O ponto de explosão da ideologia na China – Guy Debord

A dissolução da associação internacional das burocracias totalitárias é hoje um fato consumado. Retomando os termos da Mensagem publicada pelos situacionistas em Argel em Julho de 1965, ficou patente o irreversível “desmoronamento da imagem revolucionária” que a “impostura burocrática” opunha ao conjunto da sociedade capitalista como pseudonegação e efetivo sustentáculo; patente, antes de mais, no terreno em que o capitalismo oficial tinha o maior interesse em apoiar a mentira do seu adversário: no afrontamento global entre a burguesia e o pretenso “campo socialista”. Apesar de todas as tentativas cosméticas, aquilo que já não era socialista deixou até de ser um campo. O esboroamento do monolitismo stalinista manifesta-se desde já na coexistência dumas vinte “linhas” independentes, da Romênia a Cuba, da Itália ao bloco dos partidos vietnamita-coreano-japonês. A Rússia, que foi incapaz de organizar este ano uma conferência comum de todos os partidos europeus, prefere esquecer a época em que Moscou reinava sobre a Komintem[1]. Deste modo, o Izvestia, em Setembro de 1966, estigmatizava os dirigentes chineses por estes atirarem para um descrédito “sem precedentes” as ideias “marxistas-leninistas”, deplorando virtuosamente este gênero de confronto “em que uma troca de opiniões e experiências revolucionárias é substituída por injúrias. Os que optam por esta via conferem à sua própria experiência um valor absoluto, dando provas, na interpretação da teoria marxista-leninista, de um espírito dogmático e sectário. Uma tal atitude está necessariamente ligada à ingerência nos assuntos internos dos partidos irmãos…” A polêmica russo-chinesa, na qual cada uma das potências é levada a imputar ao adversário todos os crimes antiproletários, terá o seu desfecho, tanto dum lado como do outro, no fato de ser obrigada a nunca mencionar o defeito real que o poder de classe da burocracia representa, numa visão bastante prosaica: aquilo que não passou duma inexplicável miragem revolucionária, voltou, por falta de outra realidade, ao seu velho ponto de partida. A simplicidade deste regresso às fontes foi perfeitamente exposta em Fevereiro [de 1966] em Nova Deli, quando a embaixada da China qualificou Brejnev e Kossiguine como “novos tsares do Kremlin”, ao mesmo tempo que o governo indiano, aliado antichinês desta Moscou, revelava que “os atuais senhores da China envergaram o manto imperial do manchus”. Um mês depois, este argumento contra a nova dinastia chinesa tornou-se ainda mais refinado, em Moscou, pela voz de Voznessenski, o poeta modernista de Estado, que “pressente Kutchum” e as suas hordas e só pode contar com “a Rússia eterna” para opor uma muralha aos mongóis que ameaçam montar as suas tendas entre “as pedras preciosas do Louvre”. A acelerada decomposição da ideologia burocrática, tão evidente nos países onde o stalinismo se apoderou do poder como nos outros – onde perdeu qualquer oportunidade de dele se apoderar –, tinha naturalmente de começar pelo capítulo do internacionalismo, mas isto não passa do início de uma dissolução geral sem remédio. O internacionalismo só podia ser pertença da burocracia como proclamação ilusória ao serviço dos seus interesses reais, como mais uma justificação ideológica, visto a sociedade burocrática ser justamente o mundo invertido da comunidade proletária. A burocracia é essencialmente um poder estabelecido com base na posse estatal da nação, devendo obedecer à lógica da sua própria realidade segundo os interesses particulares impostos pelo nível de desenvolvimento do país que ela possui. A sua idade heroica sumiu-se com os abençoados tempos ideológicos do “socialismo num só país”, que Stalin, prudentemente, mantivera ao destruir as revoluções na China ou na Espanha, de 1927 a 1937. A autônoma revolução burocrática na China – como acontecera pouco antes na Iugoslávia – introduzida na unidade do mundo burocrático um gérmen de dissolução que a desconjuntou em menos de vinte anos. O processo geral de decomposição da ideologia burocrática atinge neste momento o seu estágio supremo no país onde, devido no atraso geral da economia, a subsistente pretensão ideológica revolucionária tinha também de ser levada ao máximo, ou seja, no país onde esta ideologia era mais necessária – a China.

