O Totalitarismo sem Stálin – Claude Lefort

In: “O totalitarismo sem Stálin”, Socialisme ou Barbarie, n. 14, Julho-Setembro de 1956, reproduzido in Elements pour une critique de la bureaucratie, Paris-Genève, Droz, 1971, cap. VIII, pp. 130-190 (a publicar por Edições Afrontamento).

A URSS numa nova fase

A nova orientação política russa, inaugurada à morte de Stálin e ilustrada com alarde pelo XX Congresso, tem um alcance extraordinário, de que só é possível tomar consciência se nos apercebermos da transformação que lhe está na origem. Revelando e consagrando essa transformação, ela marca um momento decisivo na história mundial. Tem um significado propriamente revolucionário, pois supõe – para além das personagens que se agitam na tribuna do Congresso, inventando novos artifícios para o domínio, falando com ênfase na edificação do comunismo, amaldiçoando um antepassado que ainda na véspera era o sagrado herói civilizador, decidem uma por uma das tarefas de dezenas de milhões de homens – aqueles outros homens que não usam da palavra, mas cujas novas necessidades, novas atividades na produção, nova mentalidade, provocaram uma ruptura com o passado e a liquidação de quem foi dele a encarnação incontestada. Revolucionário, o acontecimento é-o por designação, não uma mudança de orientação política de caráter conjuntural, mas uma transformação total, que afeta o funcionamento da burocracia enquanto classe, a marcha das instituições essenciais, a eficácia da planificação, o papel do partido totalitário, as relações do Estado e da sociedade, porque exprime profundamente um conflito inerente ao sistema de exploração fundado sobre o capitalismo de Estado.

Na URSS, como nos outros países, manifesta-se o peso decisivo das classes exploradas; como por toda a parte, verifica-se que a conduta da classe dominante é determinada pela coerção, e leva assim o proletariado a enfrentar novas tarefas cuja fórmula, inscrita ao invés do fracasso capitalista, se elabora progressivamente.

O XX Congresso, para além de todas as significações que possa revestir-se, inspira uma conclusão inelutável. A URSS já não pode mais ser vista como um mundo “à parte”, um enclave no mundo capitalista, um sistema impermeável aos critérios forjados no contato do capitalismo. A confiança ou o ódio cego que ela inspirou a uns e a outros, a paralisia ideológica com que atingiu a vanguarda revolucionária durante trinte anos, não podiam resistir indefinidamente aos sólidos discursos dos novos dirigentes que, levados pela necessidade, nos fazem aperceber um parentesco profundo entre todos os sistemas modernos de exploração. Abriu-se uma cortina de ferro muito mais importante do que aquela que impedia a circulação dos homens e mercadorias: é a cortina tecida pela imaginação dos homens, a cortina através da qual a URSS metamorfoseada parecia escapar a toda a lei social. Sociedade sem corpo, sempre confundida com a vontade pura de Stálin, infinitamente boa ou má, suscitou o mais estranho delírio coletivo do nosso tempo. Delírio burguês que convertia a URSS numa máquina infernal, cujas engrenagens perfeitamente oleadas esmagavam toda a diferença social e individual e fabricavam, às ordens do Gengis-khan reencarnado, os homens-robots encarregados da destruição da humanidade. Delírio “comunista” esboçando a imagem ideal do paraíso socialista, na qual os mais grosseiros contrastes da realidade se transformavam em harmonias de complementares. Não foi suficientemente notado que estes delírios opostos se cruzavam curiosamente no mito de um sistema perfeitamente coerente designado como totalitarismo absoluto ou como socialismo, mas sempre apresentado como radicalmente diferente dos sistemas capitalistas nossos conhecidos. O trotskismo, é verdade, apresentava um quadro contrastado, mas, contentando-se em enxertar a imagem do totalitarismo na do socialismo, acumulava no seu próprio mito as ficções precedentes. A URSS tinha edificado bases socialistas impedindo que a confundissem com um sistema de exploração; ao mesmo tempo apresentava uma ditadura e desigualdades sociais tão graves que a desfiguravam; o proletariado era o detentor de um poder de que por outro lado estava totalmente desapossado. Como nos sonhos, em que todas as metamorfoses nos parecem naturais, também na utopia trotskista o socialismo se transformava no seu contrário sem perder a identidade. O resultado deste imbróglio era a predição a curto prazo de uma queda da burocracia, pequena casta de traidores, tão incapaz de impedir a restauração capitalista como a ressurreição proletária.

Sem dúvida que os acontecimentos são impotentes para, isolados, destruírem os mitos, mas estes últimos são pelo menos obrigados a transformar-se para se adaptarem às modificações sobrevindas desde a morte de Stálin. A pseudo-casta dos trotskistas perdura, e confirma a sua solidez, primeiro face à guerra e agora perante uma transformação do governo. Se a direção revê os seus métodos, não é nem sob a pressão dos elementos capitalistas decididamente invisíveis, nem sob a ameaça do imperialismo estrangeiro, nem em resposta a um levantamento do proletariado. É necessário portanto compreender a evolução no quadro de uma estrutura social apropriada… Entretanto, a burguesia vê desaparecer com o seu Gengis-Khan a maravilhosa chave do enigma. O terror é posto fora da lei, a ditadura abranda, declara-se garantir os direitos individuais dos cidadãos; o nível de vida das massas é sensivelmente melhorado e torna-se provável que em alguns anos se porá a par dos países capitalistas avançados; enfim, Stálin é denunciado como um tirano que viciou o desenvolvimento do regime. Melhor: toda uma série de medidas são adotadas, provando claramente o desejo dos russos de evitar a guerra. A burguesia é tomada de vertigem: a sua imagem da máquina infernal parece irrisória. Como continuaria ela a viver o sonho da diferença de natureza entre os capitalismos ocidentais e a URSS? Paralelamente, a imaginação “comunista” desagrega-se. Tinha-se afirmado de Stálin que era o farol alumiando a estrada do socialismo; parece que esta luz orgulhosa, de tão forte, encadeava e fazia perder o norte; ele era o magnífico piloto que governava entre as escolhas semeadas pelos agentes imperialistas; parecia agora que ele inventava estes agentes, transformando arbitrariamente todo oponente em bandido; parece que ele próprio semeava as escolhas e que, sem ele, a navegação teria sido menos dura e mais rápida; ele era o genial estrategista que soube desagregar o mais poderoso exército do mundo, ei-lo tornado ditador “inexperiente” cuja incompetência ia levando a URSS a uma derrota terrível. Sem dúvida que o regime se pretende intacto, uma vez desembaraçado da sua personagem incômoda. Mas como conservar a imagem da harmonia socialista? O mito exigia uma correspondência perfeita entre o sistema econômico e social e a direção política: o sistema era socialista e Stálin era genial, cada um refletido no outro. A crítica não era pois possível a não ser que visasse o conjunto: qualquer política de Stálin era considerada justa pela razão imperiosa de que ela não podia ser errada, traduzindo sempre necessidades objetivas. Ora este mito volatilizou-se. Se a política de Stálin comporta há mais de 20 anos uma série de “erros” – alguns dos quais colossais -, é que o objetivo e o subjetivo já não se correspondem, e que a necessidade histórica foi quebrada e, enfim, que a crítica é possível… Quem fixará os limites a esta crítica? Unicamente Stálin está em causa, insinua Krushev. Mas Stáline encarnou a política da URSS. Quem dirá pois onde começa e onde termina o erro? E quem dirá onde começa e deixa de ser a política? Quem determinará a pretensa fronteira entre o objetivo e o subjetivo? O regime político e social pode deixar-se dissociar do regime econômico? Quando o Estado concentra todos os poderes nas suas mãos, quando define a orientação da produção e o seu volume, quando fixa as normas de trabalho, quando determina a escala dos estratos sociais através dos salários e as vantagens que atribui a cada um, é rigorosamente absurdo separar a atividade política da vida social total. Debalde pretende Krushev circunscrever o terreno proposto à crítica: se a personalidade de Stálin já não é sagrada, são toda a direção, de ontem como de amanhã, e o regime no seu conjunto que perdem direito divino à verdade histórica. O sistema torna-se objeto de análise e objeto de crítica, como qualquer sistema social.

O desabar da mitologia staliniana, antes que se tente uma interpretação da URSS fundamentada numa análise, indica o alcance extraordinário da última reviravolta russa. Esta mudança não se pode comparar a nenhuma das que se efetuaram durante a era staliniana, toda em ziguezagues, menos ainda deve ser reduzida ao triunfo de uma sobre a outra. No passado, com efeito, as alterações brutais impostas por Stálin tiveram sempre a mesma função. Tratava-se, no quadro da URSS, de fazer prevalecer o primado da direção estatal em prejuízo de qualquer grupo social ou fração da burocracia que efetuasse a coesão do regime. À escala internacional, tratava-se de fazer prevalecer os interesses da URSS em prejuízo das burocracias locais, de modo a que as relações de força entre os PC nacionais e as burguesias respectivas que estes afrontavam estivessem necessariamente subordinadas à estratégia mundial da URSS. Trotsky analisou tão bem esses ziguezagues stalinianos que é supérfluo fazê-lo de novo; as purgas brutais operadas nos quadros dos kolkosianos, dos técnicos, dos militares, dos sindicalistas, as alterações súbitas na política chinesa, alemã, espanhola, ilustram este percurso tortuoso da ditadura staliniana, imposta sempre sem transição prévia à totalidade dos atores “comunistas”. O leitor francês lembrar-se-á mais particularmente das reviravoltas abruptas que acompanham a história do PC e que o precipitaram sucessivamente da guerra contra os socialistas, antes de 34, à Frente Popular, da luta a todo o custo contra burguesia e contra a guerra imperialista à participação nessa guerra na base de um nacionalismo desenfreado, da colaboração com a burguesia no seio do governo saído da libertação a uma oposição violenta contra os aliados na véspera. Mas o que Trotsky não podia explicar é que a cada reviravolta, e apesar das perdas locais sofridas pelos PC, a unidade da direção burocrática encontrava-se categoricamente reafirmada, o conjunto das tropas reunindo-se no novo terreno com a mesma coesão que no antigo. A solidariedade do campo staliniano traduzia com efeito uma característica essencial das burocracias nacionais, que Trotsky não podia ver: a subordinação rigorosa da sua política à política da URSS não podia explicar-se pela traição dos chefes, pelas relações pessoais que os uniam às casta dirigente da URSS, ou por qualquer outro fator acidental; ele devia-se à própria natureza dos PC que participavam da natureza da burocracia russa, que procuravam abrir caminho a uma nova camada social dominante, arrancando o poder à burguesia e ao mesmo tempo impondo um novo modo de exploração ao proletariado. Submetidos às pressões diferentes, segundo o contexto, da burguesia e do proletariado, os PC só podiam cristalizar os seus próprios elementos e tomar consciência das oportunidades históricas que lhes oferecia a crescente concentração do capital mantendo constantemente a atenção virada para a URSS, cujo regime lhes fornecia a imagem do seu próprio futuro. Se as reviravoltas de Stálin, quaisquer que tenham sido os seus efeitos momentâneos sobre os PC nacionais, eram necessariamente ratificadas por estes, era porque o interesse destes últimos estava realmente subordinado ao do organismo-mãe, único capaz de lhes impor a unidade ideológica que a sua própria situação começava a esboçar. E, igualmente, como teremos ocasião de o voltar a dizer mais tarde, o totalitarismo na URSS encontrava-se justificado por princípio, mesmo aos olhos das frações que dizimava, pela função que desempenhava ao sacrificar os seus interesses à coesão da burocracia tomada no seu conjunto.

