Sobre o conteúdo do socialismo II – Cornelius Castoriadis

Texto publicado em Socialisme ou Barbarie, nº 22 (julho de 1957). O texto era precedido da seguinte indicação: “Uma primeira parte deste texto foi publicada no número 17 de Socialisme ou Barbarie, pp. 1-22. As páginas que seguem representam uma nova redação do conjunto e sua compreensão não pressupõe a leitura da parte já publicada. Este texto abre uma discussão sobre as questões de programa. As posições que nele se encontram expressas não exprimem necessariamente o ponto de vista do conjunto do grupo Socialisme ou Barbarie.”

A evolução da sociedade moderna e do movimento operário durante os últimos cem anos, e em particular desde 1917, impõe uma revisão radical das ideias segundo as quais este movimento viveu até hoje. Quarenta anos se passaram desde o dia em que uma revolução proletária assumiu o poder na Rússia. Desta revolução, finalmente, não surgiu o socialismo, mas uma sociedade de exploração monstruosa e de opressão totalitária dos trabalhadores, que não difere em nada das piores formas do capitalismo, exceto pelo fato de a burocracia ter tomado o lugar dos patrões privados, e do “plano” ter tomado o lugar do “mercado livre”. Há dez anos, éramos poucos a defender tais ideias. Depois, os trabalhadores húngaros as lançaram à face do mundo.

A imensa experiência da revolução russa e de sua degenerescência, os Conselhos operários húngaros, sua atividade e seu programa, são os primeiros materiais desta revisão. A análise da evolução do capitalismo e das lutas operárias em outros países há um século e, especialmente, na época presente, mostra que em toda parte os problemas fundamentais se colocam em termos espantosamente similares, exigindo em toda parte a mesma resposta. Esta resposta é o socialismo, o socialismo que é a antítese rigorosa do capitalismo burocrático instaurado na Rússia, na China e em outros países. A experiência do capitalismo burocrático permite observar o que o socialismo não é e o que ele não pode ser. A análise das revoluções proletárias, mas também das lutas cotidianas e da vida diária do proletariado permite dizer o que o socialismo pode e deve ser. Podemos e devemos hoje, baseados na experiência de um século, definir o conteúdo positivo do socialismo de uma maneira incomparavelmente mais precisa do que aquela que os revolucionários de outrora puderam fazer. Na imensa confusão atual, pessoas que se consideram partidárias do socialismo estão prontas para afirmar que “não sabem o que é preciso entender por este termo”. Pretendemos mostrar que, pela primeira vez, pode-se saber o que significa concretamente o socialismo.

A análise que empreenderemos não tem como resultado apenas a revisão das ideias geralmente em curso sobre o socialismo, muitas das quais remontam a Lênin e algumas a Marx. Ela tem igualmente, como resultado, uma revisão das ideias geralmente difundidas sobre o capitalismo, seu funcionamento e a raiz de sua crise, ideias das quais algumas vêm, com ou sem deformação, do próprio Marx. Na verdade, as duas análises caminham juntas e cada uma delas exige a outra.

Esta revisão, evidentemente, não começa hoje. Diversas correntes ou revolucionários isolados forneceram elementos para ela há muito tempo. Desde o primeiro número de Socialisme ou Barbarie, esforçávamo-nos em retomar esta tarefa de maneira sistemática. As ideias centrais já se encontram formuladas no editorial do número 1 de Socialisme ou Barbarie: que a divisão essencial das sociedades contemporâneas é a divisão em executantes e dirigentes, que o desenvolvimento próprio do proletariado o conduz à consciência socialista, que, inversamente, o socialismo só pode ser o produto da ação autônoma do proletariado, que a sociedade socialista se define pela supressão de toda categoria à parte de dirigentes, e, consequentemente, pelo poder dos organismos de massa e pela gestão operária da produção. Mas permanecemos, de um certo ponto de vista, aquém de seu conteúdo.

Este fato não mereceria ser mencionado se não traduzisse, ele também, no seu nível, a ação dos fatores que determinaram a evolução do marxismo há um século: a enorme pressão da ideologia da sociedade de exploração, o peso da mentalidade tradicional, a dificuldade de se desvencilhar de modos herdados de pensar.

Num certo sentido, a revisão da qual falamos consiste apenas em explicitar e tornar preciso aquilo que já era a verdadeira intenção do marxismo no seu início e que sempre foi o conteúdo mais profundo das lutas proletárias – quer em seus momentos culminantes, quer no anonimato da vida cotidiana na fábrica. Em outro sentido, ela nos conduz a eliminar as escórias acumuladas durante um século em torno da ideologia revolucionária, a quebrar os espelhos deformadores através dos quais fomos habituados a olhar a vida e a ação do proletariado. O socialismo visa dar um sentido à vida e ao trabalho dos homens, permitir à sua liberdade, à sua criatividade e à sua positividade se desenvolverem, criar laços orgânicos entre o indivíduo e seu grupo, entre o grupo e a sociedade, reconciliar o homem consigo mesmo e com a natureza. Ele une assim todos os objetivos essenciais do proletariado em suas lutas contra a alienação capitalista – não aspirações que se perdem num futuro indeterminado, mas o conteúdo das tendências que existem e se manifestam atualmente, tanto nas ‘lutas revolucionárias, quanto na vida cotidiana. Compreender isto é compreender que para o operário o problema final da história é um problema cotidiano; é também compreender que o socialismo não é a “nacionalização”, a “planificação”, ou mesmo o aumento do nível de vida – e que a crise do capitalismo não é a “anarquia do mercado”, a superprodução ou a baixa das taxas de lucro. É, enfim, ver de uma maneira inteiramente nova as tarefas da teoria e da função de uma organização revolucionária.

Levadas às últimas consequências, e apreendidas em toda a sua força, estas ideias transformam a visão da sociedade e do mundo, modificam a concepção tanto da teoria quanto da prática revolucionária.

A primeira parte deste texto é consagrada à definição positiva do socialismo. A parte seguinte[1] se ocupa da análise do capitalismo· e de sua crise. Esta ordem, que pode parecer pouco lógica, se justifica pelo fato de que as revoluções polonesa e húngara fizeram da questão da definição positiva da organização socialista da sociedade uma questão prática imediata. Mas ela decorre igualmente de outra consideração. O próprio conteúdo de nossas ideias nos leva a sustentar que não se pode compreender nada em sentido profundo do capitalismo e de sua crise sem partir da mais completa ideia do socialismo. Pois tudo o que temos a dizer pode se reduzir afinal de contas a isto: o socialismo é a autonomia, a direção consciente da vida dos homens por eles mesmos; o capitalismo – privado ou burocrático – é a negação desta autonomia, e sua crise resulta do fato de que. ao mesmo tempo em que cria necessariamente a tendência dos homens para a autonomia, é obrigado a suprimi-la.

A raiz da crise do capitalismo

A organização capitalista da vida social – e falamos tanto do capitalismo privado do Oeste quanto do capitalismo burocrático do Leste – cria uma crise perpetuamente renovada em todas as esferas da atividade humana. Esta crise aparece com a maior intensidade no domínio da produção: a produção, as oficinas da fábrica – não a “economia” e o “mercado”. Mas a situação, quanto ao essencial, é a mesma em todos os domínios – quer se trate da família, da educação, da política, das relações internacionais ou da cultura. Em toda parte, a estrutura capitalista consiste em organizar a vida dos homens a partir de fora, na ausência dos interessados e contra suas tendências e seus interesses. Isto é apenas um outro modo de dizer que a’ sociedade capitalista divide-se entre uma pequena classe dirigente, que tem como função decidir sobre a vida de todo mundo, e a grande maioria dos homens que se limitam a executar as decisões dos dirigentes e, por isto, a suportar sua vida como se ela fosse alguma coisa alheia a si mesmos.

Esta organização é profundamente irracional e contraditória, e a renovação perpétua de suas crises, sob uma forma ou outra, é absolutamente inevitável. É profundamente irracional pretender organizar os homens, quer se trate da produção ou da vida política, como se fossem objetos, ignorando deliberadamente o que eles mesmos pensam e querem quanto à sua própria organização. Na realidade, o capitalismo é obrigado a se apoiar sobre a faculdade de auto-organização dos grupos humanos, sobre a criatividade individual e coletiva dos produtores, sem a qual não poderia subsistir nem um dia. Mas toda organização oficial ignora e ao mesmo tempo tenta suprimir ao máximo possível estas faculdades de auto-organização e de criação. Disto não resulta somente um desperdício imenso e uma enorme ausência de ganho; o sistema suscita obrigatoriamente a reação, a luta daqueles aos quais pretende se impor. Muito tempo antes de se falar em revolução ou de consciência política, estes não aceitam, na vida cotidiana da fábrica, serem tratados como objetos. A organização capitalista não pode ser feita somente na ausência dos interessados, ela é obrigada ao mesmo tempo a se fazer contra os interessados. Seu resultado não é apenas o desperdício, mas também o conflito perpétuo.

Se mil indivíduos possuem um determinado potencial de capacidades de organização, o capitalismo consiste em tomar mais ou menos ao acaso uns cinquenta deles, em lhes confiar as tarefas de direção e em decidir que os outros são pedregulhos. Aí já está, metaforicamente falando, uma perda de energia social de 95%. Mas isto é apenas um aspecto da questão. Como os novecentos e cinquenta restantes não são pedregulhos, e como o capitalismo é simultaneamente obrigado a se apoiar sobre suas faculdades humanas e a desenvolvê-las para poder funcionar, eles reagem a esta organização que lhes é imposta, e lutam contra ela. Suas faculdades de organização, que eles não podem exercer a favor de um sistema que os rejeita e que rejeitam, eles as desenvolvem contra o sistema. O conflito, assim, se instala permanentemente no centro da vida social. Ele se torna, ao mesmo tempo, a fonte de um novo desperdício: pois as atividades da pequena minoria de dirigentes terá por objeto essencial, a partir deste momento, não tanto organizar a atividade dos executantes, mas enfrentar a luta dos executantes contra a organização que lhes é imposta. A função essencial do aparelho de direção deixa de ser a organização e se torna a coerção sob suas múltiplas formas. O tempo total que se passa dentro de um aparelho de direção de uma grande fábrica moderna para organizar a produção é menos importante do que o tempo gasto, direta ou indiretamente, em domar a resistência dos explorados – quer se trate de vigilância, de controle de peças, do cálculo de prêmios, de “relações humanas”, de entrevistas com os delegados ou sindicatos, ou que se trate finalmente da preocupação permanente visando a tudo que seja mensurável, verificável, controlável, a fim de fazer obstáculo antecipadamente a qualquer manifestação que os trabalhadores pudessem inventar contra um novo método de exploração. O mesmo vale, feitas as transposições necessárias, para a organização do conjunto da vida social e para as atividades essenciais do Estado moderno.

Mas a irracionalidade e a contradição do capitalismo não aparecem somente no domínio da organização, da forma da vida social. Elas aparecem ainda mais no fundo, no conteúdo desta vida. Mais do que qualquer outro regime social, o capitalismo colocou trabalho no centro das atividades humanas – e mais do que qualquer outro regime, ele tende a fazer deste trabalho uma atividade verdadeiramente absurda. Absurda não do ponto de vista dos filósofos ou dos moralistas – mas do ponto de vista daqueles que a realizam. Não está em causa somente “a organização humana” da produção, mas a natureza, o conteúdo, os métodos, os instrumentos e os objetos da produção capitalista. Os dois aspectos são, evidentemente, insuperáveis – mas ainda é mais importante salientar o segundo. Pela natureza do trabalho na fábrica capitalista, e qualquer que seja a causa final da organização, a atividade do trabalhador, em vez de ser a expressão orgânica de suas faculdades humanas, torna-se um processo alheio e hostil que domina seu ser. A esta atividade, cujos princípios que a regem, modalidades que a concretizam e objetivos que a ela servem são-lhe ou devem ser-lhe alheios, o proletariado está ligado apenas por este fio muito fino e inquebrável – a necessidade de ganhar sua vida. Seu próprio trabalho, sua própria jornada que vai começar, se erguem diante dele como inimigos. Por causa disto, o trabalho significa uma mutilação contínua, um desperdício constantemente renovado da força criativa e ao mesmo tempo um conflito incessante entre o trabalhador e sua atividade, entre o que ele gostaria de fazer e o que ele é obrigado a fazer.

Deste ponto de vista também, o capitalismo só consegue sobreviver na medida em que a realidade não se dobre a seus métodos e a seu espírito. É apenas na medida em que a organização “oficial” é constantemente contrariada, corrigida, completada pela auto-organização efetiva dos trabalhadores, que o sistema consegue funcionar. É apenas na medida em que a atitude efetiva dos trabalhadores diante do trabalho é diferente daquela que deveriam ter de acordo com o conteúdo e a natureza do trabalho no capitalismo que o processo do trabalho consegue ser eficaz. Os trabalhadores conseguem apropriar-se dos princípios gerais que regem seu trabalho aos quais, segundo o espírito do sistema, não deveriam ter acesso, e os quais o sistema tenta tornar-lhes obscuros por todos os meios. Os trabalhadores concretizam estes princípios constantemente, de acordo com as condições específicas nas quais se encontram – enquanto esta concretização deveria ser feita unicamente pelo aparelho de direção, pois esta é sua suposta função.

Toda sociedade de exploração vive porque aqueles que ela explora a fazem viver. Mas os escravos e os servos fazem com que os mestres e senhores vivam conforme as normas da sociedade dos mestres e dos senhores. O proletariado faz com que o capitalismo viva contra as normas do capitalismo. É aí que se encontra a origem da crise histórica do capitalismo, é nisto que o capitalismo é uma sociedade que carrega dentro de si uma perspectiva revolucionária. A escravidão ou a servidão funcionam enquanto os explorados não lutam contra o sistema. Mas o capitalismo só consegue funcionar enquanto os explorados lutam contra o funcionamento que ele tende a impor. O resultado final desta luta, a eliminação completa das normas, dos métodos, das formas de organização capitalistas e a liberação total das forças de criação e de organização das massas, é o socialismo.

Os princípios da sociedade socialista

A sociedade socialista é a organização pelos próprios homens de todos os aspectos de suas atividades sociais; sua instauração leva, pois, à supressão imediata da divisão da sociedade entre uma classe de dirigentes e uma classe de executantes.

O conteúdo da organização socialista da sociedade é primeiramente a gestão operária. Esta gestão a classe operária reivindicou e lutou para realizá-la nos momentos de sua ação histórica: na Rússia em 1917-18, na Espanha em 1936, na Hungria em 1956.

A forma da gestão operária, a instituição capaz de realizá-la, é o Conselho dos trabalhadores da empresa. A gestão operária significa o poder dos Conselhos de empresas e, finalmente, na escala da sociedade inteira, a Assembleia Central e o Governo dos Conselhos. O Conselho de fábrica ou de empresa, assembleia de representantes eleitos pelos trabalhadores, revogáveis a qualquer momento, prestando contas de suas atividades a eles regularmente, e reunindo as funções de deliberação, de decisão e de execução, é uma criação histórica da classe operária que surgiu, novamente, a cada vez que o problema do poder foi colocado na sociedade moderna. Comitês de fábrica na Rússia em 1917, Conselhos de empresa na Alemanha em 1919, Conselhos operários na Hungria em 1956, exprimiram, com diferença apenas dos nomes, o mesmo modo de organização original e típica da classe operária.

Definir concretamente a organização socialista da sociedade não é nada mais do que tirar as consequências destas duas ideias, gestão operária e Governo de Conselhos, elas mesmas criações orgânicas da luta do proletariado. Mas só se pode fazer esta definição tentando descrever as grandes linhas do funcionamento e das instituições desta sociedade.

Não se trata aqui de dar “estatutos” à sociedade socialista. É evidente que os estatutos como tais nada significam. Os melhores estatutos só têm valor na medida em que os homens estão constantemente prontos a defender o que eles possuem de sadio, a complementar o que lhes falta, a mudar o que eles contêm de inadequado ou ultrapassado. Deste ponto de vista, todo fetichismo da forma “soviética” ou da forma “Conselho” é evidentemente condenável. As regras da elegibilidade e da revogabilidade a qualquer momento não bastam absolutamente, em si mesmas, para “garantir” que o Conselho permanecerá como expressão dos trabalhadores. Permanecerá como tal por tanto tempo quanto os trabalhadores estiverem prontos a fazer tudo o que for preciso para que ele assim permaneça. A realização do socialismo não é uma questão de mudança de legislação, ela depende da ação autônoma da classe operária, da capacidade da classe de encontrar em si mesma a consciência dos fins e dos meios, a solidariedade e a determinação necessárias.

Mas esta ação autônoma não fica e não pode ficar informe. Ela se encarna necessariamente nas formas de ação e de organização, nos métodos de funcionamento e nas instituições que podem servi-la e exprimi-la de maneira adequada. Tanto quanto o fetichismo “estatutário”, é preciso condenar o fetichismo “anarquista” ou “espontaneísta” que, sob pretexto de que finalmente a consciência do proletariado decide tudo, se desinteressa das formas de organização concretas que esta consciência deve utilizar se quiser ser socialmente eficaz. O Conselho não é uma instituição “miraculosa”, Ele não pode ser a expressão dos trabalhadores se os trabalhadores não se decidirem exprimir-se através dele. Mas é uma forma de organização adequada: toda a sua estrutura é organizada de forma a permitir que esta vontade de expressão apareça, se existir. O Parlamento, ao contrário, quer se chame “Assembleia Nacional” ou “Soviete Supremo”?[2] é, por definição, um tipo de instituição que não poderia ser socialista: ele se baseia na separação radical entre a massa “que é consultada” de vez em quando, e aqueles que, considerados “representantes”, permanecem incontroláveis e inamovíveis. O Conselho é feito para representar os trabalhadores, e pode deixar de exercer esta função: o Parlamento é feito para não representar as massas, e não deixa jamais de exercer esta função.

A questão da existência de instituições adequadas é, portanto, essencial para a sociedade socialista. Ela o é tanto mais porque essa sociedade só pode se instaurar através de uma revolução, ou seja, de uma crise social durante a qual a consciência e a atividade das massas chegam a uma tensão extrema. É nesse estado que as massas conseguem fazer tábula rasa da classe dominante, de suas forças armadas e de suas organizações, e ultrapassar por si mesmas a pesada herança de séculos de servidão. Esse estado não é um paroxismo, mas, ao contrário, uma prefiguração do grau de atividade e de consciência dos homens numa sociedade livre. O “refluxo da atividade revolucionária” não tem nada de fatal. Todavia, ele é sempre possível, face à enormidade das tarefas a realizar. E tudo que acrescenta obstáculos, já inumeráveis, à atividade revolucionária das massas, favorece este refluxo. Portanto, é essencial que a sociedade revolucionária crie, desde os primeiros dias, a rede de instituições que permitam e favoreçam O desenvolvimento da atividade das massas, e que ela suprima paralelamente tudo o que possa inibi-la ou contrariá-la. É essencial que crie, desde os primeiros passos, formas estáveis de organização que se tornem modos normais de expressão da vontade das massas, tanto nas “grandes questões” quanto na vida corrente – que é, na verdade, a primeira grande questão.

A definição da sociedade socialista que temos em mente comporta, pois, necessariamente uma certa descrição das instituições e do funcionamento desta sociedade. Esta descrição não é “utópica”, pois ela é somente a elaboração e a extrapolação das criações históricas da classe operária e, em particular, da ideia de gestão operária.

(Mesmo correndo o risco de reforçar o aspecto “utópico” deste texto, utilizamos sempre o futuro para falar da sociedade socialista, para evitar o emprego do condicional, cuja repetição se torna cansativa. É claro que esta maneira de falar não afeta em nada o exame dos problemas e o leitor substituirá facilmente: “A sociedade socialista será… ” por “O autor pensa que a sociedade socialista será… “.

Quanto ao fundo da questão: deliberadamente, reduzimos ao mínimo possível as referências à história e à literatura. Mas as ideias enunciadas nas páginas que seguem são apenas formulações teóricas da experiência histórica de lutas operárias: experiência positiva ou negativa, conclusões diretas ou indiretas, respostas efetivamente dadas aos problemas que foram colocados ou a problemas que não teriam deixado de ser problemas se tal ou qual revolução tivesse sido desenvolvida. Não existe nenhuma frase deste texto que não esteja ligada assim às questões que implícita ou explicitamente foram já encontradas pelas lutas operárias. Isto deveria fechar a discussão sobre o “utopismo”.

Uma elaboração análoga dos problemas de uma sociedade socialista é dada por Anton Pannekoek no primeiro capítulo de seu livro The Worker’s Councils (Melbourne, 1950) (tr. Franc. Les Conseils ouvriers, Paris, Bélibaste, 1974). Sobre a maior parte dos pontos fundamentais, nosso ponto de vista é extremamente próximo do seu.)

O princípio que dirige esta nossa elaboração é o seguinte: a gestão operária só é possível se a atitude dos indivíduos face à organização social mudar radicalmente. Isto, por sua vez, só é possível se as instituições que encarnam esta organização social adquirirem um sentido para os indivíduos, se fizerem parte de sua vida real. Do mesmo modo que o trabalho só adquirirá sentido para os indivíduos na medida em que estes o compreenderem e o dominarem, as instituições da sociedade socialista deverão ser compreensíveis e controláveis. (Bakunin já formulava o problema do socialismo como sendo o de “integrar os indivíduos a estruturas que eles compreendam e possam controlar”.)

A sociedade atual é uma selva obscura, um amontoado de maquinários e aparelhos dos quais ninguém, ou quase ninguém, compreende o funcionamento, que ninguém domina realmente e pelos quais finalmente ninguém se interessa. A sociedade socialista só poderá existir se trouxer uma transformação radical desta situação, se introduzir uma simplificação extrema da organização social. O socialismo é a transparência da organização da sociedade pelos membros da sociedade.

Afirmar que o funcionamento e as instituições da sociedade socialista devem ser compreensíveis significa dizer que a sociedade deve dispor do máximo de informação. Este máximo de informação não equivale absolutamente à acumulação material dos dados. O problema não consiste absolutamente em munir cada habitante de uma Biblioteca Nacional portátil. O máximo de informação depende, ao contrário, primeiramente de uma redução dos dados ao essencial, a fim de que eles se tornem manipuláveis por todos. Esta redução será possível porque o socialismo significará imediatamente uma simplificação enorme dos problemas e o desaparecimento puro e simples de quatro quintos das regulamentações atuais, que perderam a razão de ser. Ela será, de outro lado, facilitada pelo esforço sistemático em direção à apresentação simplificada e adequada dos dados. Daremos mais tarde exemplos das imensas possibilidades que existem nestes domínios, a propósito do funcionamento da economia socialista.

Para que o funcionamento e as instituições da sociedade socialista possam ser dominados pelos homens, em lugar de dominá-los, é preciso realizar, pela primeira vez na história, a democracia. Democracia significa etimologicamente a dominação pelas massas. Mas não tomamos a palavra “dominação” em seu sentido formal. A dominação real não pode ser confundida com o voto; o voto, mesmo livre, pode ser, e frequentemente o é, a farsa da democracia. A democracia não é o voto sobre questões secundárias, nem a designação de pessoas que decidirão por si mesmas, e sem nenhum controle efetivo, sobre questões essenciais. A democracia também não consiste em pedir aos homens que se pronunciem sobre questões incompreensíveis ou que não possuam sentido algum para eles. A dominação real é o poder de decidir por si mesmo sobre questões essenciais, e de decidir com conhecimento de causa. Nestas quatro palavras: com conhecimento de causa, se encontra todo o problema da democracia[3]. Não há nenhum sentido em chamar as pessoas a se pronunciarem sobre questões, se elas não podem fazê-lo com conhecimento de causa. Este ponto foi assinalado há muito tempo pelos críticos reacionários ou fascistas da “democracia” burguesa, e o reencontramos às vezes na argumentação privada dos stalinistas mais cínicos[4]. É evidente que a “democracia” burguesa é uma comédia, mesmo que fosse apenas porque ninguém na sociedade capitalista pode se pronunciar com conhecimento de causa, e muito menos ainda as massas, às quais se esconde as realidades econômicas e políticas e o sentido das questões colocadas. A conclusão que decorre disto não é a de confiar o poder a uma categoria de burocratas incompetentes e incontroláveis, mas a de transformar a realidade social de maneira que os dados essenciais e os problemas fundamentais sejam apreensíveis pelos indivíduos, e que estes possam decidir sobre eles com conhecimento de causa.