A crise que na China foi evoluindo de modo cada vez mais amplo, desde a Primavera de 1966, constitui um fenômeno sem precedentes na sociedade burocrática. É certo que a classe dominante do capitalismo burocrático de Estado, ao exercer normalmente o terror sobre a maioria explorada, se tem visto amiúde dilacerada, na Rússia ou na Europa do Leste, em afrontamentos e ajustes de contas decorrentes das dificuldades objetivas com que depara, bem como do estilo subjetivamente delirante que o poder totalmente impostor é levado a envergar. Mas a burocracia sempre se saneou a partir de cima, pelo fato de o seu modo de apropriação da economia a obrigar a ser centralizada, devendo extrair de si mesma a garantia hierárquica de qualquer participação na sua apropriação coletiva do excedente produto social. O topo da burocracia tem de manter-se fixo, visto nele se basear toda a legitimidade do sistema. Tem de manter entre si as suas dissensões (foi essa a prática constante desde o tempo de Lênin e Trotski); e podendo embora os homens ser liquidados ou substituídos no seio da burocracia, a função, quanto a ela, tem de ser mantida na mesma invariável majestade. A repressão sem explicações e sem réplica pode depois descer normalmente a cada andar do aparelho vertical, como simples complemento do que foi instantaneamente decidido no topo. Béria[2], primeiro tem de ser morto; só depois será julgado; nessa altura já se pode perseguir a sua facção, ou qualquer pessoa, porque o poder que liquida, ao liquidar define a seu bel prazer a facção, definindo-se ele próprio, no mesmo gesto, como poder. Nada disto existiu na China, onde a permanência dos adversários proclamados, apesar do fantástico aumento dos lanços na luta pela totalidade do poder, mostra com evidencia que a classe dominante se partiu em duas.

Um acidente social de tamanha envergadura não pode obviamente ser explicado, à maneira anedótica dos observadores burgueses, pelas dissensões relativas a uma estratégia exterior; é aliás notório que a burocracia chinesa suporta pacificamente a afronta que constitui, à sua porta, o esmagamento do Vietnã. Tão pouco querelas pessoais sucessórias teriam suscitado tais manobras. Quando certos dirigentes são censurados por terem “afastado Mao Tsé-tung do poder” desde o fim dos anos 50, tudo leva a crer que se trata dum destes crimes retrospectivos corretamente fabricados pelos saneamentos burocráticos – Trotski que dirige a guerra civil por ordem do imperador do Japão, Zinoviev secundando Lênin para satisfazer o Império Britânico, etc. Quem tivesse afastado do poder um personagem tão poderoso como Mao, nunca poderia dormir enquanto Mao pudesse voltar. Por conseguinte, Mao teria sido morto nesse dia sem que nada impedisse os seus sucessores de atribuírem essa morte, por exemplo, a Krutchev. Se é verdade que os governantes e polemistas dos Estados burocráticos percebem muito melhor a crise chinesa, nem por isso as suas declarações são mais sérias, visto eles temerem, ao falarem da China, revelar coisas demais a respeito de si mesmos. São afinal os restos esquerdistas dos países ocidentais, sempre voluntários a lorpas de todas as propagandas com bafio subleninista, os únicos aptos a enganarem-se mais grosseiramente, avaliando com cômica seriedade o papel na sociedade chinesa dos vestígios do juro atribuído aos capitalistas que aderiram ao regime, ou procurando saber, nesta enorme pendência, que líder representará o esquerdismo ou a autonomia operária. Os mais estúpidos acreditaram haver algo de “cultural” neste negócio, pelo menos, até Janeiro [de 1966], quando a imprensa maoísta lhes pregou a partida de confessar que se tratava, “desde o início, de uma luta pelo poder”. O único debate sério consiste em examinarmos por que razão e como pode a classe dominante dividir-se em dois campos hostis, ficando toda a investigação a este respeito vedada aos que não admitem que a burocracia é uma classe dominante ou que ignoram a especificidade desta classe, reduzindo-a às condições clássicas do poder burguês.

Retrato da alienação
Esta multidão chinesa, disposta de tal maneira que compõe um retrato em trama de Mao Tsé-tung, pode ser considerada um caso extremo de espetacular concentrado do poder estatal (cf. I.S. nº 10), aquele que “na zona subdesenvolvida … congrega na ideologia e, em casos-limite, num único homem, tudo o que há de admirável … e se deve aplaudir e consumir passivamente”. Aqui, a fusão do espectador e da imagem a contemplar parece ter atingido a sua perfeição policial. Foi ao julgar útil, tempos depois, ir ainda para além deste grau de concentração. que a burocracia chinesa fez estourar a máquina.

