O que significa o socialismo – Cornelius Castoriadis

Publicado em International Socialism, Londres, número da primavera de 1961. Reproduzido em forma de brochura por Solidarity de Londres (setembro de 1961) e reimpresso várias vezes, este texto foi traduzido e também publicado em italiano, japonês, polonês, sueco e norueguês. Retraduzido do inglês por mim.

A necessidade de um programa socialista

Só podemos nos espantar diante da pouca discussão que a questão do socialismo provoca entre os socialistas de hoje. Mais surpreendente ainda é ouvir pretensos revolucionários proclamarem que deveríamos nos preocupar unicamente com os problemas “práticos” e “cotidianos” da luta de classes e deixar o futuro cuidar de si mesmo. Tais concepções lembram a famosa frase de Bernstein: “O fim não é nada, o movimento é tudo”. Na realidade, só haverá movimento se for em direção a um fim – embora este fim deva ser constantemente redefinido à medida que o movimento se desenvolve.

Citações escolhidas cuidadosamente de Marx e dirigi das contra os socialistas utópicos são utilizadas com frequência para evitar toda discussão em profundidade sobre a questão do socialismo. Mas evidentemente as citações não são provas. Na realidade são exatamente o contrário: provas da ausência de uma verdadeira prova. Não invocamos a autoridade de um grande autor para provar que se deixarmos a água bastante tempo no fogo ela acabará fervendo. Mas o que pensar do cerne da questão? Marx travou polêmica, justificadamente, com aqueles que queriam substituir a análise das lutas efetivas que se desenrolavam diante de si por descrições detalhadas e não fundadas da sociedade futura. Mas não deixou por isso de formular suas próprias opiniões a respeito do programa de uma revolução proletária. Na realidade, anexou os elementos de um tal programa ao Manifesto comunista. Não negligenciou nenhuma das ocasiões em que o desenvolvimento da experiência histórica ou as necessidades do movimento operário lhe ofereciam para ampliar, elaborar ou mesmo modificar suas próprias concepções programáticas anteriores. São conhecidos os exemplos da generalização da experiência da Comuna de Paris relativa à fórmula da “ditadura do proletariado” , ou da “Crítica do programa de Gotha”.

Sustentar, em 1961, que não podemos nem devemos ir mais longe do que Marx equivale a afirmar que nada de importante aconteceu nos últimos 80 anos. É o que realmente algumas pessoas parecem pensar – inclusive muitos pretensos “marxistas”. Eles admitem, certamente, que houve muitos acontecimentos, cuja crônica seria preciso fazer com cuidado, mas rejeitam a idéia de que estes acontecimentos exigem mudanças, por pouco fundamentais que sejam, de suas concepções programática. Sua decomposição organizacional acompanha sua estagnação teórica e política.

Pensamos que o que aconteceu durante o período que estamos discutindo, e em particular desde 1917, é mais importante para os socialistas do que qualquer outro acontecimento anterior da história humana. O proletariado tomou o poder num país imenso. Resistiu vitoriosamente às tentativas de uma contrarrevolução burguesa. Depois, desapareceu gradualmente da cena histórica e uma nova classe social, a burocracia, estabeleceu sua dominação sobre a sociedade russa e decidiu construir o “socialismo” através dos métodos mais brutais do terror e da exploração. Contrariamente a todos os prognósticos, inclusive o de Trotsky, a burocracia sobreviveu vitoriosamente à prova da maior guerra da história. Hoje ela disputa com os Estados Unidos a supremacia mundial nos campos industrial e militar.

Antes da guerra, Trotsky prognosticava diariamente que a burocracia não poderia superar esta prova suprema por causa da “contradição entre os fundamentos socialistas do regime e o caráter parasitário e reacionária da burocracia”. Hoje, os trotskistas dizem que a crescente força militar da Rússia é o produto desses “fundamentos socialistas”. Se não se pode compreender este gênero de lógica deve-se apenas aplicar esta regra: quando um esputinique é colocado em órbita com sucesso, é porque ele ‘foi lançado necessariamente a partir do que há de mais profundo nos fundamentos socia lista. Se ele explode no ar, isto se deve ao caráter parasitário da burocracia.

Depois da guerra, o mesmo regime burocrático se instalou em países tão diferentes como a Alemanha do Leste e a Tchecoslováquia, de um lado, e a Coréia do Norte e o Vietnã do Norte, de outro, sem revolução proletária. Se a nacionalização dos meios de produção e a planificação são os “fundamentos” do socialismo, então, com toda certeza, não existe nenhuma ligação necessária entre o socialismo e a ação da classe operária. Tudo o que os operários têm de fazer é se matarem para construir as fábricas “socialistas” e fazê-las funcionar. Qualquer burocracia local, em circunstâncias favoráveis e com a ajuda do Kremlin, poderia realizar esse “socialismo”.

Depois, aconteceu alguma coisa. Em 1956, os operários húngaros em armas revoltaram-se contra a burocracia. Formaram Conselhos operários e exigiram a gestão operária da produção. Assim, demonstravam que a questão de saber se o socialismo era simplesmente a “nacionalização mais a planificação” ou “os Conselhos operários mais a gestão operária da produção” não era uma questão acadêmica. Há cinco anos a história a colocou na ponta do fuzil.

As ideias tradicionais sobre o socialismo inclinaram-se, de múltiplas maneiras, à prova dos fatos. É impossível fugir das conclusões. Se o socialismo é a propriedade nacionalizada mais a planificação e mais a ditadura do Partido, então o socialismo é Kruschev com seus esputiniques e sua “manteiga em 1964”. Se temos esta concepção, então o melhor que podemos fazer é permanecer um oponente interno ao regime, um crítico nas fileiras do Partido Comunista, tentando “democratizar” e “humanizar” o sistema. De resto, por que mesmo fazer esta tentativa? A industrialização pode realizar-se sem democracia. Como dizia Trotsky, toda revolução tem seus gastos extras. Que esses gastos extras aqui consistam em verdadeiros cadáveres, era de se esperar.

