I. A PROPÓSITO DA SEXUALIDADE
INTRODUÇÃO A UMA REFLEXÃO MARXISTA
Em face da amplitude e da diversidade dos problemas que a noção de sexualidade abrange, é indispensável limitarmo-nos e fazer ressaltar os aspectos mais particularmente acessíveis a uma análise marxista. Por conseguinte, ficam imediatamente eliminados os aspectos biológicos e psicopatológicos que não procedem de um exame filosófico particular e a erotologia, de que voltaremos a falar quando tratarmos dos problemas relativos ao erotismo.
Parece-nos que é a sexualidade, nos seus aspectos psicológicos e socioculturais, que deve merecer uma reflexão antropológica específica. A sexualidade, considerada como a expressão de um comportamento humano, pode ser apreendida do ponto de vista de uma determinada concepção do homem. Antes de mais nada: que é a sexualidade?
Podemos defini-la como a função de reprodução. É a sua definição estreita, e biológica, equivalente à do animal. Ora, o homem, que se aproxima do animal quanto à forma de reprodução da vida, distingue-se radicalmente dele na medida em que provê especificamente às condições de produção da sua própria vida, através do trabalho. Por conseguinte, é o trabalho que o especifica como ser humano, e esta especificidade humana incorpora-se em todas as suas atividades, incluindo a da reprodução da vida, isto é, a atividade sexual.
É o trabalho que, pelo seu próprio contexto, socializa o homem, isto é, humaniza o homem, e, por conseguinte, a humanização do homem, a sua produção por si próprio, na sua qualidade de homem, será a negação da natureza fora dele, através do trabalho, e dentro dele, pela organização, a vários níveis, da sua vida sexual. Através do trabalho, o homem domina natureza exterior a si mesmo; pela organização da sua vida sexual, controla a natureza no interior de si mesmo. É este o sentido e a origem das interpretações de outros tabus, a respeito dos quais voltarei a falar mais adiante.
Mas é importante fazermos referência a todas estas coisas, desde o ponto de partida, para evitar os mal-entendidos e as confusões relativas às investigações sobre o animal, que são, evidentemente, interessantes, mas que são parciais, unilaterais, e que negligenciam excessivamente o fato de que o homem já não é um animal: já não é um animal, desde que saiu da natureza, desde que existe como homem, isto é, como ser específico que se distingue, porque transforma a natureza pelo trabalho.
E, assim, o homem, o ser humano, encontra-se condicionado, marcado pela sua especificidade de ser social, tanto na produção como na reprodução. A essência do homem é o conjunto das relações sociais, escreve um autor célebre; e é este ponto de vista que nos deve orientar em todas as nossas investigações antropológicas. Não se pode estudar a sexualidade no abstrato, como uma entidade independente; devemos estudá-la em relação às suas condições de atividade, de realização e de expressão. Com efeito, a sexualidade é uma função biológica, que se exprime por uma necessidade e que requer para ser exercida, condições exteriores a essa necessidade, quer dizer, condições que não são “naturais”, como no caso da respiração (ou da alimentação), mas organizadas através das estruturas sociais múltiplas e diversas (a todos os níveis, em todas as épocas e em todas as civilizações).
A necessidade de comer, que se exprime pela fome, que se satisfaz com a alimentação, também se encontra separada da “natureza”, pelo conjunto das condições sociais da produção. Mas estas medicações sociais não condicionam o exercício fundamental da função alimentar; condicionam-no somente em parte e consoante os modos de produção e os tipos de sociedade; condicionam, parcialmente, a possibilidade desse exercício, conforme a qualidade ou a quantidade. (No pior dos casos, quando há fome, as condições sociais atuam diretamente sobre a necessidade alimentar, suprimindo-a, não lhe respondendo ou respondendo-lhe mal).
Mas, em todas as outras funções biológicas, seja qual for a importância – insignificante ou não – das mediações sociais, nunca são fundamentais. Ora, a necessidade sexual tem necessidade do outro (sexo) para se satisfazer: é, por conseguinte, social e socializada na sua essência e no seu exercício. Implica, necessariamente (de uma maneira grosseira ou aperfeiçoada, consciente ou não, voluntária ou não) uma concepção do mundo, uma concepção do homem (e da mulher) e uma moral. É, pois, dentro desta perspectiva que continuarei com a minha reflexão sobre a sexualidade. E, assim, vou tratar sucessivamente do seguinte:
1. A formação psicológica da ligação sexual e as suas relações com o desenvolvimento da personalidade;
2. A alienação da sexualidade, segundo a história e na sociedade moderna;
3. Algumas reflexões sobre o sentido humano da sexualidade e as suas consequências quanto à moral e à educação sexuais.
A FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DA LIGAÇÃO SEXUAL
A função sexual é, pois, a função biológica de reprodução que, para se realizar, implica necessariamente um companheiro. No animal, o que provoca a excitação sexual que o leva à procura de um indivíduo do sexo oposto é uma certa dose de impregnação hormonal e certos condicionamentos olfativos ou visuais. Para o homem (ou para a mulher), poder-se-ia pensar que é o mesmo contexto de fatores biológicos e naturais que desempenham esse papel. A meu ver, não é nada disso.
Por várias razões; admitindo que a excitação sexual surja, absolutamente pura, do fundo da nossa organização biológica, para se satisfazer implica não só a busca do companheiro como também o seu acordo e as condições materiais para a realização do ato sexual. Isto quer dizer que existe toda uma série de mediações exteriores, sociais e culturais, que adiam, que atrasam necessariamente a satisfação da excitação sexual. A duração desse período de latência, que pode ser de alguns minutos para os protagonistas de um par já formado e que é de vários anos para o adolescente, é o que constitui a base da formação psicológica da ligação sexual. Mas essa duração não é apenas individual, também é genérica, e é essa duração genérica interiorizada pelo indivíduo que constitui a psicologia da função sexual.
Efetivamente, desde os tempos mais remotos, a função sexual sempre teve necessidade de um companheiro para se satisfazer e entre os dois companheiros instaurava-se necessariamente um tempo de latência, ligado às condições psicológicas, sociais e culturais do exercício da sexualidade. Mesmo o homem primitivo não se atirava sobre uma mulher, como um animal sobre a sua presa.
Era-lhe necessário o consentimento dessa mulher, e o consentimento implicava toda uma rede de relações psicológicas, relativamente complexas, dependente das condições sociais e culturais da época. É, precisamente, essa aptidão para diferir (ou para antecipar) a ação, no pensamento ou na imaginação, que caracteriza o homem e que constitui as bases da sua vida psicológica propriamente dita. Por conseguinte, e desde o ponto de partida, a excitação sexual no ser humano não é uma simples estimulação biológica: tem, imediatamente, um conteúdo psicológico, mais ou menos rico, mais ou menos elaborado, condicionado historicamente, e é esse conteúdo psicológico, indissoluvelmente ligado à função biológica e que a transforma numa necessidade específica que se poderia chamar o erotismo.
Assim, no ser humano, a pulsão sexual não é um fenômeno endogênico, que surge do interior para se projetar no exterior: implica uma finalidade humana, a existência do “outro”, como condição para a sua própria existência. E são as vicissitudes da sua história, da sua gênese propriamente humana, psicológica, e da sua realização, do seu exercício numa determinada sociedade, que constituem o conjunto da problemática da sexualidade. Por esta razão, a sexualidade humana não pode ser separada do seu conteúdo psicológico, que implica a existência do “outro” para se realizar, e essa finalidade específica da sexualidade humana não é mais do que a afetividade.
Assim, a sexualidade e vida afetiva, que implicam a dimensão específica do ser humano, isto é, a dimensão relacional, têm um dinamismo comum, mas efetuam uma diferenciação em múltiplos ramos, no decorrer da história do desenvolvimento das sociedades humanas. A vida afetiva é o conteúdo psicológico relacional da sexualidade, e a vida afetiva, com as suas diversas formas e modalidades de sentimento – erotismo, amor sexual e outra forma de amor não erótico -, liberta-se e diversifica-se à medida que a vida interior e a vida social dos homens se torna mais complexa.
Afetividade e erotismo são, por conseguinte, o conteúdo psicológico da sexualidade, constituído pela interiorização genética e da latência, específico do ser humano em relação à necessidade sexual e à sua satisfação. O que torna as coisas complicadas é que esse estado latente específico se organiza e se institucionaliza infalivelmente. É nesse sentido que a vida sexual sempre foi organizada; nunca existiu a idade de ouro da liberdade sexual, a não ser na imaginação dos poetas e dos perversos. Essa organização da vida sexual dá a sua arquitetura à organização da nossa vida afetiva.
A nossa vida afetiva constrói-se não por oposição e pela repressão de uma libido endógena e intemporal surgida do fundo do nosso ser biológico, como pretende Freud, mas pela organização da realização da vida sexual. Ao contrário de Freud, que afirma que a civilização foi constituída pela mutilação, pensamos, pelo contrário, que a civilização e a história se edificaram como meios sociais para satisfazer (mais ou menos bem, consoante o nível das forças produtivas, consoante o estado da organização social e consoante as relações de força nas lutas de classes), para satisfazer, pois, as nossas necessidades instintuais.