Decidir significa decidir por si mesmo: decidir sobre quem deve decidir não é mais decidir completamente. Finalmente, a única forma total da democracia é a democracia direta. E o Conselho dos trabalhadores da empresa é e não pode ser outra coisa senão a instância que substitui a Assembleia geral da empresa nos intervalos entre suas sessões[5].

A mais ampla realização da democracia direta significa que toda organização econômica, política etc. da sociedade deverá articular-se a partir de células de base que sejam coletividades concretas, unidades sociais orgânicas. A democracia direta não implica simplesmente a presença física dos cidadãos num mesmo lugar quando as decisões devem ser tomadas; ela implica também que estes cidadãos formem organicamente uma comunidade, que vivam num mesmo meio, que tenham um conhecimento cotidiano e familiar dos assuntos a serem tratados, dos problemas a serem resolvidos. É apenas no seio de uma tal unidade que a participação política do indivíduo torna-se total, à condição de que o indivíduo sinta e saiba que sua participação terá um resultado, ou seja, que a vida concreta da comunidade seja, em larga medida, determinada pela própria comunidade e não por instâncias desconhecidas ou inatingíveis que decidem por ela. Consequentemente, o máximo de autonomia, de auto-administração deve existir para as células sociais.

Estas células, a vida social moderna já as criou e continua a criá-las: são essencialmente as empresas “médias” ou “grandes” da indústria. dos transportes, do comércio, do sistema bancário, de seguros, da administração pública, nas quais os homens, às. centenas aos milhares ou às dezenas de milhares, passam o essencial de suas vidas ligados por uma tarefa comum, onde encontram a sociedade em sua forma concreta. A empresa não é simplesmente uma unidade de produção, ela tornou-se a unidade primária da vida social da grande maioria dos indivíduos[6]. Em vez de se basear sobre unidades territoriais que o desenvolvimento econômico tornou completamente artificiais – exceto quando precisamente ele manteve ou lhes conferiu sobre novas bases uma unidade de produção, como a pequena aldeia de um lado, e de outro lado a cidade com uma só empresa ou uma só indústria -, a estrutura política do socialismo articular-se-á sobre as coletividades de trabalhadores unificados por um trabalho comum. A coletividade da empresa será o terreno fecundo da democracia direta, como o foram em seu tempo e, por razões análogas, a cidade antiga, ou as comunidades democráticas dos fazendeiros livres nos Estados Unidos no século XIX.

Esta democracia direta indica toda a extensão da descentralização que a sociedade socialista será capaz de realizar. Mas, ao mesmo tempo, será necessário que ela resolva o problema da integração destas unidades de base na sociedade total, que realize a centralização sem a qual a vida de uma nação moderna se extinguiria imediatamente.

Não é a centralização como tal que conduz à alienação política, à expropriação do poder em benefício de alguns na sociedade moderna. É a constituição de aparelhos à parte e incontroláveis, que possuem a centralização como tarefa exclusiva e específica. A burocracia e seu poder serão inseparáveis da centralização enquanto a centralização for concebida como a função independente de um aparelho independente. Mas, na sociedade socialista, não haverá conflito entre a autonomia dos organismos de base e a centralização, na medida em que as duas funções decorrerão dos mesmos órgãos, nos quais não existirá um aparelho à parte encarregado de reunificar a sociedade após havê-la fragmentado – e é preciso lembrar que é esta tarefa absurda que constitui a “função” da burocracia.

A monstruosa centralização característica das sociedades modernas de exploração e a ligação íntima desta centralização com o totalitarismo da burocracia numa sociedade de classe conduz muitas pessoas hoje a uma reação violenta, explicável e sadia, mas que permanece na confusão, passa para o outro lado da barreira e por esta mesma razão reforça o inimigo que ela queria abater. A centralização, eis o inimigo, é o grito de muitos revolucionários honestos que abandonaram o stalinismo na França e também na Polônia ou na Hungria. Mas esta ideia, já ambígua, torna-se catastrófica sem ambiguidade quando conduz, como acontece frequentemente, a exigir formalmente, seja a fragmentação das instâncias do poder, seja pura e simplesmente a extensão dos poderes de organismos locais ou de empresas, negligenciando o que se passa ao nível do poder central. Quando, por exemplo, os militantes poloneses pensam encontrar o caminho para a supressão da burocracia numa vida social organizada e dirigida por “diversos centros” – a administração de Estado, uma Assembleia parlamentar, os Conselhos de fábrica, os sindicatos, os partidos políticos -, como não ver que este “policentrismo” é equivalente à ausência de centro real, e que, como a sociedade não pode ficar sem um centro, esta “Constituição” nunca poderá existir, a não ser no papel, e só servirá para esconder o verdadeiro centro real – formando-se novamente no seio da burocracia estatal e política -, muito mais temível e incontrolável? Como não observar que, se dividirmos em pedaços os órgãos que realizam um processo vital, criaremos, por isso mesmo, uma necessidade dez vezes mais imperiosa de um outro órgão que reúna os pedaços dispersos? Do mesmo modo, se nos orientarmos unicamente ou mesmo essencialmente pela extensão dos poderes dos Conselhos ao nível da empresa particular, como não ver que entregaremos por isto mesmo estes Conselhos à burocracia central, a única que “sabe” e “pode” fazer funcionar a economia em seu conjunto (e a economia moderna só existe como conjunto)? Não querer enfrentar o problema .do poder central é o mesmo que deixar à burocracia – aquela ou uma outra – a responsabilidade de resolvê-lo.

A sociedade socialista deverá portanto, com toda certeza, dar uma resposta socialista ao problema da centralização, e esta resposta só pode ser a tomada deste poder pela Federação dos Conselhos, a instituição de uma Assembleia central dos Conselhos e de um Governo dos Conselhos. Veremos mais adiante que esta Assembleia e este Governo não significam urna delegação do poder das massas, mas uma expressão deste poder. Falta-nos somente expor aqui o princípio essencial de suas relações com os Conselhos e as comunidades sociais, pois este princípio afeta de diversas maneiras o funcionamento de todas as instituições da sociedade socialista.

Numa sociedade em que a população é expropriada do poder político em benefício de uma instância centralizadora, a relação essencial entre esta instância e as instâncias inferiores que ela controla (ou, finalmente, a população), pode ser resumida da seguinte maneira: as comunicações que vão da base à cúpula transmitem essencialmente informações, as comunicações que vão da cúpula à base transmitem essencialmente decisões (e, subsidiariamente, o mínimo de informações necessárias à compreensão e à boa execução das decisões da cúpula). Nisto se exprime não somente o monopólio do poder exercido pela cúpula – monopólio de decisão -, mas também o monopólio das condições do poder, porque a cúpula é a única a possuir a “totalidade” das informações necessárias para julgar e decidir e que para qualquer outra instância ou indivíduo o acesso a informações diferentes daquelas que dizem respeito a seu setor só acontece acidentalmente (o que o sistema tende a impedir, ou evita favorecer de qualquer maneira).

Dizer que na sociedade socialista o poder central não será uma delegação, mas uma expressão do poder das massas, significa uma transformação radical deste estado de coisas. Correntes nos dois sentidos serão instauradas entre a “base” e a “cúpula”. Uma das tarefas essenciais da instância central será a de retransmitir as informações recolhidas no conjunto dos organismos de base. O Governo dos Conselhos terá, entre suas funções principais, a de ser um coletor e um difusor de informação. De outro lado, em todos os domínios essenciais as decisões serão tomadas pela base e chegarão à cúpula, encarregada de assegurar ou de seguir a execução destas decisões. Uma corrente dupla de informações e decisões será assim instaurada, e isto não dirá respeito somente às relações entre o Governo e os Conselhos, mas será o modelo de todas as relações entre as instituições de qualquer tipo e os participantes.

Mais uma vez, não se tenta aqui definir estatutos a toda prova. É claro que coletar e difundir informações, por exemplo, não é uma função neutra. Todas as informações não podem ser difundidas _ isto seria o meio mais seguro de torná-las incompreensíveis e desinteressantes -; o papel do Governo é portanto, com toda certeza, um papel político, mesmo a este respeito. Eis porque também o denominamos Governo, e não “Serviço Central de Imprensa”. Mas o que é importante é que sua função explícita é informar, que esta é sua responsabilidade. A função explícita do Governo atual é esconder a realidade da população.

O socialismo é a transformação do trabalho

O socialismo só pode se instaurar através da ação autônoma da classe operária, ele não é outra coisa senão esta ação autônoma. A sociedade socialista não é outra coisa senão a organização desta autonomia, que ao mesmo tempo a pressupõe e a desenvolve.

Mas esta autonomia é a dominação consciente dos homens sobre suas atividades e seus produtos; é claro que ela não pode ser somente uma autonomia política. A autonomia no plano político é somente um aspecto, uma expressão derivada daquilo que forma o conteúdo próprio e o problema essencial do socialismo: a instauração da dominação dos homens sobre sua principal atividade, que é o trabalho. Dizemos bem: instauração e não: restauração. Na verdade, jamais existiu um tal estado na história, e deste ponto de vista todas as comparações com situações históricas passadas – a do artesão ou a do camponês livre, por exemplo -, por mais fecundas que sejam sob certos aspectos, possuem apenas um alcance limitado e correm o risco de chegar a utopias às avessas.

Vê-se imediatamente que a autonomia não pode confinar-se no terreno político. Não se pode conceber uma sociedade de escravidão hebdomadária na produção, interrompida por domingos de atividade política livre. (Todavia, é a isto que equivale a definição de Lênin: “O socialismo é os sovietes mais a eletrificação”.) A ideia de que a produção e a economia socialista poderiam ser dirigidas, a qualquer nível, por “técnicos” supervisionados pelos sovietes, Conselhos ou outros organismos que encarnem o poder político da classe operária é um contrassenso. O poder efetivo numa tal sociedade viria a pertencer rapidamente aos dirigentes da produção. Os sovietes ou Conselhos pereceriam mais cedo ou mais tarde na apatia da população, que não alimentaria mais com seu interesse e com sua atividade as instituições que teriam deixado de ser determinantes no desenrolar de sua vida essencial.

A autonomia nada significará, portanto, se ela não for gestão operária, ou seja, determinação da produção pelos trabalhadores organizados, tanto na escala da empresa particular quanto na da indústria e da economia em seu conjunto. Mas, por sua vez, esta gestão operária não pode permanecer exterior ao próprio trabalho, não pode ficar separada das atividades produtivas. A gestão operária não significa absolutamente a substituição do aparelho burocrático que dirige atualmente a produção por um Conselho de trabalhadores, por mais democrático, revogável etc. que seja este Conselho. Ela significa que, para o conjunto dos trabalhadores, instauram-se novas relações com o trabalho e a respeito do trabalho. Ela significa que o conteúdo mesmo do trabalho começa logo a se transformar.

Atualmente, o objeto, os meios, as modalidades, o ritmo do trabalho são determinados à revelia dos trabalhadores pelo aparelho burocrático de direção. Este aparelho só pode dirigir por meio de regras universais abstratas, fixadas “de uma vez por todas”, e cuja revisão periódica inevitável significa a cada vez uma “crise” na organização da produção. Estas regras compreendem tanto normas de produção propriamente ditas quanto especificações técnicas, taxas de salários e bonificações, bem como a organização da produção na oficina. Uma vez suprimido o aparelho burocrático de direção, este tipo de regulamentação da produção não poderá mais subsistir, nem em sua forma nem em seu fundo.

De acordo com as aspirações mais profundas dos operários, as “normas” de produção em sua significação atual serão abolidas e uma igualdade completa em matéria de salário será instituída. Isto significa a supressão da coerção econômica – exceto sob a forma mais geral do “quem não trabalha não come” – bem como da disciplina imposta, exteriormente, por um aparelho específico de coerção na produção. A disciplina de trabalho será a disciplina Imposta pelo grupo de trabalhadores a seus membros individuais pela oficina aos grupos que a compõem, pela Assembleia da empresa às oficinas. A integração das atividades particulares num todo será feita essencialmente através da cooperação dos diversos grupos de operários ou oficinas, ela será objeto de uma atividade coordenadora permanente de trabalhadores. A universalidade essencial da produção moderna emanará da experiência concreta do trabalho e será formulada pelas assembleias de produtores.

Portanto, a gestão operária não é nem a “supervisão” de um aparelho burocrático de direção da empresa por representantes dos operários, nem a substituição deste aparelho por um outro análogo formado por indivíduos de origem operária. Ela é a supressão do aparelho de direção à parte, a restituição de suas funções à comunidade dos trabalhadores. O Conselho de empresa não é um novo aparelho de direção; é apenas uma das instâncias de coordenação uma “permanência” e o lugar regulador dos contatos da empresa com o exterior.

Isto já significa que a natureza, o conteúdo do trabalho começa imediatamente a ser transformado. Atualmente, o trabalho é, na sua essência, uma atividade de execução à parte, com a direção de sua atividade subtraída aos executantes. A gestão operária significa a reunificação das funções de direção e de execução.

Mas mesmo isto não é suficiente – ou, se se quiser conduz e conduzirá imediatamente para mais longe. A restituição das funções de direção aos trabalhadores levá-los-á necessariamente a enfrentar aquilo que é atualmente o núcleo da alienação, ou seja, a estrutura tecnológica do trabalho, de seus objetos, de seus instrumentos e de suas modalidades, que fazem com que o trabalho obrigatoriamente dom me os produtores, ao invés de ser dominado por eles. Os trabalhadores evidentemente não poderão resolver este problema de um dia para o outro, sua solução será a tarefa deste período histórico que designamos de socialismo. Mas o socialismo é inicialmente e acima de tudo a solução deste problema. Entre o socialismo e o comunismo não existem trinta e seis períodos e “sociedades de transição”, como se desejou fazer acreditar, existe apenas uma: a sociedade socialista. E esta sociedade não se caracteriza, em primeiro lugar, nem pela liberdade política, nem pela expansão das forças produtivas, nem pela crescente satisfação das necessidades de consumo, mas pela transformação da natureza e do conteúdo do trabalho, o que significa a transformação consciente da tecnologia herdada de maneira a subordinar, pela primeira vez na história, esta tecnologia às necessidades do homem, não apenas enquanto consumidor, mas enquanto produtor. A revolução socialista significará o início desta. transformação e sua realização marcará a entrada da humanidade na era comunista. Todo o resto – a política, o consumo etc. – são consequências, condições, implicações, pressuposições que é preciso considerar em sua unidade sistemática, mas que precisamente não podem adquirir esta unidade, não podem assumir seu sentido a não ser organizando-se em torno deste centro que é a transformação do próprio trabalho. A liberdade dos homens será uma ilusão ou uma mistificação se não for liberdade em sua atividade fundamental – a atividade produtiva. E esta liberdade não é um presente da natureza, nem surgirá por si mesma, por acréscimo, de outros desenvolvimentos: os homens terão de criá-la conscientemente. Em última análise, é este o conteúdo do socialismo.

As consequências que decorrem disto no que se refere às tarefas imediatas de uma revolução socialista são capitais. Os trabalhadores enfrentarão o problema da transformação da natureza do trabalho em seus dois extremos ao mesmo tempo. De um lado, existe a necessidade de atribuir a importância principal ao desenvolvimento das capacidades e das faculdades propriamente humanas. Isto implica, em primeiro lugar, a demolição gradual, pedra por pedra, daquilo que subsiste do edifício da divisão do trabalho. De outro lado, existe a necessidade de uma reorientação do conjunto do desenvolvimento técnico e de sua aplicação à produção.

Estes são apenas dois aspectos de uma mesma coisa, que é a relação dos homens com a técnica. Consideremos o segundo aspecto, o mais tangível, o do desenvolvimento técnico como tal.

Numa primeira abordagem, pode-se afirmar que toda a tecnologia capitalista, toda aplicação atual da técnica à produção, está viciada na base, não somente pelo fato de ela ser inapta a ajudar o homem a dominar seu trabalho, mas também porque seu primeiro objetivo é exatamente o contrário. Pensa-se e afirma-se habitualmente que a tecnologia capitalista visa a desenvolver a produção pelo lucro, ou a desenvolver a produção pela produção, independentemente das necessidades dos homens – concebidos neste contexto como consumidores em potencial dos produtos. Tratar-se-ia, pois, de adaptar a produção às necessidades reais de consumo da sociedade, tanto em relação ao seu volume quanto à natureza dos objetos produzidos.

Tal problema existe, evidentemente, mas o problema profundo está noutro lugar. O capitalismo não utiliza uma tecnologia que seria em si mesma neutra em relação aos fins capitalistas. O capitalismo criou uma tecnologia capitalista, que não é absolutamente neutra. O sentido real desta tecnologia não é nem mesmo o de desenvolver a produção pela produção; mas é, em primeiro lugar, o de subordinar a si os produtores e dominá-los. A tecnologia capitalista caracteriza-se essencialmente pela tentativa de eliminar o papel humano do homem na produção – e, num limite extremo, de eliminar o homem simplesmente. O fato de que neste caso, como também em outros, o capitalismo não consiga realizar sua tendência profunda – se conseguisse, desabaria logo -, não afeta em nada o que dizemos. Ao contrário, isto esclarece um outro aspecto de sua contradição e de sua crise.

O capitalismo não pode contar com a cooperação voluntária dos produtores; ao contrário, deve enfrentar sua hostilidade, no melhor dos casos enfrentar sua indiferença quanto à produção. É preciso, pois, que a máquina imponha seu ritmo de trabalho; se isto não for realizável, é preciso que ela possa permitir medir o trabalho efetuado; em todo processo produtivo, o trabalho deve ser mensurável, definível, controlável do exterior – de outro modo, este processo não terá sentido para o capitalismo. Ê preciso ao mesmo tempo, enquanto não se puder desembaraçar do produtor, que este seja substituível ao extremo – portanto, que seja reduzido à sua expressão mais simples, a de força de trabalho não-qualificada. Por trás disto, não existe nem complô, nem plano consciente. Existe simplesmente um processo de “seleção natural” das invenções aplicadas à indústria que faz com que aquelas que correspondem à necessidade fundamental do capitalismo de precisar de um trabalho mensurável, controlável, substituível, sejam preferidas às outras e sejam aplicadas exclusivamente ou em maioria. Não existe uma física ou uma química capitalistas; não existe nem mesmo uma técnica capitalista no sentido geral do termo; mas existe muito bem uma tecnologia capitalista, entendendo-se por este termo, no “espectro” das técnicas possíveis de uma época (determinado pelo desenvolvimento da ciência), a “faixa” dos procedimentos efetivamente aplicados. Efetivamente, a partir do momento em que o desenvolvimento da ciência e da técnica permita uma escolha entre vários procedimentos possíveis, uma sociedade escolherá infalivelmente os procedimentos que tenham sentido para ela, que sejam “racionais” no quadro de sua lógica de classe. Mas a “racionalidade” de uma sociedade de exploração não é a racionalidade de uma sociedade socialista. A modificação consciente da tecnologia será a tarefa central de uma sociedade de trabalhadores livres. De um modo correspondente, a análise da alienação e da crise da sociedade capitalista deve partir deste núcleo de todas as relações sociais que é a relação de trabalho, concebido sob estes três aspectos indissociáveis: relação dos trabalhadores com os meios e os objetos da produção, relação dos trabalhadores entre si, e relação dos trabalhadores com o aparelho de direção da produção.

(O fato de se escolher entre vários procedimentos tecnicamente possíveis e de se chegar assim a uma tecnologia efetivamente aplicada à produção concretizando a técnica (como o savoir-faire de uma época), é analisado pelos economistas acadêmicos. Cf. por exemplo Joan Robinson, The Accumulation of Capital (Londres, 1956), pp. 101-178. Mas evidentemente, nessas análises, a escolha é sempre apresentada como decorrente de critérios de “rentabilidade” e essencialmente dos “preços relativos do capital e do trabalho”. Este ponto de vista abstrato tem pouca conexão com a realidade da evolução industrial. Mas, em contrapartida, enfatiza o conteúdo social do maquinismo, sua função de escravização dos explorados.)

Marx, como se sabe, foi o primeiro a dar este passo histórico de ultrapassar a superfície dos fenômenos do capitalismo – o mercado, a concorrência, a repartição – e empenhar-se na análise da esfera central das relações sociais, as relações de produção concretas na fábrica capitalista. O volume I de O Capital ainda espera sua continuação. A característica mais marcante da degenerescência do movimento marxista é, sem dúvida, o fato de que este ponto de vista, o mais profundo de todos, tenha sido rapidamente abandonado, mesmo pelos melhores, em benefício das análises dos “grandes” fenômenos, análises que se tornaram, por isto mesmo, ou completamente falseadas, ou limitadas a aspectos parciais, conduzindo, pelo mesmo motivo, a uma ótica catastroficamente falsa[7].

É espantoso observar Rosa Luxemburgo consagrar dois importantes volumes a A acumulação do capital, ignorando totalmente o que significa o processo de acumulação nas relações concretas de produção, preocupando-se apenas com a possibilidade de um equilíbrio global entre produção e consumo e pensando descobrir no final um processo automático de desmantelamento do capitalismo (o que, é preciso dizê-lo, é concretamente falso e absurdo a priori). Do mesmo modo, é espantoso ver Lênin, em O Imperialismo, partir da constatação fundamental e justa de que o processo da concentração tenha chegado ao estágio da dominação dos monopólios, e negligenciar a transformação das relações de produção na fábrica, que é o significado dessa concentração, deixar de lado o fenômeno fundamental da constituição de um enorme aparelho de direção da produção, que doravante encarna a exploração, e ver a consequência principal da concentração na transformação dos capitalistas em simples “destacadores de cupões”. O movimento operário ainda está pagando as consequências desta maneira de ver e, de um certo ponto de vista, tanto quanto as ideias possam ter um papel na história, Kruschev está no poder na Rússia em função da ideia segundo a qual a exploração não pode ser senão o “ato de destacar cupons”.

Mas é preciso remontar a mais longe. É preciso remontar ao próprio Marx. Se Marx trouxe à luz, de maneira incomparável, a alienação do produtor no processo de produção capitalista, a escravização do homem ao universo mecânico criado por ele, sua análise é às vezes incompleta, quando vê nesta atividade apenas a alienação. Em O Capital – em oposição aos seus escritos de juventude -, não aparece absolutamente a concepção segundo a qual o proletariado é – e não pode deixar de sê-lo – portador positivo da produção capitalista, a qual é obrigada a se apoiar sobre ele como tal e a desenvolvê-lo como tal, ao mesmo tempo em que tenta reduzi-lo a uma função puramente mecânica, e, em situação extrema, a expulsá-lo da produção. Pela mesma razão, essa análise não vê que a crise original do capitalismo é esta crise na produção, que decorre da existência simultânea de duas tendências contraditórias das quais nenhuma poderia desaparecer sem que o capitalismo desmoronasse. A análise de Marx da qual falamos apresenta o capitalismo como “o despotismo na oficina da fábrica e a anarquia na sociedade” em vez de vê-lo como o despotismo e a anarquia ao mesmo tempo na oficina e na sociedade. Somos assim levados a procurar a razão da crise do capitalismo não na produção – exceto enquanto a produção desenvolve “a opressão, a miséria, a degenerescência, e também a revolta”, o efetivo e a disciplina do proletariado -, mas na superprodução e na baixa das taxas de lucros. Não podemos portanto ver que, enquanto este tipo de trabalho subsistir, esta crise subsistirá com tudo o que dela decorre, qualquer que seja o regime, não somente da propriedade, mas também do Estado, e, finalmente, da própria gestão da produção.