Sobre o porquê da ruptura no interior da burocracia, apenas podemos asseverar tratar-se duma questão de tal modo importante que pôs em jogo a própria dominação da classe reinante, visto que, para lhe darem resposta, ambas as partes, inabalavelmente obstinadas, nem sequer recearam arriscar aquilo que constitui o poder comum da sua classe, pondo em perigo todas as condições respeitantes à sua administração da sociedade. A classe dominante, por conseguinte, já devia saber que não podia governar como antes. É evidente que este conflito diz respeito à gestão da economia. É evidente que o descalabro das sucessivas políticas econômicas da burocracia constitui a causa da extrema acuidade do conflito. O falhanço da política intitulada “O Grande Salto em Frente” – resultante sobretudo da resistência do campesinato – não só encerrou a perspectiva de uma descolagem ultravoluntarista da produção industrial como provocou, forçosamente, uma desorganização desastrosa e durável. O próprio incremento da produção agrícola, desde 1958, parece ser muito baixo, mantendo-se a taxa de crescimento da população superior à das subsistências. Já é menos fácil dizer sobre que opções econômicas precisas se dividiu a classe dirigente. É provável que uma tendência (incluindo a maioria do aparelho partidário, dos responsáveis dos sindicatos e dos economistas) quisesse prosseguir ou incrementar, de modo mais ou menos assinalável, a produção dos bens de consumo e apoiar com estímulos econômicos o esforço dos trabalhadores, implicando esta política certas concessões aos camponeses e sobretudo aos operários, mas provocando também, ao mesmo tempo, o aumento de um consumo hierarquicamente diferenciado numa ampla base da burocracia. A outra tendência (incluindo Mao e uma grande parte dos quadros superiores do exército) pretendia, sem dúvida, uma aceleração, fosse a que preço fosse, do esforço com vista a industrializar o país, um recurso ainda mais extremo à energia ideológica e ao terror, a superexploração ilimitada dos trabalhadores e talvez o sacrifício “igualitário”, no consumo, de uma camada importante da burocracia inferior. As duas posições são de igual modo orientadas para a manutenção da dominação absoluta da burocracia, sendo ambas calculadas em função da necessidade de impedir as lutas de classes que ameaçam esta dominação. Em todo o caso, tanto a urgência como o caráter vital desta opção eram para todos tão evidentes que os dois campos se viram imediatamente na necessidade de correr o risco de um agravamento das condições em que se encontravam colocados devido à desordem da sua própria divisão. É muito possível que a obstinação de ambas as partes se justifique pelo fato de não haver solução correta para os insuperáveis problemas da burocracia chinesa; de as duas opções em confronto serem por igual inaplicáveis; e de se impor, por isso mesmo, uma opção.

Para sabermos como pôde uma divisão no topo da burocracia ir-se propagando, de degrau em degrau, aos níveis hierárquicos inferiores. repetindo-se em todos os andares afrontamentos oriundos do aparelho partidário e do Estado, até essa divisão se espalhar entre as massas, será sem dúvida necessário termos em conta que subsistia na China o velho modelo de administração baseado em províncias tendentes a uma semiautonomia. A denúncia dos “reinos independentes”, feita em Janeiro [de 1967] pelos maoístas de Pequim, evoca nitidamente este fato, confirmado pela evolução dos tumultos nos últimos meses. É muito possível que o fenômeno da autonomia regional do poder burocrático, que durante a contrarrevolução russa só se manifestou ligeiramente e apenas de modo episódico, em torno da organização de Leningrado, tenha deparado na China burocrática com bases múltiplas e sólidas, traduzindo-se na possibilidade de uma coexistência, no governo central, de clientelas e clãs detentores, em propriedade direta, de regiões inteiras do poder burocrático, podendo assim estabelecer compromissos entre si. O poder burocrático na China não teve origem num movimento operário, mas sim no enquadramento militar dos camponeses, ao longo de uma guerra que durou vinte e dois anos. O exército manteve-se estreitamente ligado ao partido, cujos dirigentes foram todos eles chefes militares, continuando a ser, para o partido, a principal escola de seleção das massas camponesas que educa. Além disso, segundo parece, a administração local instalada em 1949 ficou grandemente tributária das zonas de passagem dos diferentes destacamentos militares, que se deslocavam do Norte para o Sul deixando sempre no seu sulco homens a eles ligados pela origem regional (ou até familiar, fator de consolidação das cliques burocráticas que a propaganda contra Liu Chao-chi e outros clarificou plenamente). Tais bases locais de um poder semiautônomo criado na administração burocrática, teriam, por conseguinte, podido formar-se na China graças à combinação das estruturas organizativas do exército conquistador e das forças produtivas que este era levado a controlar na região conquistada.

