Política atômica[1]

A humanidade está ocupada destruindo a si mesma. Nesta pequena frase a ameaça atômica está rigorosamente formulada. Assim como mais de cem mil pessoas já foram mortas pela primeira e ainda primitiva bomba atômica, milhões serão queimadas e exterminadas pela bomba atômica atual e aperfeiçoada. Além disso, a atmosfera, o oceano e o solo, aos quais a vida que se desenvolveu nos últimos milhões de anos se adaptou, são envenenados e se tornam inadequados para a vida humana. Quem causa essa catástrofe – aliás, mais do que uma catástrofe essa destruição completa – na humanidade? A própria humanidade.
Posto desta forma, o problema é absurdo. Não pode ser verdade. Também não é verdade.
A humanidade, isto é, nós, as muitas centenas de milhões de pessoas normais na Europa, na América e na Ásia. Quando perguntam, “por que fazem isso?”, a gente só pode responder: a gente não tem nenhuma influência nisso. A gente não pode mudar nada. Quem decide isso são pequenos grupos individuais de políticos, chefes de Estado, ministros e generais: Eisenhower, Dulles, Bulganin, Krushchev, Churchill, Eden, com seus funcionários mais próximos. Quando as bombas são lançadas, isso acontece por ordem deles. A gente supõe que nenhum deles queira provocar o desastre na humanidade. Porém, os pequenos atos hostis com os quais creem que devem defender os interesses que foram confiados a eles podem inesperadamente e sem que ninguém perceba causar uma catástrofe. O que a gente pode fazer contra isso?
A situação é a seguinte: de um lado há uma dúzia de detentores do poder que dominam o mundo, os governantes, que possuem em seus países o poder de decisão de, por exemplo, se e quando acontecerá uma guerra atômica. Do outro lado há a centena de milhões de governados, que, quando questionados, dizem: não à guerra atômica! No entanto, ninguém pede a opinião deles, eles não dizem nada. Eles não podem se expressar. Se fizer a pergunta a essas pessoas desse jeito: que defeito espiritual ou moral torna a humanidade impotente para evitar essa catástrofe completa, então a resposta será: não é um déficit espiritual, nem uma falta de ciência espiritual, nem uma falta de sentimentos morais, mas uma falta de organização política. As massas que não querem permitir a bomba não têm um órgão político, uma organização, por meio do qual possam fazer valer suas vontades.
E quanto aos parlamentos? No parlamentarismo, onde todos os diferentes partidos lutam tranquilamente pelos votos a cada quatro ou cinco anos, ministros e deputados, enquanto peritos em assuntos da legislação social, assumem as tarefas atribuídas a eles em um vagaroso programa de reforma. No entanto, agora se trata de problemas muito mais sérios que estão além dessa tarefa, que afligem a humanidade, mas com os quais todos estão realmente de acordo. Aqui não se trata de um programa de reforma de política interna, pacífico, mas da política internacional na era atômica. As massas populares devem permitir que as destruam sem mais nem menos? Ou devem se defender ativamente contra isso? Em outras palavras: devem tomar em próprias mãos a política internacional? Impondo assim sua vontade aos governantes: não à guerra nuclear!
A questão é se algo assim é possível. Em primeiro lugar: isso é tecnicamente possível? Em todo caso, isso contradiz nossos costumes, posturas e formas de pensamento político. Mas de que serve isso? Já não foi dito muitas vezes que entramos hoje em uma era atômica e, com isso, em uma nova fase da história da humanidade? Nela, todas as normas e valores mudam e o espírito deve se libertar de velhos preconceitos e preferências. Nela, portanto, as relações sociais das pessoas devem assumir outras formas políticas?
Em uma escala menor, esses casos de ações extraparlamentares das massas populares do século XIX e XX são conhecidos. Por exemplo, na luta pelo sufrágio universal na Bélgica no ano 1893 e na primeira fase da Revolução Russa. Uma vez que, porém, se trata agora de uma luta pela autopreservação da humanidade mesma, as ações devem ser mais violentas e sustentadas por sentimentos mais profundos. Quando as massas ludibriadas se manifestarem às dezenas e centenas de milhares nas ruas das cidades e encherem as salas das assembleias e as praças, isso deve ter um grande impacto não só no governo em particular, mas também nas massas com a mesma mentalidade para além das fronteiras. Um poder ainda mais inelutável nascerá dali se, em um clímax de ameaça e tensão, paralisações do trabalho e fechamento de empresas paralisarem todo o tráfico e todos os negócios.
Tecnicamente isso não é impossível se as massas populares forem politicamente independentes. Mas será que isso também é possível psicologicamente? Em outras palavras, as forças contra-atuantes não são fortes o suficiente e impedem essas ações de massa? Uma proibição de manifestações pelo governo não conta aqui, já que será inútil diante de massas tão grandes. Além disso, essas ações não são dirigidas contra o governo, não são um motim, uma declaração de guerra, já que as massas só querem forçá-lo a fazer o que elas próprias alegam querer fazer. Querem tirar das mãos de uma única pessoa uma decisão que é muito difícil de ser tomada. Porque não têm certeza se os grandes interesses da humanidade não estão subordinados a interesses menores e diretos ou, pior ainda, à mentalidade de prestígio dos poderes mundiais. Independente disso, a gente pode ter certeza de que os grupos governantes intervirão com seus instrumentos de poder espirituais e físicos contra a política das massas. A imprensa, que na Rússia é um órgão governamental e que nos EUA está praticamente toda nas mãos do grande capital, está em condições de desenvolver uma contrapropaganda quase insuperável. Concretamente, por exemplo, com o argumento de que qualquer obstáculo à liberdade de ação do próprio regime ajuda o inimigo. E não é verdade que todo poder inimigo tentará explorar todo movimento popular espontâneo para seus próprios objetivos?
No momento só é possível imaginar o resultado dessas diversas forças. Nós não podemos prever como a luta entre a poderosa contrapropaganda tradicional e uma nova e paulatina consciência humana que está nascendo lentamente se desenvolverá nas mentes e corações das pessoas. Nem mesmo se nascerá uma consciência de responsabilidade da velha e passiva permissão para ser governado. Nós também não sabemos se uma forte ameaça nos perturbará de uma vez só nem quantos anos há para o surgimento de uma nova vontade. Se essa vontade existir, então a nossa desculpa do começo, ou seja, a de que não temos influência nisso tudo, perde sua validade. Então é possível que a bomba atômica tenha de fato anunciado uma nova fase histórica no campo da organização política.
[1] A tradução do presente artigo, originalmente publicado em holandês com o nome Atoom-Politiek (Anton Pannekoek, “Atoom-Politiek” in: Wetenschap en Samenleving. Maanblad gewijd aan de Ontwikkeling der Wetenschap en haar Betekenis voor Mens en Maatschappij, no. 5/Mei 1955 (9e Jaargang), p. 63-64), foi realizada a partir de sua tradução para o alemão por Walter Delabar e publicada em Anton Pannekoek, Arbeiterräte. Texte zur Soziale Revolution,Fernwald: Germinal Verlag, 2008, p. 694-696. [n. t.]
Traduzido por Thiago Papageorgiou.
Faça um comentário