É assim que Marx chega, em certas passagens de O Capital, a ver na produção moderna apenas o fato de que o produtor e estropiado e reduzido a um “fragmento de homem” – o que é verdadeiro tanto quanto o contrário – e, o que e ainda mais grave, a associar este aspecto à produção moderna e finalmente à produção como tal, em vez de associá-lo à tecnologia capitalista. E a natureza da produção como tal, é uma etapa da técnica contra a qual nada se pode fazer – é o famoso “reino da necessidade”, que seria o fundamento deste estado de coisas. É assim que a tomada do poder na sociedade pelos produtores – o socialismo – chega às vezes, segundo Marx, apenas a marcar uma gestão política e econômica exterior, que deixa intacta essa estrutura de trabalho, reformando simplesmente os aspectos mais “desumanos”. Esta idéia expressa-se claramente na conhecida passagem do volume III de O Capital, na qual Marx afirma o seguinte, ao falar da sociedade socialista:

“O reino da liberdade só começa na verdade quando não existe mais a obrigação de trabalho imposta pela miséria ou por fins exteriores; ele se situa portanto, pela natureza das coisas, fora da esfera da produção material propriamente dita… Neste estado de coisas, a liberdade consiste unicamente no seguinte: o homem social, os produtores associados, regulam de maneira racional as suas trocas com a natureza e as submetem a seu controle coletivo, em vez de se deixarem dominar cegamente por elas; e realizam estas trocas com o menor esforço possível, e nas condições mais dignas e mais adequadas à sua natureza humana. Mas a necessidade não deixa de existir por isso. E o reino da liberdade só pode edificar-se sobre este reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental[8].”

Se é verdade que “o reino da liberdade só começa quando não existe mais obrigação de trabalho imposta pela miséria ou fins exteriores”, é espantoso ler sob a pena daquele que escreveu que “a indústria é o livro aberto das faculdades humanas”, que, “por conseguinte”, a liberdade se situa fora do trabalho. A verdadeira conclusão – que o próprio Marx havia tirado em outras passagens _ é que o reino da liberdade começa quando o trabalho torna-se atividade livre tanto em suas motivações quanto em seu conteúdo. Na concepção anterior, ao contrário, a liberdade é aquilo que não é trabalho, é o que circunda o trabalho – seja o “tempo livre” (redução da jornada de trabalho), seja a “regulamentação racional” e o “controle coletivo” das trocas com a natureza, minimizando os esforços e preservando a dignidade humana. Nesta perspectiva, efetivamente, a redução da jornada de trabalho torna-se a “condição fundamental”, porque, finalmente, o homem só seria livre no lazer.

A redução da jornada de trabalho é na verdade importante, não pela razão acima, mas para permitir aos homens realizar um equilíbrio entre seus diversos tipos de atividade. E “o ideal”, no limite extremo, o comunismo, não é a redução da duração do trabalho a zero, mas a livre determinação, por cada um, da natureza e da duração de seu trabalho. A sociedade socialista poderá e deverá realizar a redução da jornada de trabalho, mas não será esta a sua preocupação fundamental. Seu primeiro cuidado será o de lutar contra o “reino da necessidade” como tal, de transformar a própria natureza do trabalho. O problema não é deixar um “tempo livre” – que correria o risco de ser um tempo vazio – aos indivíduos, para que eles possam preenchê-lo a seu bel-prazer, com “poesia” ou com escultura em madeira. O problema é fazer de todo o tempo um tempo de liberdade e permitir que a liberdade concreta se encarne na atividade criadora. O problema é colocar a poesia no trabalho. (Poesia significa exatamente criação.) A produção não é o negativo que é preciso limitar ao máximo possível para que o homem possa se realizar no “lazer”. A instauração da autonomia é também – e em primeiro lugar – a instauração da autonomia no trabalho.

Subjacente à ideia segundo a qual a liberdade se encontra “fora da esfera da produção material propriamente dita” existe um duplo erro. De um lado, o de que a própria natureza da técnica e da produção moderna torne inelutável a dominação do processo de produção sobre o produtor durante o trabalho. De outro lado, o de que a técnica, em particular a técnica moderna, siga um desenvolvimento autônomo diante do qual só podemos nos inclinar, e que possuiria, por acréscimo, esta dupla propriedade: de uma parte, a de reduzir constantemente o papel humano do homem na produção e, de outra, a de aumentar constantemente seu rendimento. Destas duas propriedades inexplicavelmente combinadas resultaria uma dialética milagrosa do progresso técnico: escravizado cada vez mais durante o trabalho, o homem estaria doravante em condições de reduzir enormemente a duração do trabalho, bastando apenas que organizasse racionalmente a sociedade.

Ora. pelas razões já indicadas acima, não existe desenvolvimento autônomo da técnica aplicada à produção, da tecnologia. Entre as várias tecnologias que o desenvolvimento científico da época torna possíveis, a sociedade capitalista realiza aquela que corresponde à sua estrutura de classe, que permite ao capital melhor lutar contra o trabalho. Em geral, tende-se a considerar que a aplicação de tal ou tal invenção à produção depende de sua “rentabilidade” econômica. Mas não há rentabilidade econômica neutra, a luta de classes na fábrica é o fator principal que determina a rentabilidade. Uma dada invenção será preferida a outra pela direção da fábrica, com todas as condições iguais, aliás, se ela aumentar a independência do curso da produção em relação aos produtores. A escravização progressiva do homem decorre essencialmente deste processo, e não de uma maldição inerente a uma determinada fase do desenvolvimento tecnológico. Também não existe magia dialética da escravização e do rendimento: o rendimento aumenta em função do progresso científico e técnico que está na base da produção moderna, e apesar da escravização, e não por causa dela. A escravização significa simplesmente um desperdício imenso, isto porque os homens não contribuem para a produção senão através de uma fração infinitesimal de suas faculdades totais. (Isto não implica nenhuma ideia a priori a respeito destas faculdades[9]. Por mais baixa que seja a apreciação que Dreyfus a ou Kruschev façam destas faculdades, eles estariam obrigados a admitir que sua organização da produção só se utiliza de uma ínfima parte delas.).

A sociedade socialista, portanto, não terá de suportar nenhum tipo de maldição técnica. Tendo suprimido as relações capitalistas burocráticas, ela atacará simultaneamente a estrutura tecnológica da produção que é o suporte e o produto eternamente renovável daquelas relações.

A gestão operária da empresa

A capacidade dos operários de uma oficina ou de um departamento de organizarem por si mesmos seu trabalho está fora de dúvida. Os próprios sociólogos da indústria burguesa não somente o reconhecem mas são obrigados a constatar que os “grupos elementares” de operários realizam melhor sua tarefa quando a direção os deixa em paz e não tenta “dirigi-los”[10].

Mas, como o trabalho de todos esses “grupos elementares” ou bem das oficinas e dos departamentos – seria coordenado? Os teóricos burgueses, depois de terem constatado que o aparelho de direção atual, formalmente encarregado desta coordenação, é de fato pouco capaz de realizá-la verdadeiramente, porque não tem domínio sobre os produtores e porque é dilacerado pelos conflitos internos, em uma palavra, após terem-no destruído com suas críticas, não têm nada para colocar no seu lugar. E como, para além da organização “elementar” da produção, precisa-se bem de uma organização “secundária”, retomam finalmente ao mesmo aparelho burocrático de direção, que exortam a “compreender”, a “melhorar”, a “ter confiança nas pessoas” etc.[11]. Pode-se dizer a mesma coisa, em outro nível, dos dirigentes russos “desestalinizados” e “democratizados”[12]. É que uns e outros não podem reconhecer a capacidade gestionária dos operários para além de um quadro muito restrito. Não podem ver na massa dos trabalhadores de uma empresa um sujeito ativo de gestão e de organização. Para eles, para além de dez, quinze ou vinte indivíduos, começa a multidão, hidra de mil cabeças que não pode agir coletivamente – ou então somente na histeria ou no delírio – e que só um aparelho de direção e de coerção, concebido para esse fim, pode dominar e “organizar”.

Este ponto de vista não pode nos preocupar. Na realidade, sabe-se que os defeitos e as incoerências do aparelho burocrático de direção são tais que mesmo atualmente os operários individuais ou os “grupos elementares” de operários são obrigados a assumir sob sua responsabilidade uma boa parte das tarefas de coordenação[13]. E a experiência histórica prova que a classe operária é perfeitamente capaz de resolver o problema da gestão das empresas. Na Espanha, em 1936-37, os operários não tiveram nenhuma dificuldade para fazer funcionar as fábricas. Em Budapeste, em 1956, segundo os relatos de refugiados húngaros, as grandes padarias (que empregavam centenas de operários) funcionaram, durante e após os dias de insurreição, sob a direção dos operários, como jamais tinham funcionado antes. Estes exemplos poderiam facilmente ser multiplicados.

A maneira positiva de discutir este problema não é calcular abstratamente as capacidades gestionárias dos operários, mas examinar as funções reais do aparelho de direção atual, quais dentre elas possuem um sentido numa empresa socialista, e a maneira pela qual estas últimas poderão ser realizadas.

Estas funções são atualmente de quatro tipos:

– Funções de coerção.

– “Serviços gerais” de todo tipo, não diretamente ligados à fabricação.

– Funções técnicas.

– Funções de “direção na cúpula”, no sentido estrito do termo.

A primeira parte das funções do aparelho de direção atual diz respeito às tarefas de coerção dos trabalhadores. Essas funções e os cargos correspondentes – por exemplo, a vigilância, os contramestres, uma parte dos “serviços do pessoal” etc. – serão pura e simplesmente suprimidas. Cada grupo de operários é perfeitamente capaz de se disciplinar a si mesmo, assim como de conferir a autoridade necessária a alguém escolhido em seu meio, se uma tarefa particular exigir um comando individual.

Uma segunda parte comporta o cumprimento de tarefas que, em si mesmas, não são absolutamente tarefas de direção, mas tarefas de execução indispensáveis ao funcionamento da empresa e separadas da fabricação direta. Ê o caso da maior parte dos “escritórios” atuais. Entram aqui o aparelho contábil, os serviços comerciais e os serviços gerais da empresa. No seio destes serviços, o desenvolvimento moderno da produção tornou o trabalho tão dividido, parcelado e socializado quanto na fabricação direta. Os nove décimos do pessoal que se encontram nestes serviços só realizam e só realizarão, durante toda sua vida, tarefas de execução parceladas. Reformas importantes deverão ser efetivadas nestes serviços. Primeiramente, a estrutura capitalista da empresa provocava nestes serviços um aumento desmesurado de empregos[14] e é provável que a transformação socialista trará grandes economias de trabalho nestes setores. Em seguida, alguns dentre estes serviços terão não somente sua importância reduzida, mas sua função transformada. Os serviços comerciais atuais, por exemplo, que estão em vias de conhecer um desenvolvimento vertiginoso, tornar-se-ão, numa economia socialista planificada, serviços de aprovisionamento e de distribuição, encarregados essencialmente de tarefas de contabilidade do material de um lado, de transportes exteriores do outro, em ligação com os serviços homólogos das fábricas fornecedoras e dos armazéns de venda aos consumidores. Uma vez efetuadas estas transformações, e outras análogas, estes serviços não serão nada mais que “oficinas” como as outras, organizando por si mesmos seu próprio trabalho, em contato e coordenação com as outras oficinas. Eles não podem ter nenhuma prerrogativa particular por causa da natureza de seu trabalho. Nenhuma prerrogativa, aliás, decorre disto atualmente, e é apenas em função de outros fatores – a divisão entre trabalho manual e “intelectual”, a hierarquia muito mais desenvolvida nos escritórios – que os indivíduos que estão na chefia destes serviços têm às vezes acesso à cúpula da verdadeira “direção” da empresa.

Em terceiro lugar, existe o aparelho “técnico” propriamente dito da fábrica, desde os engenheiros até os desenhistas. É verdade que também este aparelho foi transformado pela evolução moderna num aparelho coletivo, no seio do qual o trabalho é dividido e socializado, e que é constituído em nove décimos por executantes parciais. Mas, uma vez estabelecido isto quanto à sua estrutura interna, é certo que ele realiza, quanto ao resto da fábrica – quanto aos serviços de fabricação -, uma função de direção. É este aparelho técnico coletivo que determina, ou presume-se que determine, uma vez definidos os objetivos e a escala de produção, os meios e as modalidades da produção, decide a respeito das transformações necessárias dos instrumentos, fixa a sequência e as modalidades de cada operação etc. Teoricamente, os serviços de fabricação são simples executantes de instruções dadas pelo serviço técnico da fábrica, e existe uma separação completa entre aqueles que formulam as instruções e aqueles que estão encarregados de executá-las nas condições concretas da produção em massa.

Esta situação repousa, até certo ponto, sobre um fato real: a especialização e a competência científica e técnica reservadas a uma minoria. Mas disto não decorre absolutamente que a melhor maneira de utilizar esta competência seria a de lhe deixar a decisão quanto à marcha real do conjunto da produção. Esta competência é, por definição, limitada a um setor ou um aspecto preciso do processo de fabricação; fora deste setor, o técnico não tem mais condições do que qualquer outro de assumir de maneira responsável uma decisão. Mesmo no interior deste setor, aliás, seu ponto de vista é fatalmente parcial. De um lado, ignora e tende a negligenciar os outros setores e, sobretudo, está separado do processo real da produção.

Esta separação entre os técnicos e o processo efetivo da produção é atualmente uma das principais causas do desperdício e dos conflitos na fábrica capitalista. Ela só poderá ser suprimida se se instaurar uma cooperação profunda entre os serviços “técnicos” e os serviços “produtivos” da fábrica. Esta cooperação repousará sobre a determinação coletiva, em comum, pelos operários encarregados da realização de um processo de fabricação e pelos técnicos, dos meios e modalidades desta realização. Poderá esta cooperação efetuar-se sem conflitos? Não existe nenhuma razão intrínseca para que surjam conflitos insuperáveis. Os operários não têm interesse em contestar as respostas que o técnico, como técnico, dá aos problemas técnicos que se põem, e, se existe contestação, ela pode resolver-se rapidamente na experiência: o domínio da produção permite verificações quase imediatas daquilo que é proposto por uns ou por outros. A orientação de que para tal peça ou tal instrumento (num determinado estágio de conhecimentos e em determinadas condições de produção) tal composição de metal seja a mais indicada, por exemplo, não pode e não será objeto de controvérsia. Mas as respostas assim forneci das de maneira definitiva pela técnica não definem senão um quadro geral ou uma parte somente dos elementos que determinam o processo concreto da produção. No seio deste quadro, existe uma série de maneiras de organizar este processo, e a escolha só pode ser feita em função, de um lado, de considerações da “economia” em geral – economia de trabalho, de matérias-primas, de energia, de instrumentos – e de outro lado, e sobretudo, em função de considerações relativas à condição dos homens no processo da produção. No caso destas últimas, somente os homens são por definição competentes, e a competência do técnico como tal é absolutamente nula. Em outras palavras, o que contestamos fundamentalmente é que possa existir uma técnica capaz de organizar os homens que seja exterior aos próprios homens (o que é finalmente tão absurdo quanto a idéia de uma psicanálise na qual o psicanalizado permaneceria de fora, e que seria apenas uma “técnica” do analista). Existem apenas técnicas de opressão e de coerção e técnicas de “motivação do pessoal” – que, aliás, permanecem finalmente sempre ineficazes. Consequentemente, a organização real do processo de produção só pode pertencer àqueles que o realizam, depois de considerados os elementos técnicos fornecidos pelos técnicos competentes. De fato, evidentemente, irá instaurar-se um vaivém permanente, mesmo que seja apenas porque os produtores terão em vista novas maneiras de organizar a fabricação, que colocarão problemas técnicos para os quais os técnicos deverão fornecer elementos certos ou prováveis de apreciação, antes que uma decisão com conhecimento de causa possa ser tomada. Mas a decisão, neste caso como nos outros, pertencerá aos produtores (inclusive os técnicos) da oficina, se ela afetar apenas a oficina, da empresa, se ela afetar a empresa inteira.

As razões de um conflito possível entre trabalhadores e técnicos não são absolutamente técnicas; se um tal conflito surgisse, seria um conflito claramente social e político. Não poderia decorrer senão da tendência eventual dos técnicos a assumirem um monopólio efetivo da direção, a constituir novamente um aparelho burocrático dirigente. Qual é a força e a evolução prováveis desta tendência?

Não podemos entrar aqui num exame, mesmo sumário, desta questão. Basta lembrar que não são os técnicos que formam a maioria ou mesmo uma parte essencial do aparelho superior de direção da produção, da economia ou da sociedade atuais – e isto revelará ao mesmo tempo o caráter mistificador dos argumentos que tendem a provar que a classe operária seria incapaz de gerir a produção, porque ela não disporia de “capacidades técnicas necessárias”. Em sua grande maioria, os técnicos ocupam apenas posições subalternas e só executam tarefas de execução parceladas. Dentre os técnicos, aqueles que chegam à cúpula não chegaram lá enquanto técnicos, mas enquanto “dirigentes” e “organizadores”. O capitalismo atual é um capitalismo burocrático, não é nem será jamais um capitalismo tecnocrático. A tecnocracia é uma generalização vazia feita por sociólogos superficiais, ou uma fantasia dos técnicos que experimentam duramente sua impotência diante do regime atual e seu absurdo. Os técnicos não constituem uma classe à parte; do ponto de vista formal não são nada mais do que uma categoria de trabalhadores assalariados, e a evolução do capitalismo moderno, ao transformá-los cada vez mais em executantes parcelares e substituíveis, bem como ao reduzir sua relativa penúria, tende a aproximá-los do proletariado. Opõe-se a esta aproximação seu lugar na hierarquia das remunerações e das “posições sociais”, como também aquilo que lhes resta de perspectiva individual de “subir na vida”. Mas esta perspectiva se fecha à medida que, de um lado, a profissão se massifica e, de outro, se burocratiza. Paralelamente, desenvolve-se uma revolta diante das irracionalidades do sistema capitalista e burocrático e contra a impossibilidade na qual se encontra o técnico parcelar e transformado progressivamente em funcionário, de dar livre curso a suas faculdades de invenção e de trabalho. A uma fração de técnicos que já obtiveram sucesso ou arrivistas, que se colocam definitivamente do lado da exploração, opõe-se assim uma minoria crescente de técnicos revoltados prontos para colaborar para a derrubada do regime. No meio deles se encontra a grande maioria dos técnicos que suportam apaticamente o seu destino de empregados privilegiados, cujo conservadorismo atual significa precisamente que eles não arriscariam um conflito com o poder real, seja ele qual for, e que a evolução só tende a radicalizar. Portanto, é extremamente provável que o poder operário na fábrica, após ter eliminado um pequeno número de técnicos-burocratas, será ativamente apoiado por uma fração substancial dos outros técnicos, e poderá, sem conflitos maiores, integrar o resto na rede de cooperação da fábrica.

Resta a verdadeira “direção” da empresa, que, de fato, atualmente ocupa poucas pessoas (as pessoas que um diretor “consulta” antes de tomar uma decisão podem geralmente ser contadas nos dedos nas empresas mais importantes). As tarefas desta direção são de dois tipos: de um lado, tomar decisões, em função das flutuações do mercado ou de perspectivas a longo prazo, em relação aos investimentos, aos estoques, à escala de fabricação etc.; de outro lado, assegurar a coordenação dos diversos serviços da empresa e, em particular, das diversas seções do aparelho burocrático.

Uma parte destas tarefas desaparecerá numa economia planificada: assim, todas as decisões associadas atualmente às flutuações do mercado (escala de fabricação. nível dos investimentos etc.). Outras tarefas serão certamente reduzidas consideravelmente: assim, a coordenação entre os diversos setores da empresa apresentar-se-á sem dúvida de maneira muito mais simples se os produtores organizarem por si mesmos seu trabalho, e se os diversos grupos, oficinas ou departamentos puderem colocar-se diretamente em contato uns com os outros.

Em compensação. outras serão muito mais avançadas: tal será o caso, em primeiro lugar, no que se refere à elaboração ativa das possibilidades, dos objetos e dos meios de produção futura, em outras palavras, das proposições que se referem ao lugar da empresa no desenvolvimento do conjunto da economia. O conjunto destas tarefas de direção estará sob a responsabilidade de dois órgãos:

a) Um Conselho de delegados de oficina e de escritório, eleitos e revogáveis a qualquer momento. Numa empresa de cinco a dez mil trabalhadores, este Conselho poderia ter trinta a cinquenta membros. Os delegados não se retirariam da produção. Eles se reuniriam em sessão plenária tão frequentemente quanto se mostrasse necessário a partir da experiência (provavelmente um ou dois meios períodos por semana). Prestarão contas a seus colegas de oficina ou de escritório desta cessão, cujos assuntos terão discutido previamente com seus companheiros. Assegurarão uma permanência central formada por um ou vários delegados, em sistema de rodízio, alternadamente. Terão, entre suas principais tarefas, a de assegurar as ligações com o “mundo exterior”.

b) A Assembleia Geral de todos os trabalhadores da fábrica, operários, funcionários e técnicos, instância de decisão para todos os problemas que se referem à empresa em seu conjunto ou problemas resultantes de divergências ou de conflitos entre os setores. Esta Assembleia Geral será a restauração da democracia direta, no quadro natural do mundo moderno, tendo a empresa como unidade social de base. Ela deverá ratificar todas as decisões do Conselho que não sejam de simples rotina. Poderá examinar todas as decisões tomadas no Conselho de delegados, ratificá-las ou anulá-las; decidirá por si mesma as questões que lhe devem ser submetidas diretamente. Terá uma periodicidade fixa – um ou dois dias por mês, por exemplo – e poderá ser convocada a qualquer momento se um determinado número de trabalhadores de oficinas ou de delegados assim o pedirem.

Qual será o conteúdo efetivo da gestão operária da empresa, as tarefas permanentes que ela deverá realizar?

Pode-se ver este problema com mais clareza considerando esquematicamente a gestão operária sob dois aspectos, o estático e o dinâmico.

Entendemos por aspecto estático aquele em que um dado objetivo de produção seja fixado para a empresa pelo planejamento para um determinado período (veremos mais adiante como se faz a determinação deste objetivo), e que ao mesmo tempo sejam fixados os meios, no sentido mais geral, dos quais a empresa disporá para a realização deste objetivo. O planejamento definirá, por exemplo, como objetivo de produção para tal fábrica de automóveis, a produção anual de tal número de automóveis de tal tipo, e concederá para este fim as quantidades necessárias de matéria-prima, energia, instrumentos etc. – ao mesmo tempo em que definirá a quantidade de horas de trabalho (em outras palavras, sendo fixada a duração do trabalho, será definido o número de trabalhadores) correspondente a esta produção.