A limitação dessa satisfação não é a consequência da civilização considerada como tal, relaciona-se com as diversas etapas do desenvolvimento histórico. É, por conseguinte, a organização da vida sexual, embrionária e grosseira nas sociedades primitivas – embora muito menos do que pensávamos -, complexa e com muitos níveis nas sociedades modernas, que condiciona a organização e a gênese do nosso desenvolvimento afetivo. Mas devemos considerar esse desenvolvimento afetivo no seu núcleo originário e primário, e não no seu exercício e no seu desdobramento total, que requerem o conjunto das condições da vida social e cultural.
Portanto, devemos pensar que é porque a atividade sexual necessita desse tempo de latência para ser exercida (busca e consentimento de um companheiro), que esse tempo de latência se organiza e se institucionaliza sob as várias formas de organização da vida sexual, que é devido a esse conjunto de razões múltiplas e complexas que a vida afetiva do homem existe, no seu aspecto específico. É a interiorização dessa latência, necessariamente implicada nas relações humanas, genérica e geneticamente incorporada, que constitui, para nos expressarmos claramente, a nossa vida afetiva.
Neste sentido, os animais não têm a vida afetiva que um antropomorfismo complacente está disposto a atribuir-lhes. A vida afetiva implica a relação e a consciência da relação, sob as formas imaginária ou simbólica, que são um reflexo deteriorado de formas mais aperfeiçoadas e socializadas na linguagem. Portanto, são os rudimentos de organização da vida sexual que são as primícias do desenvolvimento da vida afetiva, assim como os rudimentos de organização da vida social, em geral.
As interdições os tabus – formas mágicas e fabuladas das diversas modalidades da regulamentação e da organização da vida social e sexual – introduzem nas relações humanas não apenas a justificação para a sua latência essencial, como também um acréscimo de distância que valoriza o ser humano para outrem e dá, assim, origem à consciência do valor humano de outrem, o que também participa na vida afetiva.
Sendo a relação sexual a relação humana mais natural, é, por conseguinte, a organização das relações sexuais que estabelece a organização das relações humanas, no seu aspecto individual, afetivo. É este o problema da origem do casamento e da exogamia. Mas o que para nós é importante é que a organização da vida sexual postula um certo tipo de relações entre o homem e a mulher, um certo tipo de relações entre os diferentes membros do grupo constituído pela mulher, o homem e os filhos que têm.
É o conjunto dessas relações que constitui necessariamente a trama da vida afetiva do ser humano. Desta maneira, introduz-se toda uma série de interdições e de tabus (o tabu do incesto, por exemplo) que regulamentam, implícita ou explicitamente, as relações, afetivas e sexuais, entre os diferentes membros do grupo. Devido a isso, a vida sexual é orientada e limitada. É, pois, realmente a interiorização das regras e dos limites da vida sexual que constitui a trama da nossa vida afetiva. Mas essas regras e esses limites não devem ser concebidos como as formas de repressão “de instintos” ilimitados. Constituem a forma de expressão e de realização dessas “pulsões instintuais”, numa determinada etapa da história.
Repetimos, mais uma vez, que as “pulsões” não são forças irrefletidas postas em movimento por um “vis à tergo” biológico: a sua intencionalidade fundamental limita-as, necessariamente, e é graças à expressão desses limites que existe uma vida afetiva especificamente humana. Se os homens primitivos se tivessem atirado uns aos outros para se devorarem e satisfazerem todos os seus instintos, como se diz, a humanidade não teria existido e é justamente a própria essência da vida social e da humanização do ser humano que postula a organização da vida coletiva em todos os seus aspectos (organização relativa às diversas etapas da história), e é essa organização essencial, isto é, como essência do homem, que permitiu a sua existência como homem. Ao compreendermos a interiorização das regras e dos limites da vida sexual, como trama da vida afetiva, compreendemos melhor as noções freudianas relativas ao complexo de Édipo.
Compreende-se então que todas as crianças do mundo, em todas as épocas da história, tiveram um pai e uma mãe – em todos os casos uma mãe e alguém que desempenhou o papel do pai. E é sobre a base dos revezes do triângulo edipiano que se constitui a vida afetiva do indivíduo. O triângulo edipiano é universal: a criança está sempre enquadrada por um homem e uma mulher: uma mulher, de quem nasceu, e um homem, que lhe dá o nome ou a sua autoridade. E a aprendizagem afetiva, em todos os seus aspectos e na sua estruturação genética, efetua-se no interior desse triângulo. Mas não se pode dizer que a crise edipiana reproduz ontogeneticamente os episódios da história da humanidade.
A hipótese da horda primitiva, formulada por Freud, é mais uma fábula do que uma realidade etnológica. Contudo, o que a crise edipiana traduz é uma certa relação de força entre os membros de sexo oposto de um mesmo grupo. O triângulo edipiano, considerado como modelo operatório do desenvolvimento psicoafetivo do indivíduo, explica a razão dos limites da vida sexual organizada e institucionalizada segundo regras e interdições bem determinados. A proibição do incesto, a que Lévi-Strauss se refere, dizendo que marca a “passagem, no homem, da Natureza para a Cultura”, e que nos conduz novamente à exogamia e à troca organizada das mulheres, como forças produtivas, em vista de uma mulher mobilização econômica, é uma das primeiras formas de limitação e de interdição na vida sexual.
E é a interiorização da proibição do incesto, remodelada consoante as diversas formas da instituição do casamento e da organização da família, que permite, talvez, melhor compreender a angústia e a culpabilidade ligadas ao prazer sexual, com a noção de “pecado” que delas se depreende. Os tabus da sexualidade, como lhes chamam, são a forma mágica mitificada, na medida em que na sua essência humana ela se encontra forçosamente limitada, e é a existência desse limite que funda a existência da vida afetiva, especificamente humana. De uma certa maneira, podemos dizer que as opressões, as interdições, são as formas sociais, codificadas, das opressões e dos limites impostos pela natureza.
A interdição é a expressão socializada de uma certa relação de força entre o homem e a natureza. Mas é com o desenvolvimento das sociedades de classes que os interditos perdem os seus caracteres universais e socialmente úteis, para se transformarem em meios de opressão da classe dominante sobre a classe dominada. Isto introduz um outro nível de complexificação, mas não muda nada ao fato fundamental da relação entre a origem da vida afetiva no homem e os limites necessários da vida sexual. Mais uma vez ainda, são os limites necessários da vida sexual propriamente humana que condicionaram o aparecimento de uma forma relacional especificamente humana: isto é, a vida afetiva.
Assim, a vida afetiva não é o instinto endomingado, mas sim uma qualidade nova que se desenvolveu ao longo dos milhares de anos da evolução humana. Neste sentido, o amor sexual é um produto da evolução e do progresso humano. Ao estudar a formação psicológica da ligação sexual, regressamos às fontes e à origem da vida afetiva, no homem. E, assim, chegamos à conclusão de que a sexualidade, contrariamente a uma metáfora excessivamente significativa, não é “a parte animal do homem”, mas sim a forma humana da relação mais natural do homem com outrem.
É, por conseguinte, a existência da relação sexual que condiciona a existência da vida afetiva e o reconhecimento do “outro” como semelhante e diferente, ao mesmo tempo. É o desenvolvimento histórico da vida social, a organização social da produção, que contribui para o enriquecimento e para a complexificação dessa vida afetiva. O universo do homem é um universo humano, fora dele e dentro dele, mas, da mesma maneira que em cada etapa da história existe um certo nível de relações de força entre o homem e a “natureza” fora dele, podemos considerar um fenômeno idêntico entre o homem e a “natureza” dentro dele.
É o sentido das interdições e tabus (que são a expressão, ao nível da “afetividade coletiva” das regras socialmente instituídas de organização da vida sexual) que não são a expressão direta da relação de força entre o homem e a natureza: estão mediatizados por intermédio do processo das relações de classes e traduzem, assim, uma dupla alienação: em primeiro lugar, a ignorância em relação aos fenômenos naturais (são os limites históricos da ciência) e, em seguida, a ignorância em relação à expressão dos interesses de classes (são os limites ideológicos).
Assim, a sexualidade, como todos os outros aspectos da vida humana, encontra-se alienada durante toda esta pré-história, em que a necessidade, sob as suas formas naturais e sociais, ainda não encontra mais do que uma liberdade restrita. Desta maneira, a sexualidade – nos seus caracteres aparentemente mais “naturais”, mais “biológicos” encontra-se completamente humanizada, socializada. É esse caráter essencialmente socializado da vida sexual que permite compreender a sua alienação fundamental.
A vida sexual não só não é “livre” – porque, por essência, esbarra com os limites impostos pelo “outro”, necessários para a sua efetivação – como também, e sobretudo, porque a organização da vida social, que falseia e obscurece as relações humanas, falseia e obscurece ainda mais essa relação humana originária, que é a forma mais elementar e rudimentar das relações inter-humanas.
A ALIENAÇÃO DA SEXUALIDADE
Por conseguinte, na sexualidade, devemos considerar dois níveis:
1. Um nível originário, que é uma retomada necessária do biológico no social e que é a origem histórica da vida afetiva especificamente humana.
2. Um nível psicossocial, que é a expressão da sexualidade, nas suas condições concretas de realização.
Existe, portanto, uma socialidade originária da necessidade sexual, que condiciona a existência da vida afetiva e que faz que o amor sexual seja a expressão propriamente humana da necessidade sexual. O amor sexual é, pois, uma verdadeira relação natural, já socializada na sua essência, e, por essa razão, o conteúdo subjetivo do amor sexual é sempre um conteúdo social e cultural. Por essa razão, numa sociedade alienada, o amor e a sexualidade encontram-se obrigatoriamente alienados.
