Em 1865, onze mulheres londrinas com interesse comum em educação formaram um grupo de discussão: a Sociedade Kensington. Nove dentre elas eram solteiras. Todas proprietárias. Três delas, Sara Bodichon, Emily Davies e Jessie Boucherett, elaboraram uma petição à John Stuart Mill, membro do parlamento naquela época, que solicitava o direito ao voto de “todos os proprietários, sem distinção de sexo, que possuíssem a propriedade ou a classificação de aluguel que sua Honorável Casa pudesse determinar”. John Stuart Mill e Henry Fawcett apresentaram a petição, assinada por 1.499 mulheres, na Câmara dos Comunas em 7 de junho de 1866.
Naquela época e até a aprovação das leis de propriedade de mulheres casadas de 1870, 1874 e 1882 na Grã-Bretanha, as casadas não podiam possuir propriedades por direito próprio. As solteiras com propriedades, viviam em um contexto onde não podiam ter acesso a muitos postos de trabalho de acordo com sua posição econômica. Tampouco tinham pleno acesso à área profissional, como medicina ou engenharia, ou ao mundo empresarial. Os 72,5% dos professores eram mulheres, mas o ensino era mal pago e oferecia pouco reconhecimento social, inclusive para as coordenadoras. Essas mulheres proprietárias e solteiras da pequena burguesia, que careciam de mobilidade ascendente, de oportunidades empresariais e profissionais, formaram a espinha dorsal do feminismo britânico.
A petição da Sociedade Kensington não ocultava o caráter de classe do sufrágio. O direito de voto a “todos os proprietários, sem distinção de sexo” não só excluía as mulheres casadas − cuja propriedade passava na Grã-Bretanha, ao contrário de muitos países continentais, a seus maridos − mas também as trabalhadoras. Porque o critério não era sequer ter renda ou autonomia econômica, mas um certo limite de propriedades. As proletárias, solteiras ou casadas, sempre tiveram que trabalhar em fábricas ou no serviço doméstico para ganhar seu pão de cada dia. No entanto, não se esperava que as mulheres “respeitáveis” trabalhassem e menos ainda em trabalhos fabris. O critério era abertamente classista, e não a independência pessoal, que deveria ser atribuída ao eleitor.
Um comitê interino sucedeu à Sociedade Kensington e logo se converteu na “London National Society for Women’s Suffrage (Sociedade Nacional Londrina para o Sufrágio Feminino). Outro comitê o seguiu dedicado a organizar mulheres proprietárias em Manchester e em 6 de novembro de 1867, ambos grupos se juntaram a um terceiro surgido em Edimburgo, criando a “Sociedade Nacional para o sufrágio feminino” (NSWS)[1]. As condições para sua evolução em direção a um movimento mais amplo viriam em 1870 com a aprovação da “Married Women’s Property Act” (Lei de propriedade da mulher casada), que instituía:
Os salários e rendas de qualquer mulher casada que adquira ou ganhe após a aprovação da presente lei em qualquer emprego, ocupação ou cargo (a) em que participe ou desempenhe separado de seu marido, (b) bem como o dinheiro ou os bens que adquira mediante o exercício de qualquer atividade literária, artística ou de outro tipo, ou habilidade científica, e também investimentos (c) de tais salários, lucros, dinheiro ou propriedade, serão considerados e tomados como propriedades mantidas e determinado para uso separadamente (d) independentemente de com quem esteja casada, e seus recibos por si só serão justificação válida de tais salários, lucros, dinheiro e propriedade.
Os efeitos da lei eram limitados porque só afetavam ao dinheiro e as propriedades que as mulheres adquiriram depois da aprovação da lei, deixando nas mãos de seus maridos todo o adquirido até então. Mas instituir a divisão de bens era um passo crucial para uma possível concessão do direito de voto às mulheres casadas das classes burguesas. Estabelecia uma base social para um movimento pelo direito ao voto das burguesas e pequenas burguesas. O programa: abolir a barreira do sexo na representação política das classes proprietárias e, a partir daí, ascender na escala econômica como empreendedoras ou profissionais.
As primeiras batalhas e divisões
Apesar de sua homogeneidade social, as sufragistas tiveram algumas divisões e batalhas internas. Em 1871 Londres se separou do resto do país para apoiar a campanha da Associação Nacional das Senhoras (LNA) contra a Lei de Doenças Contagiosas. Voltariam a se unir em 1877, mas ainda teriam outra divisão em 1888. Uma parte do movimento queria afiliar-se à seção feminina do Partido Liberal, outras queriam manter sua independência da política partidária. Um ano depois, ainda sofreriam a divisão daquelas que não estavam de acordo com restringir o voto às mulheres proprietárias solteiras e defendiam, em seu lugar, exigir o voto de todas as mulheres…proprietárias. Estas últimas formariam a Women’s Franchise League (WFrL) Liga de Franquias Femininas.
O conflito entre as duas tendências continuará mesmo depois da aprovação em 1882 de um novo status da mulher casada, que ampliou a divisão de bens às propriedades e rendas adquiridas pela mulher durante o casamento. Embora as mulheres burguesas casadas já não pudessem mais ser discriminadas por motivo de propriedade se se concedia o voto às proprietárias, o conflito entre as feministas que criaram a WFrL e as que queriam restringir o voto às solteiras tinha um fundo estratégico: estabelecer o caminho mais seguro e ganhar a solidariedade de classe dos homens burgueses para o movimento. Não havia nenhuma dúvida de seu papel de classe. A WFrL tinha como objetivo “estender às mulheres, sejam solteiras, casadas ou viúvas, o direito de voto nas eleições parlamentares, municipais, locais e outras sob as mesmas condições que os homens”. Obviamente “as mesmas condições que os homens” se referia às mesmas condições de propriedade.