Tais considerações não são importantes apenas para toda discussão relativa ao socialismo; elas possuem também uma importância fundamental se quisermos compreender o capitalismo contemporâneo. Em vários países capitalistas, setores econômicos de base foram nacionalizados, e se atingiu um grau importante de controle estatal e de planificação econômica. O próprio capitalismo – o capitalismo “ortodoxo”, de tipo ocidental – sofreu transformações imensas. A realidade abalou violentamente a maior parte das ideias tradicionais a seu respeito. Como a de que o capitalismo não poderia mais desenvolver a produção (idéia formulada muito explicitamente no Programa de transição de Trotsky: “As forças produtivas da humanidade estão estagnadas. As invenções e as novas melhorias não conseguem elevar o nível das riquezas materiais”); de que há uma sucessão inevitável de fases de expansão e de depressões sempre mais profundas; de que, no capitalismo, o nível material de vida da classe operária não pode elevar-se substancialmente e com durabilidade; de que um crescente exército industrial de reserva é um produto inevitável do sistema. Os marxistas “ortodoxos” se veem forçados a recorrer a todas as formas de acrobacias verbais para defenderem tais ideias. E limitam-se a devaneios sobre a próxima grande depressão – a qual já faz vinte anos que deve acontecer de um momento para outro.

Os problemas que a evolução do capitalismo faz aparecer estão intimamente ligados às concepções programáticas do movimento socialista. Como de costume, os pretensos “realistas” (que detestam discutir sobre o socialismo, “assunto que depende de um futuro longínquo”) ficam cegos diante da realidade. É a realidade que exige um reexame aqui e agora, dos problemas fundamentais do movimento. No final deste texto, mostraremos por que, sem um tal reexame, é impossível adotar uma posição correta diante dos problemas práticos mais banais, mais dia-a-dia, mais terra-a-terra. Em todo caso, por hora, destaquemos esta evidência: não pode haver movimento socialista consciente que evite a resposta a esta questão fundamental: o que é o socialismo? E esta questão é o reverso destas duas outras: o que é o capitalismo? E quais são as raízes reais da crise da sociedade contemporânea?

A contradição na produção

O marxismo tradicional considera que a crise da sociedade capitalista é o efeito da propriedade privada dos meios de produção e da “anarquia do mercado”. A supressão da propriedade privada, afirmava-se, abriria uma nova etapa ao desenvolvimento da sociedade humana. Agora podemos ver que a falsidade dessa idéia foi demonstrada pelos fatos. Nos países da Europa do Leste não há propriedade privada. Não há depressões. Não há desemprego. E, no entanto, as lutas sociais são tão agudas quanto no Ocidente. É preciso lembrar os acontecimentos da Alemanha do Leste, em 1953, da Polônia e da Hungria, em 1956, da China, em 1957 – ou os ecos das lutas diárias nas fábricas russas, reproduzidos até pela imprensa oficial soviética e no relatório público de Kruschev no XX Congresso do PCUS?

O pensamento tradicional considerava a anarquia econômica, o desemprego em massa, a estagnação da produção e os salários de fome ao mesmo tempo como expressões das contradições do capitalismo profundamente enraizadas na natureza do regime e como propulsores principais da luta de classe. Hoje vemos que, apesar do pleno emprego e da elevação dos salários, os capitalistas constantemente encontram problemas na gestão de seu sistema, e que a luta de classe de maneira alguma enfraqueceu. As formas desta luta se modificaram, por razões profundas e intimamente ligadas aos problemas que discutimos neste texto. Mas sua intensidade não diminuiu. O interesse dos operários pela “política” tradicional, seja ela “de esquerda” ou não, declinou. Mas as greves “não-oficiais” na Grã-Bretanha, as greves “selvagens” nos Estados Unidos são cada vez mais frequentes. Indivíduos que, colocados diante desta situação, continuam a citar os velhos textos não podem oferecer nada para a reconstrução essencial do movimento socialista que se faz necessária.

O marxismo tradicional considerava as contradições e a irracionalidade do capitalismo ao nível da economia total e não ao nível da produção. (Aqui e na sequência utilizo o termo “marxismo” no seu sentido histórico efetivo. Por esse termo entendo as ideias que na maior parte do tempo têm prevalecido no movimento marxista, deixando de lado as sutilezas filológicas e as interpretações detalhadas de tal ou tal citação. As ideias discutidas mais adiante são rigorosamente aquelas que Marx formula em O Capital.) Para ele, o problema situava-se ao nível do “mercado” e do “sistema de apropriação”, não ao nível da empresa particular ou do sistema de produção no sentido mais concreto, mais material. Agora, evidentemente, a indústria capitalista é afetada por sua relação com o mercado; para ela, seria absurdo produzir mercadorias invendáveis. O marxismo tradicional, certamente, reconhece que a fábrica moderna está invadida por todos os lados pelo espírito do capitalismo: os métodos e os ritmos de trabalho são mais opressivos do que o necessário, o capitalismo se interessa pouco pela vida ou pela saúde dos operários, e assim por diante. Mas, em si mesma, tal como é atualmente, ela é considerada como uma pura encarnação da racionalidade e da eficácia. Tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista organizacional ela é a Razão personificada. A tecnologia capitalista é a tecnologia totalmente imposta à humanidade pela atual etapa do desenvolvimento histórico, cultivada e aplicada à produção de maneira incansável por estes instrumentos cegos da Razão Histórica, os próprios capitalistas. A organização capitalista da produção (divisão do trabalho e das tarefas, controle detalhado do trabalho pelo pessoal de supervisão e finalmente pelas próprias máquinas) é vista como a organização por excelência da produção, uma vez que, em sua corrida em direção ao lucro, ela se adapta constantemente à mais moderna tecnologia e realiza a eficácia máxima da produção. O capitalismo cria, por assim dizer, os meios corretos, os únicos meios – mas os utiliza para fins perversos. A derrubada do capitalismo, segundo os marxistas tradicionais, orientará este aparelho de produção de uma eficácia imensa para os fins corretos. Este aparelho poderá então ser utilizado para “a satisfação das necessidades das massas”, em vez de ser utilizado para “o enriquecimento máximo dos capitalistas”. Os excessos desumanos do modo capitalista da organização do trabalho serão oportunamente eliminados. Mas esta mudança radical, segundo esta visão tradicional não mudará e não poderá mudar nada – salvo talvez num futuro muito distante – na organização do trabalho e na própria atividade produtiva, cujas características decorrem inevitavelmente da “atual etapa de desenvolvimento das forças produtivas”.