A mudança efetuada hoje pela nova direção é radicalmente diferente, porquanto põe em causa os próprios princípios dos quais as mudanças anteriores eram resultantes. Recusa-se o totalitarismo, louva-se a direção coletiva, admite-se implicitamente que a política da URSS pode ser contestada, pois reconhece-se explicitamente que a de Stálin estava errada, condenam-se os processos pelos quais a ditadura de ontem eliminou os oponentes e subordinou os interesses dos países satélites, faz-se do passado, que tinha sido apresentado como um encadeamento fatal de verdades históricas e como tal fora vivido, um objeto de interrogação.

Palavreado? Mas a palavra é eficaz. E se é verdade que a ação não é conforme ao que se diz, não é menos verdade que seria insensato designar pelas palavras o contrário do que se faz. De resto certos fatos atestam o novo sentido da linguagem burocrática. É porque o titoísmo se encontra oficialmente legitimado pela URSS que a afirmação de que o socialismo pode seguir diferentes vias ganha o seu pleno significado; a afirmação de Thorez, pelo contrário, de que o PC francês faz alarde, não tinha nenhum significado em 1947, porque ela não anunciava senão Praga, ou a possibilidade da burocracia se apropriar do aparelho de Estado sem insurreição armada do proletariado. O que no contexto staliniano surgia como simples artifício verbal, destinado a dissimular o monolitismo do bloco burocrático, tornou-se a expressão real da divergência.

É verdade que no imediato a divergência titoísta permanece isolada, que os diversos PC no mundo se alinham a um ritmo mais ou menos rápido sobre as novas posições de Krushev, a despeito das suas resistências e inquietação. As contradepurações sucedem-se em cadeira na Europa oriental, com o mesmo rigor que as depurações de outrora, inspiradas por Stálin. Mas se o funcionamento se revela o mesmo nas condições presentes[1], ele é atacado no seu princípio: os fundamentos da doutrina mecanicista instituída pela ditadura staliniana são boicotados por aqueles mesmos que continuam de certa maneira a exercê-la. É que os ritos não podem ser transformados de um dia para o outro; eles resistem e resistirão tanto mais quanto continuarem a traduzir em cada país uma situação social; continuam a ser os instrumentos eficazes de uma coesão para as burocracias em ascensão. No entanto, a partir do momento em que se introduz uma fenda entre os ritos e as crenças – entre a disciplina de ferro e os princípios ideológicos – tornam-se cada vez mais vulneráveis, cada vez mais expostos à crítica daqueles mesmos que os praticam.

Neste sentido, a mudança do XX Congresso inaugurou uma rota que é irreversível; o monopólio da verdade edificado pelo stalinismo foi quebrado, independentemente do que os novos dirigentes façam para o restaurar. Durante decênios, as regras de organização e as regras de pensamento de todos os militantes comunistas foram regras de ouro. Inquietação, indecisão, críticas individuais eram sempre absorvidas pela visão final do universo staliniano; universo regido pela necessidade de nele se encadearem mecanicamente todas as tendências, custasse o que custasse.

A política staliniana de participação no governo parecia contrária aos interesses dos operários franceses, logo após a libertação? Ela não podia sê-lo; a conquista do Estado pelos PC da Europa oriental provava que ela era revolucionária. Esta conquista do Estado, as nacionalizações e a coletivização pareciam efetuar-se sem transformação da situação do proletariado na produção? O alcance socialista destas medidas era garantido pelo apoio que a URSS lhes dava e o exemplo que ela proporcionava de um regime para o qual tendiam as democracias populares. Na própria URSS, as desigualdades sociais, as condições de trabalho, a repressão policial podiam inquietar-nos? Estes aspectos decorriam, dizia-se, do isolamento da URSS, sempre ameaçada pelo imperialismo e seus agentes. Num tal sistema de pensamento, não havia controle possível dos acontecimentos, a causa sempre reenviada de responsável a responsável até à política de Stálin e este justificando-se pelas condições objetivas com as quais se defrontava e que portanto outra possibilidade, além de tudo contestar, senão guiar a sua atividade pela da direção: militante, era-se staliniano dos pés à cabeça, sem qualquer outra referência possível senão a que era fornecida pelo partido. Estava-se munido de todo um sistema de reflexos que permitia agir em qualquer situação, quer se tratasse do Pacto do Atlântico, de tática sindical, de biologia, de literatura ou de psicanálise…

É precisamente porque o staliniano constituía assim um universo regido mecanicamente que a crítica atual não se deve limitar a um setor isolado. Do mesmo modo que no fim da Idade Média a simples crítica dos métodos da Igreja levantou a hipoteca do sagrado e conduziu à desagregação do totalitarismo religioso, o simples pôr em questão da política staliniana induz passo a passo ao reexame de cada problema particular e abala o totalitarismo moderno nos seus fundamentos. Mas não são só os militantes “comunistas” e particularmente os intelectuais, que são arrancados ao torpor; a nova orientação da burocracia russa não pode deixar de exercer uma influência muito forte no comportamento do proletariado no seu conjunto. Pois se é verdade que a ação do proletariado é determinada no seu âmago pelas condições da exploração, pela sua luta para arrancar ao capitalismo o controle do seu trabalho, esta ação depende igualmente da sua estimativa das forças sociais contra as quais deve exercer-se, das oportunidades históricas que lhe são oferecidas. Neste sentido, a coesão do stalinismo foi tomada por muito tempo como uma barragem intransponível; conscientemente ou não, os operários sentiam-se paralisados pela burocracia. À dificuldade de abalar um aparelho poderoso, constituído pela necessidade da luta contra o capital, mas “rigidificado” e cada vez mais distante das massas, acrescentava-se a dificuldade de enfrentar uma força mundial cuja coesão histórica era visível para todos. Alterada esta coesão, a burocracia começa a perder as dimensões que havia adquirido: deixa de ser tida por uma fatalidade. Revela-se dilacerada pelos conflitos, exposta ao erro, vulnerável. A autoridade atribuída aos dirigentes mantinha o proletariado num estado de impotência; este é compelido a tomar consciência da sua fraqueza e a perscrutar as suas próprias forças. Não se pode concluir que a crise dos PC em si possa provocar uma ofensiva proletária, mas parece fora de dúvida que, colocado em condições de luta, o proletariado situar-se-ia numa nova relação de forças com a sua burocracia.

Foi deliberadamente que procuramos sublinhar as imensas repercussões possíveis da liquidação do stalinismo e da nova orientação de Krushev antes de nos interrogarmos sobre os fatores que a determinaram. É que, a nosso ver, o acontecimento enquanto tal abre um campo novo de possibilidades. Ideológico, ele é mais do que ideológico, na medida em que o próprio stalinismo é ao mesmo tempo fenômeno ideológico e fenômeno social, sistema de pensamento e sistema de ação. Nós não estamos por isso menos conscientes – será necessário repeti-lo? – de que as modificações futuras dependem, em última análise, não de uma transformação da mentalidade, mas de novas lutas e de novas formas de luta da classe operária. Já começamos a aperceber-nos dos artifícios pelos quais o militante procura dissimular o aspecto chocante do acontecimento, dominar a sua vertigem, desviando obstinadamente o olhar da fossa staliniana. Atua-se como se nada se tivesse passado; repete-se que a auto-crítica é sinal de vitalidade como se a liquidação de Stálin não fosse a do passado; busca-se refúgio em Lênin como se fosse possível transferir sem dificuldade a fé em um deus para outro deus; e sobretudo felicita-se estrondosamente pelo abrandamento da ditadura, pela liberalização do regime, pela melhoria das condições de vida, como se a Verdade inabalável tivesse podido tornar-se amável. Todos os “mecanismos de defesa”, como diz o psicólogo, tendem a preservar o militante de todas as solicitações brutais da realidade. Não se poderia sem ligeireza subestimar a sua eficácia e os recursos infinitos de auto-mistificação.

Mas precisamente porque a história é essencialmente social, as peripécias do pensamento staliniano não devem obnubilar-nos. Todas as tentativas destinadas a reconstituir uma “boa consciência” comunista não nos podem fazer esquecer que a nova orientação é a resposta aos problemas sociais surgidos na URSS e no mundo. Compreender o sentido destes problemas, o alcance das soluções que se tenta opor-lhes, é pois a primeira das tarefas, aquela que nos permitirá determinar a amplitude das repercussões desta mudança no mundo comunista, nas quais começamos por insistir.

Não seria possível fugir à dificuldade desta tarefa ou dissimular que, nos limites deste artigo, nos propomos antes lançar as bases – que julgamos sólidas – para uma análise e uma discussão ulteriores, em lugar de dar uma interpretação exigiria da nova orientação. Uma tal interpretação exigiria com efeito que se tivessem igualmente em conta diversos fatores totalmente confundidos na realidade, a situação interior da URSS, as relações entre a URSS e os outros regimes burocráticos (particularmente a China) assim como a concorrência entre o bloco burocrático e o bloco ocidental. Ora, nós tencionamos limitar-nos ao exame da situação na URSS. Esta limitação, na verdade, não significa uma preocupação exclusiva do que se passa no interior das fronteiras geográficas da URSS. Se, como tentaremos demonstrar, os problemas que a nova direção defronta se referem ao funcionamento da uma sociedade altamente industrializada regida pelo totalitarismo, elas não são apanágio da URSS e sem dúvida que se apresentam de maneira diferente na China ou na Hungria, que se encontram ainda na fase da acumulação primitiva, e diferentemente também nos Estados Unidos, onde o desenvolvimento industrial não se adapta a uma planificação geral e a um regime totalitário. Mas, por mais diversas que sejam as situações, elas ajudam a explicar-se umas às outras, pois conhecem imperativos similares criados pela grande produção moderna, o imperativo de novas relações sociais no seio da classe dominante, de um novo modo de domínio do proletariado, de um novo comportamento do proletariado nas fábricas[2]. Assim, o que dissermos sobre a URSS aplicar-se-á necessariamente a outros quadros sociais.