Sob este ângulo, a gestão da empresa pelos trabalhadores significa que são estes últimos que terão a função e a responsabilidade de realizar o objetivo que lhes é destinado, com os meios colocados à sua disposição. A tarefa dos trabalhadores da empresa é portanto homóloga às tarefas “positivas” do aparelho de direção atual, que teria sido suprimido: a organização do trabalho de cada oficina ou departamento pelos próprios trabalhadores; a coordenação do trabalho das oficinas em relação produtiva imediata através de contatos diretos entre interessados (se se tratar de problemas limitados ou da rotina da produção), de reuniões de delegados ou de assembleias comuns a duas ou várias oficinas ou departamentos (se se tratar de problemas mais importantes); a coordenação dos trabalhadores do conjunto da fábrica, através do Conselho da empresa e da Assembleia Geral; a ligação com o resto da economia, assegurada pelo Conselho.

Nestas condições, a autonomia, em relação à produção, significa a determinação das modalidades de realização de certos objetivos determinados, com a ajuda de meios geralmente definidos.

Entre estes objetivos e os meios, os quais devem ser necessariamente definidos pelo planejamento (porque decorrem da produção de outras empresas), existe um “jogo” importante, um processo de concretização que só pode ser realizado pelos trabalhadores da empresa: objetivos e meios não determinam automática e exaustivamente as modalidades de trabalho, tanto mais que a definição dos meios pelo planejamento permanece forçosamente geral, e não pode nem deve descer a todos os “detalhes” importantes. Esta concretização, esta determinação das modalidades de realização do objetivo da empresa através dos meios fornecidos é o primeiro campo de exercício da autonomia dos trabalhadores. Ele é muito importante. Mas é limitado e é de uma importância crucial tomar consciência claramente de suas limitações, pois estas definem o quadro inevitável do ponto de partida da produção socialista quadro do qual ela deverá estender os limites na medida em que progressivamente se desenvolver.

A autonomia assim concebida, sob o aspecto estático, é evidentemente, em primeiro lugar, limitada do ponto de vista da determinação dos objetivos da produção. Os trabalhadores de uma dada empresa participam da determinação dos objetivos da produção de sua empresa, pelo fato de participarem da determinação do planejamento em seu conjunto. Mas eles não determinam por si mesmos, de imediato e sozinhos, estes objetivos. Na economia moderna, na qual a produção de cada empresa condiciona a produção de todas as outras, ao mesmo tempo em que é condicionada por elas, a definição de objetivos de produção coerentes não pode ser feita por cada empresa em particular, ela deve ser feita para todas e por todas as empresas em conjunto, e o ponto de vista geral só poderá prevalecer sobre o ponto de vista particular.

A autonomia é igualmente limitada quanto à determinação dos meios de produção. Os trabalhadores de uma empresa não podem determinar com plena autonomia os meios que preferem utilizar, pois estes meios são os resultados da produção de outras empresas; uma tal autonomia significaria que cada empresa poderia determinar os objetivos de produção de todas as outras, e estas autonomias anular-se-iam reciprocamente. Esta limitação, todavia, é muito menos rígida do que a primeira – a que se refere aos objetivos -, pois modificações dos meios de produção propostas pela fábrica que utiliza o material podem ser facilmente realizáveis pela fábrica produtora sem acarretar para esta última uma servidão adicional; vê-se isto claramente nos casos das grandes fábricas de produção mecânica – automóvel, por exemplo – com avançada integração, nas quais uma boa parte dos instrumentos utilizados é fabricada pela própria fábrica, e onde, consequentemente, a cooperação entre as oficinas que fabricam os instrumentos e as oficinas que os utilizam poderá conduzir a modificações extremamente amplas dos meios de produção utilizados[15].

Mas se considerarmos o que se pode chamar de aspecto dinâmico da gestão operária, ou seja, a função da gestão operária no desenvolvimento e na transformação da produção socialista, mais exatamente o fato de que este desenvolvimento e esta transformação serão o primeiro objetivo desta gestão, então, tudo o que acabamos de dizer deve ser retomado, e os limites da autonomia se estenderão gradualmente.

Isto pode ser observado primeiramente no plano da determinação dos meios de produção. Partindo da tecnologia herdada do capitalismo, a produção socialista empenhar-se-á, como dissemos, na transformação consciente desta tecnologia. O primeiro aspecto deste problema é o seguinte: atualmente, o equipamento – e, mais geralmente, os meios de produção – é em princípio concebido e fabricado independentemente de seu utilizador e de sua opinião (pretende-se, é claro, levá-lo em consideração, mas isto não tem nada a ver com a opinião do utilizador situado em condições concretas de produção da fábrica capitalista). Ora, o equipamento é fabricado para ser consumido produtivamente, e a opinião deste consumidor produtivo, ou seja, do produtor – utilizado r do equipamento, é fundamental. Na medida em que a opinião do produtor do equipamento é igualmente importante, o problema da definição dos meios de produção só pode ser resolvido pela cooperação viva destas duas categorias de trabalhadores. No seio de uma fábrica integrada, isto implica o contato permanente entre as categorias correspondentes de oficinas. Na escala da economia inteira, isto deve ser feito pela instauração de formas permanentes, normais, de cooperação entre fábricas bem como entre setores de produção. (Esse problema é distinto daquele da planificação geral: esta coloca um quadro quantitativo – um tanto de aço, tantas horas de um lado, tantos produtos de consumo finais, de outro lado -, mas não intervém na forma, no tipo etc. dos produtos intermediários.) Esta cooperação tomará necessariamente duas formas. De um lado, os problemas da escolha dos melhores métodos e de sua propagação, da uniformização e da racionalização serão objeto da cooperação horizontal dos Conselhos organizados por ramos e setores da indústria (têxtil, química, mecânica, indústrias elétricas etc.). De outro lado, a integração dos pontos de vista dos produtores e dos utilizadores de equipamento, e mais geralmente de todos os produtos intermediários, será objeto da cooperação vertical dos Conselhos que representam etapas sucessivas de produção (siderurgia – indústrias de máquinas – instrumentos – indústria mecânica, por exemplo). Nos dois casos, esta cooperação deverá organizar-se em formas permanentes, de comitês verticais e horizontais de representantes de Conselhos de empresa como também de reuniões mais amplas de produtores.

Considerando, portanto, o problema sob o ângulo dinâmico que é finalmente o único importante – constata-se que o terreno de exercício da autonomia se alarga enormemente. Já ao nível das empresas, mas sobretudo ao nível da cooperação entre empresas, os produtores determinarão por si mesmos os meios de produção. E serão por esta mesma razão capazes de dominar gradualmente o processo do trabalho, pois não somente terão de definir as modalidades deste processo, mas também poderão modificar a sua base tecnológica.

Este fato por si mesmo modifica o que havíamos dito a respeito da determinação de objetivos. Os três quartos da produção moderna (bruta) são constituídos de produtos intermediários, de meios de produção no sentido mais geral. A determinação dos meios de produção pelos produtores significa pois, imediatamente, uma participação direta extremamente importante para a determinação dos objetivos de produção (porque a natureza dos objetos intermediários será definida em comum pelos produtores e utilizadores destes objetos). A limitação que subsiste – e que é importante decorre de que finalmente estes meios devem servir, qualquer que seja sua natureza precisa, à produção de bens finais de consumo e que estes últimos podem ser determinados pelo planejamento apenas de uma maneira geral.

Mas, também a este respeito, a consideração do aspecto dinâmico modifica radicalmente a situação. O consumo moderno caracteriza-se pela aparição incessante de novos produtos. Conceber, estudar e realizar estes novos produtos será a tarefa das empresas que produzem bens de consumo.

Isto coloca o problema mais geral do contato entre produtores e consumidores. A sociedade capitalista repousa sobre uma cisão completa destes dois aspectos do homem e sobre a exploração do consumidor como tal. Não se trata simplesmente da exploração monetária ou da limitação da renda. A produção capitalista pretende satisfazer mais do que qualquer outra na história, as necessidades das massas, mas, na verdade, é ela que determina, senão as próprias necessidades, ao menos a maneira de satisfazê-las. A opinião do consumidor é apenas uma dentre as múltiplas variáveis que os técnicos de venda modernos manipulam. A cisão entre produtor e consumidor aparece com uma particular evidência na questão da qualidade dos produtos. O diálogo entre o operário-homem e o operário-robô que D. Mothé resume em seu texto já citado: “Você crê que é importante esta peça? – Que lhe importa isto? Ela fica bem na parede”, mostra de maneira surpreendente porque o problema da qualidade é insolúvel no quadro da sociedade de exploração. O vulgo vê numa mercadoria uma mercadoria, em vez de ver nela um momento cristalizado da luta de classes; vê nos defeitos das mercadorias apenas defeitos, em lugar de ver neles o resultado de um conflito do operário consigo mesmo, do operário com a exploração, e das diversas instâncias da burocracia da fábrica umas com as outras.

A supressão da exploração trará por si mesma uma modificação desse estado de coisas, e o próprio operário poderá, ao executar o seu trabalho, fazer prevalecer sua atitude de consumidor eventual desse mesmo produto. Mas a sociedade socialista deverá, sem dúvida, em sua primeira fase, visar a instauração de formas normais – diferentes do “mercado” – de contato entre produtores e consumidores como tais.

Em tudo o que dissemos antes, pressupusemos a divisão de trabalho herdada da sociedade atual, que fornecerá o ponto de partida. Mas já havíamos indicado acima que a sociedade socialista não pode deixar de se empenhar, desde o seu primeiro dia, na demolição dessa divisão. Este é um problema imenso, que não pode ser tratado nos limites deste texto. Os primeiros passos de sua solução, todavia, aparecem desde já. A produção moderna, ao arruinar em grande parte as qualificações profissionais de outrora, e ao criar máquinas universais semi-automáticas ou automáticas, destruiu por si mesma a ossatura tradicional da divisão do trabalho na indústria e deu origem a um operário universal, que pode se servir da grande maioria das máquinas após uma curta aprendizagem. Desprovida de seus elementos de classe, a distribuição dos trabalhadores dentro de uma fábrica corresponde cada vez menos a uma verdadeira divisão do trabalho e cada vez mais a uma divisão de tarefas. Os trabalhadores são fixados a determinados lugares do mecanismo produtivo não em função de uma correspondência irrevogável entre suas “qualificações” e as “exigências do trabalho”, mas porque aquele lugar estava disponível, porque lhes conferia tal vantagem enfim, simplesmente porque foram colocados lá. A fábrica socialista não terá evidentemente nenhuma razão para aceitar a rigidez artificial que prevalece atualmente nos empregos. Ela terá todo interesse em suscitar uma rotatividade dos trabalhadores entre as seções e departamentos, assim como entre departamentos e “escritórios”. Uma tal rotatividade só pode facilitar enormemente a participação ativa e com conhecimento de causa dos trabalhadores na gestão da fábrica, na medida em que uma proporção crescente de trabalhadores ficará familiarizada em primeira mão com o trabalho de um número crescente de seções. A mesma coisa vale para a rotatividade de trabalhadores em diferentes empresas e, para começar, em empresas produtoras e utilizadoras.

Quanto ao que subsiste do problema da divisão do trabalho propriamente dita, isto só poderá ser tratado em ligação com o problema da educação – não somente das novas gerações, mas também dos adultos -, o que não podemos abordar aqui.

Simplificação e racionalização dos problemas gerais da economia

O funcionamento da economia socialista implica a direção consciente dos processos econômicos pelos produtores em todos os níveis, particularmente no nível central. É completamente ilusório acreditar que uma burocracia central abandonada a si mesma ou “controlada” poderia dirigir a economia em direção ao socialismo (ela a conduziria novamente para a exploração), ou que mecanismos objetivos “automáticos” poderiam ser estabelecidos, e que, tal como os aparelhos de pilotagem, orientariam a todo momento a economia no sentido desejado. Em todos estes casos – direção da economia por uma burocracia “esclarecida”, regulação da economia por mecanismos de “verdadeiro mercado”, restaurados na pureza original que parecem ter possuído antes que o capitalismo os tivesse corrompido, ou regulação por um supercomputador eletrônico aparece a mesma impossibilidade fundamental. Todo planejamento pressupõe uma decisão sobre a taxa de expansão da economia, e esta taxa, por sua vez, depende essencialmente da repartição do produto social em consumo e investimento. (Poder-se-ia acrescentar: 1) que ela depende também do progresso técnico. Mas este progresso existe essencialmente em função dos investimentos consagrados direta ou indiretamente à pesquisa; 2) que ela depende da evolução da produtividade do trabalho. Mas esta depende por sua vez do capital disponível por operário e do nível técnico (dois fatores que nos levam de volta ao investimento) e, sobretudo, da atitude dos produtores diante da economia. Esta se acha diretamente ligada à atitude dos produtores face aos objetivos do planejamento e ao método que os determinaram, e, portanto, voltamos aos fatores discutidos no texto.)

Ora, não existe nenhuma base racional “objetiva” que permita determinar esta repartição. Uma decisão de investir 0% do produto social não é objetivamente nem mais nem menos “racional” do que a decisão de investir 90%. A única racionalidade que pode existir no caso é a da decisão tomada pelos homens a respeito do seu próprio destino, com conhecimento de causa. E a determinação dos objetivos do planejamento pelos trabalhadores que terão de executar tais objetivos é a única garantia, no final das contas, de sua participação espontânea e voluntária no esforço de sua realização e, portanto, de uma mobilização efetiva dos indivíduos acerca da gestão e ao mesmo tempo da expansão da economia.

Mas isto não significa que o planejamento e a direção da economia sejam “pura política”. A planificação socialista apoiar-se-á sobre elementos racionais objetivos e ela é a única capaz de integrar estes elementos numa orientação consciente da economia. Estes elementos são meios extremamente poderosos de “economia” de pensamento e de trabalho, de simplificação da representação da economia e de suas leis, permitindo tornar acessíveis ao conjunto dos trabalhadores os problemas da gestão central. Uma gestão operária da produção, não mais ao nível da fábrica particular, mas ao nível do conjunto da economia, só é possível se as tarefas de direção sofrerem uma enorme simplificação, de tal modo que os produtores e seus órgãos coletivos possam ter opiniões, com conhecimento de causa, sobre os problemas decisivos. Ê preciso, em outras palavras, que o imenso caos dos fatos e relações econômicas possa ser reduzido a alguns dados que condensem de maneira adequada os problemas colocados: limitados numericamente, compreensíveis, resumindo sem deformação e sem mistificação, suficientes para julgar. Uma tal condensação adequada por acontecer, porque existem, primeiramente, um delineamento racional da economia, em segundo lugar, técnicas modernas de compreensão da economia e, em terceiro lugar, a possibilidade de mecanizar e de automatizar tudo o que não pertence ao domínio da decisão humana propriamente dita.

A discussão destes elementos, destas técnicas e destas possibilidades é portanto indispensável desde já. Sem o amplo afastamento dos obstáculos que eles permitem, a gestão operária da economia correria o risco de desmoronar sob o peso da matéria que quer dominar. É evidente que esta discussão está longe de ser exclusivamente “técnica” em seu conteúdo, e que seremos constantemente guiados pelos princípios gerais que colocamos no início.

A central do planejamento

Um planejamento de produção, quer diga respeito a uma fábrica particular ou ao conjunto da economia, é um processo racional (que comporta um grande número de raciocínios secundários) que se reduz a duas premissas e uma conclusão. As duas premissas são: os meios dos quais se dispõe no início (equipamento, mão-de-obra, estoques etc.) e a situação que se pretende atingir (produção de tais quantidades de objetos e de serviços especificados durante tal período). Denominá-las-emos respectivamente condições iniciais e objetivo. A conclusão é o caminho que é preciso seguir para passar das condições iniciais ao objetivo (tais produtos intermediários a serem fabricados durante tal período etc.). Chamaremos esta conclusão de objetivos intermediários.

O objetivo intermediário pode ser determinado imediatamente se se tratar, a partir de condições iniciais simples, de realizar um objetivo simples. Ã medida que as condições iniciais ou o objetivo, ou os dois se complicam ou se distanciam no tempo, a determinação dos objetivos intermediários torna-se evidentemente mais difícil. No caso da economia, a complexidade dos elementos é tal (há milhares de produtos diferentes, diversos procedimentos de fabricação possíveis para muitos desses produtos, e a produção de cada categoria de produtos praticamente contribui direta ou indiretamente com a de todas as outras) que se poderia pensar que uma planificação racional (no sentido de uma determinação a priori de todos os objetivos intermediários uma vez fixadas as condições iniciais e o objetivo final) seria impossível. Entretanto, isto não acontece[16]. Em geral, o problema pode ser resolvido, e as técnicas disponíveis de cálculo econômico e do cálculo simplesmente permitem resolvê-lo de um modo extremamente simples. Uma vez conhecidas as condições iniciais (a situação da economia no início) e fixado o objetivo ou os objetivos finais, pode-se reduzir todo o trabalho de planificação (a determinação de objetivos intermediários) a um trabalho puramente técnico de execução, que pode ser mecanizado e automatizado em alto grau.

A base destes métodos é precisamente a ideia da interdependência total entre os diversos setores da economia (o fato de que tudo aquilo que é utilizado por um setor para produzir já seja produto de um outro setor e, inversamente, o fato de que todo o produto de cada setor deva no final das contas ser utilizado por outros setores). A esta ideia, que remonta a Quesnay, e que forma a base da análise da acumulação capitalista feita por Marx, um grupo de economistas americanos junto com Leontief, pôde, há vinte anos dar uma expressão estatística e uma aplicação à economia real que vem se ampliando constantemente[17]. Esta interdependência significa que a todo momento (por um dado estado da técnica e uma dada estrutura do equipamento da economia) a produção de cada setor está ligada por relações mais ou menos estáveis às quantidades de produtos de outros setores que este setor utiliza (consome produtivamente). Todo mundo sabe que é preciso uma enorme quantidade de carvão para produzir uma tonelada de aço de tal tipo, e que, além disso, é preciso um tanto de sucata ou de mineral de ferro, tantas horas de trabalho, tantas despesas de manutenção e de reparações etc. A relação carvão utilizado/aço produzido, expressa em valor, é o coeficiente técnico corrente que determina o consumo produtivo do carvão por unidade de aço produzido.

Se se quiser aumentar a produção de aço para além de um certo ponto, de nada servirá aumentar as quantidades de carvão, sucata etc. entregues às siderúrgicas; será preciso construir novos fornos, ou seja, aumentar o equipamento ou a capacidade produtiva instalada das siderúrgicas. Para produzir tal quantidade adicional de aço, será necessário portanto produzir tal e tal quantidade de equipamento (de tipo específico). A relação “tal quantidade de tal tipo de equipamento/capacidade de produção de aço por período”, expresso em valor, é o coeficiente técnico de capital que determina a quantidade de capital utilizado por unidade de aço produzida durante um período.

Tudo isso é perfeitamente conhecido e banal, e podemos ficar aí quando se tratar da direção de uma única empresa; cada firma baseia-se nessas considerações – muito mais detalhadas – quando, tendo decidido produzir uma certa quantidade ou aumentar sua capacidade de produção de tanto, compra suas matérias-primas, contrata mão-de-obra ou encomenda seu equipamento. Mas, quando se considera o conjunto da economia, o problema muda: a interdependência dos setores faz com que o aumento da produção de um setor repercuta (em graus diferentes) sobre todos os outros e, finalmente, sobre o próprio setor de onde ele partiu. Um aumento da produção de aço exige imediatamente um certo aumento da produção do carvão; mas esta última ocasionará, supomos, de um lado, o acréscimo de tal tipo de equipamento das minas e, de outro, a contratação de mão-de-obra suplementar. As necessidades acrescidas de equipamento das minas geram (supomos) uma demanda adicional de aço – e de outros tipos de produtos e de trabalho. A demanda adicional de aço repercute por sua vez sobre a demanda de carvão – e assim por diante. De seu lado, a mão-de-obra empregada recentemente tem sua renda acrescida – portanto ela compra mais bens de consumo de diversos tipos, cuja produção exige tais e tais quantidades de matérias-primas, de equipamento etc. (e novamente de carvão e de aço). Não se trata da brincadeira sobre a idade do capitão, mas de um dos problemas centrais aos quais a planificação deve – e pode -‘ responder: de quanto aumentará a demanda de meias de náilon na região dos Baixos-Pirineus se se construir um alto-forno na Lorraine?

O método das matrizes de Leontief, combinado com outros métodos modernos (a activity analysis de Koopmans[18], cuja “pesquisa operacional” é um caso particular), permite, no caso de uma economia socialista, a solução teoricamente exata deste problema. Uma matriz é um quadro no qual estão dispostos sistematicamente os coeficientes técnicos (correntes e de capital) que exprimem a dependência de cada setor em relação a cada um dos outros. Todo objetivo final definido apresenta-se como uma série de bens de utilização final em quantidade especificadas, que devem ser produzidos num determinado período. Desde que este objetivo final seja determinado, a solução de um sistema de equações simultâneas permite definir imediatamente todos os objetivos intermediários e, portanto, permite definir as tarefas a serem realizadas por cada setor da economia.

A solução destes problemas será a tarefa de uma empresa específica, mecanizada e automatizada a um grau importante, e cujo trabalho consistirá numa verdadeira “fabricação em série” dos planejamentos e de suas diversas peças isoladas. Esta empresa é a central do planejamento.

A oficina principal da central do planejamento será provavelmente (para começar) um computador eletrônico, cuja memória magnética terá armazenado os coeficientes técnicos e as capacidades instaladas de produção de cada setor, e que, “alimentado” com objetivos hipotéticos, “produzirá” as tarefas de produção por setor que estes objetivos implicariam (e inclusive, é claro, as horas de trabalho que em cada caso o setor “trabalhadores” deverá fornecer). (A divisão da economia numa centena de setores, que corresponde à .capacidade presente (1957) dos computadores eletrônicos, está mais ou menos “a meio caminho” entre a divisão em dois setores, bens de produção e bens de consumo, com a qual Marx trabalhava, e os milhares de setores que uma divisão perfeitamente rigorosa exigiria: É provável que ela será suficiente na prática. Ela poderia, aliás, ser facilmente aperfeiçoada desde já através de uma solução do problema em diversas etapas.)

Ao redor desta oficina seriam dispostas outras análogas, cujas funções seriam: estudo da repartição e dos fluxos regionais da produção corrente e dos novos investimentos; estudo das diversas técnicas ótimas, levando em conta a interdependência geral; determinação do valor unitário das diversas categorias de produtos etc.

Dois serviços da central do planejamento merecem uma menção particular: o recenseamento e o serviço dos coeficientes técnicos.

A qualidade do trabalho de planificação assim concebido depende da qualidade do conhecimento real do estado da economia que está em sua base; a exatidão da solução depende, em outras palavras, do conhecimento adequado das “condições iniciais” e dos coeficientes técnicos. Recenseamentos industriais e agrícolas já são feitos em intervalos regulares nos países capitalistas avançados; eles oferecem uma base para o ponto de partida, mas são extremamente fragmentários, imprecisos, inexatos e inadequados. Um inventário próprio e completo será a primeira tarefa de um poder operário. Mas este inventário, que implica uma preparação séria considerável, não será feito por decreto de um dia para o outro, nem estará completo depois de feito. Seu aperfeiçoamento e acabamento será uma tarefa permanente da central do planejamento, em estreita cooperação com os serviços correspondentes das empresas. Os resultados deste trabalho modificarão e enriquecerão a cada vez a memória do computador central (que poderá, aliás, se encarregar por si mesmo de uma parte considerável da tarefa).