Marx havia notado, com bastante justeza, que a racionalização capitalista da produção encerrava uma contradição. Ela se realizava através de uma submissão cada vez maior do trabalho vivo (o operário) ao trabalho morto (a máquina). O homem se alienava na medida em que era dominado por seus próprios produtos, suas próprias criações (as máquinas). Ele estava reduzido a um “simples fragmento de homem”, por causa da divisão cada vez maior de trabalho. Mas, para Marx, esta contradição era abstrata, “filosófica”. Ela dizia respeito ao destino do homem na produção e não à própria produção. Esta aumentava pari passu com a transformação do operário em “simples apêndice” da máquina e por causa dessa transformação. A lógica objetiva da produção deve obrigatoriamente acabar com as necessidades, os desejos, as tendências subjetivas dos homens. Ela deve “discipliná-los”. Não se pode fazer nada neste caso: é a consequência inexorável da atual etapa do desenvolvimento tecnológico. E é também, de maneira mais geral, a consequência da natureza mesmo da economia, que é “o reino da necessidade”. E esta situação se estende, no futuro, até onde Marx podia prever. Mesmo na sociedade dos “produtores livremente associados”, diz Marx (no volume III de O capital), o homem não será livre na produção. O “reino da liberdade” seria instaurado fora do trabalho através da “redução da jornada de trabalho”. A liberdade é o lazer – pelo menos é o que parece emergir destas formulações de Marx.

O que afirmamos é que a contradição mais real, mais profunda e mais concreta do capitalismo, de fato, é esta contradição que Marx considerava simplesmente como uma contradição “filosófica”. Ela é a origem da crise permanente da sociedade presente, tanto no Leste quanto no Ocidente. A “racionalidade” da produção capitalista é apenas de superfície. Ela executa todos os seus movimentos em função do crescimento da produção considerado como um fim em si mesmo. O que é, em si, absolutamente irracional.

A produção é um meio para fins humanos, e não o homem um meio para a produção. A irracionalidade capitalista possui uma expressão imediata e concreta: ao tratar os homens na produção como simples meios, ela os transforma em objetos, em coisas. Mas, mesmo na linha de montagem, a produção se baseia nos homens enquanto seres ativos e conscientes. A transformação do operário em simples apêndice da máquina – que o capitalismo almeja constantemente mas jamais consegue realizar – acha-se em conflito frontal com o desenvolvimento da produção. Se, por acaso, o capitalismo conseguisse realizar esta transformação, isto acarretaria a destruição imediata do processo de produção. Do ponto de vista capitalista, esta contradição se exprime como o esforço simultâneo, de um lado, de reduzir o trabalho à simples execução de tarefas rigorosamente definidas (ou, se preferir, de gestos rigorosamente definidos), de outro, de apelar e de recorrer constantemente à participação voluntária e consciente do operário, à sua capacidade de compreender e de fazer muito mais do que se supõe que compreenda e faça.

Esta situação é imposta ao operário oito horas por dia ou mais. Como disse um de nossos camaradas das Fábricas Renault (D. Mothé), pede-se ao operário que se comporte simultaneamente “como um robô e como um super-homem”. Encontra-se aí um motivo de conflitos e de lutas intermináveis em todas as fábricas, minas, estaleiros e ateliês do mundo moderno. E esta situação não se afeta pelas “nacionalizações”, “planos”, pelas fases de expansão ou de recessão, pelo nível elevado ou baixo dos salários.

Esta é a crítica fundamental que os socialistas devem hoje fazer à organização existente da sociedade. Lutando neste fronte, eles darão uma formulação explícita ao que cada operário, em cada fábrica, em cada repartição experimenta a todo instante de cada jornada de trabalho e que tenta exprimir constantemente por sua ação individual ou coletiva

A produção capitalista

Em nossa sociedade, os homens passam a maior parte de sua vida trabalhando. E, para eles, esse trabalho é ao mesmo tempo uma agonia e um contrassenso. É uma agonia porque o operário encontra-se constantemente subordinado a um poder estranho e hostil, que possui duas faces: a da máquina e a da direção. É um contrassenso porque o operário é colocado por seus patrões diante de duas tarefas contraditórias: executar ordens e chegar a um resultado positivo.

A direção organiza a produção visando atingir uma “eficácia máxima” . Mas o primeiro efeito dessa organização é o de suscitar a revolta dos operários contra a produção. As perdas de produção provocadas por esta reação ultrapassam de longe aquelas que são provocadas pelas depressões mais profundas. Elas são, provavelmente, da mesma ordem de grandeza do total da produção corrente (v., por exemplo, o livro de J. A. C. Brown, The Social Psychology of Industry, Penguin).

Para combater a resistência dos operários, a direção instaura uma divisão ainda maior do trabalho e das tarefas. Regulamenta de maneira rígida os métodos e os processos de trabalho. Impõe controles da quantidade e da qualidade das peças produzidas. Introduz o salário por peças e por rendimento. Mas também impõe ao desenvolvimento tecnológico uma característica de classe cada vez mais pronunciada. As máquinas são inventadas, ou escolhidas, segundo este critério fundamental: favorecem a luta da direção contra os operários, reduzem ainda mais a margem de autonomia do operário, contribuem para que se possa, finalmente, eliminá-la por completo? Neste sentido, a atual organização do trabalho na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos ou na Rússia, é uma organização de classe. A tecnologia é, predominantemente, uma tecnologia de classe. Nenhum capitalista inglês, nenhum diretor de fábrica russo, jamais introduziria numa fábrica uma máquina que aumentasse a possibilidade do operário individual ou do grupo de operários de controlarem por si mesmos o seu trabalho – mesmo se tal máquina contribuísse para aumentar a produção.

Os operários não se encontram de forma alguma desarmados nesta luta. Constantemente inventam métodos de autodefesa. Violam os regulamentos, ao mesmo tempo em que os respeitam “formalmente”. Organizam-se informalmente, instauram uma solidariedade e uma disciplina coletiva. Criam uma nova ética de trabalho. Rejeitam a psicologia da incitação e da ameaça, e tornam a vida impossível tanto aos “ce-de-efes” quanto aos que querem fazer corpo mole.

Através de seus métodos de organização da produção, a direção vê-se amarrada por um nó de contradições e de conflitos sem fim. Estes ultrapassam de longe aqueles que são diretamente provocados pela resistência dos operários. A estrita definição das tarefas à qual quer chegar a direção é quase sempre arbitrária e com frequência extremamente irracional. As normas de trabalho não podem ser “racionalmente” definidas quando os operários a elas se opõem de maneira constante e ativa. O tratamento dos operários como peças destacáveis da máquina produtiva encontra-se em contradição com o caráter profundamente coletivo da produção moderna. O resultado é a coexistência de uma organização formal, oficial, com uma organização informal, real, da empresa, do processo de trabalho, das comunicações. A partir daí, estas duas organizações se encontram numa oposição permanente.