No entanto, os limites da nossa análise parecem bem mais importantes de um outro ponto de vista. É extremamente difícil, com efeito, analisar a nova orientação guiando-nos constantemente por dados empíricos, pela razão muito simples que na URSS, ainda mais que num regime capitalista burguês, estes dados são subtraídos à observação. Esta dificuldade manifesta-se desde que nos interrogamos quanto ao significado das rivalidades que dividem a direção política. A liquidação de Béria, o recuo de Malenkov, a condenação de Stálin, são sem dúvida alguma a expressão de conflitos sociais, mas oficialmente estão referidos a motivos fúteis: um é espião, o outro incompetente, o terceiro megalómano. Se se procura uma verdadeira explicação, não se pode senão reter hipóteses mais ou menos verossímeis. E neste aspecto trata-se ainda de uma faceta relativamente menor do regime, sendo possível procurar estabelecer com que problemas sociais a direção se confronta sem nos preocuparmos em saber exatamente como se traduzem na rivalidade entre clãs políticos. Mas acerca destes mesmos problemas não nos é permitido observar o seu desenvolvimento na vida concreta dos grupos. Não podemos, por exemplo, saber quais são as reações dos operários em face da exploração, pois estas reações são cuidadosamente dissimuladas pelo regime. Bem entendido que as greves o são, se greves há. Mas também o são todas as formas de resistência dos operários nas fábricas que, sem tomarem a forma de uma ação violenta e pública, exercem uma influência considerável no desenvolvimento da grande indústria. Num país como os Estados Unidos, esta resistência não é certamente reconhecida pelo que ela é (uma recusa da exploração capitalista); pelo contrário, é relacionada a maior parte das vezes com as características psicológicas ou o clima moral defeituoso da fábrica, mas não é negada: milhares de sociólogos pagos pelo patronato, quando não pelos sindicatos, falam do que designam como a recusa dos operários em cooperar, descrevem os processos pelos quais estes reduzem o ritmo do trabalho, sabotam peças, se opõem à aplicação de novas normas, se entendem entre eles sem ter em conta a hierarquia que tenta impor o capital pelo sistema dos prêmios. Da URSS temos um simples eco desta resistência, de tempos a tempos, na imprensa sindical ou nos discursos dos dirigentes, mas não podemos apreciar a amplitude do fenômeno e muito menos precisar a sua evolução exata. Só podemos agir por indução, esclarecer as poucas informações de que dispomos através das informações muito mais numerosas que nos vêm dos países capitalistas, uma vez que estamos convencidos de que a situação dos operários na grande indústria moderna apresenta por toda a parte características similares e tendo, consequentemente, o comportamento do proletariado russo que ser análogo ao do proletariado americano.

Este método, por mais válido que pareça, não nos fornece no entanto uma visão histórica suficientemente concreta da nova orientação russa. Entre as conclusões de alcance geral a que nos conduz e os dados precisos da nova orientação faltam, sentimo-lo bem, os elos intermediários, e assim falta-nos também o rigor do encadeamento total. Ora o que acabamos de dizer das relações entre a burocracia e o proletariado é igualmente verdade das relações sociais no interior da burocracia, que nos parecem ter uma importância decisiva mas que só apreendemos através de uma imagem refratada pela imprensa e pelos discursos oficiais. É preciso, portanto, interpretar, completar na imagem certas características mal esboçadas, inventar as transições que irão colmatar as lacunas e, por fim, estabelecer uma convergência que na imagem oficial se escondia. Certamente que toda a imagem oficial exige um trabalho deste gênero, qualquer que seja o seu objeto, uma vez que é preciso reconstruir a partir de uma ideia. Mas no caso da URSS a parte da interpretação é tanto maior quanto os dados são mais raros e fragmentários. No entanto, deve notar-se que eles foram singularmente enriquecidos com o XX Congresso: os dirigentes nunca tinham dito tanto… e os seus discursos, particularmente o de Krushev, oferecem uma nova matéria de reflexão. No entanto, estes discursos e a política que inauguram levantam, precisamente pela novidade, o problema decisivo da interpretação. Pensa-se que venham responder a problemas postos pelo desenvolvimento anterior da URSS. Mas para determinar o sentido da resposta, é preciso ter já uma ideia dos problemas postos, dissolvendo os discursos sempre as análises da situação real numa apologia do socialismo. O leitor tem sempre o direito de replicar à interpretação que lhe é proposta: “O que você pretende descobrir no discurso de Krushev, é o que você nele projeta de si próprio, em virtude de uma estimação a priori da realidade”.

Se mencionamos estas dificuldades é que elas parecem-nos inevitáveis e seria perigoso escamoteá-las. Nós reconhecemo-las portanto explicitamente. Afirmamos abertamente uma certa ideia do desenvolvimento da URSS, uma certa ideia da sociedade totalitária e dos conflitos que ela engendra, e que estas ideias nos esclarecem sobre as transformações atuais. Afirmamos igualmente que o exame da nova política, não somente confirma estas ideias, mais ainda, esclarece-as. Só a coerência da análise pode garantir a sua validade e a passagem que operamos do passado ao presente, da teoria aos fatos.

A Função Histórica do Stalinismo

De resto, repare-se na nova política. É ela que em primeiro lugar incita à interrogação quanto ao significado do regime. É ela que põe em causa o passado e que, pretendendo distinguir o que era justo do que não o era, se define em relação à era staliniana. Só que os seus processos são suficientemente insólitos para nos prevenirem de que a realidade é dissimulada. Com efeito, todos os erros do passado estão relacionados exclusivamente com a personalidade de Stálin. Tendo-se colocado acima do partido pela sua vaidade, não se sujeitando mais às críticas, possuído de um complexo de perseguição que a sua posição dominante transformava em complexo de perseguidor, Stálin, diz-se, cercou-se de intriguistas à sua imagem e, graças ao incrível poder de que dispunha, acumulou as medidas arbitrárias que lançaram a desordem e a confusão em todos os setores da vida social. Como se pode notar, a nova direção, estigmatizando vigorosamente o culto da personalidade, nem sequer pergunta como ele pôde desenvolver-se; um culto é obra do próprio Stálin: Ele pôs-se acima do partido, ELE fundou o seu próprio culto. Daí não procurarem saber como o erigiram ou o deixaram erigir-se à chefia do Estado, o que seria o início de uma análise real. Com toda a evidência, os dirigentes atuais, com este tipo de explicação, não se libertaram do famoso culto, eles passaram simplesmente, poder-se-ia dizer, do rito positivo ao rito negativo: o primeiro consistindo em carregar um homem de todas as virtudes, o segundo de todos os vícios, um e outro atribuindo-lhe a mesma liberdade fantástica de governar os acontecimentos segundo a sua vontade. No entanto, a passagem ao rito negativo tem como particularidade o fato de provocar uma ruptura aberta com a ideologia marxista. Certamente que o rito positivo constituía uma simples caricatura desta ideologia, mas não a contradiz: Stálin genial era encarado como a expressão da sociedade socialista. Como já se disse, o objetivo e o subjetivo pareciam coincidir, se bem que a mistificação se encontrasse em toda a parte. Em contrapartida, Stálin monstruoso não possui nenhuma correspondência da sociedade. Ela torna-se num fenômeno absurdo, desprovido de qualquer justificação histórica, e torna-se impossível qualquer recurso ao marxismo. Um bom staliniano que durante anos repetiu que as características histéricas e demoníacas de Hitler só puderam desempenhar uma função social porque este tinha exprimido a degenerescência do capitalismo alemão, encontra-se isolado, se se pode dizer, face ao fenômeno Stálin, sem outra explicação senão a da sua essência, da “maldade”.

É preciso pois, para começar, formular a questão tabu por excelência e que constitui a questão marxista típica: qual foi a função histórica de Stálin? Ou, noutros termos, como é que o papel que este desempenhou veio responder às exigências de uma situação social determinada? É evidente que uma tal questão não se circunscreve à simples personalidade de Stálin. Ela visa o seu papel político; ela visa uma forma de poder que este encarnou e que pode resumir-se sumariamente na concentração de todas as funções, políticas, econômicas, judiciárias, sob uma só autoridade, a subordinação forçada de todas as atividades ao modelo imposto pela direção, o controle dos indivíduos e dos grupos, e a eliminação física de todas as oposições (e de todas as formas de oposição). É este complexo de características que se designa ordinariamente por terror ditatorial. Quanto à personalidade de Stálin estamos convencidos que ela exprime de certa maneira estas características e que, portanto, é simbólica. Mas não é certo que ela possa por si mesma ensinar-nos o que quer que seja. Trotsky mostrou admiravelmente na sua Revolução Russa que havia uma espécie de conivência histórica entre a situação das classes e o caráter dos seus representantes, de modo que se impunha simultaneamente, por exemplo, um paralelismo entre as situações da nobreza francesa e da nobreza russa respectivamente nas vésperas da revolução de 89 e de 17, e um paralelismo entre os caracteres de Luís XVI e do Czar. Mas esta caracteriologia não deve iludir-nos; ela só ganha sentido, com efeito, no âmbito de uma interpretação prévia das forças sociais. Só se selecionam as características psicológicas de um indivíduo e se lhes descobre uma finalidade porque nos guiamos por uma certa imagem do grupo social que representa este indivíduo. Assim, quando Trotsky pretende fazer o retrato de Stálin na obra que lhe consagrou e em A Minha Vida, seleciona apenas a mediocridade intelectual do personagem e o seu temperamento ardiloso, tão preocupado estava em fazer concordar este retrato com a sua definição da burocracia como casta parasitária, como formação acidental desprovida de qualquer significação histórica.

À imagem da burocracia, que dia a dia mantém através de uma série de artifícios uma existência ameaçada pelo imperialismo mundial e pelo proletariado, Stálin encontrar-se-ia totalmente privado da compreensão da História e apenas capaz de manobrar para preservar a sua posição pessoal. Stálin seria um falso “grande homem”, como o partido que encarna um pseudopartido[3]. Toda a construção repousa numa estimativa da burocracia e, como se vê, a interpretação do stalinismo determina a de Stálin. Seria no entanto falso concluir que a análise do personagem histórico é finalmente desprovida de interesse uma vez que apenas repete a análise social acrescentando-lhe um comentário psicológico. O papel específico da personalidade manifesta-se com efeito não só pelo fato de desempenhar uma função social mas também por afastar-se desta ou criar uma perturbação. No caso de Stálin, o importante seria verificar como a personagem escapa ao quadro em que o seu papel político parece fixá-la, na medida em que, nomeadamente, o seu autoritarismo desenfreado desvia, a um dado momento, o terror dos seus fins primitivos ou lhe altera a eficácia. Mas esta investigação prova suficientemente que é necessário começar por compreender o papel político: Stálin não se torna claro se não o destacarmos do pano de fundo do stalinismo.