De um outro lado, a determinação dos coeficientes técnicos colocará problemas análogos. Ela pode ser feita grosseiramente no início, a partir de dados estatísticos gerais (“em média, a indústria têxtil utilizou um tanto de algodão para produzir um tanto de tecido”), mas deverá rapidamente tornar-se mais precisa através do trabalho dos técnicos de cada setor, capaz de fornecer relações muito mais exatas. Tanto o conhecimento gradualmente aperfeiçoado dos coeficientes técnicos quanto sobretudo a modificação real destes conhecimentos após os novos desenvolvimentos da tecnologia, acarretarão revisões periódicas dos dados armazenados pelo computador.

Um conhecimento também amplo do estado real e das possibilidades da economia, a revisão perpétua dos dados materiais e técnicos e as conclusões instantâneas que poderão ser tiradas a partir daí a cada vez, significarão ganhos dos quais é difícil se ter uma ideia, mas que provavelmente serão imensos. Citaremos apenas duas indicações. Numa série de problemas particulares, o emprego de métodos modernos e de calculadoras eletrônicas permitiu dar respostas que se distanciam consideravelmente da prática seguida até então, e muito mais econômicas e racionais. Ora, estas possibilidades permanecem atualmente inexploradas no domínio onde devem ser de longe as mais importantes, o da economia em seu conjunto. De outro lado, toda modificação técnica num dado setor pode em princípio afetar as condições de rentabilidade e a escolha racional dos métodos de produção em todos os outros setores. A economia socialista poderá levar em conta este efeito integral e imediatamente. A economia capitalista só poderá considerá-lo em parte, e em prazos consideráveis.

A realização material desta central do planejamento será imediatamente possível num país mais ou menos industrializado. O equipamento necessário já existe, e existem igualmente os homens capazes de fazê-lo. Certos ramos profissionais que não têm razão de ser numa economia socialista, como os bancos e as empresas de seguros, realizam atualmente, através dos mesmos meios modernos, um trabalho idêntico em sua forma. Associando-se a matemáticos, econometristas e estatísticos, os trabalhadores destes setores poderão fornecer o pessoal da central do planejamento. E a gestão operária, as exigências de uma economia racional darão um impulso extraordinário ao desenvolvimento “espontâneo e automático” e ao mesmo tempo consciente das técnicas lógicas e mecânicas da planificação.

Para resumir: o papel da central do planejamento não seria evidentemente o de decidir o planejamento. Os objetivos do planejamento serão determinados pela sociedade, sob uma forma que descreveremos mais adiante. O papel da central do planejamento será: antes da adoção do planejamento, o de calcular e apresentar à sociedade as implicações e as consequências do planejamento ou dos planejamentos propostos. Após a adoção, o de revisar constantemente os dados da planificação correntes e de tirar, se for o caso, as consequências destas modificações, informando a Assembleia central e os setores interessados sobre as mudanças nos objetivos intermediários – portanto as tarefas de produção – que devem decorrer delas. Nem no primeiro nem no segundo caso terá de decidir por si mesma o que quer que seja, exceto, como qualquer outra fábrica, a organização do seu próprio trabalho.

O mercado dos bens de consumo

Com uma técnica já estabelecida, a determinação dos “objetivos intermediários” é, como acabamos de ver, um problema mecânico (com uma técnica em evolução permanente, outros problemas se colocam, dos quais trataremos mais tarde). Mas, e quanto aos bens de consumo? Como será feita a determinação da lista e das quantidades de bens de consumo a serem produzidos?

É claro, de início, que esta determinação não pode ser feita de uma maneira democrática direta. A decisão de planificação proposta à sociedade não pode tratar da lista completa e detalhada dos bens de consumo a serem produzidos e suas quantidades, como se fosse um objetivo final. Uma tal decisão não seria democrática, pois não seria tomada com conhecimento de causa: ninguém pode tomar uma decisão sensata a respeito de listas que comportam milhares de artigos em quantidades variáveis. Em segundo lugar, uma tal decisão equivaleria a uma tirania da maioria sobre a minoria, desprovida de qualquer justificação. Se 40% da população deseja consumir tal artigo e está disposta a pagar para tê-lo, não há razão para privá-la deste artigo sob o pretexto de que os outros não o querem. Não existe um gosto mais lógico do que outro, nem qualquer razão para tomar uma decisão que resolva o problema, porque a satisfação dos desejos de uns não é incompatível com a satisfação dos desejos dos outros. O racionamento – pois um sistema de decisão majoritária tornar-se-ia um racionamento – é o modo mais irracional de tratar o problema; modo intrinsecamente absurdo em qualquer lugar, a não ser na jangada de Medusa – ou na fortaleza sitiada.

A decisão de planificação portanto dirá respeito ao nível de vida ou ao volume global do consumo – em termos de renda disponível para cada um – e não à composição detalhada deste consumo.

Se o volume global do consumo estiver definido, poderíamos ser tentados a tratar os artigos dos quais se compõe como “objetivos intermediários”. Poder-se-ia dizer: “quando os consumidores dispõem de tal renda, compram tal quantidade deste artigo”. Mas isto seria uma resposta artificial e finalmente errônea. A determinação de um objetivo de nível de vida não acarreta para o consumo humano implicações do tipo daquele que a decisão de produzir tantas toneladas de aço acarreta para a produção do carvão. Não existem “coeficientes técnicos” do consumidor. Na produção material, estes coeficientes têm um sentido intrínseco, no domínio do consumo eles representariam apenas um artifício contábil. É certo que há uma regularidade estatística da estrutura da demanda dos consumidores em função de sua renda, regularidade sem a qual a economia capitalista privada não poderia funcionar. Todavia, esta regularidade é inteiramente relativa. Além do mais, ela será completamente modificada durante o período socialista: haverá uma redistribuição extensa da renda; em todos os planos ocorrerão transformações múltiplas; a violação permanente dos consumidores pela publicidade cessará; outros gostos surgirão em função do aumento do tempo livre. Enfim, a regularidade estatística da demanda dos consumidores não resolve o problema dos desvios que a demanda real pode apresentar em relação ao planejamento durante um período. Uma planificação real não pode dizer: “o nível de vida aumentará de 5% no próximo ano, e isto, como nos ensina a experiência, irá acarretar um aumento de 20% na demanda de automóveis, portanto, é preciso produzir 20% e mais de automóveis”, e parar aí. Será obrigada a começar deste modo, na falta de outros critérios; mas deve comportar, incorporados à sua estrutura, mecanismos corretivos que possam responder aos desvios da evolução real em relação à evolução “prevista”.

Por estas razões, a sociedade socialista regulamentará a estrutura de seu consumo a partir do princípio da soberania do consumidor – o que implica a existência de um mercado real para os bens de consumo. A decisão geral de planificação definirá a proporção de seu produto que a sociedade quer consagrar à satisfação de suas necessidades de consumo, aquela consagrada às necessidades da coletividade (“consumo público”) e aquela consagrada ao desenvolvimento das forças produtivas (“investimento”). Mas a estrutura do consumo será definida pela demanda dos próprios consumidores.

Como funcionará este mercado, como se realizará a adaptação recíproca da oferta e da demanda?

Existe primeiramente uma condição de equilíbrio global: o conjunto das rendas distribuídas (salários, aposentadorias etc.) deverá ser igual ao valor (quantidades X preços) dos bens de consumo oferecidos durante o período.

Para começar, uma primeira decisão empírica deverá ser tomada a respeito da estrutura do consumo. Ela se apoiará sobre as regularidades estatísticas tradicionalmente “conhecidas”, corrigindo-as para levar em conta o efeito de novos fatores (nivelamento das rendas, por exemplo). Deverá prever igualmente a constituição de estoques maiores do que aqueles que são “tecnicamente” necessários.

Os desvios possíveis do desenvolvimento real do consumo em relação às previsões encontrarão três “amortecedores” ou processos sucessivos de correção:

a) variações dos estoques;

b) alta (ou baixa, em caso de déficit da demanda) do preço da mercadoria considerada durante tanto tempo quanto os estoques continuarem a diminuir (ou a aumentar), com explicação ao público da razão desta modificação dos preços);

c) nesse meio tempo, reajustamento da produção dos bens de consumo, até o ponto em que o fluxo de produção se torne igual (após a reconstituição de estoques normais) ao fluxo da demanda. Neste momento, o preço de venda volta a ser o preço normal.

Dado o princípio da soberania dos consumidores, a distância entre demanda real e produção prevista deve ser corrigida não pela instauração de uma diferença permanente entre preço de venda e preço normal, mas pela modificação da estrutura da produção. Na verdade, uma tal distância significa, ipso facto, que a decisão de planificação estava errada neste domínio.

Moeda, preço, salários, valor

Muitos absurdos foram ditos sobre a moeda e sua supressão numa sociedade socialista. Entretanto, é claro que o papel da moeda é radicalmente transformado a partir do momento em que ela não puder mais ser instrumento de acumulação ou de pressão social, quando ninguém puder possuir os meios de produção e quando todos os rendimentos forem iguais. Os trabalhadores terão um rendimento; e este rendimento tomará a forma de vales que lhes permitirão repartir suas despesas entre diversos objetos como e quando bem entenderem. Lutando contra realidades e não contra palavras, não hesitamos em chamar este rendimento de “salário” e estes vales de “moeda”.

Do mesmo modo, anteriormente havíamos chamado de “preço normal” a expressão monetária do valor-trabalho. Este valor, única base racional possível para uma contabilidade social e único padrão de medida que tem uma significação para os homens, será necessariamente o fundamento do cálculo de rentabilidade da produção socialista (cálculo cujo objetivo essencial será a redução dos custos diretos e indiretos no trabalho humano). A determinação do preço dos objetos de consumo a partir de seu valor significará que para cada um o custo dos objetos de consumo aparecerá como sendo o equivalente do trabalho que o próprio consumidor teria executado para produzi-los, munido do equipamento e da capacidade sociais médios.

(O valor-trabalho compreende evidentemente o custo social atual do equipamento usado durante um período. Ver, a respeito do cálculo do valor-trabalho através do método das matrizes, o número 12 de Socialisme ou Barbarie, pp. 7-22. A adoção do valor-trabalho como padrão equivale à utilização daquilo que os economistas denominam “custo normal a longo prazo”. A opinião expressa no texto corresponde à de Marx, que é em geral violentamente combatida pelos economistas acadêmicos, mesmo “socialistas”; para estes, seria o “custo normal” que deveria determinar os preços (cf. por exemplo Joan Robinson, An Essay on Marxian Economics , Londres, 1947, pp. 23-28). Não podemos aqui entrar nesta discussão. Digamos somente que a aplicação do princípio do custo marginal significaria que o preço da passagem de avião Paris-Nova lorque deveria ser igual ora a zero, ora ao preço de um Super-Constellation.)

Isto poderia ser uma simplificação e uma clarificação se a unidade monetária fosse o “produto certo de uma hora de trabalho”, ou seja, unidade de valor, e se o salário por hora fosse uma fração desta unidade (igual à relação consumo privado/produção total certa), de tal modo que a “decisão fundamental” da planificação (repartição do produto social entre consumo e investimento) seja imediatamente evidente a cada um, do mesmo modo que o custo social de qualquer objeto que cada um comprar.

A igualdade absoluta dos salários

Segundo a aspiração profunda dos operários – as reivindicações operárias, quando se expressam independentemente da burocracia sindical, são cada vez mais frequentemente dirigidas contra a hierarquia dos salários[19] uma igualdade absoluta prevalecerá em matéria de salários. Nenhuma justificação, a não ser a exploração, pode fundamentar a existência de uma hierarquia dos salários[20], quer ela corresponda à qualificação profissional, quer às diferenças de rendimento. Se o trabalhador pagasse por própria conta as despesas de sua qualificação profissional, e se a sociedade socialista o considerasse como se ele fosse uma “empresa”, a recuperação destas despesas durante sua vida ativa poderia no máximo “justificar” uma distância que vai, no caso extremo, de 1 a 2 (entre o varredor e o especialista em cirurgia do crânio). Mas as despesas de formação serão pagas pela sociedade (eles o são com efeito desde já na maioria dos casos), e o problema de sua “recuperação” não tem sentido. Quanto ao rendimento, atualmente ele já depende muito menos do prêmio, e muito mais da coerção imposta pelas máquinas e pela vigilância, de um lado, e da disciplina dos grupos elementares de trabalhadores na oficina, de outro. A sociedade socialista não pode impor o aumento do rendimento pela coação econômica, sem entrar novamente na confusão capitalista das normas, da vigilância etc. A disciplina de trabalho resultará (como, em parte, já é o caso atualmente) da organização elementar dos trabalhadores na oficina, da cooperação e do controle recíproco das oficinas na fábrica, da reunião das produções das diversas empresas e dos diversos setores. O grupo elementar de trabalhadores numa oficina pode em regra geral disciplinar um indivíduo e, se este se mostrar incorrigível, obrigá-lo a deixar a oficina. O recalcitrante então não teria outro recurso senão procurar entrar num outro grupo de trabalhadores e se fazer aceitar, ou permanecer sem trabalho.

A igualdade dos salários dará um sentido real ao mercado dos bens de consumo, no qual cada participante terá enfim, pela primeira vez, um voto igual. Ela suprimirá um número infinito de conflitos, tanto da vida corrente quanto na produção, e permitirá realizar uma coesão extraordinária dos trabalhadores. Destruirá em sua base toda a monstruosidade mercantil do capitalismo, privado ou burocrático, a comercialização das pessoas, este universo no qual não se ganha o que se vale, mas onde se vale o que se ganha. Alguns anos de igualdade de salários e pouca coisa subsistirá da mentalidade presente dos indivíduos.

A decisão fundamental

A decisão fundamental é a decisão através da qual a sociedade determina o objetivo final do planejamento. Diz respeito a dois dados que, em função das “condições iniciais” da economia, determinam o conjunto da planificação: o tempo de trabalho que a sociedade quer consagrar à produção; a parte da produção que ela quer consagrar respectivamente ao consumo privado, ao consumo público, ao investimento.

Na sociedade capitalista privada ou burocrática o tempo de trabalho é determinado pela classe dominante, por meio de coerções diretas (este era o caso até há pouco nas fábricas russas) ou econômicas. A sociedade socialista sofrerá também a coerção econômica porque uma decisão de modificação da duração do trabalho repercutirá (mantendo-se além disso igual a todo o resto) sobre a produção. Mas ela poderá decidir com conhecimento de causa, diante dos dados do problema claramente expostos.

A sociedade socialista será a primeira sociedade moderna que poderá determinar de maneira racional a repartição do produto social entre o consumo e o investimento. (Doravante, deixaremos de lado o problema do consumo público.) Na sociedade capitalista privada, esta repartição é efetuada de uma maneira absolutamente cega, e é em vão que se procura uma “racionalidade” qualquer nos fatores que determinam o volume do investimento. (Em sua principal obra, consagrada a esta questão, e após um uso moderado de equações diferenciais, Keynes chega à conclusão de que a determinante principal do investimento são os “espíritos animais” dos empresários: The General Theory, pp. 161-162. Quanto à ideia de que o volume do investimento seria essencialmente determinado pela taxa de juros e de que esta última decorreria do jogo das “forças reais da produtividade e da poupança”, há muito tempo que ela foi demolida pela própria economia acadêmica. Ver por exemplo Joan Robinson, The Rate of Interest and other Essays, 1951.) Na sociedade burocrática, o volume do investimento depende de uma decisão inteiramente arbitrária da burocracia central, que nunca foi capaz de justificá-la de outro modo senão recitando ladainhas sobre a “prioridade da indústria pesada”. (Em vão procuraríamos nos copiosos trabalhos de Bettelheim a menor tentativa de uma justificação racional qualquer da taxa de acumulação “escolhida” pela burocracia russa. O “socialismo” de tais “teóricos” não significa somente: Stalin (ou Kruschev) é o único que pode saber. Significa também: este saber, segundo sua natureza, não é comunicável ao resto da humanidade. Num outro país, numa outra época, isto se chamava de o Führer-prinzip) Mas se houvesse uma base racional “objetiva” de uma decisão central sobre este assunto, esta decisão seria ipso facto irracional se fosse tomada na ausência dos únicos interessados – o conjunto da sociedade. Ela reproduziria a contradição fundamental de qualquer regime de exploração: trataria os homens no planejamento como uma variável entre outras, de comportamento previsível, transformá-los-ia portanto em objetos em seu princípio teórico e seria rapidamente levada a tratá-los como objetos na prática. Conteria o germe de seu próprio fracasso, porque ao invés de estimular a participação dos produtores na execução do planejamento, afastá-los-ia de um planejamento estranho à sua vontade. Não existe racionalidade “objetiva” que permita decidir, através de fórmulas matemáticas, o futuro da sociedade, de seu trabalho, de seu consumo, de sua acumulação. A única racionalidade neste domínio é a razão viva dos homens, a decisão dos próprios homens a respeito do seu próprio destino.

Mas esta decisão não será um jogo de dados. Apoiar-se-á sobre um conhecimento completo dos dados do problema, será uma decisão com conhecimento de causa.

A possibilidade deste conhecimento resulta da existência, para um determinado estado da técnica, de uma relação determinada entre o investimento e o crescimento da produção que este investimento permite. Esta relação não é nada mais do que o resultado da aplicação dos “coeficientes técnicos de capital” dos quais falamos antes, ao conjunto da economia. Tal investimento nas siderúrgicas permite tal crescimento em seu produto líquido; e tal volume global de investimentos permite tal crescimento líquido do produto social global. Consequentemente, tal ritmo de acumulação permite tal ritmo de crescimento do produto social, portanto, do nível de vida (ou de lazer) – e, finalmente, tal fração do produto consagrada à acumulação permite tal ritmo de crescimento do nível de vida. O problema pode pois ser colocado nestes termos: tal aumento imediato do consumo é possível – mas ele significa que se renuncie a qualquer aumento para os próximos anos. Tal outro aumento, mais limitado, permitiria o crescimento do produto social e portanto também do nível de vida, numa proporção de X% ao ano, e assim por diante. “A antinomia entre o presente e o futuro”, com a qual se deliciam os apologistas do capitalismo e da burocracia ainda permaneceria, mas claramente exposta; e a sociedade poderá resolvê-la, consciente do quadro e das implicações de sua decisão.

(O crescimento líquido do produto social do qual falamos não é evidentemente a soma pura e simples dos crescimentos de cada setor; vários elementos se juntam e se separam para passar desta soma dos crescimentos de cada setor ao crescimento líquido do produto social. Tais são por exemplo as “utilizações intermediárias” dos produtos de cada setor, de um lado, as “economias externas” de outro (um investimento num ramo, ao suprimir um ponto de estrangulamento, pode permitir a utilização em outros setores de capacidades de produção já instaladas e até então desperdiçadas). Mas o cálculo deste crescimento líquido não apresenta nenhuma dificuldade particular; ele é efetuado automaticamente ao mesmo tempo em que se faz o cálculo dos “objetivos intermediários” (matematicamente, a solução de um leva imediatamente à solução do outro).

Havíamos discutido o problema da determinação global do volume dos investimentos; não é o lugar aqui de discutir o problema da escolha dos investimentos particulares. Limitemo-nos a algumas indicações. A repartição dos investimentos por setores é automática uma vez determinado o objetivo final (tal nível de consumo final implica direta ou indiretamente tal ou tal capacidade instalada em cada setor). A escolha de tal tipo de investimento entre vários que levem ao mesmo resultado só pode depender essencialmente das considerações relativas à situação que tal ou tal tipo de equipamento cria para os trabalhadores que o utilizam e, depois de tudo que dissemos, a opinião destes últimos será decisiva. Entre equipamentos equivalentes sob este aspecto (centrais técnicas e hidráulicas, por exemplo), o critério de rentabilidade é sempre aplicável. Lá onde o cálculo da rentabilidade implicar a utilização de uma taxa de juros “contábil”, a sociedade socialista estará ainda em condição de superioridade em relação à economia capitalista: ela utilizará como “taxa de juros” a taxa de expansão da economia, pois pode-se mostrar que estas duas taxas devem ser necessariamente idênticas numa economia racional: von Neumann, 1937).

Finalmente, portanto, todo planejamento submetido à decisão dos trabalhadores deverá especificar:

– A duração de trabalho que implica.

– O nível de consumo durante o primeiro período.

– Os recursos reservados ao investimento e ao consumo público.

– O ritmo do aumento do consumo durante os próximos períodos.

– As tarefas de produção que cabem a cada empresa.

Em várias ocasiões, para simplificar, havíamos apresentado a decisão sobre o objetivo do planejamento e a determinação dos objetivos intermediários (implicações do planejamento quanto a tal e tal produção específica) como dois atos consecutivos e únicos. Mas, na realidade, haverá um vaivém contínuo entre estas duas fases, e pluralidade de proposições. De um lado, os trabalhadores não podem decidir com conhecimento de causa a respeito do objetivo da planificação a não ser que conheçam por si mesmos as implicações, não somente enquanto consumidores, mas enquanto produtores de tal empresa específica. De outro lado, só existe decisão com conhecimento de causa se esta decisão puder levar em conta o conjunto dos possíveis, portanto, se ela for uma escolha que diz respeito a uma gama de objetivos e de implicações. Consequentemente, o processo de decisão tomará a seguinte forma: discussão, pelas Assembleias de empresa, e elaboração, pelos Conselhos, de proposições totais ou parciais referentes aos objetivos e às possibilidades de produção para o próximo período; reagrupamento destas proposições pela central do planejamento, eliminação das proposições irrealizáveis ou que acarretem subemprego não desejados, elaboração das proposições realizáveis (reagrupadas na medida em que forem compatíveis) e de suas implicações sob a forma mais concreta possível (a proposição A implica que a fábrica X aumentará sua produção no próximo ano em r%, por meio de equipamento adicional Y); discussão destas proposições no interior dos Conselhos e das Assembleias, eventualmente contraproposições e repetição do procedimento anterior; discussão final e voto majoritário das Assembleias de empresa.

A gestão da economia

Vimos o que significa a gestão operária da empresa: a supressão do aparelho de direção à parte e a realização das tarefas de direção pelos próprios trabalhadores, organizados sob a forma de Assembleias de uma ou várias oficinas ou escritórios, da Assembleia geral da empresa e do Conselho da empresa.

A gestão operária da economia em seu conjunto não significa igualmente que a direção da economia seja confiada a um aparelho de direção específico, mas que ela pertence aos trabalhadores organizados.

O que expusemos anteriormente mostra que esta direção é perfeitamente realizável. Seu pressuposto é o conhecimento e a exploração das possibilidades da técnica moderna pelos homens; é a utilização consciente de uma série de procedimentos, de meios e de mecanismos, apoiados num conhecimento da realidade da economia, que limpam o terreno e simplificam os problemas essenciais colocados à sociedade. Tais são, de um lado, o “mercado” de bens de consumo, a igualdade dos salários, a ligação entre os preços e os valores. De outro lado, e sobretudo, a existência da “central do planejamento”. A parte de longe a mais extensa dos trabalhos de planificação só diz respeito a tarefas de execução e pode portanto ser confiada a uma empresa mecanizada e automatizada que como tal não tem papel nem função política e que se limita a colocar à disposição da sociedade os diversos planejamentos possíveis e as implicações destes para cada um, tanto do ponto de vista da produção quanto do ponto de vista do consumo.

Efetuada esta limpeza do terreno, e reveladas as orientações coerentes possíveis à população, esta faz a escolha. Cada um pode decidir sobre os objetivos do planejamento com conhecimento de causa, pois conhece por si mesmo as implicações de tal ou tal escolha enquanto consumidor e enquanto produtor. Os elementos do planejamento partiram das diversas empresas como proposições; foram elaborados sob a forma de uma gama de planos coerentes possíveis pela “central do planejamento”; estes planos retornam finalmente às Assembleias de empresa, que o discutem e votam.

