O Marxismo Revolucionário – Paul Mattick

Publicado em: International Council Correspondence Vol. 1, no. 8, Maio de 1935, p. 1-6.

Para o marxismo, a contradição determinante na sociedade atual reside no desenvolvimento contraditório das forças sociais de produção no interior das relações de produção existentes ou, expresso de outra forma, entre o caráter cada vez mais socializado do próprio processo produtivo e as relações de propriedade persistentes. Em todas as formas de sociedade, o avanço geral da humanidade foi expresso no desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, dos meios e métodos de produção, permitindo que quantidades cada vez maiores de artigos de uso sejam produzidas com uma quantidade cada vez menor de trabalho humano direto. Este processo é divisível em períodos históricos. Nele, cada estágio simplesmente reflete o nível obtido das forças produtivas em constante crescimento e desenvolve para elas relações sociais correspondentes. E assim que um dado conjunto de condições sociais deixa de ser suficiente, sem dar origem a grandes desajustes nas esferas social, econômica e política, para satisfazer as exigências das novas e crescentes forças produtivas, essas condições foram superadas através da ação revolucionária.

Todo o desenvolvimento social é baseado, em última instância, no processo de interação entre o homem social e a natureza. A contradição decorrente do trabalho humano entre o ser e a consciência, a natureza e o homem, leva a um desenvolvimento e a uma mudança cada vez maior da natureza, da sociedade, do homem e da consciência. No interior desta grande contradição evoluem, no processo de desenvolvimento, contradições sociais menores, que por sua vez impulsionam o movimento social progressivo ao longo do caminho da revolução.

Uma vez que o desenvolvimento das forças produtivas esteve atrelado ao longo do passado à ascensão e ao declínio das classes, a história passada deve necessariamente ser considerada como uma história da luta de classes. Assim, o desenvolvimento da manufatura sob o feudalismo tinha de levar, em um determinado nível, à superação do feudalismo e ao nascimento da sociedade capitalista; uma transição que assumiu uma expressão revolucionária em todos os domínios sociais.

A expressão da contradição, a dialética materialista, a teoria filosófica do marxismo e, ao mesmo tempo, a lei de todo movimento real, busca em todas as contradições sua unidade – sem, contudo, por isso, confundir essas contradições – e vê no movimento espontâneo das contradições sua abolição, ou seja, sua resolução numa terceira forma, que novamente produz e deve superar sua contradição. Uma vez que a análise marxista toma o capital como seu ponto de partida, o capital se torna a tese da qual o proletariado é a antítese. A lei dialética da negação da negação leva à síntese. Esta só pode ser a sociedade comunista, que não conhece nem o capital nem o proletariado, dado que ela absorveu ou resolveu a ambos em suas formas concretas. Isto é simplesmente o declínio de uma casca social e, sendo um produto de relações de propriedade históricas, é apenas no capitalismo que esta casca pode possuir realidade concreta. A história, como toda a realidade, é dialética, e, portanto, ilimitada. Cada problema não possui nada além de um caráter histórico. O marxismo não se apresenta como algo absoluto, mas como a teoria da luta de classes dentro da sociedade capitalista.

Do ponto de vista do marxismo, a contradição entre capital e trabalho não é apenas o início e também o fim da sociedade atual, mas o desenvolvimento progressivo dessa sociedade deve ser visto apenas no crescimento e na agudização dessa contradição. Sendo o capital o resultado da exploração da força de trabalho, portanto, com o crescimento do capital, isto é, no curso do progresso humano em marcha neste período histórico, a exploração dos trabalhadores deve necessariamente ser cada vez mais intensificada. Se as possibilidades da exploração da força de trabalho no sistema atual fossem ilimitadas, não haveria razões para esperar um fim à sociedade capitalista. Mas com o crescimento do proletariado, a luta de classes também aumenta, visto que em certo ponto do desenvolvimento, as forças produtivas dos trabalhadores deixam de poder ser aplicadas de forma capitalista. Nesse momento, o proletariado, por si mesmo, se desenvolve em uma força revolucionária que busca e acaba por provocar uma derrubada das relações sociais existentes.

