O Sindicalismo e a Ação Direta – Anton Pannekoek

A tarefa primordial da classe operária é tomar em suas mãos a produção e organizá-la. Para prosseguir a luta é, contudo, necessário ver clara e distintamente o fim a atingir. Não resta senão o combate em si mesmo. A conquista do poder sobre a produção é a principal e mais difícil parte do que se deve fazer. É no decurso desta luta que se criarão os Conselhos Operários.

Não podem prever-se exatamente as formas que, no futuro, tomará a luta dos trabalhadores pela sua libertação. Essas formas dependerão das condições sociais e evoluirão com o crescente poder da classe operária. É e será necessário examinar de que modo esta batalha se desenrolou até ao presente e como adaptou as suas ações às mudanças de circunstâncias. Não seremos capazes de fazer face às necessidades do momento senão através dos ensinamentos, da experiência daqueles que nos precederam e somente encarando-a de uma forma crítica.

Em qualquer sociedade assente sobre a exploração duma classe trabalhadora por uma classe dominante se trava uma luta permanente, cujo objetivo é a divisão do produto total do trabalho, ou, em outras palavras, o grau de exploração. Assim, a Idade Média, como todos os séculos que se lhe seguiram, está cheia de combates incessantes e encarniçados entre os camponeses e os senhores da terra[1]. Na mesma época, pode ver-se a luta da classe burguesa, em ascensão, contra a nobreza e a monarquia, pelo poder sobre a sociedade. É uma luta de classes, de natureza diferente, associada ao crescimento de um novo sistema de produção, proveniente do desenvolvimento da técnica, da indústria e do comércio. É uma guerra entre os senhores da terra e os do capital, entre o sistema feudal em declínio e o sistema capitalista em pleno voo. Através duma série de convulsões sociais, revoluções políticas e guerras, em Inglaterra, França e, em seguida, noutros países, a classe capitalista conquistou o domínio completo da sociedade.

No regime capitalista, a classe operária deve travar contra o capital duas formas de luta. Travar um combate perpétuo para atenuar a forte pressão da exploração, para fazer aumentar os salários e acrescentar ou manter a sua parte no produto total. Por outro lado deve com o aumento da sua força, conquistar o domínio da sociedade para derrubar o capitalismo e instaurar um novo sistema de produção.

Quando, pela primeira vez, no inicio da revolução industrial, em Inglaterra, se introduziram máquinas de fiar e depois de tecer, os operários revoltados quebraram-nas. Não eram propriamente operários no sentido atual do termo, quer dizer, assalariados. Tratava-se de pequenos artesãos, até então independentes, reduzidos agora à fome pela concorrência das máquinas, produzindo a baixo preço, e que em vão experimentaram destruir a causa da sua miséria. Em seguida, eles ou os seus filhos, tornaram-se os trabalhadores assalariados, manobrando eles mesmos as máquinas, e a sua posição foi mudada. O mesmo se passou com exércitos de camponeses que, durante todo o século 19, período do desenvolvimento industrial, se amontoaram nas cidades, atraídos por aquilo que lhes parecia bons salários. Na época moderna, são os descendentes dos operários que povoam as fábricas e sê-lo-ão cada vez mais.

Para todos, a luta por melhores condições de trabalho é uma necessidade imediata. Sob pressão da concorrência e para aumentar os lucros, os patrões tentam baixar os salários e aumentar o mais possível os períodos de trabalho. Os trabalhadores, impotentes, ameaçados pela fome, devem submeter-se em silêncio. Depois a resistência explode de repente, sob a única forma possível: a recusa de trabalhar, a greve. Na greve, os trabalhadores descobrem pela primeira vez a sua força; na greve aparece o seu poder de luta. Da greve nasce a associação de todos os trabalhadores duma fábrica, duma indústria, duma nação. Da greve nasce a solidariedade, o sentimento de fraternidade entre camaradas de trabalho, o sentimento de união com toda a classe: é a primeira aurora do que será, um dia, o sol da nova sociedade. A ajuda mútua, aparecendo primeiro sob a forma de coletas espontâneas e benévolas, cedo toma a forma durável dum sindicato.