A direção do trabalho está cada vez mais separada de sua execução. Para ultrapassar esta separação, para conseguir administrar – do exterior – a complexidade imensa da produção moderna, a direção se vê forçada a reconstruir e a refletir em seu próprio seio todo o processo de produção, e isto, ainda aqui, de maneira arbitrária. Estritamente falando, isto não é simplesmente impossível; conduz também à criação de um enorme aparelho burocrático. No seio deste aparelho, aparece uma nova divisão do trabalho e o conjunto das contradições que descrevemos encontra-se reproduzido aí. Uma direção separada da execução não pode planificar racionalmente. Não pode corrigir a tempo os erros inevitáveis. Não pode estar protegida contra os imprevistos; não pode aceitar que os operários façam tudo isto em seu lugar … e não pode aceitar que eles não o façam. Nunca está corretamente informada. A fonte principal da informação – os operários na produção – organizam uma “conspiração de silêncio” permanente contra ela. Enfim, a direção realmente não pode compreender a produção, porque não pode compreender a sua mola principal: o operário.

Esta situação, este conjunto de relações, é o modelo de todos os conflitos na sociedade moderna. Certamente, com as modificações necessárias, esta descrição do caos da fábrica capitalista aplica-se muito bem ao governo britânico, à Comunidade Econômica Europeia, ao partido comunista russo, à Organização das Minas de carvão da França, às Nações Unidas, ao exército americano e à comissão polonesa de planificação.

o comportamento da direção diante da produção não é acidental. Suas operações são impostas à direção pelo fato de que a organização da produção é, hoje, sinônimo da organização da exploração. Mas o contrário também é verdadeiro: os capitalistas privados, como a burocracia de Estado, possuem hoje a possibilidade de explorar precisamente porque gerem a produção. A divisão de classe na sociedade moderna cada vez mais se encontra despida de seus mantos legais e formais. O núcleo das relações sociais fundamentais de todas as sociedades de classe aparece desta forma: a divisão do trabalho entre uma classe que dirige tanto o trabalho quanto a vida social e uma classe que não faz outra coisa senão executar. A direção da produção não é simplesmente um meio utilizado pelos exploradores para aumentar a exploração. Ela é a essência e o fundamento da própria exploração. A partir do momento em que uma classe social se apropria da gestão, o resto da sociedade fica automaticamente reduzido ao estado de simples objetos desta classe. A partir do momento em que uma classe consegue conquistar uma posição dominante, ela utiliza esta posição para arrogar-se privilégios (um termo polido para a apropriação em excesso). A partir daí, tais privilégios devem ser proibidos. A dominação deve tornar-se mais perfeita. Esta espiral que se amplia por si mesma _conduz rapidamente à formação de uma nova sociedade de classe. E essa a lição importante que devemos tirar do estudo da degenerescência da Revolução de Outubro – isso, e não o “atraso” ou o “isolamento internacional”.

O socialismo significa a gestão operária

A gestão operária não significa que indivíduos de origem operária sejam nomeados no lugar dos atuais dirigentes. Ela significa que a produção, em todos os níveis, é dirigida pela coletividade dos operários, empregados e técnicos. As questões que afetam a oficina ou o departamento são decididas pelas assembleias dos trabalhadores da oficina ou do departamento em questão. As questões de rotina, ou as questões urgentes, são decididas por delegados eleitos e revogáveis a todo instante. A coordenação entre duas ou várias oficinas ou departamentos é assegurada por reuniões dos respectivos delegados ou por assembleias comuns. A coordenação ao nível do conjunto da empresa e as relações com o resto da economia são tarefa dos Conselhos operários, compostos dos delegados eleitos dos diversos departamentos. As questões fundamentais são resolvidas por assembleias gerais compreendendo todos os trabalhadores da empresa considerada.

A instauração da gestão operária permitirá começar imediatamente a eliminar as contradições fundamentais da produção capitalista. A gestão operária marcará o fim da dominação do trabalho sobre o homem, e o começo da dominação do homem sobre seu trabalho. Cada empresa será autônoma no grau mais elevado possível, decidindo ela mesma sobre todos os aspectos da produção e do trabalho que não afetem o resto da economia, e participando ela mesma de todas as decisões que dizem respeito à organização geral da produção e da vida social. Os objetivos gerais da produção serão decididos pelo conjunto da população trabalhadora.

Não podemos tocar aqui nos problemas técnicos implicados por uma planificação verdadeiramente democrática. Nós os discutimos em detalhe no n? 22 (julho de 1957) de Socialisme ou Barbarie. (“Sobre o conteúdo do socialismo, II”) A essência da questão é que os objetivos gerais do plano deveriam ser determinados coletivamente, e também aceitos tão amplamente quanto possível. A partir de certos dados fundamentais, calculadoras eletrônicas poderiam produzir um certo número de planos e elaborar de maneira suficientemente detalhada as implicações técnicas de cada um deles em relação aos diversos setores da economia. Os Conselhos operários discutiriam então sobre o valor desses diferentes planos, com pleno conhecimento de causa de suas implicações em termos de trabalho humano.

Por exemplo, decisões relacionadas à questão de saber se uma expansão da produção de 10% deveria conduzir a salários mais altos, a uma redução da duração do trabalho, ou a um aumento dos investimentos, são decisões das quais todos deveriam participar. Pois afetam todo o mundo. Não são decisões que poderiam ser deixadas para os burocratas “agindo nos interesses” das massas. Se tais decisões fossem deixadas para “profissionais espertos”, estes começariam muito rapidamente a decidir no sentido de seus próprios interesses. Sua posição dominante na direção da produção logo conferiria a eles um papel dominante na repartição do produto social. A base de novas relações de classe estaria então sendo posta de novo de maneira real e eficaz

O plano escolhido determinará a cada empresa a tarefa a cumprir durante um dado período, e fornecerá a cada uma os meios necessários para este fim. Mas, no interior deste quadro geral, os trabalhadores de cada empresa terão de organizar seu próprio trabalho. Todos aqueles que conhecem as raízes da crise nas relações industriais contemporâneas, e todos aqueles que conhecem as reivindicações dos trabalhadores e o objeto de suas lutas informais, compreenderão facilmente em quais direções irá a organização da produção pelos trabalhadores. As normas de trabalho impostas do exterior certamente serão abolidas. (Esta era uma reivindicação explícita dos Conselhos operários húngaros. E é o terreno de uma luta permanente em cada fábrica do mundo.) A coordenação do trabalho far-se-á através de contatos diretos e da cooperação. A divisão rígida do trabalho logo começará a ser eliminada através da rotatividade das pessoas entre departamentos e entre trabalhos.