Uma vez adotado, o planejamento traça o quadro das atividades econômicas do período que ele cobre e do qual é o ponto de partida. Mas o planejamento não domina a vida econômica da sociedade socialista. Ele é apenas este ponto de partida, constantemente retomado e modificado. A vida econômica – e portanto também total – da sociedade não pode repousar sobre uma racionalidade técnica morta, estabelecida de uma vez por todas. A sociedade não pode alienar-se de suas próprias decisões. Não é apenas que a realidade pode afastar-se, sob vários aspectos, do planejamento mais “perfeito” do mundo. É que a atividade gestionária dos trabalhadores tenderá constantemente, direta ou indiretamente, a modificar ao mesmo tempo os dados e os objetivos do planejamento. Novos produtos, novos meios de produção, novos métodos, novos problemas e também novas dificuldades surgirão constantemente; o tempo de trabalho diminuirá, os preços serão modificados acarretando reações dos consumidores de deslocamento da demanda. Algumas destas modificações afetarão apenas uma empresa, outras afetarão várias, e haverá algumas que sem dúvida repercutirão sobre o conjunto da economia. (Deste ponto de vista, se não fossem falsos, os números que mostram ano após ano a realização dos planejamentos em 101% levariam à mais severa condenação da economia e da sociedade russas. Isto significaria, na verdade, que no espaço de 5 anos, nada se passa no país, que nenhuma idéia original germinou onde quer que seja – ou então, que Stalin as previu todas e as incorporou antecipadamente ao planejamento, deixando, com sua bondade, a alegria ilusória da descoberta aos inventores.) A “central do planejamento”, portanto, não terá de funcionar apenas um dia em cada cinco anos, ela deverá provavelmente funcionar todos os dias, por uma razão ou por outra.

O conteúdo da gestão da economia

Tudo o que dissemos até aqui diz respeito sobretudo à forma da gestão da economia, às instituições e aos mecanismos que asseguram seu funcionamento democrático. Esta forma permitirá à sociedade dar à sua gestão da economia o conteúdo que ela quiser num sentido mais estrito, permitirá orientar livremente o desenvolvimento econômico.

Mas, de tudo aquilo que dissemos, resulta que este desenvolvimento visará fins essencialmente diferentes daqueles que lhe são atribuídos pelos ideólogos e filantropos mais bem-intencionados nas sociedades contemporâneas. Considera-se como algo evidente que a economia ideal é aquela que assegura o ritmo mais rápido de desenvolvimento da produção material e, conjuntamente, de redução da duração do trabalho. Esta idéia, tomada em sentido absoluto, é absolutamente absurda. Mais exatamente, ela não é senão a condensação extrema de toda a mentalidade, a psicologia, a lógica e a metafísica do capitalismo, de sua realidade, bem como de sua esquizofrenia. O trabalho é o inferno – é preciso pois reduzi-lo o máximo possível. Wilson ou Kruschev não podem dar à população nada a não ser automóveis e manteiga. Ê preciso pois que a sociedade seja persuadida de que ela só será feliz se possuir o maior número possível de automóveis, se “alcançar a produção americana de manteiga em três anos”. E quando os homens possuírem os automóveis e a manteiga que puderem utilizar, só lhes restará o suicídio. É o que fazem neste país ideal que se chama Suécia. Esta mentalidade “aquisitiva” que o capitalismo faz viver e que o faz viver, sem a qual não poderia funcionar e que ele leva ao paroxismo, pôde ser uma loucura útil durante uma fase do desenvolvimento da humanidade. Mas morrerá com o capitalismo. A sociedade socialista não será esta corrida absurda atrás de porcentagens de aumento da produção – não será esta a sua preocupação fundamental.

A satisfação das necessidades de consumo, do mesmo modo que uma repartição mais equilibrada do tempo dos indivíduos entre o trabalho produtivo e suas outras atividades, serão sem dúvida objetivos essenciais de uma economia socialista, ao menos durante a sua primeira fase. Mas o desenvolvimento dos homens e das comunidades sociais será o princípio central. Uma parte muito importante do investimento da sociedade será pois sem dúvida orientada para as transformações do equipamento, para a educação universal, para a abolição da divisão entre a cidade e o campo. O desenvolvimento da liberdade no trabalho e das faculdades criadores dos produtores, a criação de comunidades humanas integradas e completas, serão as vias através das quais a humanidade socialista descobrirá um sentido para sua existência – e que lhe permitirão, por acréscimo, realizar toda a força material de que terá necessidade.

A gestão da sociedade

Já vimos o tipo de modificações que serão criadas pela cooperação vertical e horizontal dos Conselhos de empresa, cooperação que será organizada por comitês de indústria formados por delegados das empresas. Uma cooperação análoga será instaurada no plano regional, no quadro dos comitês que representem todas as unidades da região. E, finalmente, esta cooperação deverá instaurar-se no plano nacional, para o conjunto das atividades da sociedade, econômicas ou não. Um órgão central, que será a expressão dos trabalhadores, deverá assegurar, de um lado, as tarefas de coordenação econômica geral, enquanto tais tarefas não estiverem previstas no planejamento, mais exatamente, na medida em que o planejamento estiver sendo constante ou frequentemente modificado (nem que fosse apenas porque a decisão de iniciar a revisão do planejamento deve ser tomada por alguém); de outro lado, as tarefas de coordenação das atividades de outros setores da vida social que entram apenas em parte ou não entram absolutamente na planificação propriamente dita ou em nenhuma espécie de planificação. Este órgão central emanará dos Conselhos, a Assembleia Central dos delegados dos Conselhos, designando em seu seio um Conselho Central, o “governo”.

Esta rede de Assembleias e de Conselhos não é nada mais do que o Estado e o poder da sociedade socialista, todo o Estado, e todo o poder. Não existe nenhuma outra instituição que possa dirigir, que possa tomar decisões determinantes para a vida dos homens. Para se assegurar disto, é preciso mostrar:

a) Que uma tal organização possa abarcar o conjunto da população de uma nação, e não somente a indústria.

b) Que possa organizar, dirigir e coordenar todas as atividades sociais que têm necessidade de ser organizadas, dirigi das e coordenadas, e em particular as atividades não econômicas; em outras palavras, que possa cumprir as funções do “Estado” socialista (que não se deve confundir com as funções do Estado contemporâneo).

Consideraremos em seguida qual pode ser a significação do “Estado”, dos “partidos” e da “política” nesta sociedade.

Os Conselhos, forma exclusiva e exaustiva de organização da população

A organização dos trabalhadores em Conselhos não coloca nenhum problema particular no que se refere à indústria (tomando este termo no sentido mais geral: minas, energia e serviços públicos, manufaturas, transporte e comunicações, construção e trabalhos públicos). A transformação revolucionária da sociedade começará precisamente pela constituição de Conselhos pelos trabalhadores da indústria e é impossível sem ela. Na fase pós-revolucionária de normalização das relações sociais, surgirá o problema da necessidade de reagrupar os trabalhadores de empresas pouco importantes, para facilitar e simplificar sua representação; é claro que este reagrupamento no início será baseado num compromisso entre considerações de proximidade geográfica e de integração industrial. Todavia, este problema tem uma importância reduzida, pois se o número destas empresas é grande, o número de trabalhadores que elas empregam representa apenas uma pequena fração do total dos trabalhadores industriais.

Por mais paradoxal que isto possa parecer, a organização da população em Conselhos pode encontrar um fundamento tão natural no caso da agricultura como no caso da indústria. Tradicionalmente, pensa-se que o campesinato apenas pode criar dificuldades consideráveis ao poder proletário, por causa da sua dispersão, de seu apego à propriedade, de seu atraso político e ideológico. É certo que estes fatores existem, mas não é provável que o campesinato mostrasse uma hostilidade ativa em relação ao poder proletário que tivesse a seu respeito uma política inteligente – ou seja, socialista. O “pesadelo camponês” que atormenta atualmente muita gente resulta da junção de dois problemas completamente diferentes: de uma parte, a relação entre o campesinato e um poder e uma economia socialista no quadro de uma sociedade moderna; de outra parte, a relação entre Estado e o campesinato na Rússia em 1921 e em 1932, ou nos países satélites da Rússia desde 1945 até hoje. A situação que conduziu à NEP na Rússia em 1921 não possui um valor de exemplo histórico para um país mesmo medianamente industrializado, pois não tem nenhuma chance de se repetir. Tratava-se de uma agricultura que não dependia do resto da economia nacional pelos seus meios de produção, e que sete anos de guerra e de guerra civil tinham acabado por fazer fechar-se em si mesma, e à qual se pedia que fornecesse seus produtos às cidades, sem que estas pudessem lhe entregar qualquer coisa em troca. Em 1932 na Rússia como depois de 1945 nos países satélites, assistiu-se a uma resistência absolutamente sadia do campesinato contra a monstruosa exploração que lhe era imposta pelo Estado burocrático no quadro da coletivização forçada.

Num país como a França – entretanto “atrasado” em relação à importância do campesinato -, um poder proletário não precisará temer a greve do trigo, nem organizar expedições punitivas nos campos. Precisamente porque é apegado a seus interesses, o campesinato não se disporá a entrar em luta contra um Estado que poderá como resposta privá-lo imediatamente de gasolina, de eletricidade, de adubos, de inseticidas e de peças de reposição. Ele o faria se fosse levado ao desespero, seja pela exploração, seja pela política absurda de coletivização forçada. Mas a organização socialista da economia significará uma melhora imediata da situação econômica da maioria dos camponeses, mesmo que fosse apenas em função da supressão da exploração que sofrem atualmente por parte dos grandes intermediários. Quanto à coletivização forçada, ela é a antítese exata de uma política socialista no domínio agrícola. A coletivização da agricultura só pode ser o produto do desenvolvimento orgânico do campesinato, auxiliado pela evolução técnica; sob nenhuma condição ela poderia lhe ser imposta pela coerção direta ou indireta (econômica).

O poder socialista começará por reconhecer a mais ampla autonomia dos camponeses na gestão de seus próprios negócios. Ele os convidará a organizar-se em Comunas rurais, que correspondam a unidades geográficas e culturais, que comportem populações aproximadamente iguais. Cada Comuna terá, em relação ao resto da sociedade, e quanto a sua organização política, o estatuto de uma empresa; seu órgão soberano será a Assembleia geral, sua representação permanente o Conselho de camponeses. A Com una rural e seu Conselho terão a responsabilidade da auto-administração local; decidirão, em particular, se quiserem, quando e como quiserem proceder à constituição de cooperativas de produção, sob que estatuto etc. De outro lado, a Comuna e seu Conselho serão responsáveis face ao planejamento e ao governo, e não os camponeses individuais como tais. A Comuna se comprometerá diante do planejamento a entregar tal fração da colheita ou tal quantidade de produtos especificados e receberá quantidades fixas de meios de produção e de dinheiro. Caberá a ela repartir as obrigações e a renda entre seus membros.

(Colocam-se a este respeito certos problemas econômicos complexos, mas não insolúveis, dos quais infelizmente não podemos falar aqui. Eles se resumem no seguinte: como se faz a determinação dos preços agrícolas na economia socialista? A dificuldade reside no fato de que a aplicação de preços uniformes poderá manter desigualdades importantes de renda (“rendas diferenciadas”) entre Comunas rurais ou mesmo entre camponeses da mesma Comuna. A solução completa do problema depende evidentemente da socialização integral da agricultura. Nesse meio-tempo, será preciso realizar soluções de compromisso. Tal poderia ser, por exemplo, a imposição de impostos às Comunas mais “ricas”, combinada a subvenções concedidas às Comunas mais pobres, até atenuar substancialmente essas desigualdades (suprimi-las completamente por este meio equivalente a uma socialização forçada). Note-se que uma parte das diferenças atuais de rendimento provém da manutenção artificial da exploração de solos pobres ou com uma capitalização primitiva, que o Estado capitalista subvenciona por razões políticas. O poder socialista poderá reduzir rapidamente estas distâncias recusando subvencionar atividades não-rentáveis e oferecendo outras soluções aos camponeses afetados – bem como ajudando o equipamento das Comunas sadias porém pobres.)

A situação é análoga àquela que existe na indústria em relação às médias e grandes empresas de serviços (comércio, bancos, seguros, espetáculos – e o conjunto das administrações do ex-Estado[21]).

Ela é análoga àquela que existe na agricultura, no que se refere às mil e uma formas de pequena exploração que subsistem nas cidades (pequeno comércio, serviços “pessoais”, artesanato, certas profissões “liberais” etc.). Aqui também as soluções só podem ser do mesmo tipo, no sentido em que o poder operário não imporá em nenhum caso uma socialização forçada, mas exigirá dessas categorias da população que se agrupem em coletividades (associações ou cooperativas) que serão ao mesmo tempo seus órgãos políticos representativos e as instâncias responsáveis face aos organismos de gestão da economia. Para a indústria socializada, por exemplo, não se trata de abastecer individualmente cada pequeno comerciante ou artesão, mas de abastecer a cooperativa na qual estes se agruparam, e que será responsável pela organização das relações entre seus membros. E, no plano político, a opção destas categorias será a de serem representadas sob a forma de Conselhos, ou de não serem absolutamente representadas, pois não se pode pensar em eleições do tipo francês ou russo. Mas, não se pode ignorar que estas soluções apresentam um grave defeito em relação aos Conselhos das grandes empresas ou mesmo em relação às Comunas rurais: estes últimos não repousam sobre a identidade da profissão (esta seria sobretudo, na medida em que existir, sua fraqueza), mas sobre a unidade de um trabalho e ao mesmo tempo sobre uma vida comum. Eles representam, em outras palavras, unidades sociais orgânicas. Uma cooperativa de pequenos comerciantes ou artesãos, dispersos localmente e separados em seu trabalho e em sua vida, jamais repousaria sobre um parentesco de interesses econômicos no sentido estrito, e nisto também ela será uma herança capitalista que a sociedade socialista deverá eliminar o mais cedo possível. A solução será dada em parte pela absorção rápida de uma parte destas categorias da população, hoje hipertrofiadas, pelas outras ocupações, e em parte pela ajuda que a sociedade lhes poderá trazer para fundar empresas importantes, geridas em comum.

É preciso repetir, a respeito destas categorias, o que já havíamos dito sobre os camponeses: não possuímos nenhuma experiência de sua atitude face a um poder socialista. Elas são sem dúvida, de início e até um certo grau, apegadas à “propriedade”. Mas até que ponto? O que sabemos é como elas reagiram quando o stalinismo quis fazê-las entrar à força num campo de trabalhos forçados, não numa sociedade socialista. Uma sociedade que, deixando-lhes uma grande autonomia quanto aos seus próprios problemas, organizará racionalmente sua integração na economia, fornecer-lhes-á o exemplo de uma gestão socialista e as ajudará positivamente se elas quiserem caminhar para a socialização, gozará junto delas de um outro prestígio e terá sobre sua evolução uma influência diferente daquela de uma burocracia explorada e totalitária, que por todos os seus atos apenas reforçou o “apego à propriedade” destas classes e as fez retroceder séculos.

Os Conselhos, forma universal de organização das atividades sociais

As células de base da organização social que acabamos de considerar não são absolutamente simples órgãos de gestão da produção. São ao mesmo tempo e sobretudo órgãos da auto-administração da população sob todos os seus aspectos: de um lado os órgãos da auto-administração local, de outro lado, as únicas articulações do poder central, que existe apenas como federação e reagrupamento da totalidade dos Conselhos.

Dizer que o Conselho de empresa será o órgão de auto-administração dos trabalhadores e não somente de gestão da produção, significa simplesmente reconhecer que a empresa não é apenas uma unidade de produção, mas uma célula social, que ela se tornou o principal lugar de “socialização” dos indivíduos no qual tende a acontecer uma série de atividades diferentes do simples “ganha-pão”: cantinas, cooperativas, colônias de férias, clubes, bibliotecas, lazer, casas de -saúde ou de repouso, onde se atam os mais importantes laços humanos, tanto no plano privado quanto no plano “público”. O indivíduo moderno é ativo, como indivíduo público, na medida em que é muito mais ativo no que diz respeito à sua atividade sindical ou política na empresa do que como “cidadão” abstrato que a cada quatro anos coloca uma cédula numa urna. A transformação das relações de produção e da própria natureza do trabalho só poderá, aliás, reforçar enormemente a significação doravante exclusivamente positiva – da comunidade dos trabalhadores para cada indivíduo que a ela pertence.

Consequentemente, o Conselho de empresa ou a Com una rural absorverá a totalidade das funções “municipais” atuais e várias outras que a monstruosa centralização do Estado contemporâneo subtrai aos órgãos locais com o único objetivo de assegurar melhor o controle da classe dominante e de sua burocracia central sobre a população. Entram aqui todos os serviços e empresas “municipais” e “comunais”, bem como o exercício direto da “polícia” (pelos destacamentos de trabalhadores armados designados em sistema de rodízio), o da justiça de primeira instância e o controle da educação nas suas primeiras fases.

É certo que os dois agrupamentos – produtivo e local – não coincidem atualmente em muitos casos: as habitações nem sempre estão concentradas em torno do local de trabalho. Na medida em que esta distância não existir ou for negligenciável – como é o caso de muitas cidades ou bairros industriais ou de Comunas rurais -, gestão da produção e auto-administração local serão efetuadas pelas mesmas Assembleias gerais e os mesmos Conselhos. Em contrapartida, na medida em que existir uma distância importante, será necessário que Conselhos locais (sovietes) sejam instituídos, representando ao mesmo tempo as diversas empresas da localidade e os habitantes como tais. Na primeira fase, tais Conselhos locais serão necessários em muitos casos. Mas é preciso concebê-las como órgãos “laterais” encarregados de negócios locais, em cooperação, no nível local e nacional, com os Conselhos de produtores que são os únicos que representam as instâncias de poder.

(Se bem que a palavra em russo signifique “conselho”, o soviete russo não deve ser confundido com o Conselho do qual temos falado ao longo de todo este texto. Este último baseado na empresa, pode exercer tanto um papel político quanto um papel de gestão da produção. Ele é em essência um organismo universal. O Soviete (conselho) dos Deputados Operários de Petrogrado em 1905, que se originou da greve geral, embora exclusivamente formado de operários, permaneceu um órgão unicamente político. Os sovietes de 1917, na maioria das vezes baseados na localidade, eram instituições puramente políticas no seio das quais realizava-se a frente única de todas as camadas populares que se opunham ao antigo regime. (Ver Trotsky, 1905 e Histoire de Ia Révolution russe.) Seu papel correspondia às condições do país, em particular a~ “atraso” da economia e da sociedade russas e aos elementos “burgueses democráticos” da revolução de 1917. Como tais, pertencem ao passado. A forma normal de representação dos trabalhadores na época atual é incontestavelmente o Conselho de empresa.)

O problema colocado pela distância entre estes dois tipos de agrupamentos poderia ser resolvido quase imediatamente através de mudanças organizadas dos locais de habitação dos trabalhadores. Mas este é apenas um dos aspectos da questão. Na verdade, trata-se de um dos problemas fundamentais que serão colocados à sociedade socialista e que põe em causa sua orientação geral por decênios. A concentração das habitações ao redor dos locais de produção – ou o contrário – coloca toda a questão dos aspectos econômicos, sociais e humanos do urbanismo no sentido mais profundo do termo, e finalmente o próprio problema da divisão entre a cidade e o campo. Não devemos entrar neste terreno, mas simplesmente assinalar que a sociedade socialista não poderá considerar estes problemas, desde o início, senão como problemas totais, que comprometem todos os aspectos da vida dos indivíduos e de sua própria organização econômica, política e cultural.

O que dissemos sobre a auto-administração local estende-se sem dificuldade ao nível regional. Federações regionais dos Conselhos de empresa e das Comunas rurais serão encarregadas da coordenação das atividades destes Conselhos na escala regional e da organização das atividades que só aparecem nesta escala.

A industrialização do “Estado”

Acabamos de ver que uma série de funções do Estado atual serão confiadas aos órgãos de auto-administração da população, e isto não diz respeito somente às funções “territoriais” – locais ou regionais. Mas o que acontecerá com as funções verdadeiramente “centrais” do Estado, aquelas que dizem respeito, por seu conteúdo, ao conjunto da vida nacional de maneira indivisível?

Numa sociedade de classe, e em todo caso na sociedade capitalista “liberal” do século XIX, a função última do Estado é a de garantir pelo monopólio legal da violência, a manutenção das relações sociais existentes. Neste sentido, Lênin tinha razão. retomando a expressão de Engels, em afirmar contra os reformistas de sua época que o Estado não era nada mais do que “os destacamentos especializados de homens armados e as prisões”. Ao mesmo tempo. era claro o destino deste Estado quando houvesse uma revolução: este aparelho de Estado deveria ser destruído, os “destacamentos especializados de homens armados” dissolvidos e substituídos pelo efetivo do povo. a burocracia permanente abolida e substituída por funcionários eleitos e revogáveis.

Esta situação faz com que, para muita gente, o mito do “Estado como encarnação da Ideia absoluta”, ridicularizado por Engels, seja substituído pelo mito do Estado como encarnação inexorável da ‘centralização e da “racionalização técnica” da vida social moderna. Isto conduz alguns, de um lado, a considerar como utópicas, ultrapassadas ou inexplicáveis as conclusões que Marx, Engels ou Lênin tiraram da análise teórica do Estado e da experiência das revoluções de 1848, de 1871 ou de 1905; de outro lado, a engolir tranquilamente a realidade do Estado russo, por exemplo, que constitui (não no que ele esconde – o terror policial e os campos de concentração -, mas no que ele proclama oficialmente em sua Constituição) a negação mais total que se possa imaginar da concepção marxista do “Estado” socialista e a exacerbação mais monstruosa das características do Estado capitalista as mais violentamente criticadas por Marx ou Lênin (separação radical entre governantes e governados, inamovibilidade dos funcionários, tratamentos e privilégios destes funcionários incomparavelmente superiores aos de qualquer Estado burguês etc.).

Mas esta evolução contém nela mesma o germe da solução. O Estado moderno tornou-se uma imensa empresa – a empresa de longe a mais importante na sociedade moderna. Ele só pode realizar suas funções de direção na medida em que foi transformado numa enorme constelação de aparelhos de execução, no interior dos quais o trabalho tornou-se um trabalho coletivo, dividido e especializado. Existe aqui, numa escala muito maior, o mesmo desenvolvimento sofrido pela direção da produção nas empresas particulares. Em sua imensa maioria, as administrações públicas apenas cumprem tarefas específicas, e são, propriamente ditas, empresas especializadas em tal ou tal categoria de trabalhos (dos quais alguns são socialmente necessários e outros puramente parasitários ou tornados necessários pela estrutura de classe da sociedade); o “poder” não tem mais ligação intrínseca com estes trabalhos do que com a produção de automóveis, por exemplo. A noção de “poder” e de “direito administrativo” que permanece associada àquilo que na realidade é uma série de “serviços públicos” é uma herança jurídica sem conteúdo real, cuja única função é a de proteger a arbitrariedade e a irresponsabilidade das cúpulas burocráticas[22].