O marxismo, que percebe na existência do proletariado a realização do movimento dialético da sociedade, baseia sua justificação teórica principalmente nas leis do desenvolvimento econômico em geral, e do capitalismo em particular. As relações de produção capitalistas não são somente determinadas pela natureza (a terra como base do trabalho) e pela atividade humana, mas estas condições naturais estão também subordinadas às relações sociais capitalistas. As preocupações dos seres humanos não são reguladas do ponto de vista de suas necessidades como seres humanos, mas do ponto de vista das necessidades capitalistas por lucros. O fator decisivo na sociedade capitalista não é a produção de valores de uso, mas de capital; este último é a força motriz do maquinário produtivo. Esta dependência do bem-estar humano dos interesses privados dos capitalistas torna-se possível através da separação dos trabalhadores dos meios de produção. Os trabalhadores não podem viver senão através da venda da sua força de trabalho. Os compradores da força de trabalho, que são ao mesmo tempo os donos dos meios de produção, compram esta força apenas com a finalidade de reforçar seus interesses privados enquanto capitalistas, sem consideração pelas consequências sociais.

Nós vimos que em todas as formas de sociedade, o desenvolvimento progressivo é ilustrado no crescimento contínuo e no aprimoramento dos meios e métodos de produção, permitindo a produção de uma quantidade cada vez maior de produtos com cada vez menos trabalho. No capitalismo, este mesmo processo se expressa num crescimento mais rápido do capital investido nos meios de produção em comparação com o capital investido na força de trabalho. Nós chamamos capital constante essa parte do capital que é investida nos meios de produção, uma vez que, enquanto tal, ela não proporciona mudanças de magnitude; e aquela porção que vai na forma de salários para os operários, chamamos de capital variável, visto que acrescenta, através do próprio trabalho, novas valores àqueles já presentes. Dessa forma, demonstra-se que o desenvolvimento das forças sociais de produção sob o capitalismo é expresso num crescimento mais rápido de capital constante relativamente ao variável.

O capital, e portanto sua forma material, os meios de produção e a força de trabalho, pode, contudo, como já afirmamos, funcionar de forma capitalista apenas na medida em que isto pode parecer lucrativo para os donos dos meios de produção. Sendo acionados apenas enquanto capital, eles devem reproduzir-se a si mesmos como capital, algo que só é possível, em bases capitalistas, pela via da acumulação. O mais-valor, a partir do qual são derivados os fundos para a acumulação, os meios de produção e a força de trabalho adicionais, bem como o lucro dos capitalistas, contudo, não é nada senão trabalho não-pago. É aquela parte do produto dos trabalhadores que não é consumido por eles, mas que foi tirado deles. Agora, visto que o mais-valor é derivado exclusivamente da parte variável do capital, e se esta parte variável deve ser reduzida constantemente – relativamente ao avanço da acumulação -, então o mais-valor deve, com precisão matemática, ser constantemente reduzido relativamente à acumulação apesar de crescer em termos absolutos. Este movimento contraditório, pelo qual, com o avanço da acumulação, a taxa de lucro cai (a taxa de lucro é calculada sobre o capital total, constante e variável), – um processo representado como crescimento da composição orgânica do capital – não é, contudo, até um certo ponto do desenvolvimento capitalista nem um pouco perigoso, dado que em um estágio bastante baixo de desenvolvimento, o sistema é capaz de acumular mais rápido que a taxa de lucro cai, ou, em outras palavras, compensar a queda da taxa de lucro pelo crescimento da massa de lucro real. Esta possibilidade não é, entretanto, menos histórica do que todas as outras questões.