Haverá cooperação e contato diretos e permanentes entre os departamentos e as fábricas que utilizam as máquinas e as ferramentas e aqueles que as produzem. Este será o resultado da mudança da relação entre operários e instrumentos da produção. A finalidade principal dos equipamentos de hoje é, como vimos, aumentar a produção através da subordinação crescente do homem à máquina. Quando os próprios trabalhadores assumirem a gestão da produção, começarão a adaptar o equipamento não só às exigências do trabalho que devem fazer, mas também e sobretudo às suas próprias necessidades enquanto seres humanos.

A transformação consciente da tecnologia será uma das tarefas cruciais com as quais se confrontará a sociedade socialista. Pela primeira vez na história, os seres humanos serão senhores de sua atividade produtiva. O trabalho deixará de ser “o reino da necessidade”. E se transformará num campo onde os humanos exercem seu poder de criação. A ciência e a técnica contemporâneas oferecem possibilidades imensas nesta direção. Certamente, esta transformação não se realizará do dia para a noite. Mas também não se deve considerá-la como pertencente a um futuro comunista nebuloso, afastado e imprevisível. Estas não são questões que se resolverão por si mesmas. A partir do momento em que o poder dos trabalhadores for estabelecido, deveremos nos ater sistematicamente à sua solução. Esta solução exigirá um período de transição. E é este período que constitui, na realidade, a sociedade socialista (enquanto se distingue do comunismo).

Os valores socialistas

Quais serão os valores essenciais de uma sociedade socialista? Qual será sua orientação fundamental? Ainda aqui não se trata de um futuro nebuloso, mas das tarefas a que uma revolução proletária deverá se propor imediatamente. E não tentamos produzir arbitrariamente uma nova ética, ou uma nova metafísica. Tentamos formular conclusões que nos parecem decorrer inevitavelmente da. crise dos valores da sociedade atual e das atitudes reais dos trabalhadores hoje, tanto na fábrica quanto na vida.

A gestão da produção pelos trabalhadores, a transformação consciente da tecnologia, o governo da sociedade pelos conselhos dos trabalhadores, a planificação democrática, desenvolverão sem dúvida alguma a produtividade e aumentarão consideravelmente a taxa de crescimento da economia. Tornarão possível uma elevação rápida do consumo. Muitas necessidades fundamentais da sociedade poderão ser satisfeitas. A duração do trabalho poderá ser reduzida. Mas, na nossa opinião, a essência da questão não está aí. Com tudo isso, trata-se apenas de subprodutos da transformação socialista, por mais importantes que sejam.

O socialismo não é uma concepção cujo interesse seja o crescimento da produção como tal. Esta é uma maneira de ver essencialmente capitalista. A preocupação central da espécie humana, ao longo de sua história, nunca foi a de aumentar a produção a qualquer preço. E menos ainda é o socialismo uma concepção que se interesse pela “melhor organização” como tal, quer se trate da organização da produção, da economia ou da sociedade. A organização pela organização é a obsessão constante do capitalismo, seja privado ou burocrático (o fato de que o capitalismo fracassa constantemente neste terreno não nos interessa aqui). As questões pertinentes, do ponto de vista socialista, são: maior produção, melhor organização – a que preço, ao preço pago por quem e com que finalidade?

As respostas a estas questões hoje, venham elas de Kennedy, de Kruschev, de Gaitskell, de Gollan ou de Healy (os dois últimos eram respectivamente os dirigentes do partido stalinista e do partido trotskista inglês), significam o seguinte: maior produção e melhor organização visando ao mesmo tempo o crescimento do consumo e do lazer. Mas, observemos o mundo em volta de nós. Os homens submetem-se a pressões cada vez maiores por parte daqueles que organizam a produção. Trabalham como loucos na fábrica ou no escritório durante a maior parte de sua vida em estado de vigília, para obter um aumento de salário de 3% ou um dia a mais de férias por ano. No final – e isto é cada vez menos uma ficção -, a felicidade do homem será realizada por um engarrafamento monstruoso, com cada família vendo televisão no carro e tomando sorvetes feitos pelo refrigerador do carro.

O consumo pelo consumo não tem sentido para o homem. O lazer pelo lazer é vazio. Na sociedade atual quase não há pessoas mais miseráveis do que os velhos sem ocupação, mesmo quando não têm problemas materiais. Em todas as partes do mundo, os operários esperam impacientemente, durante toda a semana, que chegue o domingo. Sentem a necessidade imperiosa de escapar da escravidão física e mental da semana de trabalho. Esperam com impaciência o momento em que serão senhores de seu tempo. E descobrem que a sociedade capitalista se impõe a eles mesmo nesses momentos. São alienados tanto durante o lazer quanto durante o trabalho. Os domingos refletem toda a miséria da semana de trabalho que chega ao fim e o vazio daquela que vai começar.

Atualmente, o consumo exprime todas as contradições de uma cultura em decomposição. A “elevação do nível de vida” já não tem sentido, pois esta elevação não tem fim. (É ° que Hegel chamava de “infinito perverso”, schlechte Unendlichkeit.) A sociedade está organizada para criar mais necessidades do que as pessoas poderão satisfazer. Os “níveis mais elevados de vida” são os atrativos utilizados tanto por capitalistas como por burocratas para manterem as pessoas na crista da onda. Nenhum outro valor, nenhuma outra motivação subsistiria para o homem nesta sociedade desumana e alienada. Mas este processo se contradiz consigo mesmo. Cedo ou tarde ele para de funcionar. Os “níveis de vida” desta década fazem aqueles da década precedente aparecerem como ridículos. Cada categoria de renda despreza aquela que se encontra imediatamente abaixo.

O próprio conteúdo do consumo atual é contraditório. O consumo permanece anárquico (e isto não poderia ser superado por nenhuma planificação burocrática), pois os bens consumidos não são bens-em-si, não são absolutos, mas encarnam valores desta cultura. As pessoas se matam no trabalho para comprar objetos dos quais elas não podem desfrutar ou que elas não se acham mesmo em condições de utilizar. Os operários dormem na frente da televisão comprada pelas horas suplementares de trabalho. As necessidades são cada vez menos necessidades reais. As necessidades humanas foram sempre fundamentalmente necessidades sociais. (Não me refiro aqui às necessidades biológicas.) As necessidades são, hoje, num grau crescente, fabricadas e manipuladas pela classe dominante. A subserviência do homem se torna manifesta no próprio consumo. Afirmamos que o socialismo não está interessado essencialmente no crescimento da produção e do consumo do tipo atual. Um tal crescimento só poderia contribuir, através das inumeráveis ligações e conexões, para mais capitalismo.