Quando a tendência de Mao começou a ofensiva pública contra as sólidas posições dos seus adversários, pondo em marcha os estudantes e as crianças recrutadas nas escolas, ela não visava, de imediato, nenhuma espécie de transformação “cultural” ou “civilizadora” das massas trabalhadoras, já extremamente apertadas pela coleira ideológica do regime. As tolices contra Beethoven ou a arte Ming, tal como as invectivas contra as posições ainda ocupadas ou já conquistadas por uma burguesia chinesa manifestamente aniquilada enquanto tal, só eram apresentadas para entreter a malta com diversões – não sem calcular que este esquerdismo sumário podia ter um certo eco entre os oprimidos, com razões de sobra para pensarem que na China ainda existem diversos obstáculos ao advento de uma sociedade sem classes. O objetivo principal da operação consistia em alardear na rua, ao serviço desta tendência, a ideologia do regime, por definição maoísta. Não podendo os próprios adversários ser outra coisa senão maoístas, com o desencadear desta ruim querela viam-se de chofre em incômoda posição. Por isso as suas insuficientes “autocriticas” devem na realidade exprimir a determinação de manterem os postos que controlam. Podemos pois qualificar a primeira fase da luta como um afrontamento dos proprietários oficiais da ideologia contra a maioria dos proprietários do aparelho da economia e do Estado. No entanto, a burocracia, para manter a sua apropriação coletiva da sociedade, tem tanta necessidade da ideologia como do aparelho administrativo e repressivo; de modo que a aventura de uma tal separação era extremamente arriscada se não desse resultados a curto prazo. É sabido que a maioria do aparelho resistiu obstinadamente, e Liu Chao-chi em pessoa, apesar da sua posição critica em Pequim. Depois da sua primeira tentativa para bloquear a agitação maoísta nas universidades, onde os “grupos de trabalho” tinham adotado uma posição diametralmente oposta, esta agitação estendeu-se às ruas de todas as grandes cidades, começando a atacar em toda a parte, com jornais murais e a ação direta, os responsáveis que lhe iam apontando – não excluindo isto os erros e os excessos de zelo. Mas estes responsáveis organizaram a resistência em todo o lado onde lhes foi possível fazê-lo. Os primeiros confrontos entre operários e “guardas vermelhos” devem ter sido conduzidos pelos ativistas do partido nas fábricas, à disposição dos barões locais do aparelho partidário. E a breve trecho, os operários, exasperados pelos excessos dos guardas vermelhos. começaram a intervir por si mesmos. Em todos os casos onde os maoístas falaram de “alargar a revolução cultural” às fábricas e depois às zonas rurais, aparentaram optar por uma evolução que, durante todo o Outono de 1966, lhes escapara, e na realidade ocorrera apesar dos seus planos. A queda da produção industrial, a desorganização dos transportes, da irrigação, da administração estatal até ao nível dos ministérios (apesar dos esforços de Chu En-lai), as ameaças que pesaram sobre as colheitas do Outono e da Primavera, a interrupção completa do ensino durante mais de um ano – particularmente grave num país subdesenvolvido –, tudo isso foi o resultado inevitável de uma luta cuja extensão unicamente e deveu à resistência da parte da burocracia no poder que os maoístas tratavam de submeter.