Não é possível, dentro dos limites que nos impusemos, dar uma descrição histórica do stalinismo, mas, na medida em que a história constitui parte iminente da definição do fenômeno social, devemos compreender como na sua origem o stalinismo se distingue de qualquer formação social anterior. Ora ele confunde-se com o aparecimento do partido totalitário. Aparece quando o partido concentra nas suas mãos todos os poderes, se identifica ao Estado e, enquanto Estado, subordina rigorosamente a si todas as outras instituições, escapa a todo o controle social, quando ao mesmo tempo, no interior do partido, a direção se desembaraça de todas as oposições e faz prevalecer a sua autoridade incontestada. Seguramente que estes traços não se configuram de uma só vez; se quiséssemos seguir-lhes a gênese seria preciso situarmo-nos logo após a própria Revolução russa, notar a partir de 1918 os esforços do partido para se desembaraçar dos comitês de fábrica, integrando-os nos sindicatos e recusando-lhes qualquer poder real, seria sobretudo preciso constatar que, no grande debate sindical de 1920, o programa do partido totalitário já era publicamente formulado por Trotsky. Sabe-se que nessa altura aquele que mais tarde foi o inimigo n. 1 do poder afirmava que todos os grupos sociais deviam obediência absoluta à direção do partido; postulando que em virtude da alteração da propriedade o Estado não podia ser instrumento de nenhuma política de domínio sobre o proletariado, ele afirmava que a ideia de uma defesa dos interesses da classe operária contra o Estado era absurda, e por consequência preconizava uma subordinação estrita dos sindicatos ao partido; por outro lado, garantido pelo êxito que lhe deu o seu plano de mobilização dos operários nos transportes, reclamava uma militarização completa da força de trabalho (não recuando perante nenhuma das medidas de coerção que esta implicava); enfim, estigmatizava todas as oposições, considerando que os princípios democráticos relevavam do “fetichismo”, quando o que estava em causa era o triunfo da sociedade revolucionária…

E no entanto não seria rigoroso falar de um stalinismo pré-staliniano. Não só Lênin conseguiu fazer prevalecer até à morte a ideia, senão de um controle, pelo menos de uma limitação do poder do partido, reconhecendo a existência de uma “luta econômica” dos operários no seio da sociedade pós-revolucionária, concedendo uma relativa autonomia aos sindicatos, mas os fundamentos da sua política, como os da política de Trotsky, não são aqueles que virão a estabelecer-se mais tarde. Para um e outro, para a imensa maioria dos dirigentes dessa época, todas as medidas “totalitárias” são consideradas provisórias; elas surgem a seus olhos como impostas pela conjuntura, simples artifícios improvisados para manter a existência da URSS, esperando a revolução mundial, para impor uma disciplina de produção num período em que a desorganização econômica engendrada pela guerra civil era tal que a democracia parecia incapaz de a resolver. Sem dúvida que para nós, que discutimos uma experiência histórica 30 ou 35 anos após o seu desenvolvimento, os argumentos dos dirigentes bolcheviques não podem ser aceites tais quais; a ditadura do partido, se é verdade que se reforça sob a pressão de fatores conjunturais, anuncia-se, dissemo-lo já, no período da revolução, em prejuízo do poder dos sovietes; mais, ela encontra-se no prolongamento da atividade do partido bolchevique antes da revolução, ela não faz mais do que acentuar até às extremas consequências os traços do partido de vanguarda, rigorosamente centralizado, verdadeiro corpo especializado de profissionais da revolução cuja vida se desenrola completamente à margem das massas operárias. Nada seria mais artificial do que reduzir a evolução de um partido à de uma política, que ignorar os processos estruturais que condicionam esta política. Não é menos verdade que no período pré-staliniano uma contradição fundamental permanece no seio do partido, contradição que será precisamente abolida com o aparecimento do totalitarismo. Entre, por um lado, os meios adotados, que não cessam de acentuar a separação entre o Estado e as classes de que ele se reclama, que libertam o Estado e as classes de que ele se reclama, que libertam o Estado e, no seio do Estado, os dirigentes bolcheviques de todo o controle social e, por outro lado, os fins, sempre proclamados, da instauração de uma sociedade socialista, a escolha não se faz. Os dirigentes, com toda a evidência, não escolhem: a tese do deperecimento do Estado continua a ser afirmada ao mesmo tempo e com a mesma força com que o Estado concentra todos os poderes. Mas a própria sociedade, dir-se-ia, não escolhe, na medida em que nenhuma força social está em condições de fazer pesar os seus interesses na balança de maneira decisiva. A diferenciação dos salários é de tal modo pouco nítida que ela não engendra nenhuma base social material para uma nova camada dominante. O stalinismo é o momento decisivo. De um ponto de vista ideológico, em primeiro lugar: a fórmula do socialismo num só país vem legalizar o status quo, a separação do Estado e das massas, a concentração de toda a autoridade nas mãos de uma direção única. Todas as características provisórias da nova sociedade que só tinham sentido pleno em função de uma política de conjunto orientada para o socialismo são ratificadas como se constituíssem em si a essência do socialismo. A dupla consequência desta transformação é, por um lado, que o stalinismo pode apresentar-se efetivamente como o continuador do leninismo, pois que se resume na apropriação de certas posições deste, erigindo-as em valores, quando eram apenas simples medidas práticas, e é, por outro lado, que o stalinismo passa a dispensar uma reflexão teórica sobre o marxismo; merecendo as medidas do Estado a designação de socialistas pela única razão que elas eram leninistas (isto é, análogas às que Lênin recomendou em vida). Enquanto que com Trotsky a contradição atinge o auge e este é obrigado a enunciar nos termos mais rudes a sua crítica do fetichismo democrático, com Stálin a mistificação é completa e o sufocar da democracia já nem sequer precisa de ser reconhecido uma vez que o precedente leninista da suspensão das oposições legitima por si só o caráter socialista do presente.   

Além disso, de um ponto de vista “material”, o stalinismo concretiza e cristaliza uma escolha social. Inaugurando uma política deliberada de diferenciação dos rendimentos, acentua consideravelmente os privilégios existentes, multiplica-os, normaliza-os; transforma simples vantagens de fato em estatutos sociais; funções que eram ocasião de uma luta de prestígio, sustentam agora poderosos interesses materiais. Ao mesmo tempo, as antigas oposições de mentalidade transformam-se em oposições sociais; uma fração da sociedade enraíza-se no novo solo febrilmente trabalhado pelo partido e une a sua existência definitivamente à do regime[4].

Noutros termos, o totalitarismo staliniano afirma-se quando o aparelho político forjado pela revolução, depois de ter reduzido ao silêncio as antigas camadas sociais dominantes, se libertou de todo o controle do proletariado; este aparelho político subordina então diretamente a si o aparelho de produção.

Uma tal fórmula não significa que se atribua ao partido um papel desmesurado. Se nos situássemos numa perspectiva econômica, o fenômeno centra seria, a nosso ver, a concentração do capital, a expulsão dos proprietários e a fusão dos monopólios num novo complexo produtivo, a subordinação do proletariado a uma nova direção centralizada da economia. Sublinharíamos então sem dificuldade que as transformações sobrevindas na URSS apenas conduzem à última fase de um processo que se manifesta por toda a parte no mundo capitalista contemporâneo e que é ilustrado pela própria constituição dos monopólios, a intervenção dos Estados em todos os setores da vida econômico, de modo que a instauração do novo regime pareceria representar uma simples passagem de um tipo de apropriação a um outro no seio da gestão capitalista. Numa tal perspectiva, o partido não poderia aparecer mais como um deus ex machina; apresentar-se-ia antes como um instrumento histórico, o do capitalismo de Estado. Mas, para além do fato de procurarmos apenas compreender o stalinismo como tal, e não a sociedade russa no seu conjunto, se abraçássemos exclusivamente uma perspectiva econômica seríamos levados pela imagem de uma pseudonecessidade histórica. Se é verdade, com efeito, que a concentração do capitalismo é observável em todas as sociedades contemporâneas, não se pode concluir que ela deva conduzir, em virtude de uma lei ideal, até à etapa final. Nada nos permite afirmar, por exemplo, que na ausência de uma transformação social que eliminasse a camada capitalista reinante, um país com os Estados Unidos ou a Inglaterra irá subordinar os monopólios à direção estatal e suprimir a propriedade privada. Estamos tanto menos seguros desse fato (teremos ocasião de voltar a tratar este assunto) quanto é certo que o mercado e a concorrência continuam a desempenhar papel positivo em relação a certos aspectos da vida social e que a sua eliminação pela planificação criaria à classe dominante dificuldades de tipo novo. Permanecendo num âmbito estritamente econômico é preciso perguntar-se, por exemplo, se as exigências de uma integração harmoniosa dos diferentes ramos da produção não são contrabalançadas pelas exigências do desenvolvimento máximo da produtividade do trabalho graças à relativa autonomia da empresa capitalista. Mas diga-se o que se disser, temos que concordar que as tendências da economia, por mais determinantes (…), não podem ser separadas da vida social total: os “protagonistas” do Capital, como diz Marx, são igualmente grupos sociais cujo passado, modo de vida e ideologia, informam a própria conduta econômica. Neste sentido seria artificial reduzir as transformações da URSS a partir de 1930 à passagem de um tipo de gestão capitalista a outro, em resumo, ao aparecimento do capitalismo de Estado. Estas transformações constituem uma revolução social. Seria assim igualmente artificial apresentar o partido como o instrumento desse capitalismo de Estado, dando a entender que este, inscrito numa lista de espera histórica (fruto previsto da fatalidade histórica), esperava para se encarnar a ocasião propícia oferecida pelo stalinismo. Nem demiurgo, nem instrumento, o partido deve ser apreendido como realidade social, isto é, como um meio no seio do qual simultaneamente se impõem as necessidades de uma nova gestão econômica e se elaboram ativamente as soluções históricas.