Nestas condições, a solução não se encontra na “eleição e na revogabilidade dos funcionários”; esta, na maioria dos casos, não é nem necessária – estes funcionários não exercem nenhuma espécie de poder – nem possível – eles são trabalhadores especializados e não se poderia elegê-los mais do que aos torneiros ou aos médicos. A solução consistirá no fato de que a maior parte das administrações do Estado atual serão pura e simplesmente industrializadas, o que não será, muito frequentemente, nada mais do que o reconhecimento explícito e a dedução das consequências de um estado de fato já realizado. Esta industrialização significa concretamente:

a) A transformação explícita destas “administrações” em empresas com o mesmo estatuto das outras empresas, no interior das quais o processo de mecanização e de automatização do trabalho poderá ser sistematicamente desenvolvido num grande número de casos.

b) A gestão destas empresas pelo Conselho de trabalhadores que elas empregam e a autonomia destes trabalhadores quanto às modalidades de organização do seu próprio trabalho. (A formação de Conselhos de trabalhadores das administrações do Estado era uma das reivindicações dos Conselhos operários húngaros.)

c) A limitação destas empresas a sua função de empresas, ou seja, às tarefas de execução que lhes incumbem e cujo objeto e orientação geral são definidos pela sociedade.

Vimos que tal será o caso da “central do planejamento”. Sê-lo-á igualmente para tudo aquilo que subsistirá – ou poderá ser utilizado após transformação – das administrações atuais relativas à economia (finanças, comércio exterior, agricultura, indústria etc.) O mesmo se pode dizer de uma série de funções do Estado que já são propriamente industriais (trabalhos públicos, transportes e comunicações, saúde pública e previdência social etc.). É finalmente também o caso da educação.

O poder central: Assembleia e Governo dos Conselhos

Aquilo que subsiste das funções do Estado divide-se em três categorias: as bases materiais do poder ou da coerção, os “destacamentos especializados de homens armados e as prisões” – em outras palavras, o exército e a justiça; a “política” no sentido estrito do termo, interior e exterior – ou seja, os problemas que a oposição ao regime ou a manutenção de regimes de exploração em outros países poderão colocar ao poder operário; e, enfim, a verdadeira política, a visão global, a coordenação e a orientação do conjunto das atividades sociais.

No que diz respeito ao Exército, é evidente que os “destacamentos especializados de homens armados” serão suprimidos e substituídos pelo efetivo do povo. Os trabalhadores das empresas e das Comunas formarão unidades de um exército não mais permanente, mas territorial, com cada Conselho tendo o cargo de polícia da região. Reagrupamentos regionais permitirão a integração das unidades locais e a utilização racional do armamento “pesado”. Em que medida certas formas de armamento “estratégico”, que só podem ser utilizadas centralmente, permanecerão ou não necessárias, isto não pode ser decidido a priori; no caso afirmativo, cada Conselho deverá contribuir com um contingente para a formação de certos serviços militares centrais, que estarão sob o controle da Assembleia Central dos Conselhos. É claro que não somente os meios, mas também a concepção do conjunto da guerra para um país socialista não podem ser copiados dos de um país imperialista, e vale também para a técnica militar o que já dissemos sobre a tecnologia capitalista: não existe técnica militar neutra, não existe bomba atômica a serviço do socialismo. Foi Ph. Guillaume quem demonstrou claramente que uma revolução proletária deve necessariamente elaborar uma estratégia própria e métodos que sejam conformes a seus fins sociais e humanos (ver “La guerre et notre époque”, nos números 3 e 5-6 de Socialisme ou Barbarie). A necessidade de armamentos ditos “estratégicos” não é, pois, absolutamente evidente para um poder revolucionário.

No que se refere à justiça, ela será confiada aos organismos de base, e cada Conselho será o tribunal de primeira instância para as infrações cometidas em sua alçada. Regras de procedimentos estabelecidos pelo conjunto dos Conselhos, como pode ser igualmente o direito de apelo ao Conselho regional ou à Assembleia central, garantirão os direitos individuais. Não poderia se tratar aqui de Código Penal, nem de estabelecimentos penitenciários, a própria noção de “pena” é absurda do ponto de vista de uma sociedade socialista; os julgamentos só poderão visar à reeducação do delinquente e sua reintegração no meio social. A privação de liberdade só tem sentido se se julgar que o indivíduo constitui um perigo permanente para os outros e, neste caso, não são os estabelecimentos penitenciários, mas as instituições essencialmente “pedagógicas” e “médicas” (psiquiátricas) que deverão se encarregar dele.

Os problemas políticos – tanto no sentido estrito quanto no sentido amplo – são problemas que dizem respeito ao conjunto da população e só ela está habilitada a resolvê-los. Mas ela só pode resolvê-los se for organizada para este fim. (Atualmente, tudo está organizado para impedir que a população seja capaz de resolver os problemas políticos e para persuadi-la de que somente os especialistas do universal – os políticos -, que geralmente não têm nada de universal a não ser sua ignorância de qualquer realidade particular – possuem as soluções.) Esta organização comportará, de um lado, o Conselho e a Assembleia geral dos trabalhadores de cada empresa, espaço coletivo que vive da formação e da luta de opiniões e instância soberana para qualquer decisão política; de outro lado, ela comportará uma instituição central, emanação direta dos organismos de base, a Assembleia Central dos Conselhos. A existência de uma tal instância central é evidentemente necessária não somente em função de questões que exigem uma decisão imediata (só com o inconveniente de que esta decisão seja em seguida ratificada ou recusada pela população), mas sobretudo porque uma preparação, um esclarecimento e um–;’informação anteriores à decisão são quase sempre indispensáveis, e que convidar a população a se pronunciar sem esta preparação seria frequentemente apenas uma mistificação equivalente à negação da democracia (enquanto negação da possibilidade de se pronunciar com conhecimento de causa). É preciso que exista uma forma pela qual os problemas sejam submetidos à discussão e à decisão da população, uma decisão sobre o momento em que se encontram etc. Como já dissemos acima, estas funções não são absolutamente “técnicas”, elas são essencial e profundamente políticas, a instância que as realiza é perfeitamente um poder central (embora muito diferente, na sua estrutura e no seu papel, do poder central atual) e não há sociedade socialista que possa dispensá-la.

A questão real não é a da existência ou não de uma tal instância, mas a de sua organização de tal modo que ela não encarne mais a alienação do poder político da sociedade nas mãos de um corpo especializado, mas que seja a expressão e o instrumento deste poder político. E isto é perfeitamente realizável nas condições da sociedade moderna.

A Assembleia Central dos Conselhos será formada pelos delegados dos organismos de base (ou por agrupamentos destes organismos, empresas, Comunas rurais etc.), eleitos diretamente pelas Assembleias gerais destes organismos e revogáveis a qualquer momento. Estes delegados – tanto quanto aqueles dos Conselhos de empresa – não deixarão a produção. Reunir-se-ão em sessão plenária tão frequentemente quanto for necessário; é certo que reunindo-se dois dias por semana ou uma semana por mês poderão realizar uma quantidade maior de trabalho efetivo do que o fazem os parlamentos atuais (que, para dizer a verdade, não realizam nenhum). Deverão prestar contas de seu mandato periodicamente (uma vez por mês, por exemplo) à empresa ou às empresas que representarão. (Na França, esta Assembleia poderia ser formada por 1.000 a 2.000 delegados – um delegado para cada 10.000 ou 20.000 trabalhadores. Um compromisso deve ser realizado entre duas exigências: como Assembleia de trabalho, esta Assembleia não deve ser numerosa; de outro lado, ela deve fornecer a representação a mais ampla e a mais direta dos meios dos quais saiu.) Eles designarão em seu seio ou formarão em sistema de rodízio o Governo, permanência de algumas dezenas de membros encarregados de preparar o trabalho da Assembleia, de agir em seu lugar quando esta não estiver em sessão e de convocá-la extraordinariamente se for necessário.

Se o Governo toma decisões quando pode e deve submeter as questões à Assembleia, ou decisões que esta desaprova, ele é responsável perante a Assembleia e se expõe às suas sanções. Se a Assembleia tomar indevidamente decisões no lugar das Assembleias de empresa ou decisões contrárias à vontade destas, seus membros serão responsáveis perante seus mandantes e se expõem às sanções de sua parte (sendo a primeira destas sanções a revogação do mandato). Nem o Governo nem a Assembleia podem perdurar, pois eles não têm poder próprio, são revogáveis e, finalmente, os trabalhadores das empresas estão armados. Mas se a Assembleia deixar o Governo agir por própria conta ou se os trabalhadores deixarem os delegados da Assembleia agirem também por própria conta, evidentemente não haverá mais nada a fazer. A população só pode exercer o poder político se quiser exercê-lo. Esta organização faz simplesmente com que a população possa exercer o poder, desde que ela o queira.

Mas esta vontade em si mesma não é uma força oculta, que aparece ou desaparece de maneira explicável. A alienação política na sociedade capitalista não é somente a existência de instituições que pela sua estrutura tornam “tecnicamente” impossível a expressão e o exercício da vontade política do povo. A alienação política atual consiste no fato de que esta vontade é cortada em sua raiz, que sua própria formação é impedida, que finalmente o interesse pela coisa pública é totalmente suprimido. Nada possui uma ressonância tão sinistra quanto as queixas dos democratas liberais sobre a “apatia política do povo”, apatia que seu regime político e social recriaria cada dia se ela já não existisse. Esta supressão da vontade política nas sociedades modernas resulta tanto do conteúdo da política atual quanto do seu modo de expressão e da distância intransponível que a separa da vida real das pessoas. Seu conteúdo é o de melhor organizar a sociedade de exploração, ou seja, a exploração da sociedade. Seu modo de expressão é necessariamente a mistificação, pela mentira direta ou pela abstração. O mundo no qual se desenrola é o mundo dos “especialistas”, das combinações secretas e da falsa técnica oculta.

Todas estas condições serão radicalmente modificadas numa sociedade socialista. Suprimida a exploração, o conteúdo da política será a melhor organização da vida em comum. Uma atitude diferente dos indivíduos perante a coisa pública será a consequência imediata destas modificações, pois os problemas políticos serão os problemas próprios de cada um, quer se trate da empresa ou da vida nacional, e a atitude do indivíduo diante destes problemas terá uma função e resultados perceptíveis para cada um. A distância que separa as “esferas políticas” da vida real das pessoas será totalmente suprimida.

Estes pontos merecem algumas explicações. Quer se trate do modo de expressão e do conteúdo da atividade política, quer da distância que a separa da vida real e dos interesses das pessoas, pretende-se hoje em dia que todos os aspectos destes fenômenos sejam dominados por uma evolução técnica irreversível, que suprima qualquer possibilidade real de democracia[23]. O conteúdo da política – a direção da sociedade – tornou-se, costuma-se dizer, altamente complexo, e abarca uma quantidade extraordinária de dados e de problemas dos quais cada um só pode ser dominado em função de uma avançada especialização. Isto posto, é evidente que estes problemas jamais poderiam ser expostos ao público de modo compreensível, ou então só poderiam sê-lo à custa de simplificações que as deformam totalmente. Como se espantar pois que o grande público não se interesse mais pela política do que pelo cálculo infinitesimal?

Se estes argumentos, apresentados como a última novidade da sociologia política, mas na realidade tão velhos quanto o mundo (eles são longamente discutidos por Platão, e o Protágoras lhes é em parte consagrado), provassem alguma coisa, provariam não que a democracia é impossível, mas que a direção da sociedade enquanto tal, seja qual for a sua forma, é impossível. Pois o político deveria ser então a encarnação do Saber absoluto e total. Nenhuma especialização técnica, por mais avançada que seja, qualifica seu possuidor para o domínio de disciplinas que não sejam a sua. Uma assembleia de técnicos, na qual cada um representaria o ponto mais avançado do saber em seu ramo, não teria competência, enquanto assembleia de técnicos, para resolver nenhuma questão. Um único indivíduo poderia pronunciar-se sobre um único problema específico, e absolutamente ninguém poderia se pronunciar sobre problemas gerais.

Nem a sociedade atual é dirigida pelos técnicos como tais (e jamais poderia sê-lo), nem aqueles que a dirigem encarnam o Saber absoluto – mas sobretudo a incompetência generalizada. De fato, aliás, a sociedade atual não é dirigida, ela evolui ao deus-dará. Exatamente como no caso da direção na cúpula do aparelho burocrático de uma grande empresa, a “direção política” atual apenas pronuncia sentenças arbitrárias – optando em meio às opiniões dos diversos serviços técnicos que a “servem” e que não pode absolutamente dominar. Neste aspecto, recebe de volta o choque de seu próprio sistema e vive na mesma alienação política que impõe ao resto da sociedade. O caos de sua organização social e o desenvolvimento de cada setor por si próprio lhe tornam impossível o exercício racional (de seu próprio ponto de vista) do poder que detém[24].

Se estamos discutindo este sofisma, é porque ele nos coloca no caminho de uma verdade importante. Exatamente como no caso da produção, coloca-se em questão a técnica e a “tecnicização” modernas em geral, em vez de ver que se trata da tecnologia capitalista específica. Como no caso da produção, e também no caso da política, o capitalismo significa não somente a utilização para fins capitalistas das técnicas “em si neutras”, mas a criação e o desenvolvimento de técnicas específicas que tenham por objetivo a exploração e a alienação política do cidadão. Se, no plano da produção, o socialismo vai significar a transformação consciente da tecnologia, a fim de colocar a técnica a serviço do homem, no plano político o socialismo significará uma transformação análoga, a fim de colocar a técnica a serviço da democracia.

A técnica política é essencialmente a técnica da informação e da comunicação. Tomamos aqui estas palavras em seu sentido mais amplo: os meios materiais de informação e de comunicação são apenas uma parte das técnicas correspondentes. Colocar a técnica da informação a serviço da democracia não significa somente colocar os meios materiais de expressão à disposição da população (o que é certamente fundamental) nem coincide com a difusão de todas as informações de qualquer maneira. Isto significa primeiramente colocar à disposição dos homens os elementos necessários para que eles possam tomar decisões com conhecimento de causa – os elementos que os homens julguem necessários. Isto significa traduzir fielmente, num número limitado e compacto de elementos significativos para cada um os dados essenciais dos problemas que devem ser resolvidos. Já pudemos acima dar um exemplo preciso de uma tal informação quando falamos sobre planificação. A verdadeira informação não consistiria em lançar uma biblioteca de economia, de tecnologia e de estatística sobre a cabeça de cada habitante; a informação que daí resultaria seria estritamente nula. A informação que será fornecida pela “central de planejamento” será ao mesmo tempo compacta, significativa, suficiente e fiel: cada um saberá o trabalho que deverá realizar, o consumo do qual poderá gozar se tal ou tal variante do planejamento for adotada. Eis como a técnica (no caso, a análise econômica, a estatística e a calculadora eletrônica) pode ser colocada a serviço da democracia num setor decisivo. Não existe uma “cibernética política” que possa definir os elementos necessários à tomada de uma decisão; só os homens podem determinar estes elementos.

O mesmo vale para a técnica da comunicação. Pretende-se que as próprias dimensões da sociedade moderna tornem impossível o exercício da democracia. As distâncias e os números excluiriam doravante a democracia direta e só seria possível uma democracia representativa, que contém sempre um elemento de alienação do poder político dos representados aos representantes.

De fato, há várias maneiras de conceber e de realizar a democracia representativa – o Parlamento é uma delas, o Conselho é outra, e é difícil conceber a alienação política no seio de um Conselho que funcione segundo sua própria regra. Mas se os meios de comunicação modernos forem colocados a serviço da democracia, os campos nos quais a representação parece inevitável poderão sofrer uma redução enorme. As distâncias materiais são menores na França do século XX do que o eram na Ática do século V antes de Cristo; o alcance da voz do orador – portanto também o número de participantes de uma assembleia – era antes limitado pela potência das cordas vocais, e hoje não é limitado por nada[25]. As distâncias, do ponto de vista da comunicação das ideias, não foram reduzidas; elas deixaram de existir. Se a sociedade considerasse necessário, poderia realizar amanhã mesmo uma Assembleia geral da população francesa; bastaria para isto colocar em contato entre si, pela rádio-televisão (multiplex), as Assembleias gerais das empresas e as comunas. Ligações análogas mais restritas poderiam ser realizadas numa série de casos. De qualquer maneira, as sessões da Assembleia Central dos Conselhos e do Governo poderiam ser transmitidas por rádio e televisão – o que, combinado à revogabilidade dos delegados, manteriam as instituições centrais sob o controle permanente dos trabalhadores e alteraria profundamente a própria noção de “representação”. (Poderíamos evidentemente nos divertir transmitindo por rádio e televisão as sessões do Parlamento atual; isto seria um excelente meio de fazer baixar a venda de aparelhos de rádio e de televisão.)

Dir-se-á que o problema dos números ainda permanece, e que as pessoas jamais poderão exprimir-se num tempo razoável. Mas: 1º) em nenhuma assembleia que tenha mais de 15 ou 20 pessoas a totalidade dos participantes se manifesta; a proporção de pessoas que pedem a palavra declina rapidamente com o número de participantes. A razão disto é clara; 2º) as opiniões possíveis não variam ao infinito, nem os argumentos. Nas reuniões livres de operários, organizadas por exemplo para decidir uma greve, jamais houve dificuldades devidas ao número de intervenções; com duas ou três opiniões fundamentais sendo expressas, e alguns argumentos discutidos, passa-se à decisão.

A extensão dos discursos é, com maior frequência, inversamente proporcional a seu peso. Benoit Franchon falou no último congresso da CGT durante quatro horas (Le Monde, 19 de junho de 1957) para não dizer nada. O discurso do éforo que persuadiu os espartanos a fazer a guerra do Peloponeso coube em vinte e uma linhas de Tucídides (I.86); sobre o laconismo das assembleias revolucionárias, ver a descrição das sessões do Soviete de Petrogrado feita por Trotsky (1905, p. 97) e a de uma reunião dos representantes das fábricas de Budapeste durante a revolução húngara feita por um participante (no número 21 de Socialisme ou Barbarie, pp.91-92).

Em resumo: lamenta-se que a extensão da cidade moderna, comparada à da cidade de outrora – dezenas de milhões em vez de dezenas de milhares – torne impossível a democracia direta, em lugar de observar, em primeiro lugar, que a época moderna recriou o meio orgânico no qual é preciso recomeçar a instaurar esta democracia, a saber, a empresa; em seguida, que ela criou e ainda pode desenvolver indefinidamente os meios de uma verdadeira democracia na escala de dezenas de milhões. Aos problemas de uma sociedade supersônica, só se veem respostas nesta diligência postal da maquinaria política que é o Parlamento – e conclui-se daí que a democracia se tornou impossível. Pretende-se fazer uma análise “nova” – e ignora-se o que existe de verdadeiramente novo na época atual: a liberdade de transformação do mundo material, a técnica, e seu portador vivo que é o proletariado.

“Estado”, “partidos”, “política”

O que são “Estado”, “Política” e “Partidos” numa tal sociedade?

Já vimos o que é o “Estado”. Há um “Estado” na medida em que ainda não há “administração pura e simples das coisas”, onde existe sempre a possibilidade de coação a indivíduos ou grupos, onde a decisão da maioria impõe-se à decisão da minoria, onde subsistem limitações à liberdade dos indivíduos. Não existe mais Estado na medida em que os organismos que exercem o poder não são nada mais do que as organizações produtivas locais da população, onde as instituições de organização da vida social são apenas um aspecto desta mesma vida, onde aquilo que subsiste das instâncias centrais está sob o controle direto e permanente dos organismos de base. Esta é a situação inicial. O desenvolvimento da sociedade só poderá trazer uma atrofia rápida (o “perecimento”) dos traços “estatais” da organização social: as razões do exercício da coerção desaparecerão gradualmente, o campo do exercício da liberdade dos indivíduos ampliar-se-á. (É claro que não falamos aqui das “liberdades democráticas” formais, que a sociedade socialista poderá, no total, ampliar consideravelmente desde seus primeiros tempos, mas das liberdades essenciais – não do direito à vida, mas do direito de fazer o que se quiser da própria vida.)

A política numa tal sociedade, desembaraçada da desordem e da mistificação atuais, nada mais é do que a procura, a discussão e a adoção de soluções aos problemas de caráter geral que digam respeito ao futuro da sociedade – quer se trate de economia, de educação ou de relações internas entre as diversas categorias e classes sociais. Estas decisões se referem ao conjunto da população – e lhe pertencem.

Sobre estes problemas políticos, é provável e mesmo certo que haverá orientações diferentes, das quais cada uma será ou desejará ser sistemática e coerente; haverá pessoas que partilharão estas orientações, e que se encontrarão dispersas local e profissionalmente. Estas pessoas se agruparão para defender suas orientações – em outras palavras, formarão os partidos. Os Conselhos, em escala nacional, deverão decidir se consideram a orientação de tal ou tal partido compatível com o estatuto da nova sociedade e, portanto, se este partido pode funcionar legalmente.

Seria inútil tentar dissimular que existe uma contradição entre a existência de partidos e a função dos Conselhos. É impossível que os dois se desenvolvam simultaneamente. Se os Conselhos cumprirem sua função, eles serão o lugar principal não somente de confrontação, mas de formação das opiniões políticas. Ora, um partido é sempre um lugar exclusivo de formação da opinião dos militantes – ao mesmo tempo um polo exclusivo de sua lealdade. A existência paralela de Conselhos e de partidos significa que uma parte da vida política real se desenvolverá fora dos Conselhos, e que as pessoas tenderão a agir nos Conselhos em função de decisões tomadas fora deles. Se esta tendência devesse predominar, causaria rapidamente a atrofia e finalmente o desaparecimento dos Conselhos. Inversamente, o desenvolvimento socialista poderá ser caracterizado pela atrofia progressiva dos partidos.

Esta contradição não pode ser suprimida por uma penada, ou por disposições “estatutárias”. A existência de partidos traduz a persistência de traços herdados da sociedade capitalista – e, muito particularmente, a persistência de interesses divergentes e de ideologias que lhes correspondem, mesmo após seu desaparecimento. As pessoas não formarão partidos a favor ou contra a teoria dos quanta, nem a partir de simples divergências de opinião sobre tal ou qual ponto particular. A vida ou a atrofia dos partidos será a medida exata da capacidade do poder operário de unificar a sociedade.

O que constitui os partidos não é a divergência de opiniões como tal, mas a divergência sobre pontos fundamentais e a unidade mais ou menos sistemática de cada “conjunto de opiniões”, em outras palavras, uma orientação de conjunto que corresponda a uma ideologia mais ou menos definida, que por sua vez decorre da existência de situações sociais que conduzem a aspirações contraditórias. Enquanto existirem estas situações, e as aspirações que elas suscitam forem assim “projetadas” politicamente, não se poderá “suprimir” os partidos – e na medida em que elas desaparecerem será absurdo pensar que se formarão novos partidos a partir de “divergências” em geral.

Se existirem partidos que exprimem a sobrevivência de interesses ou de ideologias divergentes, existirá igualmente um partido operário socialista, partidário desta orientação. Ele será aberto a todos os partidários do poder dos Conselhos e diferenciar-se-á de todos os outros, ao mesmo tempo em seu programa e em sua prática, precisamente neste aspecto: sua atividade fundamental terá como objetivo apenas que os Conselhos concentrem todo o poder e que eles se tornem os únicos centros da vida política. Isto implica portanto que ele lutará contra a detenção do poder por um partido particular, seja ele qual for.

Com efeito, é evidente que a estrutura democrática do poder na sociedade socialista exclui o fato de que um partido “detenha o poder” – estas palavras não têm mais sentido no quadro que descrevemos. Na medida em que grandes correntes de opinião se formam e se separam a respeito de questões importantes, é possível que os que sustentam a opinião majoritária sejam eleitos aos Conselhos com maior frequência do que outros etc. (O que não é, todavia, fatal, pois um delegado a um Conselho é eleito essencialmente sobre uma base de confiança total que não depende necessariamente de sua tomada de posição sobre tal ou tal questão.) Mas os partidos não serão organismos que pretendam o poder; e a Assembleia Central dos Conselhos não será um “parlamento operário”; as pessoas não serão a ela designadas enquanto membros de um partido. O mesmo vale para o Governo extraído desta Assembleia[26].