As interdições e os tabus são a expressão dessa alienação e ao mesmo tempo contribuem para a reforçar, pois é bem certo que o processo de humanização do homem implica um processo de alienação, visto que o seu afastamento da natureza implica, ao mesmo tempo, conhecimento e, por conseguinte, ignorância, e essa alienação necessária contém em si mesma a sua desalienação, quando, na sociedade de classes, os antagonistas internos conduzem para a sociedade sem classes. Efetivamente, é a divisão da sociedade em classes antagonistas que leva a alienação ao seu máximo. E essa alienação exprime-se na sexualidade, ao nível das relações do homem e da mulher.
A exploração da mulher pelo homem é uma das primeiras formas da exploração do homem pelo homem; é, por assim dizer, a sua forma originária, “natural”. É a primeira forma de divisão do trabalho. É relacionando-a com a história da opressão social da mulher que se deve compreender a história da sexualidade. É o estatuto econômico e social da mulher que condiciona a “psicologia feminina”. As relações entre os sexos, na sua vivência concreta: física, psicológica, moral, estética, só se podem compreender nessa perspectiva. Mais uma vez, a relação do homem e da mulher não é uma relação natural, é uma necessidade natural que se exprime numa relação socializada, isto é, condicionada pela vida social e pela história das sociedades.
K. Marx escreve: “Nas relações do homem para com a mulher, presa e serva da voluptuosidade coletiva, expressa-se a infinita degradação na qual o homem existe para si mesmo”. Assim, a mulher é, para o homem, “presa e serva da voluptuosidade”, porque o homem é, para o homem, um adversário, um inimigo, e porque na sociedade capitalista que dá toda a sua acuidade aos antagonismos entre as classes, a exploração do homem pelo homem dirige todas as regras da vida social. Assim, as atitudes de classes para com a sexualidade sobrepõem-se com as atitudes de classes para com a mulher.
Parece que em todas as épocas da história, e com algumas variantes de pormenores, consoante a civilização, existe uma espécie de igualdade negativa de todas as categorias sociais, perante os tabus da sexualidade. Só um certo desregramento moral sexual nas camadas superiores e uma concepção por vezes diferente do papel e do estatuto social e psicológico da mulher pode permitir uma diferenciação. No entanto, é com o aparecimento da literatura socialista, no século XIX, que mais se faz sentir o problema da emancipação da mulher.
Até a esse momento, é evidente que as classes dominadas não têm concepções independentes das relações do homem e da mulher; as concepções que têm não são mais do que formas degradadas nascidas da ideologia da classe dominante. Assim, nas sociedades de classes, a sexualidade passa por um processo de alienação triplicado:
1. A alienação implicada na essência da sexualidade, traduzida pelos tabus e pelas interdições.
2. A alienação em relação com a alienação da mulher, que falseia e perverte as relações do homem e da mulher.
3. A alienação implicada nas necessidades ideológicas da classe dominante, que obscurece voluntariamente as relações humanas, para melhor conseguir que a sua dominação seja suportada.
Assim, os comportamentos psicológicos e os valores morais implícitos, pelos quais o homem e a mulher são solicitados um pelo outro, a fim de se amarem, e que lhes aparecem como que surgidos do mais profundo das suas “naturezas”, estão imensamente condicionados pelo ambiente social e cultural que os rodeia. Assim, a sexualidade não pode ser explicada sem primeiro se ter feito o estudo das condições das realizações da sexualidade, isto é, das relações do homem e da mulher, que são, elas próprias, condicionadas pelas relações dos homens entre si. Não podemos dissociar a sexualidade das suas condições de realização concretas.
A história assistiu a vários aspectos do amor, através das diferentes imagens que o homem tinha da mulher. Mas é na sociedade moderna que esse processo de alienação se mostra mais completo. A relação do homem e da mulher expressa-se a vários níveis e a cada um destes níveis se exerce o condicionamento sociocultural. Vou, por conseguinte, examiná-los sucessivamente:
1. A nível institucional e jurídico, é a forma do casamento que traduz essa relação em termos sociais concretos.
Os autores clássicos marxistas insurgem-se contra o casamento convencional, em que o amor recíproco é substituído por considerações de interesses, de prestígio e de preconceitos. A excessiva reação que manifestam contra o aspecto desumano do casamento convencional exprimiu-se no “amor livre”. Mas o próprio Lênin reagiu contra a tendência anarquista da “união livre”, considerando que esta expressão estava cheia de equívocos e que, na instituição jurídica do casamento, não é a própria instituição que está em causa, mas sim o seu conteúdo subjetivo e sentimental, em relação aos protagonistas do casal. Desta maneira, opõe o que ele chama “casamento proletariano com amor” à “união livre”, quer dizer o amor consciente das suas responsabilidades e dos seus deveres ao devaneio sexual irresponsável e sem conteúdo humano. Mas voltaremos a encontrar estes problemas mais adiante.
2. Um outro nível é o nível psicológico, isto é, a vivência subjetiva do amor sexual
Nesse caso também o condicionamento social e cultural interfere fortemente com os seus mitos, as suas imagens culturais veiculadas pela publicidade, e que não se preocupam absolutamente nada com a plena realização humana do homem, mas que, pelo contrário, obedecem às leis do mercado, pois que na sociedade capitalista tudo é mercadoria. As relações entre os homens estão coisificadas e perdem toda a sua qualidade humana. Efetivamente, determinado rapaz apaixonar-se-á pela vizinha porque esta se parece com a Brigitte Bardot. O seu “amor”, em vez de ser expressão de uma profunda e autêntica necessidade, não será mais do que o resultado de um condicionamento publicitário do mito B. B. Por outro lado, determinada mulher sentirá uma doce inclinação pelo “Johnny Hallyday” ou pelo “Marlon Brando” do bairro, e lá teremos nos casais pré-fabricados, teleguiados pelo condicionamento cultural, mas não nascidos de uma escolha consciente e refletida.
É a massificação dos comportamentos que faz que estes percam a sua espontaneidade e a sua autenticidade. O próprio conteúdo da vida sentimental obedece aos estereótipos e às imagens culturais impostas pelo exterior. Não é a preocupação com a felicidade do homem que estes têm em vista, nem é a realização do casal que visam: a sua única preocupação é a de vender mercadorias, mitos, revistas ilustradas, provocar necessidades artificiais para satisfazer a corrida ao proveito, que é a profunda lei do regime capitalista.
3. Um outro nível é precisamente o dos costumes e da moral sexual
Diz-se que a “sociedade ocidental” vive uma “civilização do erotismo”. Que é o erotismo? Será o componente estético do amor sexual? Não nos parece. Para os libertinos do mundo burguês, o erotismo é dissociar do amor sexual o seu componente físico e utilizá-lo com a finalidade de jogos intelectuais. Essa intelectualização do amor físico, que, para alguns, aparece como um supremo requintamento, parece-nos, pelo contrário, ser o cúmulo da desumanização do amor.
O erotismo do mundo ocidental caracteriza perfeitamente a condição de mercadoria da mulher atual; e assim, nesse erotismo, há uma dupla mistificação: a mistificação propriamente inerente à realização do erotismo, que faz que – consoante as épocas e as necessidades da moda (e da venda dos vestidos e dos tecidos) – esta ou aquela parte do corpo da mulher seja considerada como erótica; o outro aspecto dessa mistificação é, precisamente, a utilização do erotismo como meio publicitário: determinado sabão para a barba vender-se-á melhor se a sua imagem for acompanhada por outra imagem considerada “sugestiva”.
Assim, o homem moderno, tão preocupado com a sua liberdade interior, parece-se muito com os animais condicionados dos laboratórios pavlovianos! O significado do erotismo contemporâneo, na nossa maneira de ver, é o de um refúgio contra a angústia. O erotismo é o ópio do homem moderno, perseguido pela agitação da vida, correndo incessantemente de uma necessidade para outra, que não tem tempo de olhar para a sua cara de homem num espelho de serenidade. O erotismo é a magia medíocre introduzida no amor, em lugar da poesia espontânea de relações humanas autênticas. É a expressão, ao nível do casal, da profunda alienação do homem e da mulher, dominados por mitos, prisioneiros de feitiços, que são os produtos da organização social e que tomam a aparência de potências sobre-humanas, porque o homem ignora as suas implícitas determinações.
Na sociedade moderna, que exagera ao máximo as alienações sociais do homem, em que a concorrência entre os indivíduos torna impossível qualquer comunicação, as relações do homem e da mulher, que exprimem a profunda necessidade de comunhão do homem com o seu semelhante, estão pervertidas e transformam-se no seu contrário: tornam-se relações de luta, em que a manha, a força, a garridice são as armas respectivas dos protagonistas.
Por isso, devemos dar o seu sentido humano à necessidade sexual, para refletir corretamente na moral sexual e nas suas implicações concretas. Efetivamente, toda a questão se resume nisto: ou bem a sexualidade é esse remanescente de animalidade que temos em nós e a que devemos resignar-nos para perpetuar a espécie – mas com tristeza e contrição – ou então a sexualidade é, essencialmente, a necessidade humana de outrem, e, nesse caso, voltamos ao princípio.
É, por conseguinte, baseando-nos numa reflexão aprofundada sobre a significação antropológica da sexualidade e no conteúdo psicológico da ligação sexual que devemos debater problemas mais concretos da moral e do casal humano.