Se o aparelho de produção não permitisse, não preparasse, nem comandasse a sua unificação, o papel do aparelho político seria inconcebível. Inversamente, se os quadros da antiga sociedade não tivessem sido desmantelados pelo partido, se uma nova camada social não se visse promovida a funções dirigentes em todos os setores, a transformação das relações de produção seria impossível. É com base nestas deserções que se esclarece o papel extraordinário desempenhado pelo stalinismo. Este foi o agente, a princípio inconsciente, depois já consciente e seguro de si, de uma formidável transformação social no termo da qual emergiu uma estrutura inteiramente nova. Por um lado, conquistou um terreno social novo, desapossando simultaneamente de todo o poder os antigos donos da produção e o proletariado. Por outro lado, aglutinou elementos oriundos de todas as classes no seio de uma nova formação e subordinou-os sem piedade à tarefa de direção que lhes oferecia a nova economia. Nos dois casos, o terror dominava o empreendimento. No entanto, o exercício desse terror, ao mesmo tempo contra os proprietários privados, contra o proletariado e contra as novas camadas dominantes, baralhava as cartas. Na incompreensão de que a violência tinha uma só função apesar das suas múltiplas expressões, congeminavam-se provas, segundo as preferências, de que ele estava ao serviço do proletariado ou da contrarrevolução burguesa; ou então, do fato de dizimar as fileiras da nova camada dirigente tirava-se argumento para apresentar o stalinismo como uma pequena casta, desprovida de qualquer fundamento de classe e preocupada apenas com a manutenção da sua própria existência em prejuízo das classes em competição na sociedade. O desenvolvimento da política staliniana desde a sua origem não possuía qualquer ambiguidade: o terror não era um meio de defesa utilizado por um punhado de indivíduos ameaçados nas suas prerrogativas pelas forças em presença, ele era constitutivo de uma força social nova que necessitava arrancar-se a ferros da matriz da velha sociedade, e cuja subsistência exigia o sacrifício cotidiano dos novos membros à unidade do organismo já formado. É claro que não é por acaso que o stalinismo se caracterizou a princípio – antes de 1929, e em seguida no período da coletivização e da primeira industrialização – pela sua luta contra os proprietários privados e contra o proletariado e, mais tarde, por depurações em massa nas camadas dominantes. O terror seguia o caminho da nova classe, que forçava as restantes a reconhecer a sua existência antes de “se reconhecer” ela própria na imagem das suas funções e múltiplas aspirações.

Este caminho foi igualmente o da consciência burocrática. Não se pode afirmar que antes da industrialização o stalinismo seja consciente da finalidade que constituirá depois uma nova sociedade. O receio de empreender essa industrialização, a resistência ao programa trotskista que a preconiza, testemunham da incerteza quanto à sua própria função. Esta já se conduz empiricamente segundo o modelo que virá a impor-se mais tarde, reforça febrilmente o poder do Estado, procede à eliminação dos oposicionistas, esboça, ainda com prudência, uma política de diferenciação dos rendimentos. A burocracia define-se por tudo menos por um complexo de traços psicológicos; ela conquista a sua própria existência social, que a diferencia radicalmente do proletariado; mas ainda vive nos horizontes da sociedade presente. Só uma vez lançada na coletivização e planificação surgem novos horizontes históricos, elabora-se uma verdadeira ideologia de classe e, portanto, uma política concertada, constituem-se as bases sólidas de uma nova potência material e de uma força que agora se cria e recria cotidianamente, sugando as forças produtivas de toda a sociedade no seu conjunto. Nesta altura surgem porém novas tarefas e a tomada de consciência pelo stalinismo do seu papel histórico torna-se então um fator decisivo do desenvolvimento. É que a formidável industrialização que se realiza não só fornece bases à burocracia já constituída, mas revoluciona igualmente esta burocracia, faz surgir, nunca será demais repeti-lo, uma sociedade totalmente nova. Ao mesmo tempo que se transforma o proletariado, a cujas fileiras virão juntar-se em poucos anos vários milhões de camponeses, fabricam-se novas camadas sociais arrancadas às antigas classes, ao modo de vida tradicional que a antiga divisão do trabalho lhes reservava. Técnicos, intelectuais, burgueses, militares, antigos feudais, camponeses e também operários, são fundidos numa nova hierarquia cujo denominador comum é que ela dirige, controla, organiza, a todos os níveis do seu funcionamento, o aparelho de produção e a força viva do trabalho, a das classes exploradas. Mesmo os que permanecem nas suas antigas categorias profissionais assistem à transformação dos seus modos de vida e mentalidades porquanto estas profissões antigas são enquadradas em função da sua integração na nova divisão do trabalho criada pelo Plano. Seguramente, o modo de trabalho destas novas camadas, os estatutos que lhes são atribuídos em função da sua posição dominante na sociedade, não podem deixar de criar a prazo uma verdadeira identidade de base. Mas, no período durante o qual se verifica esta transformação, a ação do partido revela-se determinante. É ele o único que, pela disciplina de ferro que instaura, pela unidade incontestada que encarna o futuro, proclama aos olhos de todos que os interesses particulares estão estreitamente subordinados aos interesses da burocracia no seu conjunto.

Uma função essencial do stalinismo, necessária no quadro da nova sociedade, surge aqui. O terror que exerce nas camadas dominantes não é um traço acidental: ele está inscrito no desenvolvimento da nova classe, cujo modo de domínio não é já garantido pela propriedade privada, sendo forçada a aceitar os seus privilégios através de um aparelho coletivo de apropriação, e cuja dispersão, no início, só pode ser ultrapassada pela violência.

Certamente pode dizer-se que as purgas efetuadas pelo stalinismo chegam a pôr em perigo o funcionamento do aparelho de produção; pode também duvidar-se da eficácia de repressões que a certa altura eliminaram metade dos técnicos em atividade. Estas reservas não põem no entanto em causa o que designamos por função histórica do stalinismo; elas permitem apenas descortinar (já abordamos este ponto) em que é que o comportamento pessoal de Stálin se afasta da norma que domina a conduta do partido[5]. Dizer, com efeito, que o stalinismo tem uma função não é insinuar que ele é – do ponto de vista da burocracia – “útil” em cada momento, e ainda menos que a política que segue é em cada ocasião a única possível; é na ocorrência afirmar apenas que sem terror staliniano o desenvolvimento da burocracia é inconcebível. E, noutros termos, concordar que, para além das manobras de Stálin, das lutas fracionais no seio da equipe dirigente, das depurações em massa praticadas a todos os níveis da sociedade, toma corpo a exigência da fusão de todas as camadas da burocracia no seio da nova classe dirigente. Esta exigência é claramente atestada pelo comportamento dos meios depurados: se o terror staliniano pôde desenvolver-se numa sociedade em plena expansão, se os representantes da burocracia aceitaram viver sob a ameaça permanente da exterminação e da destituição, a despeito dos seus privilégios, é porque prevalecia, aos olhos das vítimas e dos outros, o ideal da transformação social que o partido encarnava. O famoso tema do sacrifício das gerações atuais em benefício das gerações futuras, apresentado pelo stalinismo travestido em programa de construção do socialismo, ganha o seu conteúdo real: o partido exigia o sacrifício dos interesses particulares e dos interesses imediatos das camadas ascendentes ao interesse histórico da burocracia como classe.

Não podemos limitar-nos a compreender o papel do stalinismo no quadro exclusivo da burocracia. O terror que exerceu sobre um proletariado em pleno crescimento supõe que em certos aspectos ele vinha responder a uma situação específica da classe operária. Seria vão negar, com efeito, que a política do partido, mesmo se porventura encontrou uma resistência cada vez maior nas fileiras do proletariado – que o código do trabalho relegava à produção e o stakhanovismo a uma corrida desenfreada para o aumento da mesma, não deixou de suscitar a participação no ideal do novo regime. Ciliga mostrou-o bem nas suas obras sobre a URSS, aliás duramente críticas: por um lado a exploração desenfreada que reinava nas fábricas ia de par com uma enorme proletarização dos pequenos camponeses; para estes, habituados a condições de vida muito duras, ela não era tão sensível como para a classe operária já constituída; mais, ela representava em certos aspectos um progresso, provocando a vida na cidade, a familiaridade com os utensílios e os produtos industriais, um verdadeiro despertar da mentalidade, de novas necessidades sociais, uma sensibilidade à mudança. Por outro lado, no próprio seio do proletariado, uma camada importante de operários, encontrando-se promovida a novas funções graças ao partido, aos sindicatos ou ao stakhanovismo, descobria assim as vias de uma evasão da condição comum, desconhecidas no antigo regime. Enfim, e sobretudo, aos olhos de todos, a industrialização, que fazia surgir milhares de fábricas modernas, decuplicava os efeitos das cidades ou fazia surgir outras inteiramente novas, multiplicava a rede de comunicações, mostrava-se sem contestação possível como progressiva – a miséria e o terror constituíam o resgate provisório de uma formidável acumulação primitiva. Certamente que o stalinismo construía à força de chicote, instituía cinicamente uma discriminação social inconcebível em período pós-revolucionário, subordinava sem equívoco a produção às necessidades da classe dominante. No entanto, a tensão de energias que ele exigia em todos os setores, a fusão que efetuava de todas as condições sociais, as oportunidades de promoção que oferecia aos indivíduos em todas as classes, a aceleração de todas as forças produtivas que impunha como ideal e que realizava, todas estas características forneciam um álibi ao seu poder desmesurado e à sua onipresença policial. 

A contradição principal do totalitarismo staliniano

Se Krushev, filho ingrato, pode-se dizer, não tivesse ficado obcecado pelos atropelos por que Stálin o fez passar no fim da existência, não teria ele apreciado mais serenamente o caminho percorrido? Não teria podido reler pausadamente o capítulo do Capital que Marx consagra à acumulação primitiva e repetir com ele: “É pela força que se faz nascer o trabalho em todas as sociedades. A violência é um motor da economia”? Não teria podido explicar ao XX Congresso na sua linguagem rude característica: “Stálin realizou para nós a tarefa mais árdua”? Ou então em termos escolhidos, parafrasear Marx: “Eis a que preço se puderam formular as leis naturais e eternas da produção planificada”? A ler Isaac Deutscher[6], conhecido historiador inglês da sociedade soviética, quase nos aflige uma tal ingratidão. Não é que Deutscher adore o stalinismo, mas a seu ver as necessidades da acumulação primitiva impunham-se ao socialismo, tal como se tinham imposto ao capitalismo: o purgatório staliniano era inevitável. O mal é que o nosso autor não veja que a ideia de uma acumulação primitiva socialista é absurda. A acumulação primitiva significa para Marx a deportação em massa dos camponeses para locais de trabalho forçado, as fábricas, o extorquir por todos os meios – a maior parte das vezes ilegais – de mais-valia. Ela visa constituir uma massa de meios de produção tal que, subordinando-lhe a força de trabalho, se possa em seguida reproduzi-la automaticamente e acrescentá-la de um lucro. No seu princípio e na sua finalidade ela implica necessariamente a divisão do capital e do trabalho: o capitalismo só pode entregar-se às suas “orgias”, segundo a expressão de Marx, porque encontra em face de si homens totalmente desapossados e ele age de modo a que esta privação seja cotidianamente reproduzida enquanto a sua força é cotidianamente mantida e acrescentada. Claro, pode contestar-se que o socialismo seja realizável numa sociedade que ainda não tenha uma infraestrutura econômica, quer dizer, que ainda não tenha passado por um estágio de acumulação, mas não pode dizer-se que o socialismo como tal tenha que passar por este estágio, porquanto, qualquer que seja o nível das forças produtivas ao qual se ligue, ele supõe a gestão coletiva da produção, isto é, a direção efetiva das fábricas pelos operários reunidos nos seus comitês. Reconhecer uma acumulação primitiva na URSS, é reconhecer que nela reinam relações de produção de tipo capitalista, é ainda admitir que estas tendem a reproduzir-se e a aprofundar a oposição que ela pressupõe – pois que a constituição de um stock de máquinas e de matérias-primas, por um lado, e a de uma força de trabalho totalmente desapossada, por outro, não pode ter outra consequência senão a normalização da exploração. Neste sentido, a obstinação de Krushev em calar até agora os problemas da acumulação primitiva parece bastante razoável. “Pecado original” aos olhos da burguesia, como dizia ainda Marx, a acumulação primitiva é-o muito mais aos olhos da burocracia, que deve dissimular inclusive a sua própria existência como classe.