Os maoístas, cuja experiência política não se encontra ligada às lutas no meio urbano, tiveram ocasião de verificar o preceito de Maquiável: “Livremo-nos de provocar qualquer sedição numa cidade gabando-nos de poder suspendê-la ou dirigi-la à vontade” (Histórias Florentinas). Após alguns meses de pseudorrevolução pseudocultural, foi a luta de classes real que irrompeu na China, começando os operários e os camponeses a agir por si mesmos. Os operários não podem ignorar o que para eles significa a perspectiva maoísta; os camponeses, que veem ameaçadas as suas leiras individuais, começaram em várias províncias a repartir entre si as terras e o material das “comunas populares” (não passando estas da nova vestimenta ideológica das unidades administrativas preexistentes. em geral correspondentes aos antigos cantões). As greves dos caminhos de ferro, a greve geral de Xangai – designada, como em Budapeste[3], arma privilegiada dos capitalistas –, as greves da grande aglomeração industrial de Vu-Han, de Cantão, de Hu-Pei, dos metalúrgicos e operários do têxtil em Tchongking, os ataques dos camponeses de Sechuan e de Fu-Kien, acabaram em Janeiro [de 1967] por pôr a China à beira do caos. Ao mesmo tempo, na esteira dos operários organizados em “guardas púrpuras”, em Kuang-Si, a partir de Setembro de 1966, para combaterem os guardas vermelhos, e depois dos motins antimaoístas de Nanquim, constituíram-se “exércitos” em diversas províncias, como o “Exército do 1 de Agosto” em Kuang-Tong. O exército nacional viu-se obrigado a intervir em toda a parte, em Fevereiro e Março [de 1967], para dominar os trabalhadores, dirigir a produção através do “controle militar” das fábricas, e até apoiado então pela milícia, para controlar o trabalho nos campos. As lutas dos operários para manterem ou aumentarem os salários na famosa tendência para um “economicismo” amaldiçoado pelos senhores de Pequim, chegaram a ser aceitas e até encorajadas por certos quadros locais do aparelho, na sua resistência aos rivais maoístas. Mas é óbvio que a luta era conduzida por uma corrente irresistível da base operaria: a dissolução autoritária, em Março [de 1967], das “associações profissionais”, formadas após a primeira dissolução dos sindicatos do regime cuja burocracia escapava à linha maoista, mostra-o muito bem. Em Xangai, o Jiefang Ribao condenava, em Março, “a tendência feudal destas associações formadas, não em uma base de classe (leia-se: a qualidade que define esta base de classe é puro monopólio do poder maoísta), mas por oficios, e cujos objetivos de luta são os interesses parciais e imediatos dos operários que exercem estes oficios”. Uma tal defesa dos verdadeiros possuidores dos interesses gerais e permanentes da coletividade fora também nitidamente exprimida, a 11 de Fevereiro, em uma diretiva do Conselho de Estado e da Comissão Militar do Comitê Central: “Todos os elementos que se apoderaram de armas ou as roubaram, devem ser presos.”

Na altura em que a resolução deste conflito – que evidentemente provocou dezenas de milhares de mortos, opondo entre si grandes unidades militares com todo o seu equipamento, e até navios de guerra – fica entregue ao exército chinês, este encontra-se também dividido. Tem de assegurar a continuidade e a intensificação da produção, quando nem sequer já pode assegurar a unidade do poder na China – além disso, a sua intervenção direta contra o campesinato, tendo em conta o seu recrutamento essencialmente camponês, teria imensos riscos. A trégua que os maoístas tentaram obter em Março-Abril, declarando que todo o pessoal do partido é recuperável com exceção de um “punhado” de traidores e que a principal ameaça é doravante “o anarquismo”, significa, mais do que a inquietação perante a dificuldade de pôr um freio à exaltação ocorrida no seio da juventude na sequência da experiência dos guardas vermelhos, a inquietação essencial de a própria classe dirigente ter chegado à beira da dissolução. O partido, bem como a administração central e provincial, encontram-se neste momento em decomposição. Trata-se pois de “restabelecer a disciplina no trabalho”. “O princípio da exclusão e da destituição de todos os quadros tem de ser condenado sem reservas”, declara em Março o Bandeira Vermelha. Já em Fevereiro o notava o Nova China: “Vocês esmagam todos os responsáveis [….] mas quando se apoderam de um organismo, que vos fica entre as mãos além de uma sala vazia e uns carimbos?” As reabilitações e os novos compromissos sucedem-se portanto num ver se te avias. A causa suprema é a própria sobrevivência da burocracia, e esta tem de pôr em segundo plano, como simples meios, as diversas opções políticas das facções rivais.