O desenvolvimento dum sindicalismo sólido exige certas condições. A dura existência em um mundo onde tudo é permitido aos exploradores, onde reinam as proibições e o arbítrio policial, situação herdada em grande parte do período pré-capitalista, deve ser primeiro suavizada, antes de se poderem edificar construções sólidas. Os trabalhadores tiveram de lutar a maior parte do tempo por si mesmos, para que as condições de desenvolvimento do sindicalismo fossem garantidas. Na Inglaterra, foi a campanha revolucionária do cartismo; na Alemanha, meio século mais tarde, a luta da socialdemocracia, que, impondo o reconhecimento dos direitos sociais dos trabalhadores, lançaram as bases do desenvolvimento dos sindicatos.

Nos nossos dias existem sólidas organizações, englobando trabalhadores de um mesmo ramo industrial, num mesmo país, mantendo ligações com outros setores da atividade e internacionalmente unidas aos sindicatos de outros países do mundo. O pagamento regular de elevadas cotizações fornece os fundos necessários para a manutenção dos grevistas quando se torna imperioso forçar os capitalistas a conceder, contra sua vontade, condições mais decentes de trabalho aos operários. Os camaradas mais capazes, por vezes vítimas do inimigo na sequência de lutas passadas, tornam-se permanentes, fazendo, nas negociações com os investidores capitalistas, o papel de porta-vozes dos operários, independentes e conhecendo bem os problemas. Em consequência de uma greve oportunamente desencadeada e sustentada com toda a força do Sindicato, em consequência das negociações que se realizam, podem ser concluídos acordos, assegurando salários mais elevados e uniformes, horários de trabalho mais reduzidos, na medida em que a duração destes não esteja ainda fixada por lei.

Os trabalhadores já não são mais indivíduos impotentes, forçados pela fome a vender a sua força de trabalho por qualquer preço. Estão agora protegidos pela força da sua própria solidariedade e cooperação, porque cada sindicalizado não só dá uma parte do seu salário para os seus camaradas, como está pronto a arriscar o seu próprio emprego, na defesa da organização, ou seja, sua comunidade. Assim, estabelece-se certo equilíbrio entre a força operária e a dos patrões. As condições de trabalho deixam de ser impostas pelos interesses todo-poderosos dos capitalistas. Os sindicatos são, pouco a pouco, reconhecidos como representantes dos interesses dos trabalhadores e, ainda que a luta continue necessária, tornam-se uma forca que participa nas decisões. Não por toda a parte, nem de um só golpe, nem em todos os ramos da indústria. Os operários especializados são geralmente os primeiros a criar os seus sindicatos. A massa dos operários não especializados, que povoam as grandes fábricas e lutam contra os patrões mais poderosos, só mais tarde o consegue. Os seus sindicatos nascem, sobretudo, no decorrer duma súbita explosão de grandes lutas. Mas contra os monopólios, proprietários de empresas gigantescas, os sindicatos têm poucas chances de sucesso. Esses capitalistas todo-poderosos querem ser os senhores absolutos, e a sua arrogância tolera somente o “sindicato amarelo”, quer dizer, às suas ordens.