MORAL SEXUAL E CASAL HUMANO
Por conseguinte, para nós, o amor sexual é a expressão da necessidade humana de outrem, da profunda necessidade de comunhão do homem com o seu semelhante. A essência social do homem exprime-se mesmo no seu corpo: conferir ao corpo um estatuto de animalidade, já é uma decisão ideológica, um juízo de valor. Não se trata de negar o corpo e o de o diluir numa alma que estaria liberta das dimensões do tempo e do espaço. Também não se trata de aceitar o corpo como um mal inevitável: trata-se de dar corpo do homem o seu valor humano, o corpo do homem é o invólucro material necessário da pessoa humana. Mas a essência social do homem torna-o num ser duplo: é, ao mesmo tempo, ele próprio e outrem, é uma parcela das relações sociais, a sua socialidade originária impele-o para outrem numa intencionalidade essencial.
A essência social do homem faz que o homem tenha uma necessidade essencial de outrem: é o sentido profundo da fusão sexual, em que, na união física, o homem reencontra o seu semelhante e se reconcilia consigo próprio, voltando a encontrar a sua unidade fundamental. Esta hipótese filosófica parece-nos mais interessante e mais rica do que a hipótese psicanalítica de Ferenczi, segundo a qual na união sexual, o homem volta a encontrar o seio materno, a fusão física com a mãe, de que ele sentiria a eterna nostalgia. Nesta perspectiva enobrecedora e humanista da sexualidade, a organização necessária da vida sexual não deve aparecer como uma repressão e uma mutilação, mas sim, pelo contrário, conduzir-nos à plena realização humana do homem.
São as vicissitudes da história da humanidade – com a sua dupla alienação perante a natureza e perante as relações sociais de classes – que transformaram as limitações necessárias da vida sexual em interdições e em tabus, quer dizer, modalidades de caráter auto-repressivo, com a sua transgressão inevitável e a sua culpabilidade reacional. Efetivamente, se o corpo é a animalidade desgraçada da condição humana, as necessidades do corpo são, evidentemente, a expressão de um mal fundamental, isto é, o Diabo. E a relação de contiguidade anatômica entre os órgãos de reprodução, isto é, a vida, e os órgãos de excreção, isto é, da morte, cria uma confusão cloacal, que não é mais do que a expressão ideológica de uma boa partida que nos pregou o Criador!
E é assim que, no seu livro sobre o Erotismo, G. Bataille admite que o ato sexual é feio porque testemunha a nossa animalidade! Não é isto um juízo de valor, enriquecido com todos os nossos preconceitos, e que nada pode justificar objetivamente? Assim, os órgãos sexuais são feios, não sabemos por qual decreto, e qualquer espécie de erotismo não seria mais do que uma busca perversa dessa animalidade, em nós próprios. É esse o profundo sentido dos greacejos picantes e das obscenidades, como defesa contra a angústia de culpabilidade relacionada com o medo dessa suposta animalidade: isto é, o medo do Diabo.
Assim, voltando a dar o seu sentido humano à necessidade sexual, colocamos tudo no seu lugar. Mas esta maneira de pôr as coisas no seu lugar só pode ser feita partindo da ideia de que, na sociedade atual, todas as necessidades fundamentais do homem estão mistificadas e alienadas. A necessidade fundamental de comunhão dos homens entre si está alienada nos simulacros da religião e a necessidade fundamental de comunhão do homem consigo mesmo está alienada na culpabilidade sexual. Devido à essa alienação historicamente necessária do homem na sociedade de classes, a essência social do homem que tem necessidade de comunicação para se exteriorizar transforma-se numa coisa completamente inversa: é dessa maneira que podemos considerar que a linguagem é, simultaneamente, a melhor e a pior das coisas: porque, se é meio de comunicação, também se torna meio de não-comunicação.
Mas essa dificuldade da comunicação não é a essência da condição humana; está ligada a uma etapa histórica transitória. E é essa mesma dificuldade da comunicação que cria – entre outras causas de níveis diversos – as dificuldades de equilíbrio do casal humano. Quererá isto dizer que devemos esperar pela sociedade comunista, em que as relações sociais serão transparentes, para conseguir uma comunicação mais aberta? Isto já é outro problema, mas a tomada de consciência de certas alienações já é um elemento positivo. Especialmente, dando o seu sentido humano nobre ao amor sexual, libertando-o das interdições morais que o tornam ressequido, deverá poder-se facilitar a plena realização afetiva de casal.
Há outros fatores que, evidentemente, entram no jogo, fatores econômicos e culturais, mas considero-os de segunda importância e a sua evidência faz que nos possamos contentar em fazer-lhes alusão. Do ponto de vista que nos preocupa, são os aspectos psicológicos e morais que quero desenvolver. Evidentemente que são precisos abonos de família, um alojamento decente e condições culturais e econômicas ótimas para favorecer o desenvolvimento da família e a harmonia do casal. Essas são as condições básicas, necessárias, mas não suficientes. Os problemas morais e psicológicos têm a sua própria esfera, relativamente independente, e é ao seu nível específico que devemos refletir. Existem, por conseguinte, as condições concretas para a realização do amor; mas também há as suas condições ideológicas e morais.
Assim, a prostituição, que é a sua expressão econômica da opressão social da mulher, que é a expressão concreta da situação como mercadoria, só é possível por o corpo humano ser negado como tal e reenviado à animalidade, a mulher é uma mercadoria porque é utilizável como tal, a prostituição obedece a uma procura que nos reenvia aos tabus e a ignorâncias da sexualidade. Há, por conseguinte, dois níveis que se enfrentam um com o outro, mas que devem ser considerados independentemente: as alienações econômicas estão, portanto, implícitas e são as alienações sociais, culturais e ideológicas que se encontram no primeiro plano.
Assim, nas relações do homem e da mulher, a opressão social da mulher traduz-se pelo feiticismo do corpo, que só se tornou possível porque o corpo é a animalidade proibida, e a transgressão dessa suposta animalidade exprime-se psicologicamente pelas formas mistificadas do erotismo e, socialmente, pelo comércio do corpo, na prostituição. Essas alienações culturais – feiticismo do corpo, tabus da sexualidade, desconhecimento do valor humano da necessidade sexual – têm um grande peso na vida do casal humano.
Neste sentido, o acordo sexual do casal precisa de uma profunda desmistificação da sexualidade. Além disso, a separação social em categorias desigualmente providas do ponto de vista econômico e cultural ainda complica mais as dificuldades das relações humanas e a dificuldade da sua harmonização. Portanto, não é unicamente a educação sexual que pode resolver todos esses problemas. É o respeito pelo valor humano da pessoa, e pelo corpo humano, que deve estar na base da moral e da educação sexual. A minha intenção não é dar diretivas concretas, mas sim indicar um método de reflexão propício para descobrir regras mais justas.
Nesse sentido, a moral não deve ser repressiva, mas sim libertadora, no sentido de uma mais ampla realização do homem. A organização da vida sexual não deve, automaticamente, encontrar-se com os tabus e as interdições: estas últimas são as formas mágicas, a expressão alienada da regulamentação da vida sexual (especialmente através da preeminência da ideologia religiosa). É no estudo da psicopatologia que poderemos encontrar alguns elementos de reflexão. Efetivamente, a psicopatologia explica-nos o papel insubstituivelmente formador que a família tem para a criança; a prática social e psicológica, assim como a psicopatologia, contribui com importantes elementos no que se refere ao enriquecimento dos protagonistas, num casal duradouro e estável. Por conseguinte, a família, o casal estável, podem ser considerados como formas concretas de organização da sexualidade que vão no sentido da plena realização do homem.
Pelo contrário, o dom-juanismo e o seu equivalente feminino são testemunho das dificuldades afetivas e psicológicas do sujeito, da sua inaptidão para fixar a sua afetividade num companheiro único, segundo uma duração ótima, enfim, resumindo, de uma imaturação da afetividade. É na família monogâmica equilibrada, quando é possível que o indivíduo encontra o ambiente propício para a sua plena realização: as estruturas sociais – mesmo as melhores organizadas – não podem substituir o pai e a mãe para a criança; a afetividade do indivíduo tem necessidade, para se desenvolver, de polarizar-se em seres próximos, não se pode diluir numa interafetividade coletiva.
Mesmo os vários grupos e organizações coletivas (clubes, partidos políticos, equipes esportivas e outros grupos) não podem substituir a afetividade específica e eletiva na família e no casal. Os filhos terão sempre um pai e uma mãe; o homem e a mulher serão sempre o homem e a mulher de alguém; e essa afetividade específica, interpessoal e estruturadora do desenvolvimento da personalidade, necessita de uma organização específica da vida sexual, na família e no casal. Numa palavra, a sociedade, no seu conjunto, nunca será uma grande família.
Na sociedade comunista, em que todos os homens estarão fraternalmente reconciliados, todos os níveis e todos os matizes de sentimentos não só existirão, como também se encontrarão reforçados no que se refere ao seu nível específico. E, tendo sido realizadas as condições concretas para a felicidade, tendo-se tornado forças de massa os meios culturais da desalienação, a angústia social terá abandonado o homem que, na hora atual, procura encontrar o apaziguamento num erotismo exacerbado, que, pelo contrário, só consegue agravá-la, porque o homem permanece vulnerável às numerosas solicitações exteriores.