A partir da Primavera de 1967, pode dizer-se que o movimento da “revolução cultural” atingiu um falhanço desastroso, sendo este falhanço por cena o mais impressionante na longa série de reveses do poder burocrático na China. Apesar do custo extraordinário da operação, nenhum dos seus objetivos foi atingido. A burocracia encontra-se mais dividida que nunca. Qualquer novo poder instalado nas regiões controladas pelos maoístas se cinde por sua vez: “a tripla aliança revolucionária” entre o exército, os guardas vermelhos e o partido continua a decompor-se, quer devido aos antagonismos entre estas três forças (o partido, sobretudo, mantém-se de fora, ou só entra para sabotar a dita aliança), quer devido aos antagonismos cada vez mais fortes no interior de cada uma destas forças. Parece tão difícil colar de novo o aparelho como construir um outro. E. sobretudo, pelo menos duas terças partes da China não são controladas, em qualquer instância, pelo poder de Pequim.

Ao lado dos comitês governamentais dos partidários de Liu Chao-Chi e dos movimentos de luta operária que continuam a afirmar-se são já os Senhores da Guerra que reaparecem com o uniforme de generais “comunistas” independentes, tratando diretamente com o poder central e levando a cabo a sua própria política, especialmente nas regiões periféricas. O general Chang Kuo-hua, senhor do Tibete em Fevereiro [de 1967], depois de combates de rua em Lassa emprega os blindados contra os maoístas. Três divisões maoístas são enviadas para “esmagar os revisionistas”. Segundo parece, só o conseguem moderadamente, porque Chang Kuo-hua continua a controlar a região em Abril. Este, no 1 de Maio, é recebido em Pequim, levando as conversações a um compromisso, visto ficar encarregado de organizar um comitê revolucionário para governar o Sechuan, onde, a partir de Abril, uma “aliança revolucionária”, influenciada por um tal general Hung, tomara o poder e prendera os maoístas; desde então, em Junho, os membros de uma comuna popular tinham-se apoderado de armas, atacando os militares. Na Mongólia Interior o exército pronunciou-se contra Mao logo em Fevereiro, sob a direção de Liu Chiang, comissário político adjunto. O mesmo aconteceu em Ho-Pei, em Hunan, na Manchúria. Em Kan-Su, em Maio, o general Chao Iung-chi realizou com êxito um golpe antimaoísta. O Sinquião, onde se encontram as instalações atômicas, foi neutralizado de comum acordo em Março, sob a autoridade do general Uang En-mao; o mesmo, todavia, tem fama de ali ter atacado os “revolucionários maoístas” em Junho. A região de Ho-Pei fica em Julho nas mãos do general Chen Tsai-tao, comandante do distrito de Vu-Han, um dos mais antigos centros industriais da China. No velho estilo do “incidente em Sião” manda prender ali um dos principais dirigentes de Pequim vindos negociar com ele; o primeiro-ministro tem de deslocar-se lá, sendo depois anunciado como uma “vitória” o fato de ter obtido a restituição dos seus emissários. Ao mesmo tempo, 2400 fábricas e minas parecem estar paralisadas nesta província na sequência do levantamento armado de 50 mil operários e camponeses. De resto, verifica-se no início do Verão que o conflito prossegue por todo o lado: em Junho, “operários conservadores” de Hu-nan atacaram uma fábrica têxtil com bombas incendiárias; em Julho, a bacia mineira de Fu-Shun e os trabalhadores do petróleo em Tahsing estão em greve, os mineiros de Kiang-Si perseguem os maoístas, apela-se à luta contra o “exército industrial de Chekiang” descrito como uma “organização terrorista antimarxista”, os camponeses ameaçam avançar sobre Nanquim e Xangai, há lutas de rua em Cantão e Chongking, os estudantes de Kueiang atacam o exército e apoderam-se de dirigentes maoístas. E o governo, que decidiu proibir as violências “nas regiões controladas pelas autoridades centrais”, mesmo ali parece ter muito trabalho. Na impossibilidade de suspenderem a agitação, suspendem as informações, expulsando a maior parte dos raros residentes estrangeiros.