Deixando de lado esta restrição e supondo que o sindicalismo esteja plenamente desenvolvido e controle toda a indústria, isso não significa que a exploração esteja abolida e o capitalismo suprimido. São somente o arbítrio do capitalismo isolado e os piores abusos de exploração que estão abolidos. E este estado de coisas corresponde também ao interesse dos outros capitalistas – protege-os contra toda a concorrência desleal – e ao interesse do capitalismo em geral. O desenvolvimento do poder dos sindicatos permite uma normalização do capitalismo, uma certa norma de exploração é universalmente aceite e estabelecida. Uma norma para os salários, que satisfaça as exigências vitais mais modestas, de modo que os trabalhadores não sejam constrangidos de vez em quando a rebelar-se por causa da fome, é necessário para que a produção não seja interrompida. Uma norma para os horários de trabalho, não esgotando de todo a vitalidade da classe operária – ainda que as reduções de horários sejam largamente compensadas pela aceleração da cadência e pela intensidade do esforço – é necessária ao capitalismo em si mesmo; é preciso ter em reserva uma classe operária utilizável pela exploração futura. Foi a classe operária que, através de sua luta contra a mesquinha avidez do capitalista, teve que estabelecer as condições de um capitalismo normal. E tem que voltar a lutar incessantemente para preservar este precário equilíbrio. Os sindicatos são os instrumentos destas lutas, por isso preenchem uma função indispensável no capitalismo. Alguns patrões menos espertos não compreendem isto, mas os seus chefes políticos, mais avisados, sabem muito bem que os sindicatos são um elemento essencial ao capitalismo, e que, sem esta força reguladora que são os sindicatos operários, o poder capitalista não seria completo. Finalmente, se bem que produzidos pelas lutas dos operários e mantidos vivos pelos seus esforços e sacrifícios, os sindicatos tornaram-se órgãos da sociedade capitalista.

Mas com o desenvolvimento do capitalismo, as condições de exploração, pouco a pouco, tornaram-se desfavoráveis aos operários. O grande capital cresce, toma consciência da sua força e deseja ser o único senhor. Os capitalistas aprenderam também o valor da forca que dá a associação; organizam-se em sindicatos patronais. Em lugar da igualdade de forças aparece uma nova forma de superioridade do capital. As greves são contrariadas pelo “lock-out”, que esgota os fundos aos sindicatos. O dinheiro dos trabalhadores não pode rivalizar com o dinheiro dos capitalistas. Nas negociações sobre salários e condições de trabalho, os sindicatos constituem, mais do que nunca, a parte mais débil, porque devem temer e por fim devem tentar evitar as grandes lutas que esgotam as reservas e com isso coloca em perigo a existência estável da organização e dos seus funcionários. Nas negociações, os funcionários sindicais têm muitas vezes que aceitar uma degradação das condições de vida para evitar a luta. Para eles isso é inevitável e evidente por si mesmo, pois compreendem que ao mudar as condições diminuiu a força relativa de luta de sua organização.

Para os trabalhadores, não é evidente que tenham que aceitar em silêncio condições de trabalho e de vida mais duras. Os trabalhadores querem lutar. Aparece então uma contradição. Os funcionários sindicais parecem possuir um consenso. Sabem que os sindicatos estão em posição desvantajosa e que a luta terminará na derrota. Mas os trabalhadores sentem instintivamente que grandes forças permanecem escondidas sob as massas; se ao menos soubessem como pô-las em movimento e como servir-se delas! Compreendem bem que cedendo, agora e sempre, verão a sua situação piorar e que esta degradação só pode ser evitada lutando. Surgem então conflitos entre os sindicalistas e os sindicalizados. Os sindicalizados protestam contra os novos níveis de salários, sempre favoráveis aos patrões; os sindicalistas defendem os acordos a que chegaram depois de longas e difíceis negociações e tentam fazê-los ratificar. Assim, devem por vezes servir de porta-vozes dos interesses do capital contra os dos operários. E, porque são os dirigentes influentes dos sindicatos e põem todo o peso do seu poder e autoridade dum lado, bem determinado, da balança, pode dizer-se que, em suas mãos, os sindicatos se transformam em órgãos do capital.