Além do mais, seria artificial explicar o stalinismo a partir unicamente das dificuldades econômicas a que teve de fazer face. O que tentamos evidenciar é o papel que desempenhou na cristalização da nova classe, na revolução de toda a sociedade. Se se quiser conservar a expressão marxista retomada por Deutscher é necessário renovar-lhe o conteúdo e falar de uma “acumulação social”, entendendo por tal que as características atuais da burocracia não podiam constituir-se sem a intervenção do partido, que as libertou e as manteve pela violência até que se estabilizassem numa nova configuração histórica.

Mas é preciso ainda compreender que é da própria essência da burocracia constituir-se segundo o processo descrito. Pois assim compreenderemos simultaneamente que esta classe contém uma contradição permanente, que certamente evolui com a sua história, mas que não poderá resolver-se senão pela liquidação do stalinismo.

A ditadura “terrorista” do partido não é somente o sinal de uma falta de maturidade da nova classe, ela corresponde, como dissemos, ao seu modo de domínio na sociedade. Esta classe é de uma natureza diferente da burguesia. Ela não é composta por grupos que, pela propriedade dos meios de produção e pela exploração privada da força de trabalho, detêm cada qual uma parte do poder material, e estabelecem entre si relações fundadas na sua força respectiva. Ela é um conjunto de indivíduos que, pelas suas funções pelo estatuto que lhes está associado, participam em comum do lucro realizado por uma exploração coletiva do trabalho. A classe burguesa constitui-se e desenvolve-se enquanto resultado das atividades dos indivíduos capitalistas, ela apoia-se num determinismo econômico que fundamenta a sua existência, qualquer que seja a luta que os atores travem e qualquer que seja a expressão política conjuntural à qual esta conduz. A divisão do trabalho inter-capitalista e o mercado tornam os capitalistas estritamente dependentes uns dos outros, e coletivamente solidários face à força do trabalho. Contrariamente, os burocratas só formam uma classe porque as suas funções e estatutos se diferenciam coletivamente das classes exploradas, porque eles os ligam a um centro de direção que determina a produção e dispõe livremente da força de trabalho. Noutros termos, é porque existem relações de produção nas quais se opõem o proletariado reduzido à função de simples executante, e o Capital, encarnado pelo Personagem do Estado, é porque existe assim uma relação de classe que as atividades dos burocratas os ligam à classe dominante. Integrados num sistema de classe, as suas funções particulares constituem-nos como membros da classe dominante. Mas, pode dizer-se, não é enquanto indivíduos agentes que eles tecem a rede de relações de classe; é a classe burocrática na sua generalidade que, a priori, isto é, em virtude da estrutura da produção existente, converte as atividades particulares dos burocratas (atividades privilegiadas entre outras) em atividades de classe. A unidade da classe burocrática é pois imediatamente dependente do aparelho coletivo de exploração, o Estado. Noutros termos, a comunidade burocrática não é garantida pelo mecanismo das atividades econômicas, ela estabelece-se com a integração dos burocratas em torno do Estado, na disciplina absoluta em relação ao aparelho de direção. Sem este Estado, sem este aparelho, a burocracia não é nada.

Não queremos dizer que os burocratas enquanto indivíduos não gozem de uma situação estável (se bem que esta estabilidade tenha sido efetivamente ameaçada durante a era staliniana), que o seu estatuto não lhes traga senão vantagens efêmeras, enfim, que a sua posição na sociedade permaneça acidental. Não há dúvidas que o pessoal burocrata confirma pouco a pouco os seus direitos, adquire com o tempo tradições, um estilo de existência, uma mentalidade que fizeram dele um “mundo” à parte. Não pretendemos também afirmar que os burocratas não se diferenciam no seio da sua própria classe e não mantêm entre si severas relações de concorrência. Tudo o que sabemos da luta de clãs na administração prova ao contrário que esta concorrência toma a forma de uma luta de todos contra todos, característica de qualquer sociedade de exploração. Nós afirmamos apenas que a burocracia não pode passar sem uma coesão dos indivíduos e dos grupos, nenhum sendo qualquer coisa em si mesmo, e que só o Estado proporciona um cimento social. Sem esquematizar abusivamente o funcionamento da sociedade burguesa, deve reconhecer-se que, a despeito da extensão sempre crescente das funções do Estado, este nunca se liberta dos conflitos gerados pela concorrência dos grupos privados. A sociedade civil[7] não se funde no Estado. No próprio momento em que tende a fazer prevalecer o interesse geral da classe dominante em prejuízo dos interesses privados que se afrontam, ele exprime ainda as relações de força inter-capitalistas. É que a propriedade privada introduz um divórcio de princípio entre os capitalistas e o capital – cada um dos termos se considerando sucessivamente como a realidade e excluindo o outro como imaginário. As vicissitudes do Estado burguês moderno atestam suficientemente esta separação de que Marx tanto falou: separação entre o próprio Estado e a sociedade, e no seio desta entre as esferas de atividade. No quadro do regime burocrático, uma tal separação é abolida. O Estado já não pode definir-se como uma expressão. Ele tornou-se consubstancial à sociedade civil, queremos dizer à classe dominante.

Mas sê-lo-á realmente? É-o e não o é. Paradoxalmente reintroduz-se uma separação sob certos aspectos mais profunda que em qualquer outra sociedade. O Estado é bem a alma da burocracia, e esta sabe perfeitamente que não é nada sem este poder supremo. Mas o Estado retira a cada burocrata todo o poder efetivo. Nega-o enquanto indivíduo, recusa-lhe qualquer criatividade no seu domínio particular de atividade, submete-o como membro anônimo aos decretos irrevogáveis da autoridade central. O espírito burocrático plana sobre os burocratas como divindade indiferente às particularidades. Assim a planificação (esta planificação que pretende atribuir a cada um a justa tarefa e de acordo com todas as outras) é elaborada por um núcleo de dirigentes que dirige tudo; os funcionários apenas podem traduzir em número as ideias diretrizes, deduzir as consequências dos princípios, transmitir, aplicar. A classe não vê no seu Estado senão o segredo impenetrável da sua própria existência. Todo o funcionário pode bem dizer: o Estado sou eu, mas o Estado é o Outro, a sua regra domina como uma fatalidade ininteligível.

Esta distância infinita entre o Estado e os burocratas tem ainda uma consequência inesperada: estes nunca estão à altura, a não ser que se erijam em opositores, de criticar a regra instituída. Formalmente, esta crítica está inscrita no modo de existência da burocracia: uma vez que o Estado é cada um, cada um é convidado, em direito, a dirigir, isto é, a confrontar a sua atividade real e os objetivos socialmente fixados. Mas, na realidade, criticar significa não ser solidário da comunidade burocrática. Como o burocrata só é membro da sua classe enquanto se integrar na política do Estado, qualquer afastamento da sua parte constitui uma ameaça para o sistema. Daí provém que, durante toda a era staliniana, a burocracia se dedica a uma orgia de pequenas críticas e dissimula qualquer crítica verdadeira. Ela instaura o processo solene de todos os métodos burocráticos mas continua a aplicar escrupulosamente as regras que estabelecem e mantêm a sua irresponsabilidade. Ela fala demais e cala-se. Desse fato resulta também que qualquer mal-estar sério no funcionamento da produção traduz-se necessariamente por uma depuração em massa de burocratas, técnicos, cientistas ou quadros sindicais, cujo afastamento da norma (quer o tivessem querido ou não) trai uma oposição ao Estado.

A contradição entre a sociedade civil e o Estado apenas desapareceu sob uma forma para reaparecer sob outra, agravada. No tempo da burguesia, com efeito, o Estado encontra-se ligado à sociedade civil pelos mesmos elos que o afastam dela. O segredo do Estado é para os capitalistas segredo de polichinelo pois, apesar de todos os esforços para encarnar a generalidade aos olhos dos particulares, o Estado alinha-se sobre a posição do particular mais poderoso. Mesmo se aproveita as crises para governar entre as diversas correntes, a sua política traduz ainda uma espécie de arbitragem natural das forças econômicas. Na sociedade burocrática, pelo contrário, o Estado tornou-se a sociedade civil, o Capital expulsou os capitalistas, realizou-se a integração de todas as esferas de atividade, mas a sociedade sofreu uma metamorfose imprevisível: ela engendrou um monstro que contempla, sem a reconhecer, a sua imagem: a ditadura.

Este monstro chamou-se Stálin. Pretende-se fazer crer que ele morreu. Talvez depositem o seu cadáver embalsamado num mausoléu a testemunhar um passado irremediável. Seria todavia qualquer vã tentativa da burocracia para escapar à sua própria essência. Ela bem pode enterrar a sua pele morta nas caves do Kremlin e revestir-se dos seus ouropéis mais reluzentes: era totalitária, totalitária continuará.

Antes de encararmos os esforços da nova direção para contornar as dificuldades inelutáveis que a estrutura do capitalismo de Estado suscita, convém medir a amplitude da contradição que nele se contém. Esta contradição não inclui apenas as contradições inter-burocráticas, ela manifesta-se, e não menos fortemente, nas relações que a classe dominante mantém com as classes exploradas.

