que é a execução concreta das atividades da produção, que somente eles podem organizar o processo produtivo de uma forma racional. Em contrapartida, a gestão das classes exploradoras é sempre intrinsecamente irracional, pois ela é sempre exterior à atividade produtiva em si mesma, possui apenas um conhecimento incompleto e fragmentário das condições concretas nas quais se desenrola a atividade produtiva e das implicações dos objetivos escolhidos.
O problema do crescimento das forças produtivas foi apresentado até aqui sobretudo sob o ângulo da oposição pretensamente irredutível que existiria entre a acumulação (crescimento do capital fixo) e a produção de meios de consumo, consequentemente, a melhoria do nível de vida. Esta oposição, sobre a qual existem mistificadores a soldo da burocracia, é uma oposição falsa que mascara os verdadeiros termos do problema. A oposição entre as necessidades da acumulação e as do consumo resolve-se na síntese que a noção da produtividade do trabalho humano oferece. O desenvolvimento das forças produtivas, mais precisamente, o resultado produtivo desse desenvolvimento, reduz-se em última análise ao desenvolvimento da força produtiva do trabalho, isto é, da produtividade. Por sua vez, esta produtividade depende ao mesmo tempo do desenvolvimento das condições objetivas da produção – essencialmente desenvolvimento do capital fixo – e do desenvolvimento das capacidades produtivas do trabalho vivo. Estas capacidades produtivas estão diretamente ligadas, de um lado, ao desenvolvimento completo do indivíduo produtivo no seio da produção – consequentemente, à gestão operária – e, de outro, ao aumento do consumo dos trabalhadores e de seu bem-estar, o desenvolvimento de sua cultura técnica e total e a redução do tempo de trabalho; de maneira mais geral, este aspecto da produtividade que se poderia chamar de produtividade subjetiva, depende da adesão total e consciente dos produtores à produção. Existe, pois, uma relação objetiva entre a acumulação de capital fixo e a extensão do consumo (no sentido mais amplo) que determina uma solução ótima para o problema da escolha entre essas duas vias de aumento da produtividade total. Do mesmo modo que se pode aumentar a produção diminuindo e porque se diminuem as horas de trabalho, assim também um aumento do bem-estar pode ser mais produtivo – no sentido mais material do termo – do que um aumento do equipamento. Por sua própria natureza, uma classe exploradora ou uma classe de dirigentes só pode ver um dos aspectos do problema – para ela, a acumulação em capital fixo é o único meio para aumentar a produção. Ê apenas colocando-se na perspectiva dos produtores que se pode fazer uma síntese entre os dois pontos de vista. Esta síntese, por sua vez, na ausência dos próprios produtores, terá apenas um valor abstrato, pois a adesão consciente dos produtores à produção é a condição essencial do desenvolvimento máximo da produtividade, e esta adesão somente se realizará à medida que os produtores souberem que a solução adequada é a sua própria.
Enquanto persistir a penúria de bens, a sociedade será obrigada a racionar o seu consumo, e o método mais racional de fazê-lo será o de atribuir um preço a cada produto; desta forma, o próprio consumidor poderá decidir sobre a maneira de gastar o seu salário que lhe traga o máximo de satisfação, e a sociedade poderá, a curto prazo, fazer face a penúrias excepcionais ou a desigualdades de desenvolvimento da produção adiando a satisfação das necessidades menos intensas através da manipulação dos preços de venda dos produtos em questão. Uma vez afastada a desigualdade dos rendimentos, a intensidade relativa da demanda dos diversos produtos e a extensão da verdadeira necessidade social poderão ser medidas adequadamente pelas somas que os consumidores estão dispostos a pagar para adquirir o produto em questão e as variações dos estoques desse produto fornecerão as diretrizes para o aumento ou a diminuição da produção num setor.