Tem de haver acumulação, e quanto mais baixo cai a taxa de lucro como resultante desta acumulação, tanto maior deve ser a acumulação. Quando a acumulação sai de cena, vem a crise; a resolução da crise só é possível através de acumulação adicional, e necessariamente numa taxa continuamente acelerada. A um nível bastante elevado de desenvolvimento capitalista, quando o tempo inerente à acumulação exige o avanço posterior da acumulação em tal medida que a massa de lucro absolutamente inchada é demasiado pequena em relação a essas exigências de acumulação adicional, então a acumulação deve necessariamente parar e o boom se transforma em crise. Em outras palavras, a acumulação capitalista devora, para seus próprios propósitos, pela qual toda a sociedade está condicionada, uma parte progressivamente maior de mais-valor produzida pelos operários; e, a despeito do crescimento deste mais-valor, ela deve, contudo, em um ponto alto de desenvolvimento, provar-se insuficiente para satisfazer as exigências da acumulação. Esta lei da acumulação capitalista, a causa primária da qual deve ser vista na contradição entre valor de troca e valor de uso, entre capital e trabalho, é confirmada como uma lei real por todos os fatores empíricos envolvidos. Se a acumulação chega num impasse, pela razão do fato de que não há mais-valor suficiente disponível para sua continuação, então essa parte do capital que é a ela destinada, mas é ao mesmo tempo insuficiente para satisfazer as necessidades da acumulação, permanece ociosa e busca em vão por possibilidades lucrativas de investimento. Somos confrontados com a verdade paradoxal de que uma escassez de capital dá azo a uma superfluidez de capital sem espaço para investimento. Não há uma falta de poder de compra, ainda que, no sentido capitalista, não se pode fazer uso deste poder de compra, visto que, deste ponto de vista, ele é sentido, posto que não-rentável.

Se a acumulação não é contínua, a situação deve necessariamente dar origem a uma imobilização geral da atividade humana. As mercadorias destinadas à acumulação posterior não conseguem encontrar compradores. Elas ficam inutilizadas, e da super-acumulação resulta a superprodução geral de mercadorias; uma circunstância que se expressa no fechamento e na paralisação de empresas em todas as esferas da vida social e, logo, em um enorme crescimento do desemprego.

A crise também traz com ela certas tendências que trabalham para superá-la. A composição orgânica do capital é reduzida pelo capital sendo destruída através de falências e desvalorização. Por meio da exportação de capitais e da intensificação de empreendimentos imperialistas, novas fontes de mais-valor adicional são criadas. Através da racionalização geral de métodos de trabalho, maiores inovações técnicas no processo produtivo, fontes mais baratas de matérias-primas, assim como pela pauperização dos operários e expropriação das classes médias etc., a quantidade de mais-valor é adaptada para satisfazer as demandas de nova acumulação. Todos os esforços durante a crise servem para reavivar operações capitalistas rentáveis em um nível de preço e valor mais baixo. Se isto ocorre, não há nada que se coloque no caminho de uma nova ascensão, que, contudo, após um determinado tempo, como resultado de uma superacumulação renovada, necessariamente desagua numa nova crise. A estes fatores chamamos as contratendências dirigidas contra o colapso do capitalismo.

Franz Seiwert, Factory [Fábrica]

Como todo o resto, porém, estas contratendências são de natureza histórica. Em um certo ponto do desenvolvimento capitalista, sua eficácia enquanto fatores na superação de crises deixa de funcionar. Eles tornam-se demasiado fracos em relação às novas exigências da acumulação ou já estão completamente exauridos em consequência da acumulação precedente (por exemplo, a expansão capitalista atinge os seus limites objetivos muito antes de completar a sua marcha sobre o globo). Por outro lado, a racionalização capitalista leva, como foi demonstrado, à desracionalização, e também a revolução da técnica tem seus limites capitalistas. A longo prazo, não se consegue nem manter os salários abaixo dos custos de reprodução dos operários nem expropriar totalmente os elementos da classe média. Mais adiante, a monopolização reduz a possibilidade de expansão do capital, e os empreendimentos imperialistas são cada vez mais duvidosos. Mas a despeito de como ou quando as contratendências são neutralizadas, está claro para o marxista que o capitalismo deve, necessariamente, chegar num ponto no qual o último ciclo de crises abre caminho para a crise permanente que o capitalismo é incapaz de superar.

Esta crise permanente, ou crise derradeira, do capitalismo é uma crise não mais restrita por nenhuma contratendência – uma crise na qual a tendência para o colapso segue o seu curso. Mas mesmo aqui, não somos confrontados com um ato único, mas com um processo, todo um período histórico. Em uma tal condição econômica, a pauperização relativa do proletariado, que acompanha a totalidade do desenvolvimento capitalista, está destinada a se tornar absoluta, geral e permanente. Durante o período de atualização do capitalismo, os salários subiam, dado que o custo de reprodução dos operários também crescia continuamente, embora em relação ao que produziam, sua porção era cada vez menor. Na crise permanente, suas condições reais de vida estão fadadas a piorar de modo de absoluto e ininterrupto.