A plena realização do homem em todas as suas dimensões, em particular no trabalho criador, dará ao conjunto das necessidades dos homens uma satisfação equilibrada. É a não satisfação de certas necessidades fundamentais, especialmente no que se refere ao trabalho e ao desenvolvimento cultural, que faz que o homem moderno, por vezes, se refugie na afetividade e apresente exigências que o seu companheiro – que se encontra na mesma situação que ele – não pode satisfazer. Assim, e em parte, a vida do casal é tributária de considerações exteriores a ele, e a moral sexual não se pode distinguir e dissociar de uma moral mais ampla, de uma ética, que teria como objetivo o desenvolvimento harmonioso e total do indivíduo.
EM CONCLUSÃO
1. A sexualidade é a expressão específica da necessidade humana de outrem. É a origem de toda vida afetiva.
2. Ao longo da história, e sobretudo na sociedade moderna, está alienada no mito da animalidade.
3. Uma moral sexual progressista deve tornar a dar o seu sentido humano à necessidade sexual e enobrecer o amor sexual com todas as significações humanas do corpo humano.
I. FEMINIDADE E PSICOLOGIA FEMININA
ALGUMAS REFLEXÕES CRÍTICAS
Este estudo – que trata do contributo da psicanálise em relação aos problemas da feminidade e da psicologia feminina – deve ser considerado como uma introdução, um simples esboço, dada a complexidade dos problemas de que trata, tanto do ponto de vista das diversas escolas psicanalíticas, aliás, como do ponto de vista da crítica marxista. Para alguns, a “feminidade” é um mito que serve para justificar e manter perene o estatuto social e psicológico da mulher; para outros, é uma noção que encobre as características próprias da psicologia feminina, tais como a observação empírica as desvenda, sem fazer conjecturas sobre a sua origem social ou biológica.
E todas as controvérsias sobre o famoso “eterno feminino” se baseiam nos pontos de vista “biológico” ou “social”, quando nos parece que só os preconceitos morais ou os pressupostos filosóficos permitem escolher ou, até mesmo, resolver o problema. Efetivamente, quando abordamos o problema da “feminidade” temos dificuldade em acreditar que se possa tratar de um problema científico; lembramo-nos imediatamente das conversas mundanas, das revistas teatrais ou, no melhor dos casos, da literatura.
Contudo, o próprio fato de que se tenha organizado uma Semana do Pensamento Marxista sobre o tema da Mulher (e não sobre os problemas do Homem) testemunha perfeitamente que existem problemas específicos da mulher e que, por conseguinte, existe uma problemática da feminidade. A respeito do problema da feminidade e da psicologia feminina, a psicanálise contribuiu com importantes elementos, e parece-nos interessante fazer-lhes um exame crítico sério.
Para quem não está habituado à terminologia psicanalítica e à profusão especulativa neste domínio, há a possibilidade de ficar surpreendido e perplexo perante determinadas hipóteses avançadas: no entanto, é difícil considerar o empreendimento psicanalítico como uma enorme impostura que se deve unicamente denunciar. Devemos ver nele o acesso empírico a problemas complexos, elucidados consoante sistemas conceituais insuficientes, em que a ausência de rigor, ou até mesmo de preocupação metodológica, dá insidiosamente lugar à especulação e ao arbitrário.
A nossa intenção é, precisamente, entre outras, a de preparar um aparelho metodológico que permita reorganizar – sobre bases teóricas sãs – todo o material empírico que nos é oferecido pelo método psicanalítico. E, assim, vou falar sucessivamente de:
1. Um apanhado bastante esquematizado das bases da psicologia psicanalítica.
2. O estudo da “feminidade”, segundo a psicanálise.
3. Um ensaio de exame crítico de todos estes dados.
Ver-me-ei obrigado a abandonar, pelo caminho, um determinado número de problemas teóricos importantes – secundários em relação ao nosso propósito – para poder mais rapidamente entrar no âmago da questão.
A PSICOLOGIA PSICANALÍTICA
Para compreender a maneira como a psicanálise trata da “psicologia feminina”, é preciso começar por examiná-la considerando-a como teoria psicológica. A psicanálise, considerada como psicologia, pretende manter-se no âmbito das ciências naturais, apoiando-se na biologia. Segundo Fenichel, “o que caracteriza a psicanálise é aquilo que ela considera como estrutura biológica, quais as influências do meio que ela considera como plásticas e como estabelece ela a relação entre a influência do meio e as estruturas biológicas”. Este mesmo autor precisa: “A psicologia científica (isto é, a psicanálise) explica os fenômenos mentais como sendo o resultado das necessidades físicas primitivas e das influências do meio sobre essas necessidades”. Quer isto dizer que a psicologia freudiana é o estudo das interações das necessidades instintuais em relação ao meio social e cultural ambiente; e, consoante se puder o acento sobre o aspecto instintual ou o aspecto social, encontraremos as teorias biologistas ou culturalistas da psicanálise.
Esses preliminares, que podem aparecer como banalidades – todos estamos de acordo ao dizer que o homem tem necessidades e que as satisfaz relativamente ao ambiente social -, esses preliminares são importantes porque condicionam o desenvolvimento da doutrina freudiana. (Mas todo o problema se resume, justamente, em saber se o homem é simplesmente um “ser-de-necessidades”, uma enorme maquinaria instintual que esbarra com outra maquinaria – a eterna ordem social – constituída fora dele. Voltaremos a tratar deste problema mais adiante).
Por conseguinte, a psicologia analítica está baseada numa dinâmica dos instintos, na sua relação com a sua satisfação na realidade. Essa dinâmica realiza-se nas interações dialéticas do “princípio do prazer” e do “princípio da realidade”. (Poderíamos dizer muita coisa sobre o valor epistemológico desses princípios de prazer e de realidade. Voltaremos a falar disso mais adiante. Pelo momento, consideremos a doutrina freudiana tal qual ela se apresenta).
A expressão psicológica do instinto é a pulsão. O instinto reconduz à infra-estrutura biológica; a pulsão é a sua emanação psicológica. (Temos aqui, também, uma manipulação epistemológica que merece exame. A noção de pulsão baseia-se num modelo dinâmico extraído do século XIX, supõe a natureza energética do fenômeno). Entre todas essas necessidades cuja satisfação é necessária para a vida do indivíduo, a fome e a sexualidade são necessidades essenciais. Freud escreve: “O ser humano tende para essas duas finalidades: a sua própria conservação e a conservação da espécie”. Mas todas as necessidades orgânicas correspondem a um estado de tensão psíquica, ao qual a satisfação põe fim, por um estado de prazer. E, como o estado de prazer encontra a sua expressão mais completa e mais profunda na satisfação sexual, todo o prazer está incluído nesse denominador comum e toda a procura de prazer se qualifica como sexual.
Assim, a libido é essa força pulsional pela qual o sujeito tende a reduzir os seus estados de tensão em busca da satisfação do prazer. A libido também é de natureza sexual, e Freud faz a distinção entre o sexual e o genital; considera o genital como uma forma particular e específica da libido. Evidentemente, ficamos um pouco surpreendidos perante todas essas formulações com ressonâncias metafísicas. De momento, digamos apenas que elas constituem uma descrição fenomenista dos diferentes elementos descobertos no decorrer do tratamento analítico.
Não tomamos a responsabilidade deles, tanto mais que para a doutrina psicanalítica são mais do que simples noções descritivas: desempenham o papel de conceitos explicativos, apesar da sua enfermidade epistemológica, e é isso que, entre outras coisas, leva às facilidades especulativas. São os revezes do desenvolvimento da libido que irão servir de base para o desenvolvimento do psiquismo do indivíduo. A libido é, por conseguinte, a força pulsadora de base que serve de motor a todas as atividades do indivíduo, nas suas relações com o mundo exterior.
(Poderíamos dizer: é o mesmo que afirmar que a vida é a vida, e rirmos dessa tola afirmação evidente. E é essa metafísica dos instintos que choca o nosso espírito materialista. Mas essa libido parece ser indispensável a Freud para fundar biologicamente a sua psicologia; numa das suas obras, escreveu: “A libido é a energia de que estão carregadas as pulsões sexuais”. Aliás, escreveu igualmente: “Também se pode, ou abandonar o termo “libido” ou utilizá-lo para designar a energia psíquica”. Em qualquer caso, e apesar dos grandes esforços de renovação teórica, nenhum psicanalista moderno está disposto a abandonar os termos “libido” ou “libidinal”). Estas pequenas considerações de base são indispensáveis para melhor se compreender a continuação do desenvolvimento teórico. Para os psicanalistas – à parte alguns defensores da escola Culturalista (especialmente Karen Horney) -, a mulher está psicologicamente submetida ao seu sexo biológico, e a sua feminidade, a sua psicologia feminina, não é mais do que a responsabilidade de manter, ao nível psíquico, particularidades inerentes à sua natureza biológica.
Freud diz explicitamente: “A anatomia é o destino”. Trata-se, por conseguinte, de explicar, em termos de psicologia dinâmica, como é que o ser humano do sexo feminino se torna uma mulher, ou, segundo o que diz Freud: “Como é que a criança, de tendências bissexuais, se torna uma mulher?”. Neste caso, a chave mestra do pensamento freudiano é o complexo de Édipo e a existência da sexualidade infantil, que condiciona a existência da situação edipiana. Durante o seu desenvolvimento psicoafetivo, a criança passa por uma série de estágios, que são outras tantas etapas de evolução da libido, isto é, da tendência do ser para satisfazer as suas necessidades fundamentais através de uma busca dirigida para o exterior (contrariamente ao feto, que vive num meio interno fechado). A primeira forma de relações do lactente com o mundo exterior é a alimentação.