O socialismo está ligado à liberdade. Entendida não somente no sentido jurídico, nem no sentido moral ou metafisico, mas no sentido mais concreto, mais terra-a-terra: a liberdade das pessoas na sua vida e nas atividades cotidianas, a liberdade de decidir coletivamente quanto produzir, quanto consumir, quanto trabalhar, quanto descansar. Liberdade de decidir, coletiva e individualmente, o que consumir, como produzir, como trabalhar. (Um verdadeiro mercado de bens de consumo, onde prevalecerá a “soberania dos consumidores”, certamente será mantido, ou antes instaurado pela primeira vez, na sociedade socialista.) E liberdade de dirigir sua própria vida no interior deste quadro social.

A liberdade, nesse sentido, não surgirá automaticamente a partir do desenvolvimento da produção. Ela não deve ser confundida com o lazer. A liberdade, para o ser humano, não é a desocupação, mas a atividade livre. O conteúdo preciso que os homens dão a seu “tempo de lazer” está amplamente condicionado pelo que se passa na esfera fundamental da vida social, isto é, da produção. Numa sociedade alienada, o “lazer”, tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, não passa de uma das expressões da alienação.

Menos ainda será a liberdade um produto automático das “possibilidades crescentes da educação para todos”. A educação em si mesma não resolve nada. Em si mesma ela conduz simplesmente à produção em massa de indivíduos que reproduzirão a mesma sociedade, de indivíduos que incorporarão à sua personalidade a estrutura social existente e todas as suas contradições. A educação hoje, na Inglaterra ou na Rússia, realizada pela escola ou pela família, visa a produzir pessoas adaptadas ao tipo atual de sociedade. Ela corrompe o senso humano de integração à sociedade transformando-o num hábito de submissão à autoridade. Corrompe o senso humano de levar em consideração a realidade, transformando-o em hábito de adoração do status quo. Impõe um tipo de trabalho desprovido de sentido, que separa, deforma e desintegra as potencialidades físicas e mentais do ser humano. Quanto mais se fornece a educação do tipo atual, mais se produzem seres que incorporaram a escravidão.

O desenvolvimento da produção e a abundância material a que ele conduziria não provocarão por si mesmos uma mudança das atitudes sociais. Não abolirão a “luta de todos contra todos”. Em poucas palavras, esta luta é muito mais brutal e implacável nos Estados Unidos hoje do que numa vila africana. As razões disto são evidentes: na sociedade contemporânea, a alienação penetra em todas as coisas e destrói o sentido de tudo. Ela não só destrói o sentido do trabalho, mas também de todas as dimensões da vida individual e social. Os únicos valores e motivações que subsistem são os “níveis” cada vez mais elevados (não somente elevados) do consumo material. Para compensar a frustração crescente que as pessoas vivenciam em seu trabalho, como em todas as outras atividades sociais, a sociedade apresenta-lhes um outro objetivo: a aquisição de “bens” cada vez mais numerosos. A distância entre aquilo a que um operário efetivamente pode ter acesso e o que a sociedade fixa como um nível “decente” de consumo foi crescendo na medida em que aumentava a produção e se elevavam os níveis efetivos de vida. Este processo, e a “luta de todos contra todos” que lhe corresponde, não vai parar enquanto não for destruída a raiz da cultura atual, sua adoração pelo consumo e sua filosofia aquisitiva. Estas atitudes capitalistas, na realidade, penetraram completamente, dominaram e deformaram o que se apresenta hoje como “marxismo”.

Tanto o capitalismo privado quanto o capitalismo burocrático utilizam o mesmo método para manter as pessoas ao mesmo tempo atadas ao seu trabalho e em antagonismo recíproco. É a política sistemática da diferenciação dos salários. De um lado, existe uma diferenciação monstruosa de rendimentos entre as camadas mais baixas e as mais altas da pirâmide burocrática – a da empresa e a do Estado. De outro lado, diferenciações artificiais do salário são introduzidas sistematicamente para destruir a solidariedade de classe. Aplicam-se às pessoas que realizam trabalhos muito semelhantes quanto à qualificação ou ao esforço exigido. Quando for destruída a estrutura de classe da sociedade, não existirá nenhuma justificação, econômica ou outra, para manter estas diferenciações. Ê impossível discutir aqui os incríveis sofismas através dos quais os pretensos “marxistas” tentaram justificar a desigualdade de rendimentos, seja na Rússia ou sob o “socialismo”. Assinalemos apenas dois pontos:

a) a aplicação estrita do princípio “a cada um segundo o valor do trabalho fornecido”, sustentado por Marx na Crítica do programa de Gotha, conduziria no máximo a uma diferenciação das remunerações da ordem de 1 (trabalho manual não-qualificado) a 1,25 ou 1,5 (físico nuclear). Por “valor do trabalho fornecido” entendo o valor no sentido marxista, definido pela teoria do valor-trabalho;

b) a desigualdade dos rendimentos numa sociedade socialista justifica-se habitualmente pelo argumento de que a sociedade deveria reembolsar ao operário qualificado suas despesas de qualificação (inclusive os anos de formação). As diferenciações das remunerações na sociedade capitalista reembolsam essas despesas ao múltiplo. Este “princípio” seria um absurdo numa sociedade socialista, onde as despesas de qualificação não seriam arcadas pelo indivíduo (de resto, hoje elas não o são mesmo de fato), mas pela própria sociedade.

Não poderia nunca haver gestão coletiva e democrática da fábrica, da economia, ou da sociedade exercida por pessoas economicamente desiguais. A manutenção da diferenciação dos rendimentos tenderia imediatamente a fazer renascer o caos atual. Salário igual para todos aqueles que trabalham, esta deverá ser uma das regras fundamentais que a revolução socialista deverá aplicar.

A organização socialista

o que fazemos, realmente, quando, enquanto socialistas revolucionários, tentamos definir nossa concepção do socialismo? Sem dúvida, tentamos definir o próprio movimento. Mas, que somos nós? O que representamos? Sobre qual programa queremos ser julgados pelos trabalhadores?