O crescimento do capital, o aumento do número de trabalhadores, a urgente necessidade de associação, transformaram os sindicatos em organizações gigantes, que exigem um estado-maior, cada vez mais importante, de funcionários e dirigentes. Eles passam a constituir uma burocracia que executa o trabalho administrativo; torna-se num poder que reina sobre os sindicalizados, porque todos os fatores de poder estão em suas mãos. Como especialistas, preparam e organizam todas as atividades, administram as finanças e gerem o dinheiro de acordo com seus propósitos, são diretores dos diários sindicais, através dos quais podem impor as suas próprias ideias e pontos de vista pessoais aos sindicalizados. Prevalece uma democracia formal: os sindicalizados em suas assembleias, os delegados eleitos pelos congressos, devem tomar as decisões, exatamente como o povo toma as decisões políticas no parlamento e no estado. Mas as mesmas razões que fazem do parlamento e do governo os senhores do povo, manifestam-se nestes parlamentos do trabalho. A burocracia dos especialistas oficiais, dominando todas as coisas, transforma-se numa espécie de governo sindical, reinando sobre os sindicalizados absorvidos pelo seu trabalho e problemas cotidianos. Já não é a solidariedade, essa virtude proletária por excelência, mas a disciplina, a obediência às decisões que lhes é solicitada. Surgem então divergências de pontos de vista e de opiniões sobre diversas questões. Esse contraste se vê fortalecido pela diferença estabelecida no que se refere às condições de vida: insegurança do trabalho para os operários sempre ameaçados pela força das depressões e pelo desemprego, contrastando com a segurança necessária dos sindicalistas para manejar adequadamente os assuntos sindicais.

É tarefa e função do sindicalismo, ao unificar as lutas, fazer sair os trabalhadores da sua miséria e angústia e permitir-lhes conquistar e fazer reconhecer a sua condição de cidadãos e direitos a ela inerentes na sociedade capitalista. Deve defender os operários contra a exploração cada vez maior do grande capital. Mas hoje, o grande capital transforma-se cada vez mais em poder monopolista de bancos, de trustes industriais, e assim se reforça e disto resulta que esta função primária do sindicalismo desapareceu. O seu poder tornou-se insignificante em relação ao formidável poder do capital. Os sindicatos são hoje organizações gigantes, cujo lugar é reconhecido pela sociedade. A sua posição está regulamentada pela lei e os acordos salariais que realizam têm força legal coercitiva para toda a indústria. Os seus chefes aspiram fazer parte do poder que controla as condições industriais. Eles são o aparato através do qual o capital monopolista impõe as suas condições a toda classe operária. Para o capital, doravante todo-poderoso, é mais vantajoso disfarçar a sua hegemonia sob formas democráticas e constitucionais, que mostrá-la sob a forma direta e brutal de ditadura. As condições de trabalho que lhe parecem convir aos operários serão respeitadas mais facilmente sob a forma de acordos concluídos com os sindicatos, do que sob a forma de imposições ditadas com arrogância. Em primeiro lugar, porque aos operários fica a ilusão de serem senhores dos seus próprios interesses. Em segundo lugar, porque todos os vínculos de adesão aos sindicatos (criados por eles, através de seus sacrifícios e lutas, bem como entusiasmo) que os tornam valorados pelos trabalhadores, é justamente o que torna os trabalhadores dóceis à vontade dos seus senhores. Assim, nas condições atuais, os sindicatos se transformaram, cada vez mais, em órgãos de dominação do capitalismo monopolista sobre a classe operária.

Os sindicatos perdem então a sua importância na luta dos operários contra o capital. Mas a luta, em si mesma, não pode cessar. As tendências repressivas se fazem mais intensas com o domínio do grande capital e por isso a resistência operária tem que ser mais enérgica. As crises econômicas fazem cada vez mais estragos e destroem um progresso aparentemente assegurado. A exploração intensifica-se na esperança de retardar a queda da taxa de lucro dum capital que cresce rapidamente. Os trabalhadores terão de resistir sempre. Mas contra o poder crescente do grande capital, os velhos métodos de luta tornaram-se ineficazes. Novos métodos são necessários e logo começam a surgir a partir das próprias lutas dos trabalhadores. Brotam espontaneamente na greve selvagem (ilegal), na ação direta.