– É o estágio oral, durante o qual, segundo Freud diz: “Graças à maneira como é alimentado o lactente, é a zona bucal erógena que predomina, no que se pode chamar a atividade sexual desse período da vida”.
– A segunda fase chama-se sádico-anal, porque corresponde ao período da dentição, ao desenvolvimento dos músculos e do controle dos esfíncteres.
– A terceira fase, chamada fálica, é o período durante o qual o membro viril (o pênis) ou que lhe corresponde na menina (o clitóris) adquirem, para os dois sexos, a importância principal.
– A última fase da organização definitiva é o estágio genital, que se estabelece depois da puberdade.
Consoante as tendências e as escolas (Abraham, Jones, H. Deutsch, Melanie Klein, etc.), são apontados diversos estágios intermediários, que não contribuem com nada de essencial para o caso. Seja qual for a sua complexificação, o “modelo” analítico mantém-se sempre o mesmo: “É o desenvolvimento da vida sexual que dinamiza a vida psíquica; existe uma sexualidade infantil com várias zonas erógenas que evoluem ao mesmo tempo que o desenvolvimento biológico”.
Todas estas noções foram adquiridas através da análise dos pacientes, e Freud precisa: “É graças à patologia – que isola e exagera algumas relações – que conseguimos apreendê-las; se se tivessem mantido normais, nunca as teríamos conhecido”. E nós sabemos que são as “fixações” e as “regressões” durante esses vários estágios do desenvolvimento libidinal que, segundo os psicanalistas, permitem elucidar os mecanismos da patologia mental. Mas é preciso precisar – e tem importância para a continuação deste trabalho – que a libido não funciona por conta própria; investe-se num objeto, e é esse investimento objetal que constitui, propriamente falando, a base da vida psíquica. “O objeto libidinal”, segundo a terminologia analítica, é aquilo em que a libido se investe para satisfazer a sua natureza profunda; é aquilo que, no mundo exterior, desempenha essa função. Mas a sua realidade é interior, subjetiva, e exprime-se pela mediação múltipla e complexa dos fantasmas, tais como emergem e se desenvolvem ao longo da investigação analítica.
Assim, o psiquismo inconsciente, ao qual a investigação analítica dá acesso, tem vários patamares, a sua expressão realiza-se através da vida dos fantasmas e é o fantasma que testemunha a sua existência e a sua realidade. Todas essas noções utilizadas na terminologia analítica são conceitos operacionais, provenientes da fenomenologia descritiva do tratamento. (Esta precisão é uma precaução útil para examinar o empreendimento psicanalítico, porque todos os mal-entendidos se devem ao fato de que a teorização analítica dá, como conceitos explicativos, noções que se conservam ao nível descritivo, que, consideradas como tal, valem tanto como qualquer vocábulo e porque não nos devemos deixar desorientar com a terminologia sexual do vocabulário analítico).
Assim, para fundar biologicamente a feminidade na qualidade de noção explicando claramente um conteúdo psicológico, Freud e os seus continuadores partiram do estudo do desenvolvimento diferenciado da libido, no menino a na menina. É o estudo dos investimentos libidinais, consoante o sexo, que serve de referência psicológica para a diferenciação biológica. É disso que agora vou tratar.
ESTUDOS DA “FEMINIDADE”, SEGUNDO A PSICANÁLISE
A base de todos os desenvolvimentos teóricos é a situação edipiana e as suas consequências. Fenichel escreve: “Em ambos os sexos, o complexo de Édipo pode ser chamado o apogeu da sexualidade infantil; o desenvolvimento do erotismo – do erotismo oral, pelo caminho do erotismo anal para a genitalidade – culmina nas pulsões edipianas, que, geralmente, se expressam através de uma masturbação genital cheia de sentimentos de culpabilidade”. Efetivamente, e ainda segundo a teoria analítica, a sexualidade infantil implica a mãe como primeiro objeto de amor.
A mãe que alimenta, a mãe que amamenta, a mãe que acaricia, é o primeiro objeto dos investimentos libidinosos da criança. Durante o estágio oral, é o seio ou o leite que representa a mãe; no estágio anal, é na utilização e no controle dos esfíncteres que a mãe aparece; no estágio fálico, a mãe é mais especificamente designada como objeto erótico. É quando intervém o pai que se estabelece a situação edipiana. O pai é o rival, o maçador. O amor pela mãe completa-se com o ódio pelo pai. Como sair dessa difícil situação, como conservar o amor da mãe e o do pai, com o qual o filho se quer identificar? A saída é a castração imaginária. Para o rapaz, as coisas são simples; renuncia à mãe, com receio da castração, com medo de perder o que o especifica como rapaz, isto é, o seu pênis. Porque, entretanto, apercebeu-se de que esse pênis, de que se sentia tão orgulhoso, não era tão universal como supunha. É o conhecimento da diferenciação sexual que induz à angústia de castração.
Desta maneira, o rapaz livra-se do complexo de Édipo, através da castração. Para a menina, as coisas são mais complicadas. A menina também se apercebe da diferenciação sexual; apercebe-se da sua ausência de pênis. Por essa razão, para além do estágio fálico, até ao qual ela é o equivalente do menino, tem de mudar o objeto erótico. Esse objeto essencial, portador do pênis tão desejado, passa a ser o pai. Desta maneira, a menina assume a sua castração entrando no Édipo. E aqui estão, esquematicamente resumidos, os elementos de base da futura feminidade.
Não vou referir os pormenores das discussões entre as diferentes escolas psicanalíticas, a respeito dos valores respectivos dos estágios pré-edipianos ou a respeito do lugar cronológico da castração, que são diferentemente apreciados por Melanie Klein, por Jones e por outros autores modernos. O que é importante discutir é o valor heurístico deste esquema e dos seus desenvolvimentos. Assim, o complexo de Édipo e o seu destino, isto é, a angústia de castração e o desejo do pênis, são os elementos de base da teoria analítica da sexualidade feminina, e, por conseguinte, da feminidade e da psicologia feminina.
Para a teoria analítica, os primeiros investimentos libidinais – isto é, a pré-história da afetividade – efetuam-se na direção do casal parental e a personalidade do indivíduo desenvolve-se e estrutura-se nessa dialética psicoafetiva, ao mesmo tempo que se matura a instrumentação biológica, isto é, neurofisiológica, daquilo a que se chama as relações objetais. A observação direta destes fatos e, sobretudo, o material obtido pelo tratamento analítico permitiram pôr em evidência as suas grandes linhas. O que é importante, segundo a nossa opinião – e vê-lo-emos mais adiante -, é a utilização e a significação que se dá a esse material empírico.
Assim, para a psicanálise, a feminidade, e o que dela emana, isto é, os traços da psicologia feminina, constitui a aceitação pela mulher da sua inferioridade sexual, a aceitação da sua mutilação biológica, em resumo, a aceitação da sua castração. “O postulado de base é, efetivamente, a valorização simbólica do falo, tendo como corolário a aceitação, pela mulher, do luto do falo”, segundo a fórmula de Marie-Bonaparte. Como se vê, trata-se sempre de transpor – em vocabulário psicológico – a evolução psicobiológica dos três ou quatro primeiros anos da infância, tomando em consideração o desenvolvimento biológico e físico da sexualidade como eixo de coordenada do desenvolvimento psicológico.
São, portanto, determinações biológicas que se organizam segundo uma dinâmica psicológica durante a situação edipiana que condicionam a evolução psicológica ulterior da mulher, com as suas características próprias. Assim, o destino feminino está marcado desde o ponto de partida no seu sexo, considerando que este, pela sua constituição anatômica, condiciona as vicissitudes da sua escolha objetal. Não tendo pênis, deve renunciar a amar a mãe, a primeira dispensadora de carícias e de cuidados, deve virar-se para o pai e substituir simbolicamente o desejo do pênis pelo desejo de um filho que receberia do pai.
Assim, não é a ameaça da castração que faz que se desvie do seu primeiro objeto incestuoso (como para o rapaz), é o medo de perder o amor dos pais que adquire, para ela, uma importância maior do que no rapaz. Teria, por conseguinte, razões menos fortes e menos urgentes do que tem o pequeno homem para interiorizar as interdições parentais (isto é, a instauração da instância interditiva e repressiva que é o superego), e, sendo, por essa razão, o superego da mulher mais fraco, mais lenta a sua instalação, isso pode ser a explicação para que a mulher tenha menos sentido da justiça ou da moral do que o homem e se mostre mais influenciada do que ele, nos seus juízos, pelas suas emoções ternas ou hostis.
Da mesma maneira, o desejo do pênis, que responde à difícil renúncia da castração real, explica – segundo Freud – “que a inveja e o ciúme desempenham um papel mais considerável na vida espiritual da mulher do que na do homem”. E, sempre no mesmo sentido, Freud escreve: “A mulher – devemos confessá-lo – não possui o sentido da justiça a um grande nível, o que se deve atribuir, sem dúvida, à predominância da inveja no seu psiquismo. Efetivamente, o sentimento da equidade provém de uma elaboração da inveja e indica as condições dentro das quais é permitido que essa inveja se exerça”. Também dizemos que as mulheres têm menos interesses sociais do que os homens e que, nelas, a faculdade de sublimar os instintos é mais fraca.