A honestidade política elementar exige que formulemos abertamente, sem ambiguidades e segundas intenções, os objetivos pelos quais consideramos que os trabalhadores deveriam lutar. Mas existe aí também uma questão de grande importância prática. Uma questão de vida e de morte referente à organização revolucionária e a seu desenvolvimento. E eis por quê.  

Consideremos de início a relação entre a organização revolucionária e a classe operária. O que deve ser esta relação? Se o objetivo único, ou principal, da revolução socialista é o de eliminar a propriedade privada e o mercado para acelerar, através das nacionalizações e da planificação, o desenvolvimento da produção, então o operariado não terá nenhum papel consciente e autônomo a desempenhar nesta transformação. Todas as medidas que transformam o operariado em infantaria obediente e disciplinada à disposição do Estado-maior “revolucionário” são apropriadas e boas. Basta que a classe operária esteja preparada – ou induzida a lutar contra o capitalismo até a morte. Que ela saiba como, por que, em vista do que, não tem nenhuma importância. A “direção” sabe. A relação entre o Partido e a classe é então homóloga à divisão da sociedade capitalista ou burocrática entre dirigentes e simples executantes. Após a revolução, poder e gestão pertencem ao Partido, o qual “gere” a sociedade “no interesse dos operários”. Esta opinião é partilhada pelos stalinistas e pelos trotskistas. Nestas condições, a emergência de uma sociedade burocrática, de uma sociedade de classe, torna-se inevitável.

(Esta concepção encontra-se muito pouco disfarçada no número de outubro-novembro de 1960 da Labour Review (órgão “teórico” dos trotskistas ingleses). Um artigo de Cliff Slaughter, intitulado “O que é a direção revolucionária” contém, entre outras coisas, um ataque às ideias de Socialisme ou Barbarie. Nesse artigo, não se encontrará nada além da coleção estandardizada de banalidades sobre a “necessidade de uma direção de ferro” e que se encontra em qualquer artigo trotskista sobre o tema escrito nos últimos vinte anos. Da mesma forma, o autor segue fielmente a tradição autêntica dos epígonos de Trotsky, evitando atentamente toda tentativa de compreender as ideias que critica. O nível teórico no qual se situa está indicado claramente pelo fato de que, na sua opinião, toda a história da humanidade, de quarenta anos para cá só pode ser explicada pela “crise da direção revolucionária”. Em nenhum momento ele se pergunta: e quais são, pois, as causas desta crise? Se o Partido é a resposta a esta crise, e que este Partido “deve ser construído por aqueles que captam teoricamente o processo histórico”, como acontece que os argutos trotskistas, desde trinta anos, foram incapazes de construí-lo? Por que as organizações trotskistas se desintegraram até mesmo nos países onde outrora dispunham de algumas forças? A “refutação” das concepções antiburocráticas proposta por Slaughter baseia-se no argumento de que, para a derrubada do capitalismo, é necessária a consciência. Em seguida, a consciência é, de preferência ingenuamente, identificada com a consciência dos dirigentes do Partido. No final, o autor trai a sua mentalidade fundamentalmente burguesa ao descrever a centralização do poder burguês, sua organização, seu armamento etc. e ao exigir, para combatê-los, “uma elevação da disciplina e da autoridade centralizada num grau sem precedente”. Ele não suspeita um único instante de que a centralização e a disciplina proletárias – tais como são ilustradas por um Conselho operário ou um comitê de greve – representam algo de radicalmente diferente da centralização e da disciplina capitalistas, cujo desenvolvimento ele procura.)   

Mas se o objetivo da revolução é a instituição da gestão da produção, da economia e da vida social pelos trabalhadores através do poder dos conselhos operários, então o sujeito ativo e consciente desta revolução e de toda transformação ulterior da sociedade não pode ser ninguém mais a não ser o próprio proletariado. A revolução socialista só pode acontecer através da ação autônoma do proletariado. Esta transformação só poderá se fazer se o proletariado encontrar em si mesmo a vontade e a consciência necessária para produzir esta imensa transformação da sociedade. Um socialismo realizado “em nome do proletariado”, mesmo pelo partido mais revolucionário, é um completo contrassenso. A organização revolucionária não é, portanto, nem pode ser, a “direção” da classe. Ela só pode ser um instrumento da luta da classe. Sua tarefa principal é a de ajudar, através de suas palavras e ações, a classe operária a assumir o seu papel histórico de gestão da sociedade.

Qual deve ser o funcionamento interno da organização revolucionária? De acordo com as concepções tradicionais, o Partido se organiza e funciona segundo certos princípios bem demonstrados de eficácia, pretensamente baseados no “bom senso”, a saber, uma divisão do trabalho entre “dirigentes” e “base”, o controle daqueles por esta em intervalos pouco frequentes e, geralmente, a posteriori (de maneira que o pretenso controle se torne na realidade ratificação pura e simples), especialização, divisão rígida das tarefas etc. Isto pode ser bom senso burguês, mas é puro contrassenso de um ponto de vista revolucionário. Este tipo de organização só é eficaz no sentido de que reproduz com eficácia um estado de coisas burguês, tanto dentro quanto fora do Partido. Na sua melhor forma e na mais “democrática”, não passa de uma paródia do parlamentarismo burguês.

A organização revolucionária deverá ela mesma aplicar os princípios que o proletariado desenvolveu ao longo de suas lutas históricas: a Comuna, os sovietes, os Conselhos operários. Ela deverá instaurar a autonomia de seus órgãos locais, no maior grau compatível com a unidade da organização; a democracia direta, em toda parte onde puder ser materialmente praticada; a eleição e a revogabilidade a todo instante de todos os delegados que participam dos órgãos que têm poder de decisão.

Que são as reivindicações socialistas?

Qual deveria ser a atitude da organização diante das lutas de classe cotidianas? Quais deveriam ser as reivindicações que ela apoia, tanto as “imediatas” quanto as “transitórias”?

As organizações tradicionais, fossem elas reformistas ou “marxistas”, viam nessas lutas essencialmente um meio para conduzir a classe sob o controle e a direção do partido. Para os trotskistas, por exemplo, o que importa durante uma greve é conseguir que o comitê de greve aplique a “linha” decidida pela fração do partido. Frequentemente as greves fracassam porque toda educação, toda mentalidade dos membros dos partidos faz com que considerem, sem que estejam necessariamente conscientes disso, como seu objetivo principal, o seu próprio controle do movimento e não o próprio desenvolvimento deste último. Tais organizações consideram as lutas nos sindicatos como, essencialmente, uma luta pelo controle do aparelho sindical.