A condição da crise permanente forma a base objetiva do movimento operário revolucionário. A luta de classes se agrava e assume formas mais desnudas. Por outro lado, os meios de repressão empregados pela classe dominante são adaptados a esta nova condição. Enquanto no período de atualização do capitalismo, a “democracia formal” bastava para permitir o funcionamento suavizado do mecanismo social, na crise permanente, o capitalismo tem de assumir uma ditadura aberta. No lugar da “democracia” surge, em um estágio mais elevado do desenvolvimento, uma condição política que hoje é chamada de fascismo. O fato de que a base ideológica do fascismo seja formada pela classe média depauperada não altera o fato de que o movimento fascista opera apenas no interesse do capital agora monopolizado. A concentração capitalista, que continua mesmo na crise permanente, também depauperiza necessariamente as camadas médias de capitalistas. Portanto, as energias surgidas no interior da classe média são empenhadas pelo capital monopolista para os seus próprios fins. São feitas concessões a partes da pequena-burguesia às custas dos operários, embora estas concessões tenham apenas um caráter temporário.

Através da destruição das organizações e da eliminação das limitadas liberdades “democráticas” dos operários, com a ajuda dos jagunços corruptos da classe média e de parte dos operários sob sua influência ideológica, o capitalismo pensa assegurar sua existência contínua, mesmo durante a crise permanente. Mas ainda que, através do terrorismo, os operários possam estar politicamente atomizados, sua reunião em grandes massas é ainda necessária para a produção industrial. Com a destruição da velha forma do movimento operário, novas formas necessariamente emergem; e dado que estas formas são desprovidas de outros meios de expressão, elas devem se expressar no próprio trabalho, pelo qual sua força é aumentada em mil vezes. Assim, o movimento dos conselhos operários, a forma organizacional da revolução, emerge naturalmente das próprias condições criadas pelo capitalismo. O terror permanente é ao mesmo tempo a escola política dos operários. De forma que, no proletariado, o capitalismo não produz apenas seus próprios coveiros; ele tem também de demonstrar ao proletariado como eles podem lutar com êxito.

Embora os operários, em grandes massas, possam jamais alcançar uma consciência revolucionária a fim de viver, eles são forçados a assumir a luta contra o capital. E quando lutam por sua existência sob as condições da crise permanente, esta luta, a despeito de sua qualidade ideológica, é uma luta que só pode virar na direção da superação do sistema capitalista. Até a derrocada revolucionária vitoriosa, o proletariado vive em condições bárbaras, com constante agravamento, e a única possibilidade de escapar disso é o comunismo; isto é, a superação das relações de produção capitalistas, a abolição da propriedade privada dos meios de produção, a qual é idêntica à abolição do trabalho assalariado.

O marxismo não é apenas uma teoria que brotou da existência do proletariado e sua posição na sociedade; o marxismo é a verdadeira luta de classes entre o capital e o trabalho, isto é, uma condição social na qual os operários, quer eles queiram ou não, quer estejam conscientes disto ou não, quer conheçam Marx ou não, são incapazes de agir de outra maneira que não seja de acordo com o marxismo, caso desejem manter-se a si mesmos e, dessa forma, ao mesmo tempo servir ao progresso geral da humanidade. Se por um lado, o próprio Marx atualizou a dialética hegeliana, isto é, reconheceu o movimento real, concreto como dialético, o marxismo somente pode ser atualizado por meio do proletariado em luta. Um marxista não é alguém que aprendeu a dominar as teorias marxianas; um marxista é alguém que se esforça por atualizar essas teorias. Em uma palavra: o marxismo não é apenas uma visão de mundo; o marxismo é o proletariado vivo, em luta.

Traduzido por Alexandre Guerra, a partir da versão disponível em: https://www.marxists.org/subject/left-wing/icc/1935/05/marxism.htm. Revisado por Thiago Papageorgiou. O original pode ser visto em: http://aaap.be/Pdf/International-Council-Correspondence/International-Council-Correspondence-1-08.pdf.