No que se refere ao interesse social, a inferioridade da mulher deve-se, sem dúvida, a esse caráter social que é o próprio de todas as relações sexuais. Assim, segundo Freud, é a sexualidade feminina, tal como emana do seu destino anatômico, que condiciona o comportamento específico da mulher. E ele também escreve: “Livremo-nos de subestimar a influência da organização social, que, essa também, tende para colocar a mulher em situações passivas”. E acrescenta: “Tudo isto se mantém muito pouco claro”. Mas o seu pensamento, no fundo, fica muito bem expresso na seguinte frase: “Não nos esqueçamos também da relação particularmente constante que existe entre a feminidade e a vida pulsional”. As regras sociais e a constituição que lhes é própria coagem a mulher a recalcar os seus instintos agressivos; daí a formação de tendências muito masoquistas que conseguem erotizar as tendências destruidoras dirigidas para o interior.
E afirma: “O masoquismo é, por conseguinte, tal como se diz, essencialmente feminino”. Assim, para a mulher, a feminidade consiste em assumir o seu destino anatômico. A feminidade existe no seu estatuto físico e corporal: para a mulher, trata-se de assumir a realidade subjetiva, considerando que esta reflete, na sua história, as vicissitudes do desenvolvimento biológico. Efetivamente – seja porque lado for que encaremos o problema -, para a psicanálise, a psicologia feminina existe independentemente do estatuto social e cultural da mulher; é, pelo contrário, a sua “psicologia” que assegura à mulher a sua condição social e histórica.
Só K. Horney define “o desejo do pênis” como um protesto da mulher contra o seu estatuto social de inferior, pois a mulher, durante séculos, foi conservada afastada das responsabilidades econômicas e políticas. Por isso, teve de concentrar-se no amor, que elevou ao nível de valor único e insubstituível. Mas, além disso, a acessão à feminidade supõe não unicamente a separação entre ela e a mãe, como também aceitar ser como esta é.
Aqui intervém o mecanismo da identificação, que se reúne ao narcisismo primário, das primeiras relações objetais, no momento em que o latente se ama a si próprio amando a mãe, em que se realiza a identificação fusional narcísica. Segundo um jovem autor atual, Stein, tudo se passa entre “ser como a mãe” no aproximado total e inicial; e “ser como a mãe”, isto é, tê-la para si, possuí-la. Por outras palavras, e segundo a terminologia moderna, para a qual o falo está no centro de tudo, para a menina trata-se do desejo de possuir o falo que a mãe lhe recusou e que espera receber do pai. A Sra. Ruef-Duval escreve: “Entre esses dois polos de ‘o ser como’ e de ‘o ter’ esboça-se toda a evolução feminina”. Em termos mais resumidos, é o eterno “ter ou não ter” que preside ao desenrolar da feminidade, tanto na sua sexualidade, como na sua psicologia.
ALGUMAS REFLEXÕES CRÍTICAS
Que devemos pensar de toda esta construção? Evidentemente, devemos evitar ironizar sobre esta inflação da sexualidade. Para Freud, as pulsões sexuais estão na origem da vida afetiva e condicionam fundamentalmente o psiquismo. É uma das grandes críticas que lhe faz Simone de Beauvoir. A sexualidade não é senão um dos aspectos do ser-no-mundo. O trabalho, a guerra, o jogo, a arte, também são maneiras de ser-no-mundo que se não deixam reduzir a nenhuma outra. É uma crítica de que tomamos a responsabilidade. Vamos, por conseguinte, articular a nossa crítica em dois níveis:
1. Do ponto de vista do conteúdo.
2. Do ponto de vista do método.
1. O CONTEÚDO
Visa o ponto de vista estritamente sexual de toda a psicologia analítica. Devido a isso, encontra-se valorizado e privilegiado um dado incontestável e importante do ser humano em detrimento de outros elementos da vida psicológica. Devido a esse fato, a sexualidade passa a ser o denominador comum de todas as atividades do ser humano, pois estas podem ser, todas elas, reduzidas ao seu coeficiente sexual. No entanto, essa redução é ilegítima, porque o trabalho, a arte, a guerra, têm outros componentes mais importantes que a simples sexualidade. Além disso, todas as atividades do homem se exprimem através de uma imensidade de mediações sociais, em que estão incluídas a vida afetiva e a vida sexual.
O ser humano não se encontra submetido à sua natureza biológica, pois que, precisamente, toda a história do homem é a da socialização da sua natureza. Assim, a feminidade não pode ser compreendida como a expressão única da anatomia e da biologia femininas. Todos os fenômenos naturais se exprimem na sociedade pela mediação das estruturas e das instituições sociais, através dos valores culturais e morais, por intermédio de atitudes intelectuais ou afetivas; em resumo, não existe nada no ser humano que, pela sua essência própria, não seja mediatizado pelo histórico e pelo social.
Assim, é preciso mostrar que a noção de “feminidade” não exprime as características psicológicas da mulher – tais que se poderia crer que teriam origem nas suas particularidades biológicas -, mas, pelo contrário, traduz a ideia que temos da mulher, numa dada sociedade, ideia essa que, aliás, tem uma tal força que a mulher se submete a ela e conformar-se então com as exigências do modelo que lhe é imposto, mais do que com as da sua própria natureza.
Efetivamente, a inferioridade social da mulher é um fato. Mas não é uma fatalidade biológica, e sim o resultado provisório da evolução histórica. É uma situação particular da mulher, socialmente e historicamente determinada, que explica certos traços particulares, que marca todo o conjunto de comportamentos de manifestações que englobamos neste termo genérico de feminidade. Não se trata de nos alargarmos sobre o fato da inferioridade econômica da mulher, do seu segundo lugar na produção, da sua sujeição econômica ao homem, com o que daí emana ao nível dos costumes e do comportamento: garridice, prostituição, casamento como dote, etc.
A ausência de verdadeira liberdade econômica da mulher – mesmo na nossa época há poucas mulheres que trabalham – é a causa profunda desse suposto “eterno feminino”. Efetivamente, a sujeição econômica da mulher ao homem exprime-se nas instituições, nos costumes, na cultura e nas ideologias. Daí emana todo um sistema de pensamentos e de atitudes, que são tomados como eternos e obrigatórios, quando, afinal, são relativos a um momento determinado da história. Evidentemente, é através da sua natureza, pelo meio da sua “biologia”, que a mulher exterioriza a sua impotência social, a sua defesa e a sua reação contra esta.
Daí vem a importância concedida aos seus atributos físicos, aos vários artifícios e técnicas, para os pôr em valor, e até mesmo para os vender. Diz-se: “Uma mulher deve ser bela; o homem não tem necessidade de ser belo”, etc. Os álibis estéticos não são suficientes para dissimular essa insignificante desforra da mulher no erotismo, que não é mais do que uma compensação ilusória para uma escravidão verdadeiramente real. A mulher é “presa e serva de voluptuosidades”, como escrevia K. Marx, e não pela fatalidade dos seus atributos sexuais, mas pela responsabilidade da história e da sociedade. Devido à sua inferioridade econômica, toda a vida da mulher se vê assim polarizada para procura do homem, para essa procura da sedução que é mantida e hipertrofiada, hoje, pelas revistas e pelos jornais ilustrados.
A “presse du coeur” não exprime uma necessidade específica e necessária da mulher: pelo contrário, reflete a situação de inferioridade da mulher e mantém-na. A mulher não se exprime na produção de mercadorias: ela própria é uma mercadoria e, por essa razão, perdeu toda a liberdade. Não é um indivíduo ativo e livre, mas sim um objeto perdido na sua natureza de mercadoria: está alienada. Essa alienação social da mulher é mantida pelos costumes, está cristalizada nas instituições, mas os costumes e as instituições são, por si mesmos, o reflexo organizado da situação econômica da mulher na sociedade, que, em última análise, explica os traços psicológicos femininos, tais como estão descritos no mito da feminidade. Mas o próprio mito mantém a sua realidade, repercutindo-se ao nível dos comportamentos que dessa maneira o vêm justificar.
Assim, a passividade, a ausência de iniciativa, a timidez, ou também os seus opostos reacionais: garridice, a sedução, a manha, etc., que facilmente se atribuiriam às glândulas endócrinas, não são mais do que a expressão, ao nível do indivíduo, de uma determinada situação social. Não se pode dissociar a psicologia feminina do seu contexto social e cultural. Situação econômica, instituições, costumes, valores, morais, comportamentos, traços psicológicos, são as diferentes estratificações que concorrem para criar o mito do “eterno feminino”, e esse mito, devido ao seu poder social, vai contribuir para manter, quando não criar, aquilo de que, inicialmente, não era mais do que a expressão fantasmagórica.
Também a teoria analítica, essa, é a expressão cultural do mito da feminidade: é a consequência desse mito, ao mesmo tempo que lhe dá uma caução com aparência científica. Para os psicanalistas, a mulher seria, pois, uma espécie de homem castrado que viveria com a eterna nostalgia do falo perdido. Esta teoria baseia-se em observações verídicas relativas ao comportamento sexual das crianças e, em especial, na descoberta – por vezes dramática – que a menininha faz quando vê a forma do seu sexo, contrariamente ao triunfo do homenzinho que está “feito como o pai”, como já dissemos atrás. Mas este comportamento infantil é, por si mesmo, o reflexo da compreensão social da sexualidade, que valoriza o falo porque é o apanágio do homem, que ocupa o lugar preponderante na produção social.