A ideologia e a atitude revolucionária destas organizações se refletem nas reivindicações que defendem. E isto de duas maneiras. Primeiramente, falando apenas de aumentos de salário, de luta contra as recessões e o desemprego, ou de nacionalizações, elas concentram a atenção dos trabalhadores sobre reformas que não somente são perfeitamente realizáveis no capitalismo, mas que são, cada vez mais, realizadas pelo próprio capitalismo. Estas reformas, na realidade, são a própria expressão da transformação burocrática em curso na sociedade contemporânea. Consideradas em si mesmas, estas reivindicações tendem simplesmente a racionalizar a estrutura social existente. Coincidem perfeitamente com o programa da ala “progressista” ou “de esquerda” das classes dominantes.

Em seguida, estas organizações mistificam e manipulam os trabalhadores, adiantando reivindicações “transitórias” – escala móvel dos salários e das horas de trabalho, “controle” operário, milícias operárias etc. – que se supõem incompatíveis com o capitalismo, mas não são apresentadas como tais à classe operária. (De fato, dentre essas reivindicações, algumas não são incompatíveis com o capitalismo: a escala móvel dos salários aplica-se hoje em muitas indústrias e em vários países. Mas esta manifestação da capacidade dos trotskistas de viver num mundo imaginário não interessa para nossa discussão principal.) O Partido, por exemplo, “sabe” (ou acredita que sabe) que a escala móvel dos salários nunca será aceita pelos capitalistas. Acredita que esta reivindicação, se os operários realmente lutarem por ela, conduzirá a uma situação revolucionária e finalmente à própria revolução. Mas não o diz publicamente. Se o fizesse, “amedrontaria os operários”, que “ainda” não estão maduros para lutar pelo socialismo mesmo. Desta forma, a reivindicação aparentemente inocente da escala móvel dos salários é posta como realizável … quando se sabe que ela é irrealizável. É a isca que fará com que os operários inicialmente mordam o anzol e em seguida engulam a linha revolucionária. O Partido, que segura com firmeza a vara, puxará então gentilmente a classe para a frigideira “socialista”. Tudo isso seria monstruoso se não fosse incrivelmente ridículo.

Para a organização revolucionária só existe um único critério, simples, que determina sua atitude diante das lutas cotidianas dos operários. Será que esta forma particular de luta, esta forma particular de organização aumenta ou diminui a participação dos operários, sua consciência, sua capacidade de administrar seus próprios negócios, sua confiança em si mesmos (sendo todos esses fatores, além disso, os únicos que podem assegurar que uma luta será vigorosa e eficaz mesmo do ponto de vista mais imediato e mais limitado)?

Por conseguinte, defendemos incondicionalmente a tomada de decisões diretamente pelas assembleias de grevistas sobre todas as questões importantes; os comitês de greve eleitos e submetidos à revogabilidade permanente (o que pode ser uma evidência na Grã-Bretanha, mas não certamente no continente); opomo-nos à direção das greves pelos burocratas sindicais; defendemos as organizações autônomas da base; defendemos incondicionalmente os shopstewards (delegados de oficina na Grã-Bretanha, eleitos diretamente pelos operários e revogáveis por eles a todo instante); combatemos todas as ilusões relativas à possibilidade de “reformar”, “melhorar” ou “conquistar” o aparelho burocrático dos sindicatos.

As reivindicações devem ser definidas pelos próprios trabalhadores e não lhes ser impostas pelos sindicatos ou pelos partidos. Isto evidentemente não quer dizer que a organização revolucionária não possua seu próprio ponto de vista sobre estas questões, ou que ela deveria abster-se de defender este ponto de vista quando os trabalhadores não o aceitassem. Mas implica certamente que a organização se recuse a manipular os trabalhadores ou a forçá-los a adotar tal ou tal posição.

A atitude da organização face às reivindicações particulares está diretamente ligada à sua visão de conjunto a respeito do socialismo. Aqui estão dois exemplos:

a) a origem da opressão da classe operária encontra-se na própria produção. Por conseguinte, as reivindicações imediatas relativas às condições de trabalho e, mais geralmente, à vida na fábrica, devem adquirir um lugar central ao menos tão importante e talvez mais importante do que as reivindicações de salário. (Evidentemente, não é por acaso que os sindicatos e os partidos tradicionais permanecem silenciosos sobre este problema; nem que uma proporção crescente das greves “não-oficiais” na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos se efetuam em torno dessas reivindicações.) Ao adotarmos esta posição, não exprimimos somente as preocupações mais profundas dos trabalhadores hoje; mas também estabelecemos uma ligação direta com o problema central da revolução. E, ao mesmo tempo, mostramos a natureza fundamentalmente conservadora de todos os sindicatos e partidos existentes;

b) a exploração traduz-se cada vez mais pela estrutura hierárquica dos trabalhos e dos rendimentos e pela atomização que se introduziu no proletariado através das diferenciações de salário. Devemos denunciar incessantemente as concepções hierárquicas do trabalho e da organização social; devemos defender as reivindicações de salário que tendem a abolir ou a reduzir as diferenciações de salário (por exemplo, aumentos iguais para todos, ou aumentos decrescentes em porcentagem, dando mais aos que ganham menos e menos aos que ganham mais). Fazendo isto, ajudamos, a longo prazo, o desenvolvimento do sentimento de solidariedade entre os trabalhadores, desmascaramos a burocracia, atacamos diretamente a filosofia e os valores do capitalismo, construímos uma ponte para as concepções fundamentais do socialismo.

Tais são as verdadeiras “reivindicações transitórias”. Reivindicações transitórias, no sentido que a mitologia trotskista dá a este termo, nunca existiram na história. Reivindicações transitórias existiram e podem existir somente em dois conjuntos de circunstâncias. Ou bem, numa situação dada, reivindicações que sob outros aspectos são “realizáveis” no seio do capitalismo tornam-se explosivas e revolucionárias (“o pão e a paz” em 1917, por exemplo); ou bem, reivindicações imediatas, se forem mantidas por uma luta vigorosa, minam, através de seu conteúdo, as fundações mais profundas da sociedade capitalista. Os exemplos apresentados mais acima pertencem a esta segunda classe.  

O presente artigo foi retirado do livro Socialismo ou Barbárie – O Conteúdo do Socialismo, Brasiliense, 1983.