O papel de um partido operário socialista será sem dúvida grande no início; terá de defender de modo sistemático e coerente esta concepção, deverá empenhar-se numa luta importante para desmascarar e denunciar as tendências burocráticas, não de um modo geral, mas onde elas se apresentarem concretamente. Do mesmo modo – e talvez sobretudo -, ele será o único capaz, no início, de indicar rapidamente os caminhos e os meios de organização e de dominação da técnica e dos técnicos, permitindo a estabilização e o florescimento da democracia operária. O trabalho do partido poderá, por exemplo, acelerar consideravelmente a construção dos mecanismos de planificação democrática que analisamos acima. De fato, o partido é a única forma sob a qual pode realizar-se, já na sociedade de exploração, uma fusão entre intelectuais e operários – fusão que de outra maneira esta sociedade torna impossível – e que possa portanto permitir a rápida colocação da técnica a serviço do poder operário.

Mas se, alguns anos após a revolução, o partido “continuar a se desenvolver”, isto será o mais certo sinal de que ele está morto enquanto partido operário socialista.

As liberdades e a ditadura do proletariado

o problema das liberdades políticas se apresenta sob dois aspectos: a liberdade das organizações políticas e os direitos das diferentes categorias sociais.

Somente os Conselhos, em escala nacional, podem julgar o caráter admissível ou não das atividades de uma organização política. O critério de fundo que deverá guiá-los neste julgamento só pode ser o seguinte: a organização em questão visa a restauração de um regime de exploração – em outras palavras, ela visa a supressão do poder dos Conselhos? Se julgarem que este é o caso, os Conselhos terão o direito e o dever de se defenderem, proibindo estas atividades. Ê claro que este critério está longe de oferecer automaticamente uma resposta em cada caso preciso – mas é igualmente claro que uma tal resposta automática não pode existir, e que os Conselhos terão em cada caso a responsabilidade da resposta, entre dois riscos igualmente grandes: deixar agir impunemente os inimigos do socialismo que visam destruí-lo – ou destruir-se a si mesmos através de restrições extremas à liberdade política. E não se deve minimizar o alcance deste problema dizendo que uma corrente política, por pouco que seja importante, só pode ser representada nos Conselhos: é perfeitamente concebível e mesmo infinitamente provável que existirão tendências no seio dos Conselhos que oporão resistência ao poder total dos Conselhos.

A “legalidade dos partidos soviéticos” através da qual Trotsky acreditava, em 1936, dar uma resposta a este problema, na verdade não o resolve absolutamente. Se o único risco para a sociedade socialista fosse aquele provocado pelos partidos burgueses “restauracionistas”, é provável que, não encontrando apoio nas Assembleias operárias, estes partidos fossem automaticamente excluídos da legalidade política. Mas o principal perigo que corre uma revolução socialista, uma vez liquidado o capitalismo privado, não vem das tendências restauracionistas; vem das tendências burocráticas. Tais tendências podem encontrar um apoio junto a frações da classe operária, tanto mais que seu programa não visa e não visará jamais à restauração das formas de exploração tradicionalmente conhecidas, mas se apresenta como uma “variante” do socialismo. Em seus inícios, quando ele é mais perigoso, o burocratismo não é nem um sistema social, nem um programa social: é apenas uma atitude de fato. Os Conselhos não poderão combatê-la a não ser a partir de sua experiência concreta. Mas uma corrente revolucionária no seio dos Conselhos denunciará sempre o “comando único da fábrica pelo diretor” – tal como é praticado na Rússia – ou a direção central da economia por um aparelho à parte – como na Rússia, na Polônia ou na Iugoslávia – como uma variante, não do socialismo, mas da exploração; e ela lutará para colocar na ilegalidade as organizações que defendem estes objetivos.

Ê necessário acrescentar apenas que se limitações da atividade política de tal ou tal organização podem se mostrar indispensáveis, nenhuma limitação é concebível no domínio da “ideologia” e da “cultura”. Uma verdadeira cultura socialista só pode significar uma variedade real de tendências, “escolas” etc., muito maior do que hoje em dia.

Mas, independentemente da questão das organizações políticas, coloca-se o seguinte problema: todas as categorias da população têm ou podem, desde o início, ter os mesmos direitos e participar igualmente da direção política da sociedade? Que significa, nestas condições, a ditadura do proletariado?

A ditadura do proletariado significa este fato incontestável, que a iniciativa e a direção da revolução socialista e da transformação consecutiva da sociedade só podem pertencer ao proletariado das fábricas. Ela significa, portanto, que o ponto de partida e o centro do poder socialista serão os Conselhos operários no sentido estrito do termo. Mas o proletariado não tem por objetivo instaurar uma ditadura sobre a sociedade e sobre as outras categorias da população; ele visa instaurar o socialismo, a saber, uma sociedade na qual as diferenças entre “categorias” ou classes sociais devem atenuar-se rapidamente para finalmente desaparecerem. O proletariado não pode dirigir a sociedade em direção ao socialismo a não ser na medida em que associar as outras categorias da população a esta direção, na medida em que lhes reconhecer toda autonomia compatível com a orientação geral da sociedade, em que as elevar à função de sujeitos da direção, e não fazer delas – o que seria contraditório com toda a sua orientação – objetos de sua própria direção. É isto que significa a organização geral da população em Conselhos, a autonomia ampla destes Conselhos em seu próprio setor, a participação de todos estes Conselhos no poder central, que havíamos definido acima.

Se a supremacia numérica do proletariado não for grande, se a revolução se encontrar, de início, numa posição particularmente difícil, se outras categorias adotarem uma atitude de hostilidade ativa ao poder dos Conselhos operários, a ditadura do proletariado traduzir-se-á concretamente numa participação desigual das diversas categorias da população no poder central. O proletariado poderá ser levado assim a conceder no início, aos Conselhos camponeses, por exemplo, apenas um voto de peso inferior ao dos outros Conselhos, com a condição de aumentar este peso à medida que as tensões de classe se atenuarem.

Mas o alcance real deste problema é limitado. O proletariado só poderá manter o poder se conquistar para si as categorias assalariadas, mesmo se elas não estiverem na indústria. Ora, os assalariados formam a maioria esmagadora das sociedades modernas e cada dia que passa a sua importância aumenta. Nestas condições, se uma grande maioria do proletariado das fábricas e a maioria das outras categorias estiverem do lado do poder revolucionário, o regime não será vitalmente ameaçado por uma oposição política do campesinato (que, aliás, não é absolutamente um bloco homogêneo); se elas não o forem, não se vê, de qualquer modo, como este poder poderá instaurar-se e ainda menos durar.

Os problemas de “transição”

A sociedade da qual falamos não é o comunismo, que supõe a liberdade total e a dominação completa dos homens sobre suas atividades, a ausência de toda coerção e a abundância, em poucas palavras, uma nova estrutura do ser humano.

Mas esta sociedade é o socialismo, e o socialismo é a única sociedade de transição entre o regime de exploração e o comunismo, é o único tipo de sociedade capaz de conduzir a humanidade ao comunismo. O que não é socialismo, tal como nós o definimos, não é sociedade de transição, mas sociedade de exploração. E toda sociedade de exploração e, se se quiser, sociedade de transição – mas de transição para uma outra forma de exploração. A transição em direção ao comunismo só é possível se a exploração for imediatamente abolida – pois, de outra forma, a exploração se perpetua e se amplia por si mesma. A abolição da exploração só é possível se qualquer categoria à parte de dirigentes for abolida – pois a divisão das sociedades modernas em dirigentes e executantes é a raiz da exploração. A abolição de toda direção à parte significa a gestão operária de todos os setores da atividade social. A gestão operária só é possível no quadro de novas formas de organização democrática direta dos produtores, que os Conselhos representam: e esta gestão só poderá consolidar-se e ampliar-se na medida em que ela atacar as causas profundas da alienação em todos os domínios e, em primeiro lugar no domínio do trabalho.

Esta posição, no fundo, coincide absolutamente com o essencial das ideias de Marx e de Lênin sobre este problema. Marx nunca considerou senão uma forma de sociedade de transição entre o capitalismo e o comunismo, que ele chama indiferentemente de “ditadura do proletariado” ou “fase inferior do comunismo”; e é evidente, segundo ele, que esta sociedade significaria, desde o primeiro dia, a supressão da exploração e do aparelho de Estado à parte[27]. As posições de Lênin, em O Estado e a Revolução são, a este respeito, apenas uma explicação e uma defesa das teses de Marx contra os reformistas de sua época.

Estas verdades elementares foram sistematicamente deformadas ou silenciadas desde a degenerescência da revolução russa. Deixemos de lado os stalinistas, cujo papel era e é o de apresentar os campos de concentração, o poder absoluto do diretor da fábrica, o salário por peças produzidas e o stakhanovismo como a imagem acabada do socialismo. Mas, sob uma forma mais sutil e igualmente perigosa, a mesma mistificação foi propagada pela corrente trotskista e pelo próprio Trotsky, que chegaram a inventar um número cada dia maior de “sociedades de transição” encaixando-se bem ou mal umas nas outras. Entre o comunismo e o capitalismo, havia o socialismo; mas entre o socialismo e o capitalismo, havia o “Estado operário”; entre o “Estado operário” e o capitalismo, havia o “Estado operário degenerado” (que é suscetível, sendo a degenerescência um processo, de gradações: degenerado, muito degenerado, monstruosamente degenerado etc.). Após a guerra, assistiu-se ao nascimento de toda uma série de Estados operários que eram degenerados sem nunca terem sido operários (os países satélites). Tudo isto para evitar reconhecer que a Rússia tinha voltado a ser uma sociedade de exploração que não tinha nada de socialista, nem de perto, nem de longe, e que a degenerescência da revolução russa obrigava a reexaminar o conjunto das questões relativas ao programa e ao conteúdo do socialismo, ao papel do proletariado, à função do partido etc.

A idéia de uma “sociedade de transição” diferente da sociedade socialista da qual falamos é uma mistificação. Isto não quer dizer, ao contrário, que problemas de transição não existam; num certo sentido, toda a sociedade socialista é determinada pela existência destes problemas e sua atividade visa a resolvê-los. Mas problemas de transição existem igualmente num sentido mais estrito: são aqueles que decorrem das condições concretas de partida diante das quais uma revolução socialista a cada vez estará colocada, e que tornam mais ou menos fácil, orientam para tal ou tal forma a concretização dos princípios que são a essência do socialismo.

É assim que a revolução só pode começar num país ou num grupo de países. Por isto mesmo, terá de sofrer pressões de uma natureza e de uma duração extremamente diferentes. Por outro lado, qualquer que seja a rapidez da extensão internacional da revolução, o grau de maturação de um país terá um papel importante na concretização dos princípios do socialismo. A agricultura, por exemplo, será um problema provavelmente importado na França – e não o será nos Estados Unidos – ou na Inglaterra (onde o problema seria, inversamente, o da dependência extrema do país em relação às importações alimentares). Fomos levados a considerar, durante nossa análise, vários problemas deste tipo e acreditamos ter mostrado que soluções que vão no sentido do socialismo existem em cada caso. Não pudemos considerar os problemas particulares que decorreriam de um isolamento prolongado da revolução num país e não pudemos fazê-lo aqui. Mas esperamos que toda a análise precedente mostre implicitamente que é falso acreditar que os problemas que surgem de um tal isolamento são insolúveis, que um poder proletário isolado deve morrer heroicamente ou degenerar, que ela só pode no máximo manter-se enquanto espera. Não se pode esperar, só se pode manter-se construindo o socialismo – de outra forma, já se está em degenerescência, e não se espera mais nada. Esta construção do socialismo por um poder operário desde os primeiros tempos, não somente é possível, ela é inelutável, ou então este poder não é mais um poder operário.

Toda a discussão sobre o “socialismo num único país”, entre a facção stalinista e a Oposição de esquerda (1924-1927) mostra de um modo assustador como os homens fazem sua história acreditando saber o que fazem e não compreendendo nada dela. Stálin afirmava a possibilidade da construção do socialismo na Rússia isolada, entendendo por socialismo a industrialização mais o poder da burocracia. Trotsky afirmava que esta construção era impossível, entendendo por socialismo praticamente uma sociedade sem classes. Cada um tinha razão no que afirmava, e cada um deles estava errado ao negar a afirmação do outro. Nem um nem outro falava na verdade de socialismo, e ninguém durante toda a discussão, mencionou o regime das fábricas russas, a relação do proletariado com a direção da produção, e a relação do partido bolchevique, onde se desenrolava a batalha, com o proletariado, afinal de contas o principal interessado na questão.

O programa que desenvolvemos é um programa atual, atualmente realizável num país mais ou menos industrializado. Ele define as medidas ou o espírito das medidas – e a orientação que os Conselhos deverão adotar desde as primeiras semanas de seu poder, quer ele se estenda por vários países, quer num só. Talvez, se se tratasse da Albânia, não haveria nada a fazer. Mas se amanhã na França, ou mesmo na Polônia, como ontem na Hungria, Conselhos operários se constituíssem, estabelecessem seu poder e não tivessem de sofrer nenhuma invasão militar estrangeira, estes Conselhos nada mais poderiam fazer a não ser:

– Federar-se no seio de uma Assembleia central e declarar-se o único poder do país;

– Armar o proletariado e dissolver a polícia e o exército regulares;

– Proclamar a expropriação dos capitalistas, a destituição de todos os dirigentes da produção e a gestão de cada empresa pelos trabalhadores da empresa, organizados em seu Conselho;

– Proclamar a supressão das normas de trabalho e instaurar a igualdade completa dos salários e remunerações de qualquer tipo;

– Convidar as outras categorias de assalariados a formar Conselhos e a assumir a gestão de suas respectivas empresas;

– Convidar em particular os trabalhadores das administrações do Estado a formarem Conselhos, a proclamarem a transformação destas administrações em empresas, desligadas de qualquer poder geral, e geridas pelos trabalhadores que nelas se encontram;

– Convidar os camponeses e as outras categorias não assalariadas da população a formarem Conselhos e a enviarem seus representantes junto à Assembleia Central;

– Organizar a “central do planejamento” e submeter rapidamente à aprovação dos Conselhos de empresa um primeiro planejamento econômico provisório;

– Dirigir-se aos trabalhadores dos outros países, explicando o teor e o sentido destas medidas.

Todas estas medidas seriam de necessidade imediata – e elas contêm o essencial do processo de construção do socialismo.


[1] Ela será publicada no próximo número de Socialísme ou Barbaríe (n? 23, janeiro de 1958. Está publicada atualmente em L ‘expéríence du mouvement ouvrier, 2, pp. 9-88).

[2] O “Soviete Supremo” atual, evidentemente.

[3] A expressão encontra-se em Engels, Anti-Duhring (ed. Costes). tomo 111, p. 52.

[4] Pudemos assim ler, há alguns anos, no texto de um “filósofo”, mais ou menos o seguinte: Como ousaríamos discutir as decisões de Stalin, já que ignoramos os elementos sobre os quais ele era o único que poderia fundamentá-las? (Sartre, Les communistes et la paix).

[5] Lênin não perde a ocasião, em O Estado e a Revolução, de defender a idéia da democracia direta, contra os reformistas de sua época, que a denominavam com desprezo “democracia primitiva”.

[6] Ver, sobre este aspecto da empresa, Paul Romano, “L’ouvrier américain” no n. 5-6 de Socialisme ou Barbarie, pp. 129-132 e R. Berthier, “Une expérience d’organization ouvriêre” no n. 20 de Socialisme ou Barbarie, pp.29-31.

[7] O grande mérito do grupo americano que publica Correspondance foi o de retomar a análise da crise da sociedade do ponto de vista da produção, e de aplicá-la às condições de nossa época. Ver seus textos traduzidos e publicados em Socialisme ou Barbarie: “L’ouvrier américain” de Paul Romano (números. 1 a 5-6) e “La reconstruction de Ia société” de Ria Stone (números 7 e 8). Na França, foi Ph. Guillaume quem retomou este ponto de vista (ver seu artigo Machinisme et prolétariat no n. 7 desta revista). Várias ideias deste nosso texto lhe são devidas, direta ou indiretamente.

[8] Le capital, trad. Molitor, t. XIV, pp. 114-115 (Pléiade, 11, pp. 1487-1488).

[9] Alto executivo da Renault na época.

[10] O texto de D. Mothé, “L’usine et la gestion ouvrière”. que veremos mais tarde (Socialisme ou Barbarie, n. 22, p. 75 e seguintes) já é uma resposta de fato – que vem da própria fábrica – aos problemas concretos da gestão operária da oficina e de organização do trabalho. Ao indicar este texto consideramos aqui apenas os problemas da fábrica em seu conjunto.

[11] Ver, por exemplo, na excelente síntese da “sociologia industrial” feita por J. A. C. Brown (The Social Psychology of Industrv, Penguin Books, 1954), a contradição total entre a análise devastadora que ele faz da produção capitalista e as únicas conclusões que tira dela – exortações morais dirigidas à direção, para que “compreenda”, “se aperfeiçoe”, “se democratize” etc. Que não se diga que um “sociólogo industrial” não tem de tomar posição, que ele descreve os fatos e não estabelece normas; aconselhar o aparelho de direção a “aperfeiçoar-se” é tomar posição – e uma posição a respeito da qual demonstramos anteriormente que é inteiramente utópica.

[12] Ver os textos do XX Congresso do PCUS analisados por Claude Lefort, “Le totalitarisme sans Staline”, n. 19 de Socialisme ou Barbarie em particular pp. 59-62. (Atualmente publicado em Eléments d’une critique de la bureaucratie, Droz, Genève-Paris, 1971, p. 166 e seguintes.)

[13] Ver o texto de D. Mothé, L’usine et la gestion ouvrière, já citado.

[14] Ver, sobre o extremo crescimento dos serviços “improdutivos” na fábrica atual, G. Vivier, La vie en usine, no n. 12 de Socialisme ou Barbarie, pp. 39-41. Vivier considera, no caso da empresa que descreve, que “sem reorganização racional dos serviços, 30% dos empregados estão em excesso” (as palavras sublinhadas o são também no original).

[15] Ver o artigo já citado de D. Mothé.

[16]  A “planificação” burocrática praticada na Rússia e nos países satélites não prova nada, nem num sentido nem no outro. Ela é irracional do mesmo modo, contém tanta anarquia e desperdício (“exterior”, independentemente do desperdício nas fábricas e na produção) quanto o “mercado” capitalista – embora, evidentemente, sob outra forma. Fornecemos uma breve descrição deste desperdício e uma análise das raízes desta irracionalidade no n. 20 de Socialisme ou Barbarie (“La révolution prolétarienne contre Ia bureaucratie”, pp. 139-156) (Atualmente publicado em La société bureaucratique, 2, pp. 267-338).

[17] A literatura relativa a este assunto cresce a cada dia. O ponto de partida de um estudo do assunto permanece sempre sendo o trabalho de W. Leontief, The Structure of American Economy, Nova lorque, 1951 (trad. francesa, La structure de L’économie americaine, Paris, Génin-Médicis, 1958). Ver também Leontief e outros, Studíes in the Structure of American Economy, Nova lorque, 1953.

[18]  Ver T. Koopmans, Activity Analysis of Production and Allocation, Nova lorque, 1951.

[19] As greves de Nantes, em 1955, basearam-se numa reivindicação anti-hierárquica de aumento uniforme para todos. Os Conselhos operários húngaros pediam a supressão das normas e uma limitação severa da hierarquia. O que transparece nas declarações oficiais indica que se desenvolve nas fábricas russas uma luta permanente contra a hierarquia. Ver “La révolution prolétarienne contre la bureaucratie”, no n. 20 de Socialisme ou Barbarie, pp. 149-153. (La société bureaucratique, 2, pp. 286-301.)

[20]  Para uma discussão detalhada do problema da hierarquia ver “Les rapports de production en Russie”, no n. 2 desta hierarquia, pp. 50-66. (La société bureaucratique, 11, pp. 264-281). Ver igualmente “Sur Ia dynamique du capitalisme”, Socialisme ou Barbarie, n. 13, pp. 67-69.

[21]  Ver, sobre a estrutura de uma grande companhia de seguros em vias de sofrer uma “industrialização” rápida, tanto técnica quanto social e politicamente, os artigos de Henri Collet (“La greve aux A. G.-Vie”, no n. 7 de Socialisme ou Barbarie, pp. 103-110) e de R. Berthier (“Une expérience d’orqanization ouvrière: Le Conseil du personnel des A. G.-Vie”, no n. 20 de Socialisme ou Barbarie, pp. 1-64). Sobre a mesma evolução em curso nos Estados Unidos, que engloba cada vez mais os setores “terciários”, ver C. Wright Mills, White Collar, Nova lorque, 1951, em particular pp. 192-198 (trad. brasileira, A nova classe média, Rio de Janeiro, Zahar, 1969). Para medir a importância das mudanças que se podem esperar neste campo é preciso compreender que a industrialização do trabalho “intelectual” ainda está dando seus primeiros passos. Cf. N. Wiener, Cybernetics, Nova lorque e Paris, 1951, pp. 37-38.

[22] Ver, no livro de J. Ellul, La technique ou l’enjeu du siècle (Paris, 1954), o capítulo IV: La technique et l’Etat. Apesar de sua ótica fundamentalmente falsa, Ellul tem o mérito de analisar alguns destes aspectos essenciais da realidade do Estado moderno, alegremente ignorado pela maioria dos sociólogos e escritores políticos, “marxistas” ou não.

[23] É a opinião de J. Ellul em seu livro já citado, cuja conclusão é de que “é perfeitamente inútil pretender, ou entraver esta evolução, ou tomá-las nas mãos e orientá-la”. A técnica, segundo Ellul, é apenas a submissão que se desenvolve por si mesma, independentemente de qualquer contexto social.

[24] Cf. C. Wright Mills, White Collar, pp. 347-348 e The Power Elite (Nova lorque, 1956), p. 134 e seguintes, 145 e seguintes e em outras passagens, sobre a ausência efetiva de qualquer relação entre a direção política ou das empresas e as capacidades técnicas quaisquer. (Trad. brasileira, A elite do poder, Rio de Janeiro, Zahar, 2ª ed., 1968).

[25]  “Platão define o ideal da população de uma cidade pelo número de cidadãos que podem ouvir a voz de um único orador. Hoje em dia, estes limites não designam uma cidade, mas uma civilização. Em todos os lugares onde os instrumentos neotécnicos estão disponíveis e onde se fala uma linguagem comum, existem agora elementos de uma unidade política que quase se aproxima das menores cidades da Grécia de outrora. As possibilidades, boas ou más são imensas.” (L. Mumford, Technique et Civilization, Paris, 1950, p. 219.)

[26]  Os acontecimentos da Polônia forneceram ainda uma confirmação da ideia segundo a qual o partido não poderia ser um órgão de governo. (Ver, no n. 20 de Socialisme ou Barbarie, “La révolution prolétarienne contre Ia bureaucratie”, p. 167 e, no n. 21, “La voie polonaise de la bureaucratization”, pp. 65-66.) (Atualmente publicado em La société bureaucratique, 2, pp. 327-329 e 348-352.)

[27] Ver a “Critique des programmes de Gotha e d’Erfurt”.

O presente artigo foi retirado do livro Socialismo ou Barbárie – O Conteúdo do Socialismo, Brasiliense, 1983.