A ação direta é a ação dos próprios trabalhadores sem a mediação da burocracia sindical. Uma greve diz-se “selvagem” (ilegal ou não oficial) por oposição às greves desencadeadas pelos sindicatos respeitando os regulamentos e as leis. Os trabalhadores sabem que a greve legal carece de efeito; os sindicalistas são forçados a desencadeá-la contra sua vontade e sem que a tenham previsto, talvez pensando intimamente que uma derrota seria lição salutar para os presunçosos operários e sempre tentam pôr-lhe fim o mais rapidamente possível. É por isso que a exasperação explode no meio de grupos, maiores ou menores, de operários e toma a forma de greve selvagem, desde que a opressão se torne muito forte ou as negociações se arrastem sem resultado.

O combate da classe operária contra o capital é impossível sem organização. Esta nasce espontaneamente, imediatamente. É claro que isso não ocorre da mesma forma como se funda um novo sindicato, com direção eleita e regras escritas, sob a forma de parágrafos ordenados. Às vezes, sem dúvida, ocorre dessa maneira. Ao atribuir a ineficácia de luta aos defeitos pessoais dos velhos chefes, cheios de furor contra os sindicatos tradicionais, fundam um novo sindicato, à cabeça do qual põem os homens mais capazes e enérgicos. E, com efeito, ao princípio as lutas endurecem, encarniçam-se. Mas com o tempo, o novo sindicato, se continua pequeno, carece força, apesar de sua atividade. Se conseguir crescer e fortalecer, a necessidade faz-lhe adquirir as mesmas características do sindicato anterior. Em consequência de tais experiências, os trabalhadores acabarão por escolher o caminho inverso: manter inteiramente em suas mãos a direção da sua própria luta.

Que se pretende dizer com: “manter inteiramente em suas mãos a direção da sua própria luta” (ou, se preferirmos, dirigir eles próprios os seus assuntos)? Deve entender-se que toda a iniciativa e decisão emanam dos próprios trabalhadores. Mesmo existindo um comitê de greve – indispensável quase sempre, pois os trabalhadores não podem estar permanentemente reunidos – tudo será feito pelos grevistas. Permanecem ligados, repartindo entre si as tarefas, tomam as medidas que se impõem e decidem diretamente todas as ações a efetuar. A decisão e a ação, ambas coletivas, formam um todo.

A primeira e mais importante tarefa a executar é realizar propaganda para ampliar a greve. A pressão sobre o capital deve intensificar-se. Em face do gigantesco poder do capital, não somente os operários, tomados individualmente, são impotentes, mas também os grupos de trabalhadores que permaneçam isolados. A única força que está à altura de lutar contra o capital é a que resulta da unificação, firme e resoluta, de toda a classe operária. Os patrões sabem-no ou sentem-no muito bem e a única coisa que os faz ceder e fazer concessões é o medo de que a greve se torne geral. Quanto mais manifesta e decidida for a vontade dos trabalhadores, quanto maior o número de grevistas, mais provável será o êxito.

Tal extensão produz-se porque não se trata da greve de um grupo que está atrasado, vivendo em condições piores que os outros operários tentando elevar-se até ao nível geral. Nas circunstâncias presentes e novas, o descontentamento é geral e todos os trabalhadores se sentem oprimidos pela dominação do capital. Em todos os lugares se acumulam motivos para uma explosão social. Os trabalhadores entram na luta não por outros mas por si mesmos. Enquanto se sentem isolados, temendo perder os seus empregos, inseguros sobre as reações dos seus camaradas, sem firme unidade, evitarão a ação. Mas, desde que entram na batalha, transformam sua velha personalidade em uma nova: o medo egoísta é relegado a segundo plano e novas forças emergem da comunidade, solidariedade e abnegação, fortalecendo a coragem e a perseverança. E elas são contagiosas, o exemplo da luta subleva outros trabalhadores, que sentem em si próprios as mesmas forças, a mesma confiança em si e nos outros. Assim, a greve selvagem, qual fogo numa pradaria, alcança outras empresas e engloba massas cada vez mais numerosas e importantes.