Nestas condições, o problema do equilíbrio econômico geral em termos de valor é simples. Ê preciso e basta que o total dos rendimentos distribuídos – isto é, essencialmente, dos salários – seja igual à soma dos valores dos bens de consumo disponíveis. Isto implica, na medida em que deve haver acumulação, que os preços das mercadorias serão superiores ao seu custo de produção, embora proporcionais a este. Deverão ser superiores a seu custo de produção, já que uma parte dos produtores, mesmo recebendo salários, não produz bens consumíveis e sim meios de produção que não são colocados à venda. Mas é racional que sejam proporcionais a seus respectivos custos de produção pois é apenas sob esta condição que o ato de compra desta mercadoria, mais do que qualquer outra, realmente traduz o alcance da necessidade subjetiva, e indica, aliás, que a sociedade confirma, por seu consumo, a sua decisão inicial de consagrar tantas horas à produção desse produto.
A ditadura do proletariado
Diante do recrudescimento das ilusões democráticas pequeno-burguesas provocado pela degenerescência totalitária da Revolução russa, é mais do que necessário reafirmar a idéia da ditadura do proletariado. Uma vez estabelecida a guerra civil e a consolidação do poder operário, elas significam o esmagamento violento das correntes políticas que tendem a manter ou a restaurar a exploração. A democracia proletária é uma democracia para os proletários e é ao mesmo tempo a ditadura ilimitada que o proletariado exerce contra as classes que lhe são hostis.
Essas noções elementares devem, todavia, ser formuladas à luz da análise da sociedade atual. Enquanto a base da dominação de classe era a propriedade privada dos meios de produção, podia-se dar uma forma constitucional à “legalidade” da ditadura do proletariado, privando dos direitos políticos aqueles que viviam diretamente do trabalho do outro, e colocar fora da lei os partidos que se ativessem à restauração desta propriedade. O enfraquecimento da propriedade privada na sociedade atual, a cristalização da burocracia como classe exploradora tiram desses critérios formais a maior parte de sua importância. As correntes reacionárias contra as quais a ditadura do proletariado terá de lutar, pelo menos as mais perigosas dentre elas, não serão as correntes burguesas restauracionistas, mas as correntes burocráticas. Estas deverão ser indubitavelmente excluídas da legalidade soviética a partir de uma apreciação de seus fins e de sua natureza social que não poderá mais estar baseada em critérios formais (“propriedade” etc.) mas em seu verdadeiro caráter enquanto correntes burocráticas. O partido revolucionário deverá considerar esses critérios a fundo, propondo e lutando pela exclusão, do interior dos organismos soviéticos, de todas as correntes que se opõem, abertamente ou não, à gestão operária da produção e ao exercício total do poder pelos organismos das massas. Em contrapartida, as liberdades mais amplas deverão ser dadas às correntes operárias que se colocarem sobre esta plataforma, independentemente de suas divergências a respeito de outros pontos, por mais importantes que sejam.
O julgamento e a decisão definitiva tanto sobre esta questão quanto sobre todas as outras pertencerão aos organismos soviéticos e ao proletariado em armas. O exercício total do poder político e econômico por tais organismos é apenas um aspecto da supressão da oposição entre dirigentes e executantes. Esta supressão não é fatal, depende da luta acirrada que ocorrerá entre as tendências socialistas e as tendências de volta a uma sociedade de exploração; neste sentido, não só a degenerescência dos organismos soviéticos não está excluída a priori, mas a condição do desenvolvimento socialista encontra-se no conteúdo da atividade construtiva do proletariado, da qual a forma soviética é apenas um dos momentos. Tal forma, todavia, oferece a condição ótima sob a qual esta atividade pode desenvolver-se e neste sentido lhe é inseparável, O contrário é verdadeiro para a ditadura do “partido revolucionário”, que repousa sobre a monopolização das funções de direção por uma categoria ou um grupo que é, portanto, à medida que ela se consolida, absolutamente contraditório com o desenvolvimento da atividade criadora das massas e, enquanto tal, uma condição positiva e necessária da degenerescência da revolução.
A cultura na sociedade de transição
A construção do comunismo pressupõe a apropriação da cultura pelo proletariado. Esta apropriação significa não só a assimilação da cultura burguesa, mas sobretudo a criação dos primeiros elementos da cultura comunista.