Enquanto isso, entre os marxistas…
Não poderia haver um maior contraste com a política do movimento revolucionário. Desde o Congresso de Gotha (1875), os socialistas alemães colocaram no centro de sua estratégia a “questão da mulher”, organizando cada vez mais trabalhadoras e lutando pelo sufrágio universal para ambos os sexos. A luta pelo sufrágio universal era inseparável dos objetivos gerais do movimento operário, porque o comunismo não é apenas a negação do capitalismo ou de suas consequências diretas, mas de toda sociedade de classe, com todos os seus sistemas de opressão e discriminação associados, desde a opressão linguística ao sexismo.
O dever de protestar contra a opressão nacional e de combatê-la, que corresponde ao partido de classe do proletariado, não encontra seu fundamento em nenhum “direito particular das nações”, assim tampouco a igualdade política e social dos sexos emana de nenhum “direito das mulheres” ao qual se refere o movimento burguês de emancipação das mulheres. Esses deveres só podem ser deduzidos de uma oposição generalizada ao sistema de classes, a todas as formas de desigualdade social e a todo poder de dominação. Em suma, se deduzem do princípio fundamental do socialismo.
Rosa Luxemburgo, A Questão Nacional e a Autonomia, 1908
Os esforços da ala esquerda da II Internacional para incorporar as trabalhadoras ao movimento socialista e lutar por suas necessidades, não provinham de um sentimento feminista, de uma extensão da política interclassista do feminismo. Pelo contrário. Todos os seus esforços eram parte de sua política revolucionária, eram uma extensão lógica do movimento que buscava a tomada do poder pela classe trabalhadora e a criação de um mundo verdadeiramente humano. Para elas, como para todos os marxistas da época, o mito da “comunidade de interesses das mulheres” ocultava o antagonismo entre as classes. A “sororidade” feminista tem para as trabalhadoras o mesmo significado da “fraternidade” jacobina que não distinguia de sexos: submissão a alguns interesses alheios da classe. É por isso que Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e outras revolucionárias eram incondicionalmente contra o feminismo. Elas entenderam, ao contrário das “feministas marxistas” acadêmicas, que o feminismo é irreconciliável com o comunismo.
O Feminismo e o trabalhismo Britânico
Em 1892, os fundadores da WFrL, Emmeline e Richard Pankhurst, causaram um tumulto em uma reunião das sufragistas. Lydia Becker a havia convocado para impulsionar um projeto de lei que daria o voto exclusivamente às mulheres solteiras. Os Pankhursts interromperam aos oradores gritando suas objeções. Elizabeth Wolstenholme-Elmy, a secretária de organização da WFrL, desaprovou seu comportamento, e a demitiu. Ela foi substituída por Ursula Bright, esposa de um parlamentar liberal, que se tornou secretária da organização, o que significava o fortalecimento dos laços entre a liga e o Partido Liberal. Finalmente, o trabalho de Ursula Bright, Emmeline Pankhurst e outros conseguiu influência suficiente para inserir seus princípios na Lei do Governo Local de 1894. Esta lei consagrou o princípio de que todas as mulheres, casadas ou solteiras, teriam o direito a votar nas eleições locais se tivessem propriedade suficiente[2].
O Partido Liberal, que já havia sido dividido em 1886 após o debate sobre a autonomia irlandesa, elegeu como líder em 1894 ao conde de Rosebury, representante da facção imperialista. Como muitos outros liberais, os Pankhursts então deixaram o partido[3] – para se juntar ao reformista Partido Trabalhista Independente (ILP). O ILP era um produto dos sindicatos britânicos, que na época lutavam para obter seus próprios deputados. Inicialmente, apoiaram aos parlamentares liberais contrários à legislação antisindical. Mas o Partido Liberal não correspondeu às expectativas nem dos sindicatos nem dos Pankhurst. Os sindicatos queriam que as assembleias eleitorais do Partido Liberal elegessem como candidatos alguns de seus dirigentes, algo que o Partido Liberal não fez. E não somente não o fez, mas também ao pressionar para que o cargo de deputado permanecesse sem remuneração, afastou ainda mais as aspirações para a representação parlamentar dos trabalhadores em geral. Todas essas decepções levaram à criação do “Comitê pela Representação do Trabalho”, uma organização federal composta pelos sindicatos e o ILP[4].
O novo mapa de alianças abria o caminho para uma reorientação do feminismo. Emmeline Pankhurst fundou a União Política e Social das Mulheres (WSPU) em 1903. Pela primeira vez, as sufragistas tentariam conquistar as mulheres trabalhadoras, muito maiores em número e, sobretudo, muito mais organizadas, propondo uma frente interclassista “de mulheres” cujo objetivo seria conseguir deputadas burguesas dentro do sistema censitário. Em outras palavras, o feminismo se preparava para pedir apoio das trabalhadoras para seus próprios interesses sob um programa que as excluía abertamente.
[1] Rise Up, Women: The Militant Campaign of the Women’s Social and Political Union, 1903-1914.
[2] A Life in Radical Politics, Sylvia Pankhurst, 1999.
[3] Emmeline Pankhurst (Routledge Historical Biographies), Paula Bartley, 2002.
[4] British Trade Union and Labour History: A Compendium, Leslie A. Clarkson: Macmillan, 1990.
Traduzido por Jaciara Veiga a partir da versão disponível em: https://nuevocurso.org/el-nacimiento-del-feminismo/. Revisado por Ricardo Golovaty.