Tal resultado não pode ser obra de um pequeno número de chefes, de sindicalistas ou de novos porta-vozes, que se tivessem imposto por si mesmos, se bem que, sem dúvida alguma, a ousadia de alguns intrépidos camaradas possa impulsionar fortemente a ação. É necessário que seja a vontade e o trabalho de todos, o produto da iniciativa coletiva. Os trabalhadores não devem somente agir, é preciso que imaginem, reflitam e decidam por si próprios. Não podem deixar a decisão e responsabilidade a um organismo, um sindicato, que se encarregaria deles. São inteiramente responsáveis pela sua luta, o sucesso ou a derrota dependem apenas deles. Eram homens passivos, tornam-se homens ativos, tomando com decisão o seu próprio destino nas mãos. Eram indivíduos isolados, importando-se apenas consigo mesmos, são agora um grupo unido, fortemente coeso.

As greves espontâneas apresentam ainda outro aspecto importante: a divisão dos trabalhadores em sindicatos diferentes e separados é abolida. No mundo sindical as tradições herdadas da época do pequeno capitalismo jogam um importante papel, separam os trabalhadores em corporações muitas vezes rivais, em competição entre si. Em alguns países, as diferenças políticas e religiosas são também barreiras que conduzem à criação de sindicatos liberais, católicos, socialistas ou outros, separados uns dos outros. Na oficina, os membros dos diversos sindicatos encontram-se ombro a ombro. Mas, mesmo no decorrer duma greve permanecem muitas vezes isolados, evitando deixar-se contaminar demasiado por ideias unitárias, deixando o trabalho de fazer acordos, com vista à ação ou às negociações, apenas para as direções sindicais e os delegados. Contudo, no caso das ações diretas, estas diferenças de filiação a sindicatos distintos se tornam irreais e exteriores. Para as lutas espontâneas a primeira necessidade é a unidade e nelas há unidade, pois sem ela não se poderia lutar. Todos os que trabalham juntos em uma fábrica, estão na mesma situação, submetidos à mesma exploração, lutam contra o mesmo patrão, mantém-se unidos na ação comum. A sua comunidade real é a fábrica; seu pessoal da mesma empresa forma uma união natural de trabalho, destino e interesses comuns. Como espectros do passado, as velhas distinções de filiações distintas perdem a nitidez, quase esquecidas na nova realidade vivida dos camaradas que realizam uma luta comum. A consciência vívida da nova unidade reforça o entusiasmo e o sentimento de força.

Assim, nas greves selvagens aparecem algumas características da forma das lutas do futuro. Em primeiro lugar, a ação por iniciativa própria, mantendo nas próprias mãos toda a atividade e decisão. Em segundo lugar, a unidade de acordo com o agrupamento natural existente nas empresas, sem distinção baseada nas antigas filiações. Estas formas surgem não através de um planejamento cuidadoso, mas de forma espontânea, irresistível, impostas pela pesada força superior do capital, contra a qual as velhas organizações já não podem lutar seriamente. Mas isto não significa que agora o vento tenha mudado, que os trabalhadores vão ganhar com certeza. Também as greves selvagens terminam geralmente em derrota. Seu âmbito é demasiadamente estreito. Somente em algumas ocasiões favoráveis conseguem êxito, quando conseguem impedir a degradação das condições de trabalho. A sua importância consiste em que demonstram um novo espírito de luta que não pode ser reprimido. Dos mais profundos instintos de autoconservação, do dever com a família e os camaradas, surge reiteradamente a vontade de afirmar-se a si mesmo. Há uma vantagem no aumento de confiança em si mesmo e no sentimento de classe. Tais disposições de animo anunciam lutas de maior alcance, quando as grandes necessidades sociais, ao exercer uma pressão maior e produzir um mal-estar mais profundo, impulsionam as massas para atuar com mais energia.