Assim, a psicanálise inverte a ordem dos valores; para ela, o homem tem o poder social porque está dotado com um órgão sexual particular. Pensamos, pelo contrário, que é porque o homem tem o poder social que o seu órgão sexual é um símbolo de força. A nosso ver, a simbólica sexual é a transposição – ao nível do pensamento primitivo e mítico – de uma situação social e histórica concreta. A psicanálise – através de uma explicação mistificada, o “luto do falo” – exprime a situação inferior da mulher na sociedade. Não é a ausência do falo que a mulher lamenta; é, sim, o seu lugar secundário na produção social. Mas este lugar secundário na produção social, em vez de ser atribuído à sua verdadeira causa – isto é, à organização social, à diferenciação do corpo social em classes antagonistas -, atribui-se à natureza, à biologia, que não estão na origem do modo social de produção, mas que, pelo contrário se veem transformadas e orientadas por ele.
A simbólica sexual é verdadeiramente a transposição ao nível do pensamento mágico de uma determinada situação histórica: a inferioridade econômica e social da mulher. A simbólica sexual, à sua maneira, reflete perfeitamente uma realidade concreta; mas reflete-a de uma maneira fantasmagórica, invertida, como a imagem na câmara-escura do aparelho fotográfico. A psicanálise, pelo próprio fato de o seu pensamento ser idealista, considera essa transposição simbólica como se fosse realmente a verdade e considera que a simbólica sexual exprime uma realidade psicológica, proveniente da função biológica da mulher, e cuja realidade social seria o resultado inelutável.
Na nossa opinião, a simbólica sexual é um modo de pensamento metafórico, que utiliza os elementos do corpo como meios de expressão poética. Não é um modo de pensamento, nem racionalista, nem determinista. O pensamento mágico é um pensamento imaginante, que utiliza o concreto imediato como meio de expressão. O corpo é que é, para o ser humano, o seu modo de expressão imediato. É no seu corpo que o homem primitivo vai procurar as imagens concretas; e os órgãos sexuais, porque são os instrumentos da reprodução – isto é, da vida -, passam a ficar dotados de um poder mágico. Mas essa alienação nos órgãos sexuais, que utiliza os órgãos sexuais como metáforas poéticas, dá uma imagem invertida da realidade, como acontece com todos os fenômenos de alienação.
A simbólica sexual não é o reflexo direto e fiel da realidade; como todas as simbólicas, é a transposição do real, e a utilização do sexual só tem validade em razão da sua função metafórica. Por conseguinte, o verdadeiro problema é saber por meio de que desvio metodológico a psicanálise toma a responsabilidade do simbólico como expressão direta dos fenômenos biológicos, como se os fantasmas fossem secreções do inconsciente. Deveríamos fazer a crítica completa da metodologia analítica. Mas contentar-me-ei com algumas reflexões.
2. A CRÍTICA DO MÉTODO
Concerne a utilização do material proveniente dos tratamentos analíticos, a partir do que se constituiu a psicologia dinâmica. O tratamento analítico é uma situação experimental artificial destinada a criar as condições adequadas para o valor terapêutico da relação médico-doente. A complexidade e as dificuldades da terapêutica psicológica exigem que se ultrapasse a intuição elementar da psicologia empírica para utilizar ao máximo os efeitos terapêuticos da relação interindividual. Obtém-se um determinado número de noções que explicitam o movimento do tratamento analítico, ao mesmo tempo que permitem codificá-lo. Temos, como exemplo, a noção de transferência, que permite melhor compreender e dirigir a situação afetiva, ou os diferentes estágios que são pontos de referência analógicos entre as coordenadas de neurose e as do desenvolvimento psicoafetivo infantil.
Efetivamente, o tratamento analítico tem tendência para despojar o indivíduo dos seus farrapos socioculturais para pôr a nu a sua armadura psicoafetiva. Trata-se, portanto, de uma situação artificial que liberta dados próprios para as condições desta situação, e o modelo analítico torna-se, por conseguinte, um modelo operatório apropriado para esclarecer e organizar o empreendimento terapêutico. Considerado como sistema operacional, o modelo analítico pode tirar partido de uma validade epistemológica, mas no quadro estrito do empreendimento psicoterápico. Tem-se o direito de transportar do laboratório analítico os dados que lhe são específicos, para os aplicar ao homem concreto? O homem-do-divã é o homem-da-rua?
Certamente que não. A confusão deve-se ao fato de o laboratório analítico ser uma situação humana, e não um laboratório no sentido habitual do termo. Mas não deixa de ser verdade que essa situação é excepcional, singular, experimental, e que não tem equivalente na vida cotidiana. Aliás, não tem mais do que qualquer outro empreendimento terapêutico. Que faz que a psicanálise passe, assim, sem transição, sem salto qualitativo, do divã para a vida? Creio que devemos regressar à crítica fundamental de Politzer, para quem a psicanálise explica a história pela psicologia, e não a psicologia pela história. É sempre a mesma iniciativa idealista, que isola o indivíduo dos seus condicionamentos sociais, econômicos e culturais, para o reduzir ao seu aparelho psíquico, com os seus três níveis: o Id, o Ego e o Superego.
Como todas as noções analíticas, as “instâncias” valem como noções operacionais no quadro do tratamento para definir uma trajetória terapêutica. Mas não contribuem com mais nada para o estudo da psicologia concreta porque o homem total não se define unicamente pela sua pré-história infantil, mas também pela totalidade da sua história concreta. Na teorização analítica, deslizamos incessantemente da analogia para a explicação, da metáfora para o conceito, e essa permanente confusão autoriza todas as construções especulativas e justifica a invenção perpétua de novos conceitos, à medida que se precisa deles.
Desta maneira, dir-se-á que a mulher é “uma ave ferida”. É uma imagem poética que serve para designar a sua fraqueza e a sua precariedade social na etapa histórica atual. Mas essa metáfora, num abrir e fechar de olhos e por um abrir e fechar de olhos, também insinua a castração. A mulher é uma ave ferida porque lhe falta qualquer coisa! Mas, quer se trate de castração em termos de falta simbólica, quer se faça a interessante distinção de Lacan entre o simbólico – que testemunha a existência real do objeto, o falo – e o imaginário que é o nível de frustração vivida, sejam quais forem essas sutilezas, a indigência do postulado de base mantém-se. Admite-se como um dado irredutível o que, precisamente, é preciso explicar. Ora, sejam quais forem as precauções experimentais, o tratamento analítico tem, no divã, o homem-da-rua, e toda a fantasmatização que serve a essas reconstruções “a posteriori”, se encontra amplamente condicionada pela intervenção do social e do cultural, ao nível do simbólico.
Se, durante o tratamento analítico, o desejo do pênis, o complexo de castração etc., se manifestam no seu movimento fantástico, não testemunham a emergência de um biológico puro e bruto. Já se encontram muito socializados e a sua significação não se pode extrair senão em relação ao contexto social e cultural. O desejo do pênis existe, provavelmente; o complexo de castração também existe, sem dúvida; mas isso não acontece porque a menininha – através das suas peripécias libidinais – se vê obrigada a renunciar ao desejo de possuir a mãe, mas sim porque a vida social e a história valorizam o homem e porque, por conseguinte, através da transposição metafórica do pensamento mágico, o seu órgão sexual simboliza o seu poder real.
Nisto, estamos de acordo com K. Horney, para quem a atração que a menina sente pelo pai ou pela mãe se deve atribuir às condições que prevalecem no ambiente familiar. Para ela – K. Horney -, a criança dará preferência àquele que melhor souber satisfazer as suas necessidades – sexuais ou outras -, que lhe manifestará mais amor ou que lhe oferecerá a mais sólida proteção. Igualmente, para Simone de Beauvoir, a cobiça sentida pela menininha em relação ao pênis é, efetivamente, o resultado de uma valorização antecipada da virilidade. Pensamos, como ela, que só no seio da situação considerada na sua totalidade é que o privilégio anatômico constitui um verdadeiro privilégio humano.
EM CONCLUSÃO
Muitos problemas ficam em suspenso, tanto no interior da escola analítica, como para nós. Ao referimo-nos ao tema da “Psicologia Feminina”, é do conjunto da psicanálise que deveríamos ter tratado. Aqui, não fiz mais do que o esboçar, no interior de um debate. O que é preciso reter é a significação cultural da psicanálise, na sua qualidade de caução ideológica do mito da feminidade, que, em troca, ela contribui para manter. O que me parece bastante importante aprofundar é essa ideia da simbólica sexual, como primeira manifestação ou como manifestação primitiva do pensamento simbólico, utilizando o corpo como material metafórico. Enfim, na minha opinião, toda a crítica da psicanálise é a do deslize epistemológico dos conceitos operacionais úteis, para descrever os diferentes incidentes e fases do tratamento, que a estruturam e ordenam, para os conceitos explicativos que ignoram totalmente a história, a sociedade e a cultura. A psicanálise, que é essencialmente um fenômeno cultural, nega-se a si mesma como tal, pela inconsciência das suas determinações.
Transcrição feita por Felipe Andrade do capítulo Sexualidade e Feminidade, do livro Sexualidade e Feminidade (Bernard Muldworf), Publicações Europa-América, 1974.