A idéia segundo a qual o proletariado quando muito só pode assimilar a cultura burguesa existente, idéia defendida por Trotsky após a Revolução russa, é falsa em si mesma e politicamente perigosa. Ê verdade que o problema que se colocava ao proletariado russo logo após a revolução era sobretudo a assimilação da cultura existente – e praticamente nem mesmo da cultura burguesa, mas das formas mais elementares da cultura histórica (luta contra o analfabetismo, por exemplo), e neste campo não há nem gramática nem aritmética proletárias, mas é um domínio que pertence antes às condições “técnicas” e formais da cultura do que à cultura em si mesma. Em relação a esta última, jamais existiu e jamais existirá pura e simples assimilação da cultura burguesa, pois isto significaria a submissão do proletariado à ideologia burguesa. A criação cultural do passado só poderá ser utilizada pelo proletariado em sua luta pela construção de uma nova forma de sociedade com a condição de ser ao mesmo tempo transformada e integrada numa totalidade nova. A criação do próprio marxismo é uma demonstração desse fato; as famosas “partes constitutivas” do marxismo eram produtos da cultura burguesa, mas a elaboração da teoria revolucionária por Marx significou precisamente não a pura e simples assimilação da economia política inglesa ou da filosofia alemã, mas a sua transformação radical. Esta transformação foi possível porque Marx se colocou sobre o terreno da revolução comunista; ela prova que esta transformação embrionária da futura cultura comunista da humanidade se situava sobre um plano novo em relação à herança histórica. A concepção de Trotsky, segundo a qual enquanto o proletariado permanecer proletariado ele deve assimilar a cultura burguesa, e que quando puder ser criada uma nova cultura ela não será mais uma cultura proletária porque o proletariado terá deixado de existir enquanto classe, é quando muito apenas uma sutileza de terminologia. Levada a sério ela significaria ou que o proletariado pode lutar contra o capitalismo assimilando a cultura burguesa sem constituir para si uma ideologia que seja a negação daquela, ou que a ideologia revolucionária é unicamente uma arma destrutiva sem conteúdo positivo e sem ligação com a futura cultura comunista. A primeira idéia refuta-se por si mesma; a segunda revela um desconhecimento daquilo que pode e deve ser uma ideologia revolucionária e mesmo uma ideologia simplesmente. A luta contra as ideologias reacionárias e a orientação consciente da luta de classe pressupõem uma concepção positiva sobre o fundo dos problemas que a humanidade enfrenta e esta concepção é apenas uma das primeiras expressões da futura cultura comunista da sociedade.
Evidentemente, esta posição não tem nada a ver com os absurdos e o palavreado reacionário dos stalinistas sobre a “biologia proletária”, a “astronomia proletária” e a arte proletária de plantar repolhos. Para os stalinistas esta deformação vergonhosa da idéia de uma cultura revolucionária não passa de um meio suplementar para negar a realidade e mistificar as massas.
Se, através da apropriação da cultura existente, o proletariado cria ao mesmo tempo as bases de uma nova cultura, isto implica uma nova atitude da sociedade proletária em relação às correntes ideológicas e culturais. Uma cultura nunca é uma ideologia ou uma orientação, mas um conjunto orgânico, uma constelação de ideologias e de correntes. A pluralidade das tendências que constituem uma cultura implica que a liberdade de expressão seja uma condição essencial da apropriação criadora da cultura pelo proletariado. As correntes ideológicas reacionárias que não deixarão de se manifestar na sociedade de transição deverão ser combatidas, na medida em que só se exprimam no plano ideológico. através de armas ideológicas e não através de meios mecânicos que limitam a liberdade de expressão. O limite entre uma corrente ideológica reacionária e uma atividade política reacionária é, às vezes, difícil de distinguir, mas a ditadura do proletariado deverá defini-la a cada vez sob pena de degeneração e de retrocesso.
O presente artigo foi retirado do livro Socialismo ou Barbárie – O Conteúdo do Socialismo, Brasiliense, 1983.