Quando as greves selvagens irrompem em grande escala, envolvendo grandes massas, ramos inteiros da indústria, cidades ou regiões, a organização tem de tomar novas formas. É então impossível reunir todos os grevistas numa única assembleia para deliberar. Todavia, mais que nunca, a compreensão mútua é condição da ação comum. Formam-se comitês de greve que agrupam os delegados de todo o pessoal e que discutem permanentemente a situação. Tais comitês de greve são completamente distintos das secretarias dos sindicalistas. Já mostram as características dos conselhos operários. Surgem da luta, da necessidade de lhe dar unidade, direção e fim. Mas não são líderes no velho sentido, pois não têm nenhum poder direto. Os delegados, que são frequentemente pessoas diferentes, vêm para exprimir a vontade e opinião dos grupos que os escolheram. Porque esses grupos não apoiam senão uma ação em que a sua vontade se pode manifestar. Contudo, os delegados não são simples mensageiros dos grupos mandatários; têm um papel preponderante na discussão, encarnam as convicções predominantes. Nas assembleias dos comitês, as opiniões são discutidas, examinadas à luz das circunstâncias atuais. Os delegados levam os resultados e as resoluções para as assembleias gerais. É através destes delegados que o pessoal da fábrica participa nas deliberações e decisões. Assim, fica assegurada a unidade de ação de grandes massas de trabalhadores.

Isso não quer dizer que esta unidade de ação significa que cada grupo se curve obedientemente às decisões do comitê de greve. Nenhum regulamento escrito confere tal poder de decisão ao comitê. A unidade na luta não é um regulamento determinando uma utilização judiciosa de competências, mas das necessidades espontâneas que surgem em ma atmosfera de ação apaixonada. Os trabalhadores decidem por si mesmos, não em virtude de um direito que lhes fosse conferido por regulamentos por eles aceites, mas simplesmente porque decidem verdadeiramente os seus atos. Pode mesmo acontecer que os argumentos apresentados por um grupo não consigam convencer os outros, mas que isso acabe por conduzir finalmente à decisão, pela força da sua ação e do seu exemplo. A autodeterminação dos trabalhadores em luta não é uma dessas exigências deduzida do estudo teórico, a partir de discussões sobre a necessidade e possibilidade da sua utilização, é simplesmente a constatação de um fato decorrendo da prática. Muitas vezes tem sucedido no decurso de grandes movimentos sociais – e sem dúvida alguma voltará a suceder – que as ações efetuadas não correspondam às decisões tomadas. Algumas vezes os comitês centrais lançam um apelo à greve geral e só são seguidos aqui e além por pequenos grupos. Em outros casos, os comitês analisam detalhadamente sem se aventurarem a tomar uma decisão, enquanto os trabalhadores desencadeiam uma luta de massas. É possível também que os mesmos trabalhadores que estavam resolvidos a fazer greve com todo o entusiasmo, recuem no momento de agir, ou, inversamente, que uma prudente hesitação se reflita nas decisões e que de repente, por ação de forças internas, uma greve não decidida estale irresistivelmente. Enquanto em seu pensamento consciente velhas palavras de ordem e teorias desempenham um papel e determinam argumentos e opiniões, no momento da decisão da qual depende o bem estar ou o infortúnio, se abre campo para uma forte intuição sobre as condições reais e determina suas ações. Isso não significa que essas intuições sejam sempre um guia seguro para os trabalhadores. As pessoas podem equivocar-se em sua impressão sobre as condições exteriores. Mas são essas intuições que conduzem à decisão. Não se podem substituir por uma liderança externa, por vanguardas que comandem os trabalhadores, por mais sagazes que eles sejam. Com suas próprias experiências na luta, no êxito e na adversidade, os trabalhadores devem adquirir a capacidade necessária para cuidar corretamente de seus interesses.

Deste modo, se opõem as duas formas de organização e luta. A antiga, a dos sindicatos e greves regulamentadas; a nova, a das greves espontâneas e dos conselhos operários. Isto não significa que a primeira seja um dia, simplesmente substituída, um dia, pela segunda. É possível imaginar formas intermediárias. Estas constituiriam tentativas de corrigir os males e debilidades do sindicalismo, salvaguardando os seus bons princípios; por exemplo, atenuar o dirigismo duma burocracia de profissionais fixos, evitar o aumento do fosso surgido entre estreiteza de visão e interesses mesquinhos, preservar e empregar a experiência de lutas passadas. Isto poderia ser feito via reunião, depois duma greve, do núcleo dos melhores militantes num único sindicato. Em qualquer lado onde uma greve eclodisse espontaneamente, esse sindicato estaria presente com os seus organizadores, e propagandistas experientes, que auxiliariam as massas inexperientes com o seu conselho, visando instruí-las, defendê-las e organizá-las. Deste modo, cada luta marcaria um progresso na organização, mas no sentido do desenvolvimento da unidade de classe.