De novo se impõe uma comparação entre o regime burocrático e o regime burguês, pois as relações entre a classe dominante e o proletariado são de um tipo novo. A origem histórica da burocracia já o atesta; ela formou-se com efeito a partir de instituições, o partido e o sindicato, forjadas pelo proletariado na sua luta contra o capitalismo. Certamente, no seio do partido, a proporção de intelectuais ou de elementos burgueses revolucionários era suficientemente forte para exercer uma influência decisiva na orientação política e no comportamento da organização. Não seria menos vão negar que o partido nasceu no âmbito da classe operária, e se ele acabou por excluir os representantes desta de qualquer poder real, nunca deixou de se apresentar como direção do proletariado. Aliás, a burocracia continua a alimentar-se de uma fração da classe operária à qual abre as portas (como nunca a burguesia o fez) das escolas de quadros, que ela afasta da condição comum pelos privilégios que lhe atribui e as oportunidades de ascensão social que lhe oferece. Além disso, a definição sociológica do proletariado, digamos assim, encontra-se transformada. Na sociedade burguesa manifesta-se uma diferença essencial ao nível das relações de produção entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário da força de trabalho. Um e outro apresentam-se como as partes num contrato; formalmente eles são iguais e esta igualdade encontra-se aliás consagrada no regime democrático pelo sufrágio universal. No entanto esta igualdade é aparentemente fictícia: é evidente que ser proprietário dos meios de produção e proprietário da sua força de trabalho não tem o mesmo sentido. No primeiro caso, a propriedade dá o poder de utilizar o trabalho de outrem para obter um lucro e esta disposição do trabalho implica uma liberdade real. No outro, a propriedade dá o poder de se submeter para conservar e reproduzir a sua vida. A igualdade das partes não pode pois iludir: o contrato é submissão. O capitalismo de Estado confunde os termos. O contrato apresenta-se como uma relação entre os indivíduos e a sociedade. O operário não aluga a sua força de trabalho ao capitalista, ele já não é uma mercadoria; ele é considerado uma parcela de um conjunto que se designa por forças produtivas da sociedade. Aparentemente o seu novo estatuto não se distingue portanto em nada do estatuto do burocrata; ele mantém com o conjunto da sociedade a mesma relação que o diretor da fábrica. Como este, recebe um salário em resposta a uma função que vai integrar-se na totalidade das funções definidas pelo Plano. Na realidade, é por demais sabido que um tal estatuto, dando a cada uma vantagem de tratar o seu superior por “camarada”, é o reverso de uma nova submissão ao capital, submissão que em certos aspectos é ainda maior, uma vez que a proibição das reivindicações coletivas, de greves, e o encadeamento do operário ao local de trabalho, podem decorrer naturalmente dessa submissão. Como é que o proletariado poderia lutar contra o Estado que o representa? Às reivindicações pode-se sempre objetar que elas correspondem a um ponto de vista particular, que os interesses dos operários podem não coincidir com os da sociedade no seu conjunto, que os seus objetivos imediatos devem ser avaliados nos quadros dos objetivos históricos do socialismo. Os processos de mistificação de que o Estado dispõe são pois mais sutis e mais eficazes no novo sistema. No raciocínio social que a estrutura desenvolve em virtude das suas articulações formais, as cadeias essenciais estão dissimuladas da atenção do proletariado; ele encontra por toda a parte os sinais do seu poder, quando afinal está completamente privado dele.

Todavia as classes exploradas não são as únicas a ser mistificadas. Em razão desta mesma mistificação as camadas dominantes não estão em condições de se constituir como classe à parte na sociedade. Certamente, os burocratas distinguem-se pelos seus privilégios e estatutos. Mas esta situação exige uma justificação junto do proletariado: a burocracia tem bem mais necessidade de ser “reconhecida” que a burguesia. Assim, uma parte importante da atividade da burocracia (por intermédio do partido e dos sindicatos) é consagrada a persuadir o proletariado que o Estado governa a sociedade em seu nome. Se em certa perspectiva a educação das massas, a propaganda socialista, surgem como simples instrumentos de mistificação dos explorados, noutra perspectiva testemunham das ilusões que a burocracia desenvolve sobre si própria. Ela não se concebe de modo algum como uma classe. Prisioneira da sua própria linguagem, ela imagina que não o é. Certamente, esta imaginação cede perante as exigências da exploração, quer dizer, perante o imperativo de extorquir ao proletariado a mais-valia pelos meios mais impiedosos, como dizia Marx a propósito da outra burocracia, a do Estado prussiano do séc. XIX, a hipocrisia da então lugar ao jesuitismo consciente. Mas há um conflito que a preocupa sumamente, que não a deixa nunca em repouso, e a expõe permanentemente aos horrores da autojustificação. É preciso provar àqueles que ela domina e provar a si própria que não faz nunca o contrário do que afirma. Durante a era staliniana, a hierarquia brutal da sociedade, a legislação implacável do trabalho, a prossecução desenfreada do rendimento a expensas das massas, por um lado, a afirmação constante de que o socialismo se está a realizar, por outro, formam os dois termos dessa cruel antinomia. Ora esta é ao mesmo tempo geradora de uma desmistificação das massas. Enquanto o Estado apela ao proletariado para uma participação ativa na produção e o persuade do seu papel dominante na sociedade, recusa-lhe qualquer responsabilidade, qualquer iniciativa e mantém-no nas condições de simples servidor do maquinismo a que o capitalismo, desde a sua origem, o condenou. A propaganda ensina pois cotidianamente o contrário do que ela se destina a ensinar.

Veremos mais adiante que a evolução do proletariado russo, que a sua libertação da carapaça camponesa que o atrofiava ainda durante os primeiros planos quinquenais, a sua aprendizagem da técnica moderna, agravam consideravelmente esta contradição da exploração burocrática, desempenham um papel decisivo na transformação política recente. Só queríamos sublinhar que uma tal contradição deve-se à essência do regime burocrático; os seus modos podem evoluir, podem inventar-se novos artifícios para os tornar “vivíveis”; no entanto, enquanto existir, a burocracia não poderá deixar de sofrer de uma dupla exigência: integrar o proletariado na vida social, fazer “reconhecer” o seu Estado como sendo o da sociedade inteira e recusar ao proletariado essa integração, apropriando-se dos fundos do seu trabalho e privando-o de toda a criatividade social.

Em outros termos, a mistificação está em toda a parte, mas ela gera por essa razão as condições da sua queda, ela faz surgir por toda a parte uma ameaça para o regime. Este, sob certos aspectos, revela-se infinitamente mais coerente que o sistema burguês, enquanto que noutros revela uma maior vulnerabilidade.

O Ideal do Partido e sua função Real

Os problemas que o partido defronta na sociedade burocrática introduzem-nos no âmago das contradições que enunciamos, e não é por acaso que elas se encontrarão, como o evidenciaremos, no centro das preocupações do XX Congresso.

Será no entanto inútil procurar nos críticos da URSS uma compreensão deste problema. A originalidade do partido nunca é apercebida. Os intelectuais burgueses são muitas vezes sensíveis à empresa totalitária que o partido encarna. Denunciam a mística social que o domina, o seu esforço de integração de todas as atividades que os subordina a um ideal único. Mas esta ideia esbate-se no tema já debatido da religião de Estado. Obcecados pelos precedentes históricos que dispensam de pensar o presente como tal, comparam-se as regras do partido às das ordens conquistadoras, a sua ideologia à do Islão no século XVII[8]; ignora-se então a função essencial que desempenha na vida social moderna, no mundo do século XX unificado pelo capital, dependendo no seu desenvolvimento do de cada um dos setores, ao mesmo desarticulado pela especialização técnica e rigorosamente centralizado na indústria. Por outro lado, o trotskismo esgota-se a comparar o partido comunista atual ao modelo bolchevique, como se aquele se definisse por características totalmente negativas – a sua deformação da ideologia socialista, a sua ausência de democracia, a sua conduta contrarrevolucionária. O próprio Trotsky, como é sabido, hesitou longamente até reconhecer o falhanço do partido na URSS e não pôde deixar de recomendar um retorno às suas formas primitivas. Não somente ele não podia admitir que os traços do stalinismo estivessem já contidos no bolchevismo, e que a aventura de um estivesse ligada à do outro, como recusava absolutamente a ideia de que o partido tivesse assumido uma nova função. O partido bolchevique era o partido real, o stalinismo uma projeção fantástica e monstruosa deste num universo separado da revolução.

Bastaria no entanto observar a imensidade das tarefas atribuídas ao partido, o crescimento extraordinário dos seus efetivos (compreende hoje mais de sete milhões de membros) para nos persuadirmos do seu papel decisivo na sociedade. De fato, ele não é exatamente um aparelho de coerção nem uma casta de burocratas, nem tão pouco um movimento ideológico destinado a proclamar a missão histórica do Estado, se bem que conote no entanto todas essas características. Ele é o agente essencial do totalitarismo moderno. Mas este termo deve ser compreendido rigorosamente. O totalitarismo não é o regime ditatorial, como se depreende cada vez que se designa sob este nome um tipo de dominação absoluta na qual é abolida a separação dos poderes. Mais precisamente, ele não é um regime político: é uma forma de sociedade – essa forma no seio da qual todas as atividades estão imediatamente como modalidades de um universo único, no qual predomina de modo absoluto um sistema de valores, de maneira que todas as empresas individuais ou coletivas devem necessariamente encontrar nela um coeficiente de realidade, na qual finalmente o modelo dominante exerce uma pressão total ao mesmo tempo física e espiritual sobre a conduta dos particulares. Neste sentido o totalitarismo pretende negar a separação característica do capitalismo burguês entre os diversos domínios da vida social; do político, do econômico, do jurídico, do ideológico, etc. Ele identifica permanentemente uns com outros. Mais do que uma excrescência monstruosa do poder político na sociedade, ele é uma metamorfose da própria sociedade, pela qual o poder político deixa de existir como esfera separada. Tal como o entendemos, o totalitarismo não tem nada a ver com o regime de um Franco ou de um Syngman Rhee, a despeito da ditadura; ele anuncia-se em contrapartida nos Estados Unidos, se bem que as instituições democráticas deste não tenham deixado de existir. É que ele está profundamente ligado à estrutura da produção moderna e às exigências de integração social que lhe correspondem. A expansão da indústria, a invasão progressiva de todos os domínios pelos seus métodos, ao mesmo tempo que criam um isolamento crescente dos produtores na sua esfera particular, operam como diz Marx uma socialização da sociedade, pondo cada um na dependência do outro e de todos, e tornam necessário o reconhecimento explícito da unidade ideal da sociedade. Que esta participação social seja reprimida, que a comunidade se divida perante uma nova e implacável separação em senhores e escravos, que a socialização se degrade pela uniformização das crenças e das atividades, a criação coletiva pela passividade e pelo conformismo, que a procura da universalidade caia no abismo dos valores dominantes estereotipados, este imenso fracasso não poderia dissimular as exigências positivas a que o totalitarismo veio responder. Ele é, por dizer-se, o inverso do comunismo. Ele é o travestimento da totalidade efetiva.