Mas em princípios de Agosto a divisão no exército tornou-se tão perigosa que até as publicações oficiais de Pequim revelam que os partidários de Liu pretendem “pôr de pé, no seio do exército, um reino independente reacionário burguês” e (Diário do Povo de 05 de Agosto) que “os ataques contra a ditadura do proletariado na China vieram não só dos escalões superiores mas também dos escalões inferiores”. Pequim acaba por confessar que pelo menos uma terça parte do exército se pronunciou contra o governo central e que até uma grande parte da velha Chia das dezoito províncias lhe escapou. As sequências imediadas do incidente de Vuhan parecem ter sido muito graves; uma intervenção dos paraquedistas de Pequim apoiada por seis navios de guerra ao longo do Iangtsé, desde Xangai, foi derrotada após uma encarniçada batalha: por outro lado, armas dos arsenais de Vuhan terão sido enviadas aos antimaoístas de Chongking. Além disso, convém notar que as tropas de Vuhan pertenciam ao grupo de exércitos sob a autoridade direta de Lin Piao, o único considerado seguro. Por volta de meados de Agosto, as lutas armadas generalizam-se a tal ponto que o governo maoísta acaba por reprovar oficialmente esta espécie de continuação da política com meios que se voltam contra ele; e assegura preferir ganhar limitando-se a uma “luta pela pena”. Simultaneamente, anuncia a distribuição de armas às massas nas “zonas seguras”. Mas onde haverá tais zonas? Em Xangai, apresentada desde há meses como uma das raras cidadelas maoístas, ocorrem novos combates. Militares de Shantung incitam os camponeses à revolta. A direção da força aérea é denunciada como inimiga do regime. E como no tempo de Sun Iat-Sen, Cantão, ao mesmo tempo que o 47º exército se movimenta para ali restabelecer a ordem, destaca-se como polo da revolta, sendo a ponta de lança os operários dos caminhos de ferro e dos transportes urbanos: os prisioneiros políticos são libertados, armas destinadas ao Vietnã são interceptadas em navios ancorados no porto, são enforcadas nas ruas pessoas em número indeterminado. A China enterra-se assim lentamente numa guerra civil confusa, que constitui, em simultâneo, o afrontamento entre diversas regiões do poder burocrático-estatal esboroado e o confronto das reivindicações operárias e camponesas com as condições de exploração que em toda a parte as dilaceradas direções burocráticas têm de manter.

Por se terem mostrado, com o êxito que podemos ver, os campeões da ideologia absoluta, os maoístas têm recolhido até agora estima e aprovação, com a mais fantástica intensidade, entre a intelectualidade ocidental que nunca deixa de salivar ante tais estímulos. K. S. Karol, no Nouvel Observateur de 15 de Fevereiro [de 1967], lembrava doutamente aos maoístas o seu esquecimento de que “os verdadeiros stalinistas não são aliados potenciais da China, são os seus mais irredutíveis inimigos: para eles, a revolução cultural, com as suas tendências antiburocráticas, evoca o trotskismo…” Houve aliás muitos trotskistas que se reconheceram nessa “revolução cultural”, a si mesmos fazendo assim justiça! Le Monde, o jornal mais declaradamente maoísta publicado fora da China, anunciou dia após dia o êxito iminente do Sr. Mao Tsé-tung, devendo este por fim tomar o poder que desde há dezoito anos se lhe atribuía. Os sinólogos, quase todos stalino-cristãos, – uma mescla espalhada por todo o lado, mas nisto principalmente – envergaram de novo a alma chinesa para testemunharem a legitimidade do novo Confúcio. O que sempre houve de burlesco na atitude dos intelectuais burgueses da esquerda moderadamente stalinófila deparou agora com a mais bela ocasião de se expandir ante as máximas realizações chinesas do gênero: esta revolução “cultural” irá durar talvez uns 1000 ou 10.000 anos. O Pequeno Livro Vermelho conseguiu por fim “sinisar o marxismo”. “O ruído dos homens recitando as citações com voz forte e clara estende-se a todas as unidades do exército”. A seca nada tem de assustador, o pensamento de Mao Tsé-tung é a nossa chuva fecundante”. “O chefe do Estado foi considerado responsável […] por não ter previsto a mudança repentina de atitude do marechal Chang Kai-chek, quando este dirigiu o seu exército contra as tropas comunistas)” (Le Monde de 4-4-67; trata-se do golpe de 1927, que toda a gente, na China, tinha podido prever, mas que foi preciso aguardar passivamente para obedecer às ordens de Stálin). Um coral vem cantar o hino intitulado: Cem milhões de pessoas pegam em armas para criticar o sinistro livro de Auto-aperfeiçoamento (obrinha outrora oficial de Liu Chao-chi). A lista é infindável, podemos interrompê-la aqui com este engenhoso conceito do Diário do Povo de 31 de Julho [de l967]: “A situação da revolução cultural proletária na China é excelente, mas a luta de classes torna-se mais difícil”.