O grande sindicato americano IWW[2] é um exemplo de tal organização. Criado nos fins do último século, este sindicato, que se opunha à AFL[3], sindicato conservador dos operários especializados com salários elevados, corresponde às condições particulares dos EUA. Em parte resultado de duras batalhas travadas por mineiros e lenhadores, pioneiros independentes que partiram à conquista das regiões selvagens do velho oeste, contra o grande capital que tinha monopolizado ou saqueado as riquezas das florestas e dos solos, era também o resultado das greves da fome efetuadas por massas de imigrantes miseráveis, originários da Europa de Leste e do Sul, amontoados e explorados nas minas de carvão, nas fábricas e cidades do Este dos Estados Unidos, desprezados e abandonados pelos sindicatos tradicionais. Os IWW forneceram chefes e agitadores experimentados, que mostraram aos trabalhadores como lutar contra o terrorismo policial, que os defenderam perante a opinião pública e os tribunais, que lhes deram uma consciência mais ampla da sociedade, do capitalismo e da luta de classes. Nessas lutas gigantescas, dezenas de milhares de novos membros aderiram aos IWW. Hoje mais não resta que um punhado de militantes. Esse grande sindicato único estava adaptado ao crescimento selvagem do capitalismo americano, na época em que este construía o seu poder, esmagando massas formadas de pioneiros individuais.

Formas similares de luta e organização poderão aparecer, aqui ou ali, e espalhar-se quando, no decurso de grandes greves, os trabalhadores despertarem sem terem ainda confiança suficiente para tomarem em mãos os seus próprios assuntos. Mas isso não passará de uma forma transitória. Com efeito, existe uma diferença fundamental entre as condições de luta futura na grande indústria e as da América de outrora. Ontem era a ascensão do capitalismo, amanhã será o seu declínio. Ontem, tinha de contar-se com a independência feroz de pioneiros ou o egoísmo primitivo de emigrantes à procura de meios de existência, quer dizer, com a expressão de um Individualismo pequeno-burguês que ia ser esmagado sob o jugo da exploração capitalista. Amanhã, as massas habituadas à disciplina durante toda a vida, pelas máquinas e pelo capital, estreitamente ligadas ao aparelho produtivo, técnica e mentalmente, organizarão sua utilização em novas bases: as da colaboração. Os trabalhadores são realmente proletários, pois todo resquício do individualismo de classe média foi desgastado e apagado há muito tempo pelo hábito de trabalho cooperativo. As forças neles escondidas, que são a solidariedade e a dedicação, esperam somente por grandes lutas, para se transformarem em princípios orientadores da vida. Então, mesmo as camadas mais oprimidas da classe operária, aquelas que só com hesitação se juntam aos camaradas desejando apoiar-se em seu exemplo, sentirão o fortalecimento das novas forças da comunidade e perceberão, também, que a luta pela liberdade lhes pede não só sua adesão mas o desenvolvimento de todos os seus poderes de atividade autônoma e confiança em si mesmos. Assim, superando todas as formas intermediárias de autodeterminação parcial, o progresso seguirá decididamente o caminho da organização de conselhos.


[1] Mais exatamente: servos e senhores feudais (NT).

[2] IWW: Operários Industriais do Mundo. Movimento sindical radical surgido nos Estados Unidos em 1905 (NT).

[3] AFL: American Federation of Labor, Federação Norte-Americana do Trabalho (NT).

Publicado originalmente em: Anton Pannekoek: Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários. Traduzido por Nildo Viana.