Ora, o partido é a instituição tipo, na qual o processo de socialização se realiza e se inverte. E não é por acaso que, procedendo da luta para instaurar o comunismo, ele pôde mudar de forma e tornar-se o veículo do totalitarismo. O partido encarna na sociedade burocrática uma função histórica absolutamente nova. Ele é o agente de uma penetração completa da sociedade civil pelo Estado. Mais precisamente, ele é o meio onde o Estado se transforma em sociedade ou a sociedade em Estado. A imensa rede de comitês e de células que cobrem o país inteiro estabelece uma nova comunicação entre as cidades e os campos, entre todos os ramos da atividade social, entre todas as empresas de cada ramo. A divisão do trabalho que tende a isolar rigorosamente os indivíduos encontra-se em certo sentido ultrapassada; no partido, o engenheiro, o comerciante, o operário, o empregado, encontram-se lado a lado com o filósofo, o cientista e o artista. Uns e outros estão separados dos quadros estreitos da sua especialidade e restituídos em conjunto ao quadro de uma sociedade total e dos seus horizontes históricos. A vida do Estado, os objetivos do Estado, fazem parte do seu mundo cotidiano. Assim, a mais modesta atividade, como a mais alta, encontra-se valorizada, considerada como um momento de uma empresa coletiva. Não só os indivíduos parecem perder no partido, o estatuto que os diferencia na vida civil, para se tornarem “camaradas”, homens sociais, mas são chamados a trocar a sua experiência, a expor a sua atividade e a do seu meio a um juízo coletivo em função do qual elas ganham um sentido. O partido tende pois a abolir o mistério da produção introduzindo um novo circuito ligando meios realmente separados. Ele mostra que há uma maneira de dirigir uma fábrica, de trabalhar numa cadeia de produção, de tratar os doentes, de escrever um tratado de filosofia, de praticar um desporto, que respeita a todos os indivíduos porque implica um modo de participação social e se integra finalmente num conjunto cuja harmonia é regida pelo Estado. Quer dizer finalmente que o partido transforma radicalmente o sentido da função política. Função separada, privilegiada, de uma minoria dirigente na sociedade burguesa, ela difunde-se agora graças a ele em todos os ramos de atividade.

Tal é o ideal do partido. Pela sua mediação, o Estado tende a tornar-se imanente à sociedade. Mas por um paradoxo que já analisamos longamente verifica-se que na realidade o partido reveste um significado completamente oposto. Como a divisão do trabalho e do capital persiste e se aprofunda, como a unificação estrita do capital dá um poder todo-poderoso ao aparelho dirigente, subordina todas as forças produtivas a este aparelho, o partido não pode ser senão um simulacro da socialização. Na realidade, comporta-se como um grupo particular que vem juntar-se aos grupos gerados pela divisão do trabalho, um grupo que tem por função mascarar a irredutível separação das atividades e dos estatutos, de configurar no imaginário as transições que se negam à realidade, um grupo cuja verdadeira especialidade é não ter especialidade. Na realidade, a troca das experiências degrada-se num controle dos que produzem, em todos os domínios da produção, pelos profissionais da incompetência. Ao ideal de participação ativa na obra social vem responder a obediência cega à norma imposta pelos chefes: a criação coletiva torna-se inibição coletiva. Assim a penetração do partido em todos os domínios significa apenas que cada indivíduo produtivo se encontra dobrado por um funcionário político, cujo papel é atribuir à sua atividade um coeficiente ideológico, como se a norma social definida pela edificação do socialismo e as regras conjunturais que se deduzem daquela pudessem permitir medir o seu afastamento em relação ao real. Reduzido a comentário das condutas efetivas dos homens, o partido reintroduz assim uma cisão radical no seio da vida social. Cada um tem o seu duplo ideológico. O diretor e o técnico agem sob o olhar deste duplo que “qualifica” o aumento ou baixa de produção ou qualquer outro resultado qualificável em função de uma escala fixa de valores fornecida pelo aparelho dirigente. Do mesmo modo, o escritor é julgado segundo os critérios de realismo determinados pelo Estado, o biólogo obrigado a aderir à genética de Lyssenko. Pouco importa, aliás, que o duplo seja um outro. Cada um pode desempenhar esse papel em relação a si próprio; o diretor, o escritor, o cientista, podem igualmente ser membros do partido. Mas por mais próximos que se queiram um do outro, os dois termos não deixam por isso de representar uma contradição social permanente. Tudo se passa como se a vida social inteira fosse dominada por uma fantástica cronometragem cujas normas seriam elaboradas pelo mais secreto gabinete de estudos.

A atividade do partido torna a engendrar assim uma separação da função política, quando o que ele pretendia era aboli-la, e em certo sentido acentua-a. É, com efeito, em cada um dos domínios concretos da produção, por mais particular que seja, que se faz sentir a intrusão da política. Por toda a parte a “célula” é o corpo estranho; não o elemento essencial que liga o indivíduo à vida do organismo, mas o núcleo onde as forças produtivas da sociedade vêm esmagar-se.

Finalmente, o partido é a principal vítima desta separação; pois, na sociedade, as exigências da produção criam, em certos limites pelo menos, uma independência de fato do trabalho. O partido, em contrapartida, tem por tarefa exclusiva proclamar, difundir, impor normas ideológicas. Ele alimenta-se de política. A sua função principal torna-se justificar a sua função, mete-se em tudo, negando todos os problemas particulares, afirmando constantemente o leit-motiv do ideal oficial. Ao mesmo tempo que ele se persuade que a sua atividade é essencial, encontra-se rejeitado em virtude do seu comportamento exterior à sociedade real. E esta contradição aumenta o seu autoritarismo, a reivindicação das suas prerrogativas, a sua pretensão à universalidade. É que ele é eficaz onde não sabe sê-lo, na medida em que disfarça a sociedade em Estado, na medida em que estimula uma unidade social e histórica para além das divisões e dos conflitos do mundo real, ou como Marx teria dito, ele é real enquanto imaginário. Inversamente, ele é imaginário na medida em que é real, desprovido de qualquer eficácia histórica onde pretende exercê-la, no terreno da vida produtiva da sociedade, que ele assedia como um perpétuo perturbador.

Não é portanto de espantar que se encontrem no seio do partido, finalmente, todas as taras da burocracia que já referimos, levadas ao paroxismo. Indivíduos “universais”, livres da estreiteza de uma situação ou de um estatuto, promovidos à tarefa de edificação do socialismo, múltiplas encarnações de uma humanidade nova, assim poderiam definir-se idealmente os membros do partido. Eles estão de fato condenados à abstração da regra dominante, condenados à obediência servil, fixados à particularidade da sua função de militantes, levados a uma luta sem tréguas pelos postos mais elevados, servidores de uma papelada autojustificativa, um grupo particular entre outros, preso à conservação e reprodução das condições que legitimam a sua existência. No entanto, eles não poderiam tão pouco renunciar ao que são como ao que deveriam ser. Porquanto é por esta contradição que o partido realiza a essência do totalitarismo, centro da “socialização” da sociedade e da subordinação das forças produtivas à dominação do Capital.


[1] Com efeito, numerosos sinais indicam que a mudança tem importantes repercussões nos diversos partidos comunistas do mundo inteiro. A China não reage como a Polônia; nem Thorez como Togliatti. Em numerosos casos – nomeadamente na Polônia, Checoslováquia e Bulgária – suscita-se uma viva crítica do aparelho dominante, graças ao XX Congresso, e este aparelho, para se defender, é obrigado a ameaçar os novos opositores. Em França, o Humanitè oferece cotidianamente o espetáculo do maior embaraço, procurando ao mesmo tempo minimizar a crítica do stalinismo e alinhar-se segundo as novas diretivas.

[2] Em todos os países altamente industrializados o progresso técnico institui uma divisão radical entre os dirigentes e os executantes, uma extrema especialização das tarefas que modifica as relações entre os indivíduos no seio da camada dirigente e exige a participação ativa dos produtores no trabalho, suscitando um novo tipo de comando.

[3] Lembremos esta fórmula de A Minha Vida: “O fato de este (Stálin) interpretar atualmente o papel principal é característico não tanto dele como do período transitório de desvio político. Já Helvétius dizia: Todas as épocas têm os seus grandes homens e quando não os têm, inventam-se. O stalinismo é antes de mais o trabalho automático de um aparelho sem personalidade no declínio da Revolução”. (Rieder ed., p. 237).

[4] É-nos impossível desenvolver no âmbito deste estudo uma análise econômica da URSS e poderíamos assim ser acusados de supor resolvido o problema da natureza de classe da URSS em vez de o discutir. A desigualdade social que evocamos e a separação de fato entre Estado e proletariado, por exemplo, não bastam aos olhos dos “comunistas” que se reconhecem e aos dos trotskistas, para caracterizar a URSS como uma sociedade de classe. O fundamento socialista do regime seria assegurado pela abolição da propriedade privada.

Pierre Chaulieu, num importante estudo, criticou amplamente esta última tese. Ele mostrou de modo peremptório que as relações jurídicas de propriedade não fornecem por si só senão uma imagem deformada das relações de produção, que a este nível a oposição do capital e do trabalho é tão radical na sociedade russa como na americana ou francesa; ele mostrou enfim que seria absurdo separar a esfera da produção da distribuição e que consequentemente a desigualdade dos rendimentos circunscrevia uma camada social particular cujos “privilégios” comuns traduziam uma apropriação coletiva da mais-valia operária e camponesa. Remetendo o leitor para este artigo (“As relações de produção na Rússia”, Socialisme ou Barbarie, no. 2, Maio-junho de 1949. Tradução portuguesa, Ed. presença, Lisboa), apenas acrescentamos que o socialismo não se poderia definir “em si” pela nacionalização dos meios de produção, a coletivização da agricultura e a planificação, ou seja, independentemente do poder proletário. Há no capitalismo burguês uma infra-estrutura econômica que confere a sua verdadeira força à classe dominante, qualquer que seja o caráter do Estado na conjuntura. Em contrapartida o socialismo não pode designar uma infra-estrutura uma vez que ele significa a tomada em mãos pelo proletariado dos meios de produção, ou a gestão coletiva da produção. A ditadura do proletariado é essencialmente este novo modo de gestão. Se ele escapa ao proletariado, este é reconduzido ao papel de simples executante que lhe era atribuído na indústria capitalista, e não restará o mais leve traço de socialismo. A burocracia de Estado planifica então segundo a sua perspectiva e no interesse dos que distribuem entre eles as funções dirigentes. As nacionalizações e a coletivização ao serviço de toda a sociedade, passam realmente a estar ao serviço de uma classe particular.

[5] O papel específico de Stálin não nos deve fazer esquecer que existe no terror uma espécie de lógica interna, que o leva a desenvolver-se até às suas últimas consequências, independentemente das condições reais a que correspondia no início. Seria demasiado simples se um Estado pudesse servir-se do terror como de um instrumento, e rejeitá-lo uma vez atingidos os objetivos. O terror é um fenômeno social, ele transforma o comportamento e a mentalidade dos indivíduos, e sem dúvida transformou a do próprio Stálin. Só posteriormente é que podem denunciar-se, como o faz Krushev, os seus excessos. No presente, ele não é excesso: constitui a vida social.

[6] Referimo-nos aos seus estudos reunidos em Heretics and Renegates, nomeadamente a “Mid-century Russia”, Hamish Hamilton, Londres, 1955.

[7] Retomamos o termo clássico de “sociedade civil” para designar o conjunto das classes e dos grupos sociais enquanto configurados pela divisão do trabalho e determinados independentemente da ação política do Estado.

[8] Monnerol, Sociologie du comunisme, NRF, 1949.

O presente artigo foi retirado da seguinte coletânea: A Natureza da URSS. Porto, Afrontamento, 1977.