Após tanto barulho, as conclusões históricas a extrair deste período são simples. Avance agora a China para onde avançar, a imagem do último poder burocrático-revolucionário desfez-se em estilhas. O desabar interno acrescenta-se aos incessantes desmoronamentos da sua política externa: aniquilação do stalinismo indonésio, ruptura com o stalinismo japonês, destruição do Vietnã pelos Estados Unidos e, para acabar, proclamação em Pequim, em Julho, de que a “insurreição” de Naxalbari, dias antes da sua dispersão pela primeira operação de polícia, era o início da revolução camponesa maoísta em toda a Índia: ao sustentar esta extravagância, Pequim rompeu com a maioria dos seus próprios partidários indianos, ou seja, com o último grande partido burocrático que lhe era fiel. O que está inscrito agora na crise interna da China é o seu falhanço na industrialização do país e na sua apresentação como modelo aos países subdesenvolvidos. A ideologia levada ao seu grau absoluto acaba por estourar. A sua utilização absoluta é também o seu zero absoluto: é a noite em que todas as vacas ideológicas são negras. No momento em que, na mais total confusão, os burocratas combatem entre si em nome do mesmo dogma e denunciam por toda a parte “os burgueses abrigados atrás da bandeira vermelha”, o próprio duplo pensar se desdobrou. É o alegre fim das mentiras ideológicas, a sua condenação à morte no ridículo. Não foi a China que produziu este ridículo, foi o nosso mundo. Dissemos no nº da I.S. publicado em Agosto de 1961 [nº 6] que este mundo se iria tornar “a todos os níveis cada vez mais penosamente ridículo, até ao momento da sua completa reconstrução revolucionária”. Está agora à vista o que este mundo é. A nova época da crítica proletária saberá que não tem mais nada a poupar que seja seu, e que todo o conforto ideológico existente lhe terá sido arrancado na vergonha e no pavor. Ao descobrir que está desapossada dos falsos bens do seu mundo embusteiro, tem de compreender que é ela a decidida negação da sociedade mundial como totalidade; e também na China o saberá. E o desmembramento mundial da internacional burocrática que neste momento se reproduz à escala chinesa, na fragmentação do poder em províncias independentes. A China reencontra assim o seu passado, que volta a atribuir-lhe as reais tarefas revolucionárias do movimento outrora vencido. O momento em que, segundo parece, “Mao recomeça em 1967 o que fazia em 1927” (Le Monde de 17-2-67) é também o momento em que, pela primeira vez desde 1927, a intervenção das massas operárias e camponesas se desencadeou em todo o país. Por mais difícil que sejam a apreensão e a aplicação dos seus objetivos autônomos, algo acabou na total dominação que os trabalhadores chineses suportavam. O Mandato do Céu proletário extinguiu-se[4].

[GUY DEBORD]

Texto publicado em opúsculo em 1967, depois incluído na I.S. nº 10, Outubro de 1967, não assinado.


[1] Sigla, em russo, de Kommunistitcheskii Internatsional (Internacional Comunista), nome atribuído pelos dirigentes russos à III Internacional. A komintern foi dissolvida em 1943 e substituída em 1947 pelo kominform.  

[2] Lavrenti Pavlovitch Béria (1899-1953), todo-poderoso chefe da polícia stalinista, foi durante muitos anos braço direito de Stalin. Como ministro do Interior, entre 1943-45, distinguiu-se pela brutalidade, vindo depois a subir os escalões da forte hierarquia “soviética” até chegar a vice-presidente de Defesa em 1944 e a marechal da U.R.S.S em 1945. Béria acabou por ser executado, após a morte de Stalin em 1953, na sequência de um processo obscuro típico dos que ele próprio instaurara.

[3] Durante a revolução proletária de 1956, o primeiro mais vasto movimento da crítica armada da burocracia stalinista, três anos depois da insurreição operária de Berlim.  

[4] Alusão à fórmula chinesa tianming, “mandato celeste”. Segundo a moral confuciana, esta fórmula exprime a ideia de que os imperadores obtinham do Céu o direito de governar; mas significa também que o próprio Céu lhes pode retirar esse desígnio, caso os seus atos não correspondam à retidão e à generosidade.  

Transcrito por Ádamo Soares, a partir da versão disponível em: Antologia Situacionista – Antígona